quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Ser ou não ser?: Bergson, o tempo dos relógios não é o da natureza


Viviane Mosé discute a questão do tempo
a partir do filósofo Henri Bergson.

Enviado por em 28/05/2011
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IMAGEM DIGITAL - DESIGN DA INFORMAÇÃO


Imagem digital: 

imagem-movimento e a fenomenologia bergsoniana

3 Congresso Internacional de
DESIGN DA INFORMAÇÃO
Curitiba – 2007

A imagem digital tem sido interpretada e fundamentada segundo diferentes posições e perspectivas, as quais têm gerado um amplo debate em torno desta questão. Para uns, a imagem digital é simulacro apresentando-se como uma pretensa cópia. Para outros, a imagem digital é um epifenômeno ilusório, pois seu fundamento é um código de natureza binária alojado no computador. Ambas posições a concebem num quadro platônico, no qual existe uma diferença entre aparência e essência. Entretanto, a imagem digital pode ser concebida de uma outra perspectiva, como fenômeno portador de uma realidade ontológica e epistemológica. Trata-se de compreendê-la como fluxo, movimento.

De fato, a imagem digital por sua natureza de matriz manipulável engendra sempre um movimento, seja de natureza interna ou externa. Interna como as experiências de Motion graphics. Externas como a Hipermídia. Mesmo quando parada, a imagem digital pode ser concebida como um movimento infinitamente pequeno, virtual. A fenomenologia de Bergson torna-se então uma importante matriz conceitual para a fundamentação deste tipo de imagem. Trata-se então, neste trabalho, de introduzir as teses de Bergson sobre a imagem-movimento, extraindo delas algumas conseqüências para a fundamentação da imagem digital.

A imagem-movimento
A imagem digital tem sido interpretada e fundamentada segundo diferentes posições e perspectivas, as quais têm gerado um amplo debate em torno desta questão. Para uns, a imagem digital é simulacro apresentando-se como uma pretensa cópia. Baudrillard (1994) ao comparar a fotografia com a imagem digital conclui pela natureza de simulacro desta última. A fotografia guarda uma relação de traço com o modelo, ou a realidade, da qual ela é referenciada. Já a imagem digital é gerada por meio de uma matriz que não guarda nenhuma relação com um modelo externo, mas é a emanação de um código escondido no computador, puro simulacro. Para Kittler (1999), estamos a caminho da era da pós-mídia, pois todas as mídias convergirão para uma única materialidade: o código binário.

Este código é a verdade da mídia, sendo as imagens geradas por ele apenas epifenômenos ilusórios. Ambas posições concebem a imagem num quadro platônico, no qual existe uma diferença entre aparência e essência. Entretanto, a imagem digital pode ser concebida de uma outra perspectiva, como fenômeno portador de uma realidade ontológica e epistemológica. Trata-se de compreendê-la como fluxo, movimento. De fato, a imagem digital por sua natureza de matriz manipulável engendra sempre um movimento, seja de natureza interna ou externa. Interna como as experiências de Motion graphics. Externas como a Hipermídia. Mesmo quando parada, a imagem digital pode ser concebida como um movimento infinitamente pequeno, virtual.

A fenomenologia de Bergson 
torna-se então uma importante matriz conceitual 
para a fundamentação deste tipo de imagem.

Uma das conseqüências da presença ubíqua dos computadores e da dinâmica de nossos meios de comunicação é a percepção do tempo como algo em fluxo; acontecimento em tempo-real. Consoante com esta presença ocorre o ressurgimento da filosofia fenomenológica de Bergson e sua visada em relação ao tempo e, principalmente, a multiplicidade. Gilles Deleuze é um, senão o maior, responsável por este surgimento, ao se debruçar sobre o pensamento de Bergson. Mais recentemente o trabalho de Hansen (2004), “New Philosophy for New Media”, acrescenta uma importante contribuição para este debate.

No pensamento de Bergson as coisas não são substâncias independentes do tempo e do devir, mas “fases” de um devir, de um tornar-se. Em outros termos, uma coisa não é o efeito de uma causa, mas a expressão de uma “tendência”. A tendência é uma fase do vir-a-ser. Bergson constrói uma ontologia em que a vida e o mundo se tornam imagem-movimento, na qual as coisas estão em perpétua variação umas em relação às outras. Quando pensamos na relação estética com um objeto, imediatamente pensamos na fruição do espaço e do movimento.

Quando pensamos em movimento, imediatamente pensamos num ponto se deslocando no espaço, que é a forma típica da física moderna encarar a noção de tempo. Uma das características desta ciência é a de se negar a tratar o problema da mudança ontológica e o reduzir a questão da mudança à da deslocação de partículas no espaço. Ao contrário, Bergson constrói uma ontologia em que a vida e o mundo se tornam imagem-movimento, na qual as coisas estão em perpétua variação umas em relação às outras. Por que Bergson se utiliza da palavra imagem? Trata-se de imagem enquanto “imago”, ou seja, aquilo que aparece enquanto aparecer, em outros termos, um fenômeno.
O pensamento de Bergson
teve uma enorme influência 
na crítica de arte e na estética 
da primeira metade do século XX.
 
A nova forma do cubismo entender o espaço, por meio de um tempo interior aos objetos, tem enormes relações com a filosofia de Bergson. Entretanto a expressão estética do bergsonismo é o simultaneismo elaborado principalmente por Delaunay e Léger. Seus trabalhos neste vertente caracterizam-se pela presença constante de arcos e círculos, os quais são a expressão do simultaneismo, ou seja o tempo apreendido enquanto conjunto. Trata-se de uma pesquisa e uma captura do desmensurável, ou do infinito atualizado, de um sublime visual, ou seja, do conjunto do tempo.

O simultaneismo 
é a imensidão do futuro e do passado 
enquanto simultâneos no conjunto do tempo.
 
Assim, por exemplo, um círculo de Delaunay é uma reposta à questão o que é o conjunto do tempo? (Deleuze 1998). No design gráfico, temos as experiências tipográficas do futurismo e dadaísmo nas quais aparecem o círculo e o semicírculo como expressão deste conjunto do tempo.

Essa ontologia conduz a uma nova forma de conceber o tempo em relação com o conceito de multiplicidade heterogênea. Assim, um bom caminho para compreender o conceito de tempo bergsoniano é analisar o conceito de multiplicidade, o qual se pretende aqui esboçar em seus contornos gerais.

O conceito de multiplicidade 
tem dois desenvolvimentos filosóficos 
durante o século XX.
 
Um é a fenomenologia influenciada por Husserl, o outro é o bergsonismo (Deleuze 1998). Existem algumas semelhanças e enormes diferenças entre essas duas tendências filosóficas. Uma das diferenças é o tratamento da multiplicidade. Para a fenomenologia, em geral, a multiplicidade dos fenômenos está relacionada a uma unidade processada na consciência. Já no bergsonismo tudo é multiplicidade, inclusive “os dados imediatos da consciência” (Bergson [1888] 2001).

A afirmação bergsoniana 
guarda uma sutil diferença
em relação à fenomenologia. 
 
Enquanto que para esta última os dados são para a consciência; em Bergson os dados são da consciência.
Já em sua primeira grande obra “Essai sur les données immédiates de la conscience”, Bergson polemiza com Kant, pois para Bergson, Kant concebeu a liberdade como fora do tempo e do espaço, porque, enquanto as funções de conhecimento têm como fundamento a sensibilidade espaço-temporal, a faculdade prática e a atividade moral opõem-se a toda determinação sensível.

O tempo
é uma forma aplicável aos fenômenos,
ou seja, aos objetos do conhecimento.

A alma humana,
a consciência moral e a vontade livre 
são alheias ao espaço e ao tempo.

Para Bergson, Kant confundiu
o espaço e o tempo como um misto
não passível de diferenciação. Conseqüente a isso, 
Kant concebeu a liberdade da vontade 
segundo dois contextos diferentes. 
 
Primeiro, considerou-a no quadro do mundo fenomênico, efetuando-se no mundo sensível, no qual cada uma de nossas ações tem suas causas e, portanto, está integralmente determinada. Neste contexto a vontade não é absolutamente livre. Segundo, Kant considerou a vontade no contexto do mundo inteligível, no qual ela não está sob o aspecto de causa, de determinação, mas sob o aspecto do dever. Objetiva a prática do bem. Este é o efeito possível da liberdade do ponto de vista moral. Nesse contexto a vontade somente pode ser concebida como livre, não determinada por nenhum tipo de causa.

Bergson, ao contrário de Kant, a fim de definir consciência e conseqüentemente liberdade, propõe estabelecer uma diferença entre tempo e espaço. Trata-se então de separar os elementos de um misto, com o objetivo de estabelecer elementos simples passíveis de uma intuição e problematizar corretamente as coisas.

Assim, Bergson definirá os dados imediatos da consciência como sendo de natureza temporal, em outros termos como duração (no vocabulário de Bergson: durée). Na duração não existe justaposição dos eventos, conseqüentemente não existe causalidade; assim é neste contexto que podemos falar de liberdade. Portanto, é exatamente no contexto no qual Kant considera que não existe propriamente liberdade, pois é o contexto do sensível, no qual os eventos estão submetidos às leis da causalidade, que Bergson situa a duração e a concebe como liberdade. Trata-se então de uma liberdade incorporada, materializada por meio de atos no mundo sensível.
Para Bergson devemos compreender a duração como uma multiplicidade qualitativa, a qual é oposta à multiplicidade quantitativa. Em sua primeira grande obra, Bergson assim se expressa a esse respeito:
Não é suficiente dizer que o numeral é uma coleção de unidades: é necessário acrescentar que essas unidades são idênticas entre si, ou ao menos que elas supõem identidades desde que se as conte. Sem dúvida, contar-se-á as ovelhas de um rebanho e dir-se-á que totalizam cinqüenta; mesmo que elas se distinguam uma das outras e o pastor possa reconhecê-las individualmente. Neste caso, então, negligencia-se suas diferenças individuais realçando sua função comum.
(Bergson, [1888] 2001, p:39).
O exemplo acima de Bergson nos é útil para distinguir uma multiplicidade quantitativa de uma multiplicidade qualitativa e, com essa distinção, estabelecer a diferença entre espaço e tempo. Quando observamos um rebanho de ovelhas, podemos perceber imediatamente a semelhança entre elas; portanto uma multiplicidade quantitativa é sempre homogênea. Porém, podemos, a despeito dessa homogeneidade, numerar as ovelhas desse rebanho. Somos capazes de enumerá-las porque cada ovelha está espacialmente separada, ou seja, as ovelhas estão justapostas umas às outras. Então, cada uma delas ocupa uma localização discernível; por conseguinte, multiplicidades quantitativas são homogêneas e espaciais.

Devido ao fato 
de uma multiplicidade quantitativa ser homogênea,
podemos representá-la por meio de um símbolo, 
por exemplo, a soma “50”.
 
Ao contrário das multiplicidades quantitativas, multiplicidades qualitativas são heterogêneas e temporais. Isto é uma idéia difícil de ser assimilada, pois ela marcha contra a tradição de pensamento da metafísica ocidental; já que quando pensamos em heterogeneidade, pensamos em justaposição. Mas, na duração, heterogeneidade não implica em justaposição, ou implica apenas retrospectivamente:
É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem estados múltiplos quando, uma vez os tendo ultrapassado, em me volto para observar-lhes os traços. Enquanto os experimentava, eles estavam tão solidamente organizados, tão profundamente animados com uma vida comum, que eu não teria podido dizer onde qualquer um deles termina, onde começa o outro.
(Bergson, [1903] 1979, p:16).
Para melhor compreender esta difícil questão, Bergson nos dá um exemplo de uma multiplicidade qualitativa. O exemplo é o sentimento de simpatia, que é um sentimento moral e estético:
Essa simpatia se produz, em particular, quando a natureza nos apresenta seres com proporções normais, nos quais nossa atenção se divide igualmente entre todas as partes da figura sem se fixar em nenhuma delas. Nossa faculdade de perceber se encontra então embalada por uma espécie de harmonia […] na qual o todo e as partes se integram […] as partes refletem o todo e o todo as partes […] Resulta dessa análise que o sentimento do belo não é um sentimento especial, mas que todo sentimento experimentado por nós se reveste de um caráter estético.
(Bergson, [1888] 2001, p:13-14).
Nossa experiência de simpatia começa, de acordo com Bergson, quando nos colocamos no lugar dos outros. Trata-se então de associar simpatia com compaixão, colocando Bergson numa tradição moral com antecessores como Jean-Jacques Rousseau e David Hume. Compadecer é “sofrer com”. Ter compaixão é a virtude de compartilhar o sofrimento do outro. Hume definiu o conceito de simpatia em seu Tratado da Natureza Humana ([1738] 1978): “Ninguém é completamente indiferente à felicidade ou miséria dos outros”.

