Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
Antropóloga, professora do PPCis
Antropóloga, professora do PPCis
e coordenadora do Laboratório de Dinâmicas Societárias,
 IFCH - UERJ
Resumo:  A discussão teórica sobre memória se faz num cruzamento de idéias sobre  linguagem, calcadas principalmente nas perplexidades desencadeadas  pelas modernas tecnologias da sociedade da informação. Privilegiando o  enfoque de Henri Bergson sobre memória nesta comunicação, apresento  estudos de caso em que suas teorias sobre matéria, memória e suas  relações com o corpo explicam fenômenos como a violência e seus efeitos.  Nos exemplos apresentados analiso a memória da violência iluminando  reflexões cientificas (Dra. Nise Magalhães da Silveira) e, em outras  circunstâncias, produzindo forte reação à dor, enquanto gera ações de  largo alcance social – combate ao cangaço. 
Abstract:(...)
De  espectro muito abrangente, o título da mesa desafia a possibilidade de  se falar, em vinte minutos, de temas tão complexos, responsáveis por  vasta bibliografia nestes tempos de informática, onde o que mais se  pratica é "deletar" material para abrir espaços a novos descartáveis.
É  possível à memória humana a preservação da carga midiática de que se  alimenta a sociedade da informação? 
A linguagem do computador
 é  acessível à grande massa 
da população do planeta? 
Quais os critérios  para se escolher o que deve ser deletado e o que se preservará em  tecnologias mais avançadas? Um disquete ou um CD tem o mesmo tempo de  vida que o livro de papel, o papiro e o pergaminho?
Como  no palimpsesto utilizado pelos destruidores de memórias mais remotas  para nele se implantar outras mais recentes, a linguagem do computador,  não mais pela pobreza de material de que padeceram os antigos escribas,  mas pela própria lógica de mercadorização do mundo, foi programada para  deletar de sua memória "mercadorias" superadas por outras mais  "modernas", numa voracidade ímpar na história, de oferecer "novas  chances de compra ao consumidor". Afinal, o principal princípio dos  direitos individuais, é o de "poder consumir o que se pode comprar". A  sofreguidão maior da mídia é a produção, na linguagem mais sintética e  rápida do mundo, de "novas notícias". Qual o lugar das "velhas  notícias"?
Essas  preliminares, que podem ser desenvolvidas em outros tempo e espaço,  ficam "guardadas na memória do disco rigído", junto com a discussão  sobre ‘identidade’, limitando-me nesses vinte ou trinta minutos de fala  programada, a considerações sobre o debate teórico do tema "memória", um  dos tantos "musts" dos mundos acadêmico e jornalístico dos últimos vinte anos. 
Aliás,  programação dos tempos de fala, determinação de número de toques por  artigos e de laudas por dissertação de mestrado e tese de doutorado, são  inequivocamente submissão às imposições da mídia que calcula sempre o  preço do espaço por centímetro ocupado nas páginas de jornais e  revistas, e os custos dos segundos e minutos consumidos em rádio e  televisão. Em defesa dessa pressão argumenta-se com tabelas de custos de  material, energia, tempo dos profissionais, em outras palavras,  compatibilização entre custos e lucro envolvidos na "oferta do produto"  ao "consumidor". Até as agências de financiamento público à pesquisa e à  capacitação de pessoal – "formação de recursos humanos", discutem  "bolsas de balcão" ou "programas de incentivo à pesquisa grupo". Esta  linguagem é outra representação de subsídios, investimentos no "varejo"  ou no "atacado"?
Retendo  fatos, transmitindo-os, reelaborando-os, criando-os, em suma,  representando-os pela linguagem (falada, gestual - prelúdio da  imagética, escrita, e hoje virtual e áudio-visual), a espécie humana  brinca, com um caleidoscópio de infinitas possibilidades, com a tentação  de ser Deus manipulando a natureza, recriando-a, transformando-a,  inventando-a, isto é, faz cultura. Em todo esse processo, a memória é o  mecanismo de apoio, o elemento diferencial que evita à humanidade partir  sempre do zero, das primeiras regras de vida associativa ou de técnicas  de domesticação da natureza e de produção tecnológica, lançando-se no  mecanismo cumulativo de saber transmitido intra e inter-gerações. 
Com  origem desconhecida num tempo sem registro de linguagem perceptível às  modernas gerações, a cultura (criação das linguagens, de regras de  parentesco, primeiras classificações e tecnologias), essencial à  sobrevivência humana, pelo processo de socialização se torna  "patrimônio", direito de qualquer nascido em todos os tempos e espaços  particulares da sociedade humana universal.
Recorrendo  ao mito, segundo Lévy-Strauss, tão universal quanto a regra do tabu do  incesto, a cultura, perpassando todas as metalinguagens de alteridades  sociais mais amplas ou restritas, universaliza como direitos do homem,  as conquistas que garantiram a espécie, até contra a lei da seleção  natural.
