Hildegard von Bingen- O vis aeternitatis-- O vis aeternitatis- 9 min.
Hildegard von Bingen-
O vis aeternitatis- Cantides of Ectasy sequantia- Chants de l'extase -73 min.
Henri Bergson
A intuição Bergsoniana entre
filosofia e espiritualidade
Catarina Rochamonte
O tempo real ou a duração, que nem a ciência nem a metafísica teriam conseguido
efetivamente pensar, surge como um objeto concreto para o qual
Bergson buscará um método adequado. O tempo com o qual a ciência lida
é apenas uma variável obtida através da relação com o espaço percorrido, enquanto
o tempo na filosofia aparece como algo dado de ordinário através do entendimento
ou da sensibilidade. Para Bergson, entretanto, o tempo que conhecemos
não é o tempo no qual conhecemos, o tempo real, chamado por ele de duração. A
esse tempo real teríamos acesso apenas interiormente por meio de uma intuição.
Não que a duração se dê à consciência através da intuição, como se houvesse aí um
clara distinção entre objeto, sujeito e método; antes a consciência - na integridade,
no movimento e na qualidade que lhe são inerentes - é a própria duração e a intui-
ção é a consciência tentando abarcar a si mesma.
Na medida em que a consciência,
para Bergson, ultrapassa o domínio da inteligência, a intuição de que é capaz não
se limita a uma relação cognitiva entre sujeito e objeto, mas impõe ao indivíduo
uma experiência que envolve a totalidade da sua personalidade e que o transforma.
Nesse sentido, gostaríamos de sugerir que o aprofundamento da concepção
bergsoniana da duração, assim como do método capaz de apreendê-la, reduz cada
vez mais a tênue barreira que separa filosofia e espiritualidade; redução essa que
se torna patente na última obra de Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
onde a experiência mística é concebida como relação supra-teórica, não-cognitiva,
fruitiva, pessoal, passional, transformadora e, de certo modo, incomunicável, do
sujeito com a verdade.
A intuição se reveste, no pensamento de Bergson, de um caráter positivo,
factual, isto é, de uma experiência efetivamente válida para o conhecimento meta-
físico. Trata-se de uma espécie de temporalização do cogito, de um cogito desprovido
de substância e deslocado do presente para um passado que nele pulsa. Em
Introdução à metafísica, essa intuição é apresentada como uma forma de conhecimento
interior e absoluto, em contraposição à análise que seria uma forma de
conhecimento exterior e relativo. Na análise, o conhecimento de um objeto é a sua
remissão a algo que não é ele mesmo, uma explicação em função de algo, intermediada
pela perspectiva do observador e pelo seu simbolismo linguístico. Na intui-
ção, a apreensão é imediata, não há intermédios. A intuição seria o instinto tornado
desinteressado e consciente de si ou a inteligência contrariando a sua inclinação
natural no esforço para incidir sobre aquilo que não lhe convém. Mas a intuição é
também um método, cabendo à filosofia fazer migrar a intuição da duração do seu
devir silencioso, articulando, de algum modo, esse conhecimento interno com os
dados fornecidos pela ciência e com a dialética conceitual.
Como o tempo para Agostinho, cuja compreensibilidade lhe foge se lhe reclamam
uma explicação , a duração que somos e na qual estamos é uma instância
arredia a qualquer tentativa de demonstração ou determinação. Sabemos o que
ela é, mas o sabemos quase instintivamente, sendo o entrecruzamento entre as
fontes interna e externa de nosso conhecimento o início da reflexão filosófica, de
seu discurso e de seu método, cuja dificuldade estaria menos no ponto de partida
imediato, que na extensão desse conhecimento imediato para o restante do mundo.
Essa extensão seria possível, para Bergson, através de uma simpatia , isto é, de
um ato simples a partir do qual o indivíduo se identifica com o objeto, coincidindo
com aquilo que ele tem de único e inexprimível.
Enquanto a inteligência opera sobre a matéria e especula sobre e a partir de conceitos, a intuição opera sobretudo como simpatia, como coincidência do sujeito com o objeto, em uma relação que antecede ou mesmo fundamenta, torna possível o conhecimento (em seu sentido
tradicional, que pressupõe a oposição sujeito/objeto). Sem abrir mão do sentido
epistemológico requerido pela intuição, esse conceito de simpatia guarda ainda
um sentido ético e estético.