A idéia de que simpatia 
é um sentimento político que vincula 
as pessoas umas às outras forma 
um dos principais conceitos da filosofia de Hume
(Deleuze 1993).
 
Para esse filósofo, o conceito de simpatia é ampliado, não se prendendo unicamente à capacidade de se colocar no lugar do outro, ou à capacidade de “sofrer junto” (compaixão). Mas, trata-se de um sentimento de afecção entre os homens e o mundo. A compaixão e a piedade serão dois sentimentos de fundamental importância na filosofia de Rousseau.

Bergson parece mesclar a simpatia humeniana com a compaixão rousseauniana criando um complexo de sentimentos que seria o exemplo de uma multiplicidade qualitativa. Assim ele distingue dois movimentos da simpatia. O primeiro, que ele chama de “forma inferior de piedade”, no qual procuramos ajudar alguém que sofre com o interesse de também ser ajudado quando nos encontrarmos na mesma situação. Aqui temos um movimento, da repugnância inicial para o medo de se encontrar na mesma situação.

O segundo movimento é chamado por Bergson de “forma superior de piedade”. Agora não ajudamos alguém que precisa somente por medo de um dia, na mesma situação, não ser ajudado. Esta simpatia desenvolve sentimentos superiores de altruísmo nos colocando numa posição fora do próprio sofrimento. Entretanto, também nos conduz para uma humildade, pois sabemos que poderemos um dia estar na mesma situação, afinal somos, por princípio todos iguais perante a dor. A essência da piedade é então uma necessidade de humilhação própria, uma aspiração em direção ao inferior, ao sofrimento.

Assim, segundo Bergson, existem um movimento que se expressa numa transição da repugnância para o medo, do medo para a simpatia, e da própria simpatia para a humildade.

Esse exemplo é importante, pois, primeiro, ele demonstra um método típico de Bergson: começar por investigar as questões pelas nossas percepções e afecções internas; para, em seguida, referenciá-las na realidade exterior. Segundo, ele marca a importância da afecção para o conceito de percepção de Bergson. Nossa relação com o mundo, ou seja, com a imagem-movimento se dará primordialmente pela faculdade da afecção.
Para Bergson existe uma heterogeneidade de sentimentos na simpatia, porém não somos capazes de justapô-los ou mesmo dizer que um nega o outro.

Não existe negação na duração. 
Os sentimentos são contínuos 
uns com os outros; eles se interpenetram. 
 
A multiplicidade qualitativa é então heterogênea (ou singularizada), contínua (ou interpenetrante), relativa a oposições ou dualística nos extremos (no caso da simpatia, piedade inferior e piedade superior são os extremos), progressiva (temporal), um fluxo irreversível, o qual não é dado todo de uma vez. Por conseguinte, a multiplicidade qualitativa não pode ser adequadamente representada por um símbolo; de fato, segundo Bergson, a multiplicidade qualitativa é inexprimível. Trata-se então de uma progressiva mobilidade temporal. Para Bergson a liberdade é duração, ou seja, mobilidade. Liberdade não é mais um atributo de um sujeito (livre-arbítrio), mas uma mobilidade incorporada no sensível.

Em sua “Introdução à Metafísica”, Bergson nos dá três interessantes exemplos que nos ajudam a pensar a duração como multiplicidades qualitativas (Bergson, [1903] 1979, p:16-17). Trata-se de três imagens cuja analogia nos aproxima da duração, sem contudo representá-la. Como vimos, a duração por ser fluxo contínuo e permanente não pode ser fixada por um símbolo.
A primeira imagem é a de dois novelos pelos quais corre uma linha. Um dos novelos enrola a linha, o outro, a desenrola.

O ato de desenrolar o novelo caracteriza o tempo que passa; viver consiste em envelhecer. “Não há ser vivo que não se sinta chegar pouco a pouco ao fim de sua meada” (Bergson, [1903] 1979, p:16). Mas a duração é também um enrolar-se contínuo, pois nosso passado nos segue sem cessar a cada presente que incorpora em seu caminho. Assim, para Bergson, consciência significa memória.

Entretanto, se esta imagem nos dá uma boa idéia do que seja a duração, ela também possui limitações ao tentar representá-la. Esta imagem evoca a representação de linhas e superfícies cujas partes são homogêneas e podem ser sobrepostas ou justapostas. Porém na duração não há dois momentos idênticos, pois o momentos seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança que este lhe deixou. Uma consciência que possuísse dois momentos idênticos seria uma consciência sem memória, dado que na significação de qualquer evento presente a memória desempenha papel fundamental.

A conclusão é que a imagem 
dos novelos desenrolando-se e enrolando-se 
não é suficiente para explicar a duração.
 
Bergson parte então para uma segunda imagem. Um espectro com mil nuances, um gradiente no qual a passagem de uma cor à outra é imperceptível. As cores estão de tal forma entrelaçadas umas nas outras que não há delimitação clara na sua passagem.

A duração seria então a imagem 
de uma corrente de sentimento 
que ao atravessar o espectro o tingi,
cada vez, com uma das nuances.
 
A experiência seria então de mudanças graduais, cada uma anunciando a seguinte e resumindo nela as que a precedem. Essa imagem é melhor que a anterior, pois os elementos representam uma situação menos homogênea que a precedente. Entretanto, também esta imagem é incompleta para explicar a duração; pois as nuances sucessivas do espectro são exteriores umas às outras. Elas se justapõem e ocupam espaço. Já a duração exclui toda idéia de justaposição, de exterioridade recíproca e de extensão.

Bergson 
então formula uma última imagem. 
Trata-se de um elástico infinitamente pequeno, 
contraído num ponto matemático.
 
Ao esticá-lo progressivamente vemos uma linha que irá sempre se encompridando. Se fixarmos nossa atenção para o ato e não para a linha, veremos que esta ação é indivisível, imaginando que ela está sendo realizada sem interrupção; já que não é a ação de mover que é divisível, mas a linha imóvel que deixa atrás de si como um traço no espaço.

Assim, se descartarmos “o espaço que subjaz ao movimento para levar em conta somente o próprio movimento, o ato de tensão ou de extensão, enfim a mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem mais fiel de nosso desenvolvimento na duração” (Bergson, [1903] 1979, p:16).
Entretanto, mesmo esta última imagem não é exatamente uma representação da duração. Isto porque o desenrolar-se de nossa duração se assemelha em certos aspectos à unidade do movimento que progride e, nesse caso, a imagem é muito fiel. Porém o desenrolar-se da duração também se assemelha a uma multiplicidade de estados que se espalham, e, nesse caso, a última imagem é incompleta. Segundo Bergson nenhuma metáfora pode dar conta de um desses aspectos sem sacrificar o outro. Assim:
Se evoco um espectro de mil nuances, tenho diante de mim uma coisa completamente pronta, ao passo que a duração se faz continuamente. Se penso num elástico que se alonga, numa mola que se encolhe ou se distende, esqueço a riqueza de colorido que é característica da duração vivida para não ver mais que o movimento simples pelo qual a consciência passa de um tom ao outro.
(Bergson, [1903] 1979, p:17).
A duração consiste de duas características: unidade e multiplicidade. Então, o tempo cronológico, mensurável, métrico deve ser distinguido de uma “duração” que é pura qualidade, progresso, que não escoa de forma mecânica como um relógio, mas, ao contrário qualitativamente ligada à vida, com uma incorporação fundamental na existência. Para Bergson, a vida é multiplicidade temporal, variação qualitativa. Não somente a vida em seu sentido geral, mas também a memória, na qual se dará a compreensão da vida psíquica como devir e duração. Uma realidade temporal como a consciência humana é uma realidade que dura, muda e se diferencia.

O conceito de duração 
encerra uma dupla idéia: 
passagem e conservação.
 
Para que haja mudança ou diferenciação é necessário que alguma coisa passe, tenha passado e se conserve. O conceito de tempo ou de duração requer uma passagem em direção ao passado e uma conservação desse passado. Sem esses dois aspectos, não existe nem tempo, nem duração. Por isso a importância para Bergson da memória, que será o principal tema de sua monumental obra “Matéria e Memória” ( [1896] 1990). Por memória se entende um princípio de conservação do passado, o qual não é aquilo que passou ou desapareceu, mas, ao contrário, o que se conserva.

Não se trata da necessidade de se lembrar de tudo, mas simplesmente que a memória é absolutamente integral. A questão é entender porque esta ou aquela memória é experimentada pela consciência, e porque todo o resto das experiências passadas permanece no estado virtual ou inconsciente.
A memória não é somente o princípio de conservação do passado, mas também o retorno incessante do passado em direção ao presente, a presença do passado no presente ou para este presente. Trata-se de pura ontologia. Em Bergson é o passado que é ontológico, enquanto o presente é psicológico. Guattari descreve uma experiência que testemunha a memória ativa bergsoniana:
Um dia, quando eu caminhava com um grupo de amigos em uma grande avenida de São Paulo, senti-me interpelado, ao atravessar uma determinada ponte, por um locutor não-localizável. Uma das características dessa cidade, que me parece estranha em vários aspectos, consiste no fato de que as interseções de suas ruas procedem freqüentemente por níveis separados com grandes alturas. Enquanto meu olhar se dirigia, de cima para baixo, para uma circulação densa que caminhava rapidamente, formando uma mancha cinzenta infinita, uma impressão intensa, fugaz e indefinível invadiu-me bruscamente. Pedi então que meus amigos continuassem sua caminhada sem mim e, como em um eco das paradas de Proust em seus ‘momentos fecundos’ (o sabor da madalena, a dança dos sinos de Martinville, a pequena frase musical de Vinteuil, o chão desnivelado do pátio do hotel de Guermante…), imobilizei-me em um esforço para esclarecer o que acabava de acontecer comigo. Ao fim de um certo tempo, a resposta me veio naturalmente, algo da minha primeira infância me falava do âmago dessa paisagem desolada, algo de ordem principalmente perceptiva.
(Guattari, 2006, p:154).
Assim, o momento presente de nossa vida não é e nem pode ser um recomeço do zero. Cada ato que cumprimos, cada momento vivido presentemente convoca nossa experiência anterior e a reativa, isto é, torna novamente viva ou consciente nossa experiência anterior. Não importa qual é a experiência interior, o que interessa é a ação presente na qual estou comprometido. Assim, quando levanto de manhã, não necessito reaprender a andar; simplesmente começa a andar, reativo novamente toda a minha experiência anterior do andar. Mesmo quando não expressa uma experiência consciente ou refletiva, minha ação torna viva experiências do passado. Toda vivência da consciência faz surgir a lembrança que a torna possível, segundo diversos graus de possibilidade. Esta é a razão pela qual Bergson diz:
Consciência significa primeiramente memória. À memória pode faltar amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte ínfima do passado; ela pode reter apenas o que acaba de acontecer; mas a memória existe, ou então não existe consciência. Uma consciência que não conservasse nada de seu passado, que se esquecesse sem cessar de si própria, pereceria e renasceria a cada instante; como definir de outra forma a inconsciência? […] Toda consciência é, pois, memória – conservação e acumulação do passado no presente.
(Bergson, [1919] 2001, p:819).
Mais adiante ele acrescenta:
Mas toda consciência é antecipação do futuro. Consideremos a direção de nosso espírito a qualquer momento: veremos que ele se ocupa do que ele é, mas sobretudo em vista do que ele vai ser. A atenção é uma expectativa, e não há consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro lá está: ele nos chama, ou melhor, ele nos puxa: esta tração ininterrupta, que nos faz avançar na rota do tempo, é também a causa de que ajamos continuadamente. Toda ação é um penetrar no futuro.
(Bergson, [1919] 2001, p:819).
Podemos dizer então que se a consciência é essencialmente duração. Não importa qual vivência da consciência é experimentada, o fato é que sempre ocorre uma certa relação, cada vez singular, do presente no passado; ou, em outros termos, um certo retorno do passado no presente. Esta relação com o passado é sempre singular porque existe infinitos modos de se relacionar com este passado, infinitos modos de retorno ao passado. Num certo sentido, o presente é diferente porque o passado retorna sempre de forma diferente, enriquecendo-o a cada retorno.