A  singularidade da metalinguagem, como a científica por exemplo, sem a  escrita e longo processo de aprendizagem se perde no universo ágrafo,  enquanto o mito, alimentado principalmente pelas emoções e  ritualizações, é a linguagem universalmente acessível à humanidade. O  recurso à memória emocional é largamente utilizado no ensino X  aprendizagem desde a infância, num processo de recorrência que integrará  a personalidade dos indivíduos constituindo-se marca na memória das  coletividades de que esses fazem parte, ao mesmo tempo em que  influencia, como o afirma Bergson, o caráter dos portadores dessa  memória.
A  preocupação com o estudo da memória, incorporada mais recentemente às  ciências humanas, esteve há décadas (ainda no século XIX) no centro das  discussões entre neurologistas, anatomistas e outros estudiosos das  ciências naturais, como por exemplo, a Teoria de Broca sobre a  localização da zona de memória no lobo frontal do cérebro (zona de  Broca). Por esse viés, a busca de compreensão da memória ocupou-me  períodos de estudo de neuroanatomia na década de 60, quando teoricamente  se estudava nas áreas médicas a existência material da memória, nos  tratamentos de afasias de expressão ou compreensão.
Conclusões eram  tiradas a partir de comparações entre a zona de Broca de um profissional  da fala, como um radialista, e alguém pouco falante (sempre portador de  zona de memória menos volumosa). Por essa perspectiva, o avanço que me  orientou inicialmente em busca de outras abordagens, levou-me a Henri  Bergson, em seu "Matéria e Memória: Ensaio sobre a Relação do Corpo com o  Espírito".
Esse  autor voltaria a minhas reflexões na década de 90, nas discussões, já  no Doutorado, sobre Trabalho de Campo e significado da memória  registrada nos depoimentos dos informantes. Nesse período, as discussões  sobre História Oral já apareciam em rica bibliografia incorporando  Halbwachs, Pierre Nora, Ecléa Bosi, Michael Pollak e os debates sobre  Memória e História, que culminariam no conceito de cultura como memória.
Trabalhando  a oralidade do material etnográfico, tanto na pesquisa de mestrado  (catolicismo popular – décadas de 70, 80) quanto no doutorado (violência  no Nordeste – 92 a 97), evidenciava-se a importância da memória não só  para as reconstituições de época, como para as representações e  construção de identidade. Principalmente na análise de violência,  privilegiei os significados da percepção, consciência, representação e  "memória como sobrevivência das imagens passadas" (BERGSON, 1990: 49).
Diferentemente  dos autores que priorizam o papel do esquecimento, da invenção e  construção da memória e das representações, Bergson trata da 
"realidade  das coisas já não construída 
ou reconstruída, mas tocada, 
penetrada,  vivida" 
(1990:51).
Analisando  os depoimentos de vítimas do cangaço, como homens castrados e mulheres  estupradas e ferradas a fogo, percebe-se a atualidade desse autor  tratando a percepção: "tal como a entendemos, mede nossa ação possível sobre as coisas e por isso inversamente, a ação possível das coisas sobre nós"  (1990:41). Nos depoimentos coletados, essas pessoas, todas elas de vida  truncada, são vítimas do opróbio, num processo inexorável de memória  dolorosa. 
Segundo Bergson nessa mesma página 41,
 "toda dor 
consiste portanto num esforço,
e num esforço impotente".
Enquanto revivescência de momentos de profundo terror com dor física e  moral, cada lembrança da violência vivida há 30 ou 40 anos, não importa o  tempo transcorrido, cada flash de memória do fato reedita todas as  sensações do momento de humilhação da dignidade humana, demarcando a  impotência do sujeito à dominação da violência. Em sentido oposto, as  vítimas dos cangaceiros que superaram a impotência da dor  transformando-a em estímulo ao combate e à supressão do cangaço,  representam-na como um acontecimento datado, circunscrito ao momento  vivido (perda de parentes vitimados, ataques sofridos). 
Revivendo  aquela lembrança, completam-na com a memória dos sentimentos de reação  subseqüentes, tornando-se o reviver de fatos uma seqüência de dor,  reação, organização para o combate, logo, potência, em lugar de  impotência. 
Em  termos de caráter, são pessoas fortes que marcam a comunidade onde  vivem com uma memória coletiva de embates, a ponto de elementos  distantes se referirem àquela comunidade a partir de traços identitários  de "povo valente, homens de sangue no olho"! Em todo o sertão do  Nordeste eram freqüentes as referências aos Nazarenos (grupo familiar  que combateu Lampião e todo o cangaço) como "povo onde até as mulheres  são valentes"! A representação que os Nazarenos fazem de si, logo a  auto-imagem, corresponde à percepção de milhares de outros sertanejos  sobre os efeitos da violência.
Entendendo  a memória 
como lembranças de fatos vividos,
 percebidos e sentidos pelas  pessoas,
 Bergson não atribui importância única 
ao esquecimento como  estratégia de sobrevivência,
 de criatividade.