A intuição seria um contato com a realidade anterior ao pensamento; uma
experiência que não é mera sensação, nem pura reflexão, mas algo que precisaria
ser pensado a partir da concepção bergsoniana da emoção. Não a mera agita-
ção sensível que sucede uma representação, mas a vontade que a antecede, como
o sentimento que impulsiona a criação do artista ou a compaixão que impele os
grandes homens à caridade. Nesse sentido, a intuição pode ser tida por um tipo
especial de “conhecimento” do qual são capazes algumas individualidades privilegiadas.
Como resultado da intensificação de um conhecimento interno distinto
do conhecimento pragmático próprio da inteligência, ou seja, como resultado de
uma intensificação da intuição, teríamos a compaixão e a caridade, cuja explicação
metafísica remeteria ao contato com a fonte do Élan Vital.
1 “si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare uelium, nescio”
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Mas ao tomar por ponto de partida a eliminação da mediação do conhecimento,
o filósofo tem que lidar com as dificuldades de uma simpatia/analogia ou
extensão desse conhecimento imediato para as outras coisas ou seres e com a possibilidade
ou impossibilidade de expressão conceitual desse saber que parece ser
de ordem prática e não teórica. A ausência de uma separação real entre o eu e o
mundo e a consequente ausência de distinção entre sujeito e objeto, não sendo um
dado da experiência ordinária nem algo a que se chegue por mera reflexão, impõe
ao filósofo a sua consideração através da óptica do artista ou do místico, o que
levanta a questão da legitimidade da interpretação do filósofo acerca de uma experiência
que ele mesmo não vivencia. Essa questão se mostra bastante relevante
quando aplicada ao pensamento do filósofo em questão, para quem a experiência
mística é reveladora de uma verdade metafísica.
A intuição bergsoniana parece pressupor um rompimento com aquilo que
tradicionalmente caracterizou o pensamento filosófico ocidental, a saber, o dualismo.
Para além das inúmeras nuances e dificuldades envolvidas nessa questão, importa-nos
notar que o elemento metafísico, na medida em que não se deixa apreender
reflexivamente dentro da dicotomia sujeito/objeto, envolve o pensamento de
Bergson numa intersecção entre teoria e prática ou entre filosofia e espiritualidade.
A noção de uma experiência imediata, interior e pré-reflexiva da qual a metafísica
deve partir aproxima o filósofo de uma espiritualidade da qual se distancia pelas
exigências teóricas do próprio discurso. Se a intuição da duração carrega consigo
um germe de espiritualidade, sua extensão em método de pesquisa põe a filosofia
novamente no campo da especulação racional. A expressão da intuição vem acompanhada
de elementos conceituais que lhe são estranhos e o esforço de abstração
equivale paradoxalmente à construção de um método cuja complexidade parece
tornar distante a intuição na sua simplicidade original. O esforço de compreensão,
expressão e articulação teórica da intuição inviabilizaria, pois, a própria experiência
intuitiva cujo aprofundamento levaria a um saber de ordem moral e não teórica.
A experiência religiosa, mais especificamente a experiência mística, despontaria
então como a experiência metafísica que o filósofo sugeriu, mas não alcançou; interpretou,
mas não viveu.
O importante papel atribuído por Bergson à experiência mística em sua última
obra relaciona-se à sua lucidez quanto à radical impossibilidade de assimila-
ção do elemento metafísico através de um conceito, ou seja, liga-se à tese de que
as representações filosóficas só apresentam simbolicamente aquilo que puseram
como fundamento no interior de suas teorias. Se a filosofia bergsoniana abarca de
alguma forma uma genealogia da racionalidade, se remete a percepção consciente
e a própria linguagem à sociabilidade e à ação necessárias à sobrevivência de um
organismo, então a ‘verdade’ desta filosofia não pode ser simplesmente um objeto
da razão, um conceito, uma ideia. Uma metafísica com tais pressupostos requer um
tipo especial de experiência, de consciência, de indivíduo. A experiência mística
evidenciaria então uma realidade psicológica distinta da consciência pragmática e
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da consciência reflexiva ou especulativa, assim como o modo de vida místico atestaria
uma conduta contraditória e quase paradoxal, se comparada à ação do indiví-
duo preocupado em garantir a própria sobrevivência.