Não é essa a experiência que temos ao fruir uma peça de Motion graphic? Ou ao navegar por uma hipermídia?

As lembranças nos chegam de diferentes formas, mais ou menos conscientes ou exprimidas. Por exemplo, a lembrança de um encontro acontecido no passado pode ser voluntariamente reativado, ou seja, o objeto de uma consciência atenta. Entretanto o puro hábito motor que eu convoco para andar, se não é consciente no sentido estrito, não deixa de pertencer à vida da consciência porque torna sensíveis experiências acumuladas no passado.
Cada vivência da consciência, segundo sua modalidade própria, implica uma certa relação de tensão entre passado, presente e futuro.

Dado que esta relação define precisamente a duração, em termos bergsonianos então cada ato ou vivência da consciência realiza nela própria uma certa tensão da duração. Esta tensão é sempre qualitativa, ou seja, uma certa intensidade qualitativa da consciência. Poderíamos concluir então que não existe ação que se contente em repetir mecanicamente o passado. Menos o presente se diferencia ou transforma – como no caso do hábito motor, o qual é uma espécie de memória do corpo material – menos a vida da consciência é intensa.

A consciência é portadora da mais alta intensidade quando a tensão entre o passado e o presente é produtora de diferenciação, de progresso, de novidade ou ainda de criação. A filosofia de Bergson nos propõe uma nova forma de perceber o tempo e como nós vivemos em relação a ele.

Quando pensamos a imagem na perspectiva da duração bergsoniana, deixamos o espaço, multiplicidade quantitativa, e mergulhamos no tempo multiplicidade qualitativa. Nos deparamos com o que é móbil, fluente, fluxo ininterrupto, porém heterogêneo; não por diferenciação espacial mas pela intensidade. A imagem fluxo é construída por indivíduos, também fluxos, e conjuntos sociais, também fluxos. Trata-se então de fluxos em permanente interação e mútua transformação.

Em sua significação, a imagem digital necessita da memória, não como passado morto, mas como virtualidade capaz de se atualizar no presente construindo significações coletivas. Esse movimento do passado em relação ao presente e às possibilidades do futuro, Bergson chama duração.

É nessa duração que a vida é construída. Nessa perspectiva, o pensamento que analisa também deverá mudar para se adequar ao seu objeto. Deverá se libertar de conceitos rígidos e pré-fabricados para criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitualmente, isto é, deverá engendrar representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldarem sobre as formas fugidias do mundo sensível em movimento.

As experiências
em Design de Movimento atestam 
a necessidade deste preceito.

A significação da imagem
não está mais em seu fotograma, 
mas sim no fluxo cuja apreensão do todo 
é o significado de um tempo vivido.

Por tudo isso 
o bergsonismo permanece um referencial 
para o pensamento contemporâneo.
Li
Fonte:
http://www.edubraga.pro.br/estetica-aesthetics/imagem-digital-imagem-movimento-e-a-fenomenologia-bergsoniana/
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

MATÉRIA E MEMÓRIA - BERGSON, HENRI


Convenções:

Henri-Louis Bergson
p. 13
"É o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro."

p. 14
"Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe."

p. 15 a 16
"Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles."

p. 20
"a ficção de um objeto material isolado não implicará uma espécie de absurdo, já que esse objeto toma emprestado suas propriedades físicas das relações que ele mantém com todos os outros, e deve cada uma de suas determinações - sua própria existência, conseqüentemente - ao lugar que ocupa no conjunto do universo?"
/
"Há um sistema de imagens que chamo minha percepção do universo, e que se conturba de alto a baixo por leves variações de uma certa imagem privilegiada, meu corpo. essa imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se todas as outras; a cada um de seus movimentos tudo muda, como se girássemos um caleidoscópio. Há, por outro lado, as mesmas imagens, mas relacionadas cada uma a si mesma, umas certamente influindo sobre as outras, mas de maneira que o efeito permanece sempre proporcional à causa: é o que chamo de universo."

p. 21
"Toda imagem é interior a certas imagens e exterior a outras; mas do conjunto das imagens não é possível dizer que ele nos seja interior ou que nos seja exterior, já que a interioridade e a exterioridade não são mais que relações entre imagens."

p. 26
"O cérebro não deve portanto ser outra coisa, em nossa opinião, que não uma espécie de central telefônica: seu papel é "efetuar a comunicação", ou fazê-la aguardar. Ele não acrescenta nada àquilo que recebe; mas, como todos os órgãos perceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, e todos os mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano têm aí seus representantes titulares, ele constitui efetivamente um centro, onde a excitação periférica põe-se em contato com este ou aquele mecanismo motor, escolhido e não mais imposto."

p. 27
"tanto nos centro superiores do córtex quanto na medula, os elementos nervosos não trabalham com vistas ao conhecimento: apenas esboçam de repente uma pluralidade de ações possíveis, ou organizam uma delas."

p. 27 a 28
"não caberia pensar que a percepção [...] seja inteiramente orientada para a ação, e não para o conhecimento puro? E, com isso, a riqueza crescente dessa percepção não deveria simbolizar simplesmente a parte crescente de indeterminação deixada à escolha do ser vivo em sua conduta em face das coisas?"

p. 31
"a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção."

p. 33
"O que a distingue, enquanto imagem presente, enquanto realidade objetiva, de uma imagem representada é a necessidade em que se encontra de agir por cada um de seus pontos sobre todos os pontos das outras imagens, de transmitir a totalidade daquilo que recebe, de opor a cada ação uma reação igual e contrária, de não ser, enfim, mais do que um caminho por onde passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na imensidão do universo. Eu a converteria em representação se pudesse isolá-la."

p. 34
"Ora, se os seres vivos constituem no universo "centros de indeterminação", e se o grau dessa indeterminação é mediado pelo número e pela elevação de suas funções, concebemos que sua simples presença possa equivaler à supressão de todas as partes dos objetos nas quais suas funções não estão interessadas. Eles se deixarão atravessar, de certo modo, por aquelas dentre as ações exteriores que lhes são indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-ão "percepções" por seu próprio isolamento. Tudo se passará então, para nós, como se refletíssemos nas superfícies a luz que emana delas, luz que, propagando-se sempre, jamais teria sido revelada. As imagens que nos cercam parecerão voltar-se em direção a nosso corpo, mas desta vez iluminada a face que o interessa; elas destacarão de sua substância o que tivermos retido de passagem, o que somos capazes de influenciar. Indiferentes umas às outras em razão do mecanismo radical que as vincula, elas apresentam reciprocamente, umas às outras, todas as suas faces ao mesmo tempo, o que equivale a dizer que elas agem e reagem entre si por todas as suas partes elementares, e que, conseqüentemente, nenhuma delas é percebida nem percebe conscientemente. E se, ao contrário, elas deparam em alguma parte com uma certa espontaneidade de reação, sua ação é diminuída na mesma proporção, e essa diminuição de sua ação é justamente a representação que temos dela. Nossa representação das coisas nasceria portanto, em última análise, do fato de que ela vêm refletir-se contra nossa liberdade."

p. 35
"A percepção assemelha-se [...] aos fenômenos de reflexão que vêm de uma refração impedida; é como um efeito de miragem."

p. 35 a 36
"há para as imagens um simples diferença de grau, e não de natureza, entre ser e ser conscientemente percebidas. A realidade da matéria consiste na totalidade de seus elementos e de suas ações de todo tipo. Nossa representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os corpos; ela resulta da eliminação daquilo que não interessa nossas necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções. Num certo sentido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto material inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, é infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, já que esse ponto recolhe e transmite as ações de todos os pontos do mundo material, enquanto nossa consciência só atinge algumas partes por alguns lados. A consciência - no caso da percepção exterior - consiste precisamente nessa escolha. Mas, nessa pobreza necessária de nossa percepção consciente, há algo de positivo e que já anuncia o espírito: é, no sentido etimológico da palavra, o discernimento."

p. 38 a 39
"O que você tem a explicar, portanto, não é como a percepção nasce, mas como ela se limita, já que ela seria, de direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, àquilo que interessa a você."

p. 39
"o cérebro é uma imagem como as outras, envolvida na massa das outras imagens, e seria absurdo que o continente saísse do conteúdo."

p. 40
"ciência e consciência coincidiriam no instantâneo".

p. 41
"ao nos exprimirmos assim, estaremos apenas nos curvando às exigências do método científico; não descreveremos em absoluto o processo real."

p. 44
"a percepção, em seu conjunto, tem sua verdadeira razão de ser na tendência do corpo a se mover."

p. 46
"nossa representação começa sendo impessoal. Só pouco a pouco, e à força de induções, ela adota nosso corpo por centro e torna-se nossa representação. O mecanismo dessa operação, aliás, é fácil de compreender. À medida que meu corpo se desloca no espaço, todas as outras imagens variam; a de meu corpo, ao contrário, permanece invariável. Devo portanto fazer dela um centro, ao qual relacionarei todas as outras imagens."

p. 47
"As coisas se esclarecem se vamos assim da periferia da representação ao centro, como faz a criança, como nos convidam a fazê-lo a experiência imediata e o senso comum. Tudo se obscurece, ao contrário, e os problemas se multiplicam, se pretendemos ir do centro à periferia, como fazem os teóricos."
/
"nessa idéia de que projetamos fora de nós estados puramente internos há tantos mal-entendidos, tantas respostas defeituosas a questões mal colocadas"

p. 48
"nossos sentidos terão igualmente necessidade de educação - não, certamente, para se conciliarem com as coisas, mas para se porem de acordo entre si"

p. 49
"Perceber todas as influências de todos os pontos de todos os corpos seria descer ao estado de objeto material. Perceber conscientemente significa escolher, e a consciência consiste antes de tudo nesse discernimento prático."
/
"As percepções diversas do mesmo objeto que oferecem meus diversos sentidos não reconstituirão portanto, ao se reunirem, a imagem completa do objeto; permanecerão separadas umas das outras por intervalos que medem, de certo modo, muitos vazios em minhas necessidades: é para preencher tais intervalos que uma educação dos sentidos é necessária. Essa educação tem por finalidade harmonizar meus sentidos entre si, restabelecer entre seus dados uma continuidade que foi rompida pela própria descontinuidade das necessidades do meus corpo, enfim, reconstruir aproximadamente a totalidade do objeto material."

p. 50
"um conhecimento cada vez mais aproximado da matéria é possível. Bem longe de suprimir nela algo de percebido, devemos ao contrário reaproximar todas as qualidades sensíveis, redescobrir seu parentesco, restabelecer entre elas a continuidade que nossas necessidades romperam."

p. 54
"não há percepção que não possa, por um crescimento da ação de seu objeto sobre nosso corpo, tornar-se afecção e, mais particularmente, dor."
/
"o que seria uma dor separada do sujeito que a sente?"

p. 56
"por que esse momento e não outro? E qual a razão especial que faz com que um fenômeno, de que eu era de início apenas o espectador indiferente, adquira de repente um interesse vital para mim?"

p. 56 a 57
"Quando um corpo estranho toca um dos prolongamentos da ameba, esse prolongamento se retrai; cada parte da massa protoplasmática é portanto igualmente capaz de receber a excitação e de reagir contra ela; percepção e movimento confundem-se aqui numa propriedade única que é a contratibilidade. Mas, à medida que o organismo se complica, o trabalho se divide, as funções se diferenciam, e os elementos anatômicos assim constituídos alienam sua independência. Num organismo como o nosso, as fibras ditas sensitivas são exclusivamente encarregadas de transmitir excitações a uma região central de onde o estímulo se propagará por elementos motores. Parece portanto que elas renunciaram à ação individual para contribuir, na qualidade de sentinelas avançadas, às evoluções de corpo inteiro. Mas ainda assim permanecem expostas, isoladamente, às mesmas causas de destruição que ameaçam o organismo em seu conjunto; e, enquanto esse organismo tem a faculdade de se mover para escapar ao perigo ou para reparar suas perdas, o elemento sensitivo conserva a imobilidade relativa à qual a divisão do trabalho o condena. Assim nasce a dor, que não é, para nós, senão um esforço do elemento lesado para repor as coisas no lugar - uma espécie de tendência motora sobre um nervo sensitivo. Toda dor consiste portanto num esforço, e num esforço impotente. Toda dor é um esforço local, e esse próprio isolamento do esforço é a causa de sua impotência, porque o organismo, em razão da solidariedade de suas partes, já não é apto senão para os efeitos de conjunto. É também por ser local que a dor é absolutamente desproporcional ao perigo que corre o ser vivo: o perigo pode ser mortal e a dor pequena; a dor pode ser insuportável (como uma dor de dentes) e o perigo insignificante."