Lembrando-se  dos efeitos das torturas do choque elétrico sobre companheiros de  prisão em 1936, anos depois, já em liberdade, Dra. Nise Magalhães da  Silveira reflete sobre o chamado "tratamento por eletro-choque", imposto  aos portadores de distúrbios mentais. Associando as duas imagens,  estabelece conexões emocionais e científicas, elaborando teorias e  técnicas psiquiátricas que a levam a condenar as práticas manicomiais.  Não recorrendo ao esquecimento das más experiências vividas na prisão, a  Doutora reveste-as de reflexões analíticas preservando-as como exemplos  de atentado à dignidade humana, convertendo seu repúdio, revivido a  cada evocação dos torturados da cadeia e dos hospícios, em corpo  teórico-prático capaz de lançá-la internacionalmente na luta pela  reversão dos métodos terapêuticos dominantes em meados do século XX.
Considerando  porém a capacidade de criação e recriação da memória (entendida como  representação), as técnicas de história oral, aprofundando procedimentos  da etnografia, exigem do pesquisador apuradas metodologias de  tratamento do material recolhido. Estabelecendo redes de informantes, é  possível cruzar informações, memórias de fatos entre os membros de uma  mesma rede, compará-las com os relatos de membros de outras redes, além  dos recursos de pesquisa documental e de hemerotecas, tudo submetido à  plausibilidade, aos crivos de teorias e técnicas científicas. 
Reservando-se  ao jornalismo o simples relato factual, as ciências históricas e  sociais exigem do pesquisador pacientes modalidades de aplicação de  questionários abertos e fechados, descrição do ambiente onde são feitas  as entrevistas, submissão das transcrições aos entrevistados, retorno a  esses em diferentes ocasiões para testar a boa compreensão das falas.  Distanciando-se do sensacionalismo, ao dar voz aos homens comuns, os  modernos métodos não objetivam transformá-los em historiadores e  cientistas sociais, mas em conhecer sua visão de mundo, enquanto também  sujeitos de uma história até então entendida como "feitos dos grandes  homens".
A  própria idéia de "grande homem" de nosso modelo explicativo do passado e  do presente é analisada como uma modalidade específica de olhar a vida  social, característica da visão ocidental do mundo. Como ilustração  desse raciocínio, cito a expressão de Euclides da Cunha, em Os Sertões,  quando sintetiza sua avaliação sobre Antônio Conselheiro: "É um grande  homem às avessas". Não cabia em seu modelo positivista de grande homem a  figura esquálida, de roupas rasgadas e sandálias rústicas, a pé,  apoiado num cajado (bordão). Faltava ao Conselheiro o cavalo branco, a  espada e as roupas engalanadas, ou a sobrançaria intelectual que o  constituiriam, na visão urbana – heroicizante do escritor, "um grande  homem". Escapou a Euclides da Cunha a percepção das representações que  faziam Conselheiro símbolo e signo de vinte e cinco mil pessoas  oferecendo-lhe a vida de lutas e pobreza. 
Ele  é o grande homem enquanto substrato, representação e esperança de  milhares de homens que o viam como o melhor e mais santo entre eles. São  duas concepções díspares de "grande homem", representações de mundo que  se cruzavam na luta contra e a favor das desigualdades sociais entre  homens de mesma língua, com linguagens diferentes na percepção do que é  vida, do que é grandeza. Na linguagem dos conselheiristas, "pequeno não  existe e grande só Deus"!
O  criar e recriar inerentes aos mecanismos de atuação da memória,  ligam-se à força do presente, do qual "parte o apelo ao qual a lembrança  responde, e é dos elementos sensório motores da ação presente que a  lembrança retira o calor que lhe confere a vida"(1990:125). Embora  altamente impregnadas de presente, as lembranças do passado podem  subsistir, enquanto revivescência de imagens anteriormente registradas. 
Essa capacidade cerebral de fixação de imagens como em programas de  computador, discussão diferenciada dos elementos da memória entre  ciências naturais e sociais, leva à afirmação de Bergson:
 "sustentamos  contra o materialismo 
que a percepção supera infinitamente
 o estado  cerebral; mas procuramos estabelecer 
contra o idealismo que a matéria  ultrapassa
 por todos os lados a representação que temos dela,
  representação que o espírito, 
por assim dizer, colheu aí através 
de uma  escolha inteligente"
 (1990:148).
Considerando-se  porém os imperativos da vida social, conclui-se que a noção de "fato"  não corresponde à realidade de uma intuição imediata. Numa perspectiva  de duração, espaço e experiência do sujeito, se daria uma adaptação do  real filtrado por esses fatores. Logo, a memória para Bergson não é  também uma emanação da matéria, o que aponta para a complexidade de seu  estudo. A existência do sistema neuro-cerebral humano imbrica-se  inseparavelmente com a complexidade das exigências sociais e do  transcorrer da vida em relações classificatórias de tempo, espaço,  emoção e controle racional do homem e da sociedade, elementos esses  constitutivos das representações.
Discutir  a categoria memória 
é evocar debates sobre liberdade 
a partir da idéia  bergsoniana de passado 
desempenhado pela matéria,
 imaginado pelo  espírito. 
 Fonte:
Morpheus     -
Morpheus     - Revista Eletrônica em Ciências Humanas 
- Ano 02, número 03, 2003 - ISSN 1676-2924
- Ano 02, número 03, 2003 - ISSN 1676-2924
Sejam felizes todos os seres.Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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