A consideração dos fatos biológicos conduzira Bergson à concepção do Élan
vital e de uma evolução criadora, permanecendo entretanto sem resposta questões
acerca da origem, do princípio e da auto-suficiência desse elã, assim como do sentido
de suas manifestações. Os fatos biológicos considerados n’ A Evolução Criadora
não ofereceram essa resposta, mas indicaram o caminho para se chegar até ela. A
resposta deveria vir das potencialidades intuitivas, do despertar, no homem, do
outro modo de conhecimento no qual a energia lançada através da matéria se dividira.
Em A Evolução Criadora, Bergson apresenta o alcance filosófico da intuição,
ancora a possibilidade desta forma de conhecimento na sua metafísica da vida,
mas encontra também os limites para a apreensão da duração que permanece ainda
indireta, dada apenas através de uma analogia/simpatia entre o sentimento de
existência em nós e a duração das coisas. Haveria, entretanto, a possibilidade de
uma experiência direta da duração através da experiência mística. Nesse sentido, a
intuição mística pode ser lida como um prolongamento possível da intuição filosó-
fica. De fato, ambas têm em comum a imediatidade, a interioridade, a simplicidade,
a superação das representações simbólicas, e, principalmente, o ponto de partida,
qual seja, a franja de intuição que aureola a inteligência ou a unidade originária de
inteligência e instinto. Ambas fundamentar-se-iam na ontologia desenvolvida em
A evolução criadora, onde o instinto aparece ao lado da inteligência como um tipo
de “atividade psíquica”; porém, mais adaptado à vida.
No entanto, essa interpretação da experiência mística como o último nível
da intuição filosófica, como a plenitude da experiência outrora empreendida no
âmbito da psicologia e da filosofia da natureza, embora pertinente, suscita a objeção
de que o último grau da intuição bergsoniana dar-se-ia fora da filosofia, em
uma experiência para a qual o filósofo não está apto. Além disso, embora Bergson
defina a experiência mística como uma intensificação do elã vital - justificando assim
a interpretação da intuição mística como o momento mais elevado da filosofia
– sua proposta final parece ser a ênfase na concessão de um valor metodológico à
experiência mística e na sua agregação, como uma outra “linha de fato”, aos dados
biológicos já considerados em Evolução criadora. Nessa perspectiva, a instrumentalização
metódica da experiência mística e não a experiência mesma seria o está-
gio mais maduro da intuição filosófica.
A experiência mística, ao manifestar o seu contato com a verdade sob a forma
de amor à humanidade, ofereceria, ao filósofo que a considera, não apenas a
explicação da fonte de toda moralidade, mas o segredo da criação, o sentido da
evolução. Entretanto, a apreensão do sentido da evolução criadora tornada possível
através do estabelecimento da relação entre mística e elã vital pressupõe a
objetivação do fenômeno místico levada a termo através da ênfase no seu caráter
experimental ou psicológico em detrimento de sua dimensão teológica ou de sua
A intuição Bergsoniana entre filosofia e espiritualidade
apresentação dogmática. Por trás da importante distinção entre religião estática
e religião dinâmica estaria o projeto bergsoniano de uma metafísica positiva fundada
na experiência, sendo a rejeição de uma teologia racional uma consequência
natural da sua teoria da vida que circunscreve e delimita as possibilidades de conhecimento
da inteligência.
O modo peculiar como Bergson se apropria do fato religioso, mais precisamente
da experiência dos místicos, parece estar relacionado a uma oscilação presente
em sua concepção de método e de filosofia: a intuição mística será o momento
mais elevado da filosofia quando a filosofia for considerada um esforço de intuição
da duração; a intuição mística será um mero “auxiliar” da filosofia quando a intui-
ção filosófica for considerada um método de pesquisa. No primeiro caso, trata-se
de um saber não teórico e profundamente transformador, a tal ponto que impele à
ação, mais especificamente à ação amorosa e caritativa. O elã místico seria uma intensificação
do elã vital, porém essa intensificação corresponderia a uma ruptura
ilustrada na distância que separa o filósofo do santo ou do verdadeiro místico. O
último grau da intuição bergsoniana dar-se-ia fora da filosofia, fato passível de ser
interpretado como a aceitação, por parte de Bergson, de uma limitação que lhe seja
intrínseca, não apenas enquanto tentativa de expressão conceitual (limitação a
que chama atenção em toda a sua obra), mas também enquanto tentativa de apreensão
da duração. No segundo caso, a suposta falência da filosofia seria mitigada,
na medida em que o procedimento que lhe compete é propriamente metódico. A
intuição filosófica seria, então, um conhecimento teórico e exprimível, porém indireto,
mediado e possivelmente pouco transformador ou meramente intelectual.