p. 58
"A percepção [...] mede nossa ação possível sobre as coisas e por isso, inversamente, a ação possível das coisas sobre nós. Quanto maior a capacidade de agir do corpo [...], mais vasto o campo que a percepção abrange."

p. 59
"a superfície, limite comum do exterior e do interior, é a única porção da extensão que é ao mesmo tempo percebida e sentida."

p. 62
"a educação subsiste uma vez recebida, e os dados da memória, mais úteis na vida prática, deslocam os da consciência imediata"

p. 63 a 64
"Minha percepção, em estado puro e isolado de minha memória, não vai de meu corpo aos outros corpos: ela está no conjunto dos corpos em primeiro lugar, depois aos poucos se limita, e adota meu corpo por centro. E é levada a isso justamente pela experiência da dupla faculdade que esse corpo possui de efetuar ações e experimentar afecções, em uma palavra, pela experiência da capacidade sensório-motora de uma certa imagem, privilegiada entre as demais. De um lado, com efeito, essa imagem ocupa sempre o centro da representação, de maneira que as outras imagens se dispões em torno dela na própria ordem em que poderiam sofrer sua ação; de outro lado, percebo o interior dessa imagem, o íntimo, através de sensações que chamo afetivas, em vez de conhecer apenas, como nas outras imagens, sua película superficial. Há portanto, no conjunto das imagens, uma imagem favorecida, percebida em sua profundidade e não apenas em sua superficialidade, sede de afecção ao mesmo tempo que fonte de ação: é essa imagem particular que adoto por centro de meu universo e por base física de minha personalidade."

p. 67 a 68
"ela [a percepção] exprime e mede a capacidade de agir do ser vivo, a indeterminação do movimenta ou da ação que seguirá o estímulo recolhido. Essa indeterminação [...] se traduzirá por uma reflexão sobre si mesmas, ou melhor, por uma divisão das imagens que cercam nosso corpo; e, como a cadeia de elementos nervosos que recebe, retém e transmite movimentos é justamente a sede e dá a medida dessa indeterminação, nossa percepção acompanhará todo o detalhe e parecerá exprimir todas as variações desses mesmos elementos nervosos. Nossa percepção, em estado puro, faria portanto verdadeiramente parte das coisas. E a sensação propriamente dita, longe de brotar espontaneamente das profundezas da consciência para se estender, debilitando-se, no espaço, coincide com as modificações necessárias que sofre, em meio às imagens que a influenciam, esta imagem particular que cada um de nós chama seu corpo."

p. 68
"se esses corpos têm por objeto receber excitações para elaborá-las em reações imprevistas, também a escolha se inspira, sem dúvida nenhuma, em experiências passadas, e a reação não se faz sem um apelo à lembrança que situações análogas foram capazes de deixar atrás delas. A indeterminação dos atos a cumprir exige portanto, para não se confundir com o puro capricho, a conservação das imagens percebidas. Poderíamos dizer que não temos poder sobre o futuro sem uma perspectiva igual e correspondente sobre o passado, que o impulso de nossa atividade para diante cria atrás de si um vazio onde as lembranças se precipitam, e que a memória é assim a repercussão, na esfera do conhecimento, da indeterminação de nossa vontade."

p. 69
"Justamente porque a lembrança de intuições anteriores análogas é mais útil que a própria intuição, estando ligada em nossa memória a toda a série dos acontecimentos subseqüentes e podendo por isso esclarecer melhor nossa decisão, ela desloca a intuição real, cujo papel então não é mais [...] que o de chamar a lembrança, dar-lhe um corpo, torná-la ativa e conseqüentemente atual."
/
"perceber acaba não sendo mais do que uma ocasião de lembrar."

p. 72
"O que constitui o mundo material [...] são objetos, ou, se preferirem, imagens, cujas partes agem e reagem todas através de movimentos umas sobre as outras. E o que constitui nossa percepção pura é, no seio mesmo dessas imagens, nossa ação nascente que se desenha. A atualidade de nossa percepção consiste portanto em sua atividade, nos movimentos que a prolongam, e não em sua maior intensidade: o passado não é senão idéia, o presente é ideo-motor. Mas eis aí o que se insiste em não ver, porque se toma a percepção por uma espécie de contemplação, porque se lhe atribui sempre uma finalidade puramente especulativa, porque se quer que ela vise a não se sabe qual conhecimento desinteressado: como se, isolando-a da ação, cortando assim seus vínculos com o real, ela não se tornasse ao mesmo tempo inexplicável e inútil! A partir daí, toda diferença é abolida entre a percepção e a lembrança, já que o passado é por essência o que não atua mais, e que ao se desconhecer esse caráter do passado se é incapaz de distingui-lo realmente do presente, ou seja, do atuante."

p. 73
"Nossa percepção pura, com efeito, por mais rápida que a suponhamos, ocupa uma certa espessura de duração, de sorte que nossas percepções sucessivas não são jamais momentos reais das coisas, como as supusemos até aqui, mas momentos de nossa consciência. O papel teórico da consciência na percepção exterior, dizíamos nós, seria o de ligar entre si, pelo fio contínuo da memória, visões instantâneas do real. Mas, na verdade, não há jamais instantâneo para nós. Naquilo que chamamos por esse nome existe já um trabalho de nossa memória, e conseqüentemente de nossa consciência, que prolonga uns nos outros, de maneira a captá-los numa intuição relativamente simples, momentos tão numerosos quanto os de um tempo indefinidamente divisível."

p. 75
"as questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser colocadas mais em função do tempo que do espaço."

p. 77
"A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela."

p. 83
"Tudo deve se passar portanto como se uma memória independente juntasse imagens ao longo do tempo à medida que elas se produzem, e como se nosso corpo, com aquilo que o cerca, não fosse mais que uma dessas imagens, a última que obtemos a todo momento praticando um corte instantâneo no devir em geral. Nesse corte, nosso corpo ocupa o centro."

p. 84
"O reconhecimento de um objeto presente se faz por movimentos quando procede do objeto, por representações quando emana do sujeito."


p. 87
"A lembrança de uma determinada leitura é um representação, e não mais que um representação; diz respeito a uma intuição do espírito que posso, a meu bel-prazer, alongar ou abreviar; eu lhe atribuo uma duração arbitrária: nada me impede de abarcá-la de uma só vez, como num quadro. Ao contrário, a lembrança da lição aprendida, mesmo quando me limito a repetir essa lição interiormente, exige um tempo bem determinado, o mesmo que é necessário para desenvolver um a um, ainda que em imaginação, todos os movimentos de articulação requeridos: portanto não se trata mais de uma representação, trata-se de uma ação."

p. 89
"Dessas duas memórias, das quais uma imagina e a outra repete, a segunda pode substituir a primeira e freqüentemente até dar a ilusão dela."

p. 90
"Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo. Também o passado que remontamos deste modo é escorregadio, sempre a ponto de nos escapar, como se essa memória regressiva fosse contrariada pela outra memória, mais natural, cujo movimento para diante nos leva a agir e a viver."

p. 91
"Nossa existência decorre em meio a objetos em número restrito, que tornam a passar com maior ou menor freqüência diante de nós: cada um deles, ao mesmo tempo que é percebido, provoca de nossa parte movimentos pelo menos nascentes através dos quais nos adaptamos a eles. Esses movimentos, ao se repetirem, criam um mecanismo, adquirem a condição de hábito, e determinam em nós atitudes que acompanham automaticamente nossa percepção das coisas."

p. 92
"ao mesmo tempo que se desenvolve esse processo de percepção e adaptação que resulta no registro do passado sob forma de hábitos motores, a consciência, como veremos, retém a imagem de situações pelas quais passou sucessivamente, e as alinha na ordem em que elas sucederam. Para que servirão essas imagens-lembranças? Ao se conservarem na memória, ao se reproduzirem na consciência, não irão elas desnaturar o caráter prático da vida, misturando o sonho á realidade? Seria assim, certamente, se nossa consciência atual, consciência que reflete justamente a exata adaptação de nosso sistema nervoso à situação presente, não descartasse todas aquelas imagens passadas que não são capazes de se coordenar à percepção atual e de formar com ela um conjunto útil. No máximo algumas lembranças confusas, sem relação com a situação presente, ultrapassam as imagens utilmente associadas, desenhando ao redor delas uma franja menos iluminada que irá se perder numa imensa zona obscura."

p. 93
"Certamente são imagens de sonho; certamente costumam aparecer e desaparecer independentemente de nossa vontade".
/
"deveremos constatar uma exaltação da memória espontânea na maioria dos casos em que o equilíbrio sensório-motorn do sistema nervoso for perturbado, e, ao contrário, uma inibição, no estado normal, de todas as lembranças espontâneas incapazes de consolidar utilmente o equilíbrio presente".

p. 96
"Essa lembrança espontânea, que se oculta certamente atrás da lembrança adquirida, é capaz de revelar-se por clarões repentinos: mas ela se esconde, ao menor movimento da memória voluntária."

p. 97
"o passado parece efetivamente armazenar-se, conforme havíamos previsto, sob essas duas formas extremas, de um lado os mecanismos motores que o utilizam, de outro as imagens-lembranças pessoais que desenham todos os acontecimentos dele com seu contorno, sua cor e seu lugar no tempo. Dessas duas memórias, a primeira é verdadeiramente orientada no sentido da natureza; a segunda, entregue a si mesma, iria antes em sentido contrário. A primeira, conquistada pelo esforço, permanece sob a dependência de nossa vontade; a segunda, completamente espontânea, é tanto volúvel em reproduzir quanto fiel em conservar. O único serviço regular e certo que a segunda pode prestar à primeira é mostrar-lhe as imagens daquilo que precedeu ou seguiu situações análogas à situação presente, a fim de esclarecer sua escolha."

p. 100
"o sentimento do déjà vu viria de uma justaposição ou de uma fusão entre a percepção e a lembrança".

p. 101
"a percepção de uma semelhança é antes um efeito da associação do que sua causa."

p. 106
"exercemos em geral nosso reconhecimento antes de pensá-lo. Nossa vida diária desenrola-se em meio a objetos cuja mera presença nos convida a desempenhar um papel: nisso consiste seu aspecto de familiaridade. As tendências motoras já seriam suficientes, portanto, para nos dar o sentimento do reconhecimento."

p. 107 a 108
"Constantemente inibida pela consciência prática e útil do momento presente, isto é, pelo equilíbrio sensório-motor de um sistema estendido entre a percepção e a ação, essa memória aguarda simplesmente que uma fissura se manifeste entre a impressão atual e o movimento concomitante para fazer passar aí suas imagens. Em geral, para remontar o curso de nosso passado e descobrir a imagem-lembrança conhecida, localizada, pessoal, que se relacionaria ao presente, um esforço é necessário, pelo qual nos liberamos da ação a que nossa percepção nos inclina: esta nos lançaria para o futuro; é preciso que retrocedamos no passado. Nesse sentido, o movimento tenderia a afastar a imagem. Todavia, por um certo lado, ele contribui para prepará-la. Pois, se o conjunto de nossas imagens passadas nos permanece presente, também é preciso que a representação análoga à percepção atual seja escolhida entre todas as representações possíveis. Os movimentos efetuados ou simplesmente nascentes preparam essa seleção, ou pelo menos delimitam o campo das imagens onde iremos colher. Devido à constituição de nosso sistema nervoso, somos seres no quais impressões presentes se prolongam em movimentos apropriados: se antigas imagens vêm do mesmo modo prolongar-se nesses movimentos, elas aproveitam a ocasião para se insinuarem na percepção atual e fazerem-se adotar por ela. Com isso aparecem de fato à nossa consciência, quando deveriam de direito permanecer cobertas pelo estado presente. Poderíamos portanto dizer que os movimentos que provocam o reconhecimento automático impedem por um lado, e por outro favorecem, o reconhecimento por imagens. Em princípio, o presente desloca o passado. Mas, justamente porque a supressão das antigas imagens resulta de sua inibição pela atitude presente, aquelas cuja forma poderia se enquadrar nessa atitude encontrarão um obstáculo menor que as outras; e, se, a partir de então, alguma delas for capaz de superar o obstáculo, é a imagem semelhante à percepção presente que irá superá-lo."

p. 114 a 115
"a atenção implica uma volta para trás do espírito que renuncia a perseguir o resultado útil da percepção presente: haverá inicialmente uma inibição de movimento, uma ação de detenção. Mas nessa atitude geral virão em seguida introduzir-se movimentos mais sutis, alguns dos quais foram observados e descritos, e que têm por função tornar a passar sobre os contornos do objeto percebido. Com esses movimentos começa o trabalho positivo, e não mais simplesmente negativo, da atenção. Ele é continuado pelas lembranças. / Se a percepção exterior, com efeito, provoca de nossa parte movimentos que a desenham em linhas gerais, nossa memória dirige à percepção recebida as antigas imagens que se assemelham a ela e cujo esboço já foi traçado por nossos movimentos. Ela cria assim pela segunda vez a percepção presente, ou melhor, duplica essa percepção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja uma imagem-lembrança do mesmo tipo. Se a imagem retida ou rememorada não chega a cobrir todos os detalhes da imagem percebida, um apelo é lançado às regiões mais profundas e afastadas da memória, até que outros detalhes conhecidos venham a se projetar sobre aqueles que se ignoram. E a operação pode prosseguir indefinidamente, a memória fortalecendo e enriquecendo a percepção, a qual, por sua vez, atrai para si um número crescente de lembranças complementares."

p. 117
"toda imagem-lembrança capaz de interpretar nossa percepção atual insinua-se nela, a ponto de não podermos mais discernir o que é percepção e o que é lembrança."
/
"a leitura corrente é um verdadeiro trabalho de adivinhação, nosso espírito colhendo aqui e ali alguns traços característicos e preenchendo todo o intervalo com lembranças-imagens que, projetadas sobre o papel, substituem-se aos caracteres realmente impressos e nos dão sua ilusão. Assim, criamos ou reconstruímos a todo instante. Nossa percepção distinta é verdadeiramente comparável a um círculo fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam uma atrás da outra."

p. 118 a 119
"a percepção refletida [é] um circuito, onde todos os elementos, inclusive o próprio objeto percebido, mantêm-se em estado de tensão mútua como num circuito elétrico, de sorte que nenhum estímulo partindo do objeto é capaz de deter sua marcha nas profundezas do espírito: deve sempre retornar ao próprio objeto.

p. 119
"Que não se veja aqui uma simples questão de palavras."

p. 120
"o progresso da atenção tem por efeito criar de novo, não apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais ele pode se associar".
/
"as lembranças pessoais, exatamente localizadas, e cuja série desenharia o curso de nossa existência passada, constituem, reunidas, o último e maior invólucro de nossa memória. Essencialmente fugazes, elas só se materializam por acaso, seja porque uma determinação acidentalmente precisa de nossa atividade corporal as atraia, seja porque a indeterminação mesma dessa atitude deixe o campo livre ao capricho de sua manifestação."

p. 121
"As imagens passadas, reproduzidas tais e quais com todos os seus detalhes, e inclusive com sua coloração afetiva, são as imagens do devaneio ou do sonho; o que chamamos agir é precisamente fazer com que essa memória se contraia ou, antes, se aguce cada vez mais, até apresentar apenas o fio de sua lâmina à experiência onde irá penetrar."

p. 127
"O progresso que resultará da repetição e do exercício consistirá simplesmente em desembaraçar o que estava inicialmente enredado, em dar a cada um dos movimentos elementares essa autonomia que garante a precisão, embora conservando-lhe a solidariedade com os outros, sem a qual se tornaria inútil. É correto afirmar que o hábito se adquire pela repetição do esforço; mas para que serviria o esforço repetido, se ele reproduzisse sempre a mesma coisa? A repetição tem por verdadeiro efeito decompor em primeiro lugar, recompor em seguida, e deste modo falar à inteligência do corpo."
/
"Posso perceber uma melodia, acompanhar seu desenho, fixá-la inclusive em minha memória, e não saber cantá-la."

p. 128
"Uma coisa, com efeito, é compreender um movimento difícil, outra é poder executá-lo. Para compreendê-lo, basta perceber o essencial, o suficiente para distingui-lo dos outros movimentos possíveis. Mas para saber executá-lo é preciso também que o corpo tenha compreendido. Ora, a lógica do corpo não admite os subentendidos. Ela exige que todas as partes constitutivas do movimento pedido sejam mostradas uma a uma, e depois recompostas juntamente. Uma análise completa torna-se aqui necessária, sem negligenciar nenhum detalhe, acompanhada de uma síntese atual em que não se abrevia nada. O esquema imaginativo, composto de algumas sensações musculares nascentes, era apenas um esboço. As sensações musculares real e completamente experimentadas dão-lhe o colorido e a vida."

p. 133
"O reconhecimento atento, dizíamos, é um verdadeiro circuito, em que o objeto exterior nos entrega partes cada vez mais profundas de si mesmo à medida que nossa memória, simetricamente colocada, adquire uma tensão mais alta para projetar nele suas lembranças."

p. 134
"Acompanhar um cálculo é refazê-lo por conta própria. Compreender a fala de outrem consistiria do mesmo modo em reconstituir inteligentemente, isto é, partindo das idéias, a continuidade dos sons que o ouvido percebe. E, de uma maneira mais geral, prestar atenção, reconhecer com inteligência, interpretar, constituiriam uma única e mesma operação pela qual o espírito, tendo fixado seu nível, tendo escolhido em si mesmo, com relação às percepções brutas, o ponto simétrico de sua causa mais ou menos próxima, deixaria escoar para essas percepções as lembranças que as irão encobrir."

p. 137
"os nomes próprios desaparecem em primeiro lugar, depois os nomes comuns, e finalmente os verbos."

p. 138
"do paciente que havia esquecido a letra F, e a letra F apenas, perguntamo-nos se é possível fazer abstração de uma letra determinada onde quer que ela se encontre, desligá-la portanto das palavras faladas ou escritas às quais está fortemente aderida, se primeiramente não houve um reconhecimento implícito dessa letra."

p. 139
"as lembranças, para se atualizarem, têm necessidade de um coadjuvante motor, e elas exigem, para serem chamadas à memória, uma espécie de atitude mental inserida, ela própria, numa atitude corporal. Com isso os verbos, cuja essência é exprimir ações imitáveis, são precisamente as palavras que um esforço corporal nos permitirá alcançar quando a função da linguagem estiver prestes a se perder: ao contrário, os nomes próprios, sendo de todas as palavras as mais afastadas dessas ações impessoais que nosso corpo é capaz de esboçar, são aquelas que um debilitamento da função atingiria em primeiro lugar."

p. 139 a 140
"não podendo pensar a palavra exata, ele pensou a ação correspondente, e essa atitude determinou a direção geral de um movimento de onde a frase saiu. É deste modo que nos acontece, tendo retido a inicial de um nome esquecido, de reencontrar o nome à força de pronunciar a inicial."

p. 140
"a invencível tendência que nos leva a pensar, em qualquer ocasião, antes em coisas do que em progressos."

p. 141
"Mas o pensamento científico, ao analisar esta série ininterrupta de mudanças e cedendo a uma irresistível necessidade de figuração simbólica, detém e solidifica em coisas acabadas as principais fases dessa evolução."

p. 142
"Também não é impunemente que se terá fixado em termos distintos e independentes a continuidade de um progresso indiviso. Esse modo de representação será suficiente talvez enquanto estritamente limitado aos fatos que serviram para inventá-lo: mas cada fato novo obrigará a complicar a figura, a intercalar ao longo do movimento estações novas, sem que jamais essas estações justapostas cheguem a reconstituir o próprio movimento."

p. 143
"Assim a teoria complica-se cada vez mais, sem conseguir no entanto abarcar a complexidade do real."

p. 144
"Raciocinam como se uma frase se compusesse de nomes que vão evocar imagens de coisas."

p. 145
"refinada ou grosseira, uma língua subentende muito mais coisas do que é capaz de exprimir. Essencialmente descontínua, já que procede por palavras justapostas, a fala limita-se a assinalar, a intervalos regulares, as principais etapas do movimento do pensamento. Por isso compreenderei sua fala se eu partir de um pensamento análogo ao seu para acompanhar-lhe as sinuosidades com o auxílio de imagens verbais destinadas, à maneira de letreiros, a mostrar-me de tempos em tempos o caminho. Mas não a compreenderei jamais se partir das próprias imagens verbais, porque entre duas imagens verbais consecutivas há um intervalo que nenhuma representação concreta conseguiria preencher. As imagens, com efeito, serão sempre coisas, e o pensamento é um movimento."

p. 146
"as idéias, as lembranças puras, chamadas do fundo da memória, desenvolvem-se em lembranças-imagens cada vez mais capazes de se inserirem no esquema motor. À medida que essas lembranças adquirem a forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, elas tendem a se confundir com a percepção que as atrai ou cujo quadro elas adotam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região onde as lembranças se fixem e se acumulem. A pretensa destruição das lembranças pelas lesões cerebrais não é mais que uma interrupção do progresso contínuo através do qual a lembrança se atualiza."

p. 149
"não é possível restar algo de um imagem na substância cerebral, e não poderia haver também um centro de apercepção, mas há simplesmente, nessa substância, órgãos de percepção virtual, influenciados pela intenção da lembrança, assim como na periferia há órgãos de percepção real, influenciados pela ação do objeto."

p. 150
"Esse órgão [dos sentidos] é precisamente construído de modo a permitir que uma pluralidade de excitações simultâneas o impressionem de uma certa maneira e numa certa ordem, distribuindo-se, todas ao mesmo tempo, sobre partes escolhidas de sua superfície. Trata-se portanto de um imenso teclado de piano, sobre o qual o objeto exterior executa de uma só vez seu acorde de milhares de notas, provocando assim, numa ordem determinada e num único momento, uma quantidade enorme de sensações elementares que correspondem a todos os pontos interessados do centro sensorial."

p. 151
"os centros onde nascem as sensações elementares podem ser acionados, de certo modo, por dois lados diferentes, pela frente e por trás. Pela frente eles recebem as impressões dos órgãos dos sentidos e, conseqüentemente, de um objeto real; por trás eles sofrem, de intermediário em intermediário, a influência de um objeto virtual. Os centros de imagens, se existem, só podem ser órgãos simétricos aos órgãos dos sentidos em relação a esses centros sensoriais. Eles não são depositários das lembranças puras, ou seja, dos objetos virtuais, assim como os órgãos dos sentidos não são depositários dos objetos reais."

p. 152
"Quaisquer que sejam o número e a natureza dos termos interpostos, não vamos da percepção à idéia, mas da idéia à percepção, e o processo característico do reconhecimento não é centrípeto, mas centrífugo."
/
"A lembrança pura, à medida que se atualiza, tende a provocar no corpo todas as sensações correspondentes. Mas essas sensações na verdade virtuais, para se tornarem reais, devem tender a fazer com que o corpo aja, com que nele se imprimam os movimentos e atitudes dos quais elas são o antecedente habitual."

p. 153
"O progresso pelo qual a imagem virtual se realiza não é senão a série de etapas pelas quais essa imagem chega a obter do corpo procedimentos úteis. A excitação dos centros ditos sensoriais é a última dessas etapas; é o prelúdio de uma reação motora, o começo de uma ação no espaço. Em outras palavras, a imagem virtual evolui em direção à sensação virtual, e a sensação virtual evolui em direção ao movimento real: esse movimento, ao se realizar, realiza ao mesmo tempo a sensação da qual ele seria o prolongamento natural e a imagem que quis se incorporar à sensação."

p. 158
"Mas a verdade é que jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída. Essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido por nós como passado a menos que sigamos e adotemos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagem presente, emergindo das trevas para a luz do dia. Em vão se buscaria seu vestígio em algo de atual e já realizado: seria o mesmo que buscar a obscuridade sob a luz."

p. 160
"Meu presente é aquilo que me interessa, o que vive para mim e, para dizer tudo, o que me impele à ação, enquanto meu passado é essencialmente impotente."