Em um caso, teríamos a intuição filosófica como experiência efetiva cuja completude
ultrapassaria paradoxalmente o esforço filosófico. No outro caso, teríamos a
intuição filosófica como esforço filosófico cuja completude se daria internamente,
dentro de seus próprios limites. Haveria, em suma, entre a intuição filosófica e a
intuição mística uma relação de continuidade (do ponto de vista metodológico) e
de ruptura (do ponto de vista da experiência subjetiva).
A experiência mística, ao ser metodicamente investigada pelo filósofo, ofereceria
as respostas que ficaram abertas em Evolução criadora. De A evolução
criadora para As duas fontes da moral e da religião passar-se-ia da constatação da
vida como criação para o desvelamento do sentido da vida. A consideração da
experiência mística em As duas fontes explicaria o ato da criação e seus efeitos,
acrescentando aos resultados de Evolução criadora a definição da energia criadora
como amor. O místico seria misteriosamente insuflado pelo mesmo elã cujo desenvolvimento
resulta no interminável espetáculo da evolução e exprimiria a intensificação
desse elã como sendo uma experiência de amor que se eleva de sua alma
a Deus e retorna estendendo-se a toda a humanidade. Mas só ao místico é dado
conhecer diretamente o movimento criador que é a vida, a duração. Só ele se põe
em contato direto com a vida, que o transforma, porque se ao filósofo é possível
“saber” que o impulso vital é, em última instância, o amor, somente os místicos se
deixam absorver e transformar por essa verdade. Se o desvelamento do sentido da
criação como amor equivale à necessidade de expansão desse sentido, ou seja, se
a verdade transforma o sujeito a quem se doa; se o acesso à verdade ou ao sentido
da criação equivale a uma transformação que leva à ação generosa, então não haveria
entre intuição filosófica e intuição mística mais ruptura do que continuidade?
Seríamos, pois, obrigados a rejeitar a hipótese da continuidade entre ambas? Ou
ganharíamos mais se concebêssemos a filosofia como um modo de vida capaz de
preparar o homem para a ‘abertura” plena da moral, restabelecendo assim o vínculo
perdido entre filosofia e espiritualidade?
A compreensão da intuição mística como prolongamento, intensificação
ou máxima espiritualização da intuição da duração é mais coerente com a interpretação
da intuição bergsoniana como função do espírito, graus de apreensão
da duração, experiência psicológica ou vivência interior, enquanto a abordagem
da intuição mística como mero auxiliar da pesquisa filosófica adequa-se melhor à
concepção da intuição bergsoniana como método. Sugerimos que a despeito da importância
da compreensão da intuição como método, a ênfase nessa perspectiva,
quando dada em detrimento do seu aspecto de experiência subjetiva compromete
algo fundamental, a saber, a possibilidade de restituição das relações entre filosofia
e espiritualidade ou o exercício da filosofia enquanto sabedoria de vida. Como
bem coloca Jean-Louis Vieillard Baron: “a filosofia não é somente um trabalho de
reflexão puramente intelectual, embora também não seja unicamente um trabalho
sobre si mesmo
” Acreditamos que seja possível resgatar na intuição bergsoniana
essa dimensão do “trabalho sobre si mesmo”, na medida em que a atitude filosófica
pode ser concebida como esforço da vontade para evitar que a inteligência se absorva
totalmente na ação necessária para a sobrevivência ou na matéria enquanto
campo de investigação ao qual naturalmente tende.
BARON, Jean-Louis Vieillard. continuité et discontinuité de l´ouvre de Bergson. in Annales Bergsoniennes
I, p.284
Fontes:
pirmpR