p. 161 a 162
"O que é, para mim, o momento presente? É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração. Onde portanto se situa essa duração? Estará aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente? Evidentemente está aquém e além ao mesmo tempo, e o que chamo "meu presente" estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro. Sobre meu passado em primeiro lugar, pois "o momento em que falo já está distante de mim"; sobre meu futuro a seguir, pois é sobre o futuro que esse momento está inclinado, é para o futuro que eu tendo, e se eu pudesse fixar esse indivisível presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a direção do futuro que ele mostraria. É preciso portanto que o estado psicológico que chamo "meu presente" seja ao mesmo tempo uma percepção do passado imediato e uma determinação do futuro imediato. Ora, o passado imediato, enquanto percebido, é, como veremos, sensação, já que toda sensação traduz uma sucessão muito longa de estímulos elementares; e o futuro imediato, enquanto determinando-se, é ação ou movimento. Meu presente portanto é sensação e movimento ao mesmo tempo; e, já que meu presente forma um todo indiviso, esse movimento deve estar ligado a essa sensação, deve prolongá-la em ação. Donde concluo que meu presente consiste num sistema combinado de sensações e movimentos. Meu presente é, por essência, sensório-motor. / Equivale a dizer que meu presente consiste na consciência que tenho de meu corpo. Estendido no espaço, meu corpo experimenta sensações e ao mesmo tempo executa movimentos."

p. 162
"De maneira mais geral, nessa continuidade de devir que é a própria realidade, o momento presente é constituído pelo corte quase instantâneo que nossa percepção pratica na massa em vias de escoamento, e esse corte é precisamente o que chamamos de mundo material, aquilo que sentimos diretamente decorrer; em seu estado atual consiste a atualidade do nosso presente. Se a matéria, enquanto extensão no espaço, deve ser definida, em nossa opinião, como um presente que não cessa de recomeçar, nosso presente, inversamente, é a própria materialidade de nossa existência, ou seja, um conjunto de sensações e de movimentos, nada mais."

p. 169 a 170
"E, se a realidade, enquanto extensão, nos parece ultrapassar ao infinito nossa percepção, em nossa vida interior, ao contrário, só nos parece real o que começa com o momento presente; o resto é praticamente abolido. Então, quando uma lembrança reaparece à consciência, ela nos dá a impressão de uma alma do outro mundo cuja aparição misteriosa precisaria ser explicada por causas especiais. Na realidade, a aderência dessa lembrança a nosso estado presente é inteiramente comparável à dos objetos não percebidos em relação aos que percebemos, e o inconsciente desempenha nos dois casos um papel do mesmo tipo."

p. 170
"adquirimos o hábito de acentuar as diferenças, e por outro lado de apagar as semelhanças, entre a série dos objetos simultaneamente escalonados no espaço e a dos estados sucessivamente desenvolvidos no tempo. Na primeira, os termos condicionam-se de uma maneira totalmente determinada, de modo que o aparecimento de cada novo termo possa ser previsto. Assim, ao sair de meu quarto, sei quais são as peças que irei atravessar. Minhas lembranças, ao contrário, apresentam-se numa ordem aparentemente caprichosa. A ordem das representações é portanto necessária numa caso, contingente no outro; e é essa necessidade que hipostasio, de certo modo, quando falo da existência dos objetos fora de toda consciência. Se não vejo nenhum inconveniente em supor dada a totalidade dos objetos que não percebo, é porque a ordem rigorosamente determinada desses objetos lhes dá o aspecto de uma cadeia, da qual minha percepção presente não seria mais que um elo: este elo comunica então sua atualidade ao restante da cadeia. - mas, se examinarmos de perto, veremos que nossas lembranças formam uma cadeia do mesmo tipo, e que nosso caráter, sempre presente em todas as nossas decisões, é exatamente a síntese atual de todos os nossos estados passados. Sob essa forma condensada, nossa vida psicológica anterior existe inclusive mais, para nós, do que o mundo externo, do qual nunca percebemos mais do que uma parte muito pequena, enquanto ao contrário utilizamos a totalidade do nossa experiência vivida. É verdade que a possuímos apenas como um resumo, e que nossas antigas percepções, consideradas como individualidades distintas, nos dão a impressão, ou de terem desaparecido totalmente, ou de só reaparecerem ao sabor de seu capricho. Mas essa aparência de destruição completa ou de ressurreição caprichosa deve-se simplesmente ao fato de a consciência atual aceitar a cada instante o útil e rejeitar momentaneamente o supérfluo. Sempre voltada para a ação, ela só é capaz de materializar, de nossas antigas percepções, aquelas que se organizam com a percepção presente para concorrer à decisão final. Se é preciso, para que a vontade se manifeste sobre um ponto dado do espaço, que minha consciência ultrapasse um a um esses obstáculos ou essas mediações cujo conjunto constitui o que chamamos a distância no espaço, em compensação lhe é útil, para esclarecer esta ação, saltar sobre o intervalo de tempo que separa a situação atual de uma situação anterior análoga; e, como a consciência assim se transporta de um salto, toda a parte intermediária do passado escapa à suas influências. As mesmas razões que fazem com que nossas percepções se disponham em continuidade rigorosa no espaço fazem portanto com que nossas lembranças se iluminem de maneira descontínua no tempo. Não estamos lidando, no que concerne aos objetos não percebidos no espaço e às lembranças inconsciente no tempo, com duas formas radicalmente diferentes da existência; mas as exigências da ação são inversas, num caso, do que elas são no outro."

p. 172
"a existência, no sentido empírico da palavra, implica sempre ao mesmo tempo, mas em graus diferentes, a apreensão consciente [apresentação à consciência] e a conexão regular [conexão lógica ou causal daquilo que é assim representado com o que precede e o que segue]."

p. 173
"Donde a impossibilidade de deixar aos objetos existentes mas não percebidos a menos participação na consciência, e aos estados interiores não conscientes a menor participação na existência. Já mostramos [...] as conseqüências da primeira ilusão: ela acaba deturpando nossa representação da matéria. A segunda, complementar da primeira, vicia nossa concepção do espírito, ao espalhar sobre a idéia do inconsciente uma obscuridade artificial. Nossa vida psicológica passada inteira condiciona nosso estado presente, sem determiná-lo de uma maneira necessária; também inteira ela se revela em nosso caráter, embora nenhum dos estados passados se manifeste no caráter explicitamente."

p. 173 a 174
"Mas estamos tão habituados a inverter, para a maior vantagem da prática, a ordem real das coisas, padecemos a tal ponto a obsessão das imagens obtidas do espaço, que não podemos nos impedir de perguntar onde se conserva a lembrança. Concebemos que fenômenos físico-químicos tenham lugar no cérebro, que o cérebro esteja no corpo, o corpo no ar que o circunda, etc.; mas o passado uma vez realizado, se ele se conserva, onde se encontra?"

p. 175
"Tal sobrevivência em si do passado impõe-se assim de uma forma ou outra, e a dificuldade que temos de concebê-la resulta simplesmente de atribuirmos à série das lembranças, no tempo, essa necessidade de conter e de ser contido que só é verdadeira para o conjunto dos corpos instantaneamente percebidos no espaço. A ilusão fundamental consiste em transportar à própria duração, em vias de decorrer, a forma dos cortes instantâneos que nela praticamos."
/
"a questão é precisamente saber se o passado deixou de existir, ou se ele simplesmente deixou de ser útil. Você define arbitrariamente o presente como o que é, quando o presente é simplesmente o que se faz."

p. 175 a 176
"Na fração de segundo que dura a mais breve percepção possível de luz, trilhões de vibrações tiveram lugar, sendo que a primeira está separada da última por um intervalo enormemente dividido. A sua percepção, por mais instantânea, consiste portanto numa incalculável quantidade de elementos rememorados, e, para falar a verdade, toda percepção é já memória. Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro."

p. 176
"Nossa repugnância em admitir a sobrevivência integral do passado deve-se portanto à própria orientação de nossa vida psicológica, verdadeiro desenrolar de estados em que nos interessa olhar o que se desenrola, e não o que está inteiramente desenrolado."

p. 177
"a memória verdadeira. Coextensiva à consciência, ela retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e conseqüentemente marcando-lhe a data, movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não, como a primeira [a memória-hábito], num presente que recomeça a todo instante."
/
"nosso corpo não é nada mais que a parte invariavelmente renascente de nossa representação, a parte sempre presente, ou melhor, aquela que acaba a todo momento de passar. Sendo ele próprio imagem, esse corpo não pode armazenar as imagens, já que faz parte das imagens; por isso é quimérica a tentativa de querer localizar as percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro: elas não estão nele; é ele que está nelas."

p. 177 a 178
"Se eu representar por um cone SAB a totalidade das lembranças acumuladas em minha memória, a base AB, assentada no passado, permanece imóvel, enquanto o vértice S, que figura a todo momento meu presente, avança sem cessar, e sem cessar também toca o plano móvel P de minha representação atual do universo. Em S concentra-se a imagem do corpo; e, fazendo parte do plano P, essa imagem limita-se a receber e a devolver as ações emanadas de todas as imagens de que se compõe o plano."

p. 179
"Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso com efeito que ela desça das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida."
/
"Viver no presente puro, responder a uma excitação através de uma reação imediata que a prolonga, é próprio de um animal inferior: o homem que procede assim é um impulsivo. Mas não está melhor adaptado à ação aquele que vive no passado por mero prazer, e no qual as lembranças emergem à luz da consciência sem proveito para a situação atual: este não é mais um impulsivo, mas um sonhador. Entre esses dois extremos situa-se a favorável disposição de uma memória bastante dócil para seguir com precisão os contornos da situação presente, mas bastante enérgica para resistir a qualquer outro apelo. O bom senso, ou senso prático, não é na verdade outra coisa."

p. 180
"O desenvolvimento extraordinário da memória espontânea na maior parte das crianças deve-se principalmente a que elas ainda não solidarizaram sua memória com sua conduta. Seguem habitualmente a impressão do momento, e, como a ação não se submete nelas à indicações da lembrança, inversamente suas lembranças não se limitam às necessidades da ação. Elas só parecem reter com mais facilidade porque se lembram com menos discernimento. A diminuição aparente da memória, à medida que a inteligência se desenvolve, deve-se portanto à organização crescente das lembranças com os atos. A memória consciente perde assim em extensão o que ganha em força de penetração."
/
"Mas se nosso passado permanece quase inteiramente oculto para nós porque é inibido pelas necessidades da ação presente, ele irá recuperar a força de transpor o limite da consciência sempre que nos desinteressarmos da ação eficaz para nos recolocarmos, de algum modo, na vida do sonho. O sono, natural ou artificial, provoca justamente um desinteresse desse tipo."

p. 181 a 182
"Um ser humano que sonhasse sua existência em vez de vivê-la manteria certamente sob seu olhar, a todo momento, a multidão infinita dos detalhes de sua história passada. E aquele que, ao contrário, repudiasse essa memória com tudo o que ela engendra, encenaria sem cessar sua existência em vez de representá-la verdadeiramente: autômato consciente, seguiria a encosta dos hábitos úteis que prolongam a excitação em reação apropriada. O primeiro não sairia jamais do particular, e mesmo do individual. Dando a cada imagem sua data no tempo e seu lugar no espaço, veria por onde ela difere das outras e não por onde se assemelha. O outro, ao contrário, sempre conduzido pelo hábito, só distinguiria numa situação o lado por onde ela se assemelha praticamente a situações anteriores."

p. 183
"para generalizar é preciso primeiro abstrair, mas para abstrair utilmente é preciso já saber generalizar."

p. 185
"A generalização só pode ser feita por uma extração de qualidades comuns; mas as qualidades, para serem comuns, deverão já ter sofrido um trabalho de generalização."
/
"parece claro que a distinção nítida dos objetos individuais seja um luxo da percepção, do mesmo modo que a representação clara das idéias gerais é um refinamento da inteligência."

p. 185 a 186
"Parece portanto que não começamos nem pela percepção do indivíduo nem pela concepção do gênero, mas por um conhecimento intermediário, por um sentimento confuso de qualidade marcante ou de semelhança: este sentimento, igualmente afastado da generalidade plenamente concebida e da individualidade claramente percebida, as engendra, uma e outra, por meio da dissociação. A análise reflexiva o depura em idéia geral; a memória discriminativa o solidifica em percepção do individual."

p. 187
"do mineral à planta, da planta aos mais simples organismos conscientes, do animal ao homem, acompanha-se o progresso da operação pela qual as coisas e os organismos apreendem em seu ambiente o que os atrai, o que os interessa praticamente, sem que haja necessidade de abstrair, simplesmente porque o restante do ambiente permanece sem ação sobre eles: essa identidade de reação a ações superficialmente diferentes é o germe que a consciência humana desenvolve em idéias gerais."

p. 187 a 188
"A sensação é instável; ela pode adquirir as nuances mais variadas; o mecanismo motor ao contrário, uma vez montado, funcionará invariavelmente da mesma maneira. Podem-se portanto supor percepções as mais diferentes possíveis em seus detalhes superficiais: se elas se prolongam pelas mesmas reações motoras, se o organismo é capaz de extrair delas os mesmos efeitos úteis, se elas imprimem ao corpo a mesma atitude, algo de comum irá resultar daí, e deste modo a idéia geral terá sido sentida e experimentada antes de ser representada."

p. 188
"a semelhança de que o espírito parte, quando abstrai de início, não é a semelhança a que o espírito chega quando, conscientemente, generaliza. Aquela de que ele parte é uma semelhança sentida, vivida, ou, se quiserem, automaticamente desempenhada. Aquela a que ele chega é uma semelhança inteligentemente percebida ou pensada. E é precisamente ao longo desse progresso que se constróem, através do duplo esforço do entendimento e da memória, a percepção dos indivíduos e a concepção dos gêneros - a memória introduzindo distinções nas semelhanças espontaneamente abstraídas, o entendimento retirando do hábito das semelhanças a idéia clara da generalidade. Essa idéia de generalidade não era, na origem, senão nossa consciência de uma identidade de atitude numa diversidade de situações; era o próprio hábito, remontando da esfera dos movimentos à do pensamento. Mas, dos gêneros assim esboçados mecanicamente pelo hábito, passamos, por um esforço de reflexão efetuado sobre essa própria operação, à idéia geral do gênero; e, uma vez constituída essa idéia, construímos, agora voluntariamente, um número ilimitado de noções gerais."

p. 192
"entre duas idéias quaisquer, escolhidas ao acaso, há sempre semelhança e sempre, se quiserem, contigüidade, de sorte que, ao descobrir uma relação de contigüidade ou de semelhança entre duas representações que se sucedem, não se explica em absoluto por que uma evoca a outra."

p. 193
"Na realidade, percebemos as semelhanças antes dos indivíduos que se assemelham, e, num agregado de partes contíguas, o todo antes das partes. Vamos da semelhança aos objetos semelhantes, bordando sobre a semelhança, essa talagarça comum, a variedade das diferenças individuais. E vamos também do todo às partes, por um trabalho de decomposição cuja lei veremos mais adiante, e que consiste em parcelar, para a maior comodidade da vida prática, a continuidade do real. A associação não é, portanto, o fato primitivo; é por uma dissociação que começamos, e a tendência de toda lembrança a se agregar a outras explica-se por um retorno natural do espírito à unidade indivisa da percepção."

p. 194 a 195
"a solidariedade dos fatos psicológicos, sempre dados juntos à consciência imediata como um todo indiviso que somente a reflexão separa em fragmentos distintos."

p. 196
"Uma consciência que, desligada da ação, mantivesse sob o olhar a totalidade de seu passado, não teria nenhuma razão para se fixar sobre uma parte desse passado em vez de uma outra."

p. 198
"Tudo se passa como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nesses milhares e milhares de reduções possíveis de nossa vida passada. Elas adquirem uma forma mais banal quando a memória se contrai, mais pessoal que se dilata, e deste modo participam de uma quantidade ilimitada de "sistematizações" diferentes. Uma palavra de uma língua estrangeira, pronunciada a meu ouvido, pode fazer-me pensar nessa língua em geral ou em uma voz que a pronunciava outrora de uma certa maneira. Essas duas associações por semelhança não se devem à chegada acidental de duas representações diferentes que o acaso teria trazido sucessivamente à esfera de atração da percepção atual. Elas respondem a duas disposições mensais diversas, a dos graus distintos de tensão da memória, aqui mais próxima à imagem pura, ali mais voltada à resposta imediata, ou seja, à ação."

p. 200
"Há sempre algumas lembranças dominantes, verdadeiros pontos brilhantes em torno dos quais os outros formam uma vaga nebulosidade. Esses pontos brilhantes multiplicam-se à medida que se dilata nossa memória."

p. 202
"o espírito percorria sem cessar o intervalo compreendido entre seus dois limites extremos, o plano da ação e o plano do sonho."

p. 203
"Nosso corpo, com as sensações que recebe de um lado e os movimentos que é capaz de executar de outro, é portanto aquilo que efetivamente fixa nosso espírito, o que lhe proporciona a base e o equilíbrio. A atividade do espírito ultrapassa infinitamente a massa das lembranças acumuladas, assim como essa massa de lembranças ultrapassa infinitamente as sensações e os movimentos do momento presente; mas essas sensações e movimentos condicionam o que se poderia chamar de atenção à vida, e é por isso que tudo depende de sua coesão no trabalho normal do espírito, como numa pirâmide que se equilibrasse sobre sua ponta."
/
"Passemos os olhos, aliás, na fina estrutura do sistema nervoso, tal como a revelaram descobertas recentes. Acreditaremos ver por toda parte condutores, em nenhuma parte centros. Fios dispostos de uma ponta à outra e cujas extremidades se aproximam certamente quando a corrente passa, eis tudo o que se vê. E talvez seja tudo o que existe, se é verdade que o corpo não é mais que um lugar de encontro entre as excitações recebidas e os movimentos efetuados, tal como supusemos ao longo de todo o nosso trabalho."

p. 204
"De sorte que o sonho seria sempre o estado de um espírito cuja atenção não é fixada pelo equilíbrio sensório-motor do corpo."

p. 208
"Todos os fatos e todas as analogias estão a favor de uma teoria que veria no cérebro apenas um intermediário entre as sensações e os movimentos, que faria desse conjunto de sensações e movimentos a ponta extrema da vida mental, ponta incessantemente inserida no tecido dos acontecimentos, e que, atribuindo assim ao corpo a única função de orientar a memória para o real e ligá-la ao presente, consideraria essa própria memória como absolutamente independente da matéria. Neste sentido, o cérebro contribui para chamar de volta a lembrança útil, porém mais ainda para afastar provisoriamente todas as outras. Não vemos de que modo a memória se alojaria na matéria; mas compreendemos bem - conforme a observação profunda de um filósofo contemporâneo [Ravaisson] - que "a materialidade ponha em nós o esquecimento"."

p. 209
"Uma conclusão geral decorre dos três primeiros capítulos deste livro: a de que o corpo, sempre orientado para a ação, tem por função essencial limitar, em vista da ação, a vida do espírito. Com relação à representações, ele é um instrumento de seleção, e de seleção apenas. Não poderia nem engendrar nem ocasionar um estado intelectual. No que diz respeito à percepção, nosso corpo, pelo lugar que ocupa a todo instante no universo, marca as partes e os aspectos da matéria sobre os quais teríamos ação: a percepção, que mede justamente nossa ação virtual sobre as coisas, limita-se assim aos objetos que influencima nossos órgãos e preparam nossos movimentos. No que diz respeito à memória, o papel do corpo não é armazenar as lembranças, mas simplesmente escoher, para trazê-la à consciência distinta graças à eficácia real que lhe confere, a lembrança útil, aquela que completará e esclarecerá a situação presente em vista da ação final."

p. 210
"Uma certa margem é portanto necessariamente deixada desta vez à fantasia; e, se os animais não se aproveitam muito dela, cativos que são da necessidade material, parece que o espírito humano, ao contrário, lança-se a todo instante com a totalidade de sua memória de encontro à porta que o corpo lhe irá entreabrir: daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação - liberdades que o espírito toma com a natureza. É verdade que mesmo assim a orientação de nossa consciência para a ação parece ser a lei fundamental de nossa vida psicológica."

p. 212
"nossa percepção fazendo parte das coisas, as coisas participam da natureza de nossa percepção."

p. 213
"Ora, onde está exatamente a diferença entre as qualidades heterogêneas que se sucedem em nossa percepção concreta e as mudanças homogêneas que a ciência coloca por trás dessas percepções no espaço? As primeiras são descontínuas e não podem ser deduzidas umas das outras; as segundas, ao contrário, prestam-se ao cálculo. Mas, porque se prestam a isso, não há necessidade de fazer delas quantidades puras: equivaleria a reduzi-las ao nada. Basta que sua heterogeneidade seja suficientemente diluída, de certo modo, para tornar-se, de nosso ponto de vista, praticamente negligenciável. Ora, se toda percepção concreta, por mais breve que a suponhamos, já é a síntese, pela memória, de uma infinidade de "percepções puras" que se sucedem, não devemos pensar que a heterogeneidade relativa das qualidades sensíveis tem a ver com sua contração em nossa memória, e a homogeneidade relativa das mudanças objetivas com seu relaxamento natural?"

p. 213 a 214
"O que chamamos ordinariamente um fato não é a realidade tal como apareceria a uma intuição imediata, mas uma adaptação do real aos interesses da prática e às exigências da vida social."

p. 214
"A intuição pura, exterior ou interna, é a de uma continuidade indivisa. Nós a fracionamos em elementos justapostos, que correspondem, aqui a palavras distintas, ali a objetos independentes. Mas, justamente porque rompemos assim a unidade de nossa intuição original, sentimo-nos obrigados a estabelecer entre os termos disjuntos um vínculo, que já não poderá ser senão exterior e justaposto. À unidade viva, nascida da continuidade interior, substituímos a unidade factícia de uma moldura vazia, inerte como os termos que ela mantém unidos."
/
"Justamente porque essa fragmentação do real se operou em vista das exigências da vida prática, ela não acompanhou as linhas interiores da estrutura das coisas".

p. 215
"se a metafísica não é mais que uma construção, há várias metafísicas igualmente verossímeis, que se refutam conseqüentemente umas às outras, e a última palavra caberá a uma filosofia crítica que toma todo conhecimento por relativo e o âmago das coisas por inacessível ao espírito."
/
"Tal é, com efeito, a marcha regular do pensamento filosófico: partimos daquilo que acreditamos seja a experiência, procuramos diversos arranjos possíveis entre os fragmentos que a compõem aparentemente, e, diante da fragilidade reconhecida de todas as nossas construções, acabamos por renunciar a construir.
- Mas haveria um último empreendimento a tentar. Seria ir buscar a experiência em sua fonte, ou melhor, acima dessa virada decisiva em que ela, infletindo-se no sentido de sua utilidade, torna-se propriamente experiência humana."

p. 216
"Esse método apresenta, na aplicação, dificuldades consideráveis e que não cessam de renascer, porque ele exige, para a solução de cada novo problema, um esforço inteiramente novo. Renunciar a certos hábitos de pensar e mesmo de perceber já é difícil: mas esta é só a parte negativa do trabalho a ser feito; e, quando a fizemos, quando nos colocarmos naquilo que chamávamos a virada da experiência, quando aproveitamos a nascente claridade que, ao iluminar a passagem do imediato ao útil, dá início à aurora de nossa experiência humana, resta ainda reconstituir, com os elementos infinitamente pequenos que percebemos da curva real, a forma da própria curva que se estende na obscuridade atrás deles."

p. 217
"Daí os dois pontos de vista opostos sobre a questão da liberdade: para o determinismo, o ato é a resultante de uma composição mecânica dos elementos entre si; para seus adversários, se estivessem rigorosamente de acordo com seu princípio, a decisão livre deveria ser um fiat arbitrário, uma verdadeira criação ex nihilo. - Pensamos que haveria um terceiro partido a tomar. Seria colocarmo-nos na duração pura, cujo decorrer é contínuo, e onde passamos, por gradações insensíveis, de um estado a outro: continuidade realmente vivida, mas artificialmente decomposta para a maior comodidade do conhecimento usual. Então acreditamos ver a ação sair de seus antecedentes por uma evolução sui generis, de tal sorte que encontramos nessa ação os antecedentes que a explicam, e no entanto ela acrescenta aí algo de absolutamente novo, estando em desenvolvimento neles como o fruto na flor."


p. 217 a 218
"A duração em que nos vemos agir, e em que é útil que nos vejamos, é uma duração cujos elementos se dissociam e se justapõem; mas a duração em que agimos é uma duração na qual nossos estudos se fundem uns nos outros, e é lá que devemos fazer um esforço para nos colocar pelo pensamento no caso excepcional e único em que especulamos sobre a natureza íntima da ação, ou seja, na teoria da liberdade."

p. 218 a 219
"A questão é saber se, nessa "diversidade dos fenômenos" de que falou Kant, a massa confusa com tendência extensiva poderia ser apreendida aquém do espaço homogêneo sobre o qual ela se aplica e por intermédio do qual a subdividimos - do mesmo modo que nossa vida interior é capaz de se desligar do tempo indefinido e vazio para voltar a ser duração pura. Certamente, seria um empreendimento quimérico querer libertar-se das condições fundamentais da percepção exterior. Mas a questão é saber se certas condições, que tomamos geralmente por fundamentais, não concerniriam ao uso a fazer das coisas, à vantagem prática que nos proporcionam, bem mais do que ao conhecimento puro que podemos ter delas. Mais particularmente, no que se refere à extensão concreta, contínua, diversificada e ao mesmo tempo organizada, pode-se contestar que ela seja solidária ao espaço amorfo e inerte que a subentende, espaço que dividimos indefinidamente, onde separamos figuras arbitrariamente, e onde o próprio movimento, conforme dizíamos em outra parte, só pode aparecer como uma multiplicidade de posições instantâneas, já que nada poderia assegurar nele a coesão do passado e do presente. Seria possível portanto, numa certa medida, libertar-se do espaço sem sair da extensão, e haveria efetivamente aí um retorno imediato, uma vez que percebemos de fato a extensão, enquanto não fazemos mais que conceber o espaço à maneira de um esquema."

p. 219
"Mas que razões teríamos para duvidar de um conhecimento?"
/
"Todo movimento, enquanto passagem de um repouso a um repouso, é absolutamente indivisível."

p. 220
"Quando vejo o móvel passar num ponto, concebo certamente que ele possa se deter nele; e, ainda que não se detenha, tendo a considerar sua passagem como um repouso infinitamente curto, porque necessito pelo menos do tempo para pensar nele; mas é apenas minha imaginação que repousa aqui, e o papel do móvel, ao contrário, é se mover."

p. 221 a 222
"Você substitui o trajeto pela trajetória e, porque o trajeto está subentendido pela trajetória, você acredita que ambos coincidem. Mas de que modo um progresso coincidiria com uma coisa, um movimento com uma imobilidade?"

p. 222
"A indivisibilidade do movimento implica portanto a impossibilidade do instante."

p. 223 a 224
"Os argumentos de Zenão de Eléia não têm outra origem senão a ilusão. Todos consistem em fazer coincidir o tempo e o movimento com a linha que os subentende, em atribuir-lhes as mesmas subdivisões, enfim, em tratá-los como linha. A essa confusão Zenão era encorajado pelo senso comum, que transporta geralmente ao movimento as propriedade de sua trajetória, e também pela linguagem, que traduz sempre em espaço o movimento e a duração. Mas o senso comum e a linguagem estão aqui em seu direito, e inclusive cumprem, de certo modo, seu dever, pois, considerando sempre o devir como uma coisa utilizável, eles não têm por que se inquietar mais com a organização interior do movimento do que o operário com a estrutura molecular de suas ferramentas. Ao tomar o movimento por divisível como sua trajetória, o senso comum exprime apenas os dois fatos únicos que importam na vida prática: 1) que todo movimento descreve um espaço; 2) que em cada ponto desse espaço o móvel poderia se deter. Mas o filósofo que reflete sobre a natureza íntima do movimento é obrigado a restituir-lhe a mobilidade que é sua essência, e é isto que Zenão não faz."

p. 224
"é impossível construir [...] o movimento com imobilidades".

p. 227
"Não há símbolo matemático capaz de exprimir que é o móvel que se move e não os eixos ou os pontos aos quais está relacionado. E é natural que seja assim, já que esses símbolos, sempre destinados a medidas, só são capazes de exprimir distâncias. Mas que haja um movimento real, ninguém pode contestar seriamente: caso contrário, nada mudaria no universo, e sobretudo não se percebe o que significaria a consciência que temos de nossos próprios movimentos."

p. 227 a 228
"Quando estou sentado tranqüilo, e um outro, afastando-se mil passos de mim, está exausto de fadiga, é efetivamente ele que se move e sou eu que repouso." [H. Morus]

p. 228
"Não podemos portanto deixar de tomar todo lugar por relativo, nem de crer num movimento absoluto."

p. 230
"já não se trataria de saber como se produzem, em tais partes determinadas da matéria, mudanças de posição, mas como se realiza, no todo, uma mudança de aspecto".
/
"Toda divisão da matéria em corpos independentes de contornos absolutamente determinados é uma divisão artificial."

p. 231
"os dados da visão e do tato são os que se estendem mais manifestamente no espaço, e o caráter essencial do espaço é a continuidade. Há intervalos de silêncio entre os sons, pois a audição nem sempre está ocupada; entre os odores e os sabores existem vazios, como se o olfato e o gosto só funcionassem acidentalmente: assim que abrimos os olhos, ao contrário, nosso campo visual se colore por inteiro, e, uma vez que os sólidos são necessariamente contíguos uns aos outros, nosso tato deve acompanhar a superfície ou as arestas dos objetos sem jamais encontrar interrupção verdadeira."
/
"De que modo fragmentamos a continuidade primitiva percebida da extensão material em tantos corpos, cada um dos quais com sua substância e individualidade? Certamente essa continuidade muda de aspecto, de um momento a outro; mas por que não constatamos pura e simplesmente que o conjunto mudou, como se houvéssemos girado um caleidoscópio? Por que buscamos enfim, na mobilidade do conjunto, pistas deixadas por corpos em movimento? Uma continuidade movente nos é dada, em que tudo muda e permanece ao mesmo tempo: como se explica que dissociemos esses dois termos, permanência e mudança, para representar a permanência por corpos e a mudança por movimentos homogêneos no espaço?

p. 232
"Ao lado da consciência e da ciência, existe a vida."
/
"Mas uma vez constituído e distinguido esse corpo, as necessidades que ele experimenta o levam a distinguir e a constituir outros."

p. 233
"Nossas necessidades são portanto feixes luminosos que, visando a continuidade das qualidades sensíveis, desenham aí corpos distintos. Elas só podem satisfazer-se com a condição de se moldarem nessa continuidade um corpo, e depois de delimitarem aí outros corpos com os quais este entrará em relação como com pessoas. Estabelecer essas relações muito particulares entre porções assim recortadas da realidade sensível é justamente o que chamamos viver."

p. 233 a 234
"como se obteria um conhecimento mais próximo das coisas levando a divisão ainda mais longe? Deste modo prolongamos o movimento vital; viramos as costas ao conhecimento verdadeiro. Por isso a operação grosseira que consiste em decompor o corpo em partes da mesma natureza que ele nos conduz a um impasse, incapazes que nos sentimos em seguida de conceber por que motivo essa divisão se deteria e de que maneira ela se prolongaria ao infinito. Tal operação representa, com efeito, uma forma usual da ação útil, indevidamente transportada ao domínio do conhecimento puro. Portanto não se explicará jamais através de partículas, sejam quais forem, as propriedades simples da matéria: quando muito se acompanharão até os corpúsculos, artificiais como o próprio corpo, as ações e reações desse corpo em face de todos os outros. Tal é precisamente o objeto da química. Ela estuda menos a matéria do que os corpos; concebe-se portanto que ela se detenha num átomo, dotado ainda das propriedades gerais da matéria. Mas a materialidade do átomo dissolve-se cada vez mais sob o olhar do físico. Não temos nenhum motivo, por exemplo, para nos representarmos o átomo como sólido, em vez de líquido ou gasoso, nem para nos figurarmos a ação recíproca dos átomos através de choques e não de outra maneira. Por que pensamos num átomo sólido, e por que em choques? Porque os sólidos, sendo os corpos sobre os quais temos uma influência mais manifesta, são aqueles que nos interessam mais em nossas relações com o mundo exterior, e porque o contato parece ser o único meio de que dispomos para fazer agir nosso corpo sobre os outros corpos. Mas experiências muito simples mostram que não há jamais contato real entre dois corpos que interagem; por outro lado, a solidez está longe de ser um estado absolutamente definido da matéria. Solidez e choque obtêm portanto sua aparente clareza dos hábitos e necessidades da vida prática; - imagens desse tipo não lançam nenhuma luz sobre o âmago das coisas."

p. 234 a 235
"Se há uma verdade, aliás, que a ciência colocou acima de qualquer contestação, é a de uma ação recíproca de todas as partes da matéria umas sobre as outras. Entre à moléculas supostas dos corpos se exercem forças atrativas e repulsivas. A influência da gravidade estende-se através dos espaços interplanetários. Existe portanto alguma coisa entre os átomos. Dir-se-á que já não é matéria, mas força. Representar-se-ão, estendidos os átomos, fios cada vez mais delgados, até que tenham se tornado invisíveis e mesmo, pelo que se acredita, imateriais. Mas para que poderia servir essa imagem grosseira? A conservação da vida exige certamente que distingamos, em nossa experiência diária, coisas inertes e ações exercidas por essas coisas no espaço. Como nos é útil fixar o lugar da coisa no ponto preciso onde poderíamos tocá-la, seus contornos palpáveis tornam-se para nós seu limite real, e vemos então em sua ação um não-sei-quê que se separa e difere dela. Mas já que uma teoria da matéria se propõe justamente a recuperar a realidade sob essas imagens usuais, todas relativas a nossas necessidades, é dessas imagens que ela deve se abstrair em primeiro lugar. E, de fato, vemos força e matéria reaproximarem-se e reunirem-se à medida que o físico aprofunda seus efeitos. Vemos a força materializar-se, o átomo idealizar-se, esses dois termos convergirem para um limite comum, e o universo recuperar assim sua continuidade."

p. 237
"O movimento real é antes o transporte de um estado que de uma coisa."

p. 238
"O movimento que a mecânica estuda não é mais que uma abstração ou um símbolo, uma medida comum, um denominador comum que permite comparar entre si todos os movimentos reais; mas esses movimentos, considerados neles mesmos, são indivisíveis que ocupam duração, supõem um antes e um depois, e ligam os momentos sucessivos do tempo por um fio de qualidade variável que deve ter alguma analogia com a continuidade de nossa própria consciência."

p. 239
"Ali onde o ritmo do movimento é bastante lento para se ajustar aos hábitos de nossa consciência - como acontece para as notas graves da escala musical, por exemplo -, não sentimos a qualidade percebida decompor-se espontaneamente em estímulos repetidos e sucessivos, ligados entre si por uma continuidade interior?"

p. 240
"Sua objetividade, ou seja, o que ela tem a mais do que oferece, consistirá precisamente então, tal como já havíamos sugerido, na imensa multiplicidade dos movimentos que ela executa, de certo modo, no interior de sua crisálida. Ela se expõe, imóvel, na superfície; mas ela vive e vibra em profundidade."

p. 241 a 242
"A duração vivida por nossa consciência é uma duração de ritmo determinado, bem diferente desse tempo de que fala o físico e que é capaz de armazenar, num intervalo dado, uma quantidade de fenômenos tão grande quanto se queira. No espaço de um segundo, a luz vermelha - aquela que tem o maior comprimento de onda e cujas vibrações são portanto as menos freqüentes - realiza 400 trilhões de vibrações sucessivas. Deseja-se fazer uma idéia desse número? Será preciso afastar as vibrações umas das outras o suficiente para que nossa consciência possa contá-las ou pelo menos registrar explicitamente sua sucessão, e se verá quantos dias, meses ou anos ocuparia tal sucessão. Ora, o menor intervalo de tempo vazio de que temos consciência é igual, segundo Exner, a dois milésimos de segundo; ainda assim é duvidoso que possamos perceber um após outro vários intervalos tão curtos. Admitamos no entanto que sejamos capazes disso indefinidamente. Imaginemos, em uma palavra, uma consciência que assistisse ao desfile de 400 trilhões de vibrações, todas instantâneas, e apenas separadas umas das outras pelos dois milésimos de segundo necessários para distingui-las. Um cálculo muito simples mostra que serão necessários 25 mil anos para concluir a operação. Assim, essa sensação de luz vermelha experimentada por nós durante um segundo corresponde, em si, a uma sucessão de fenômenos que, desenrolados em nossa duração com a maior economia de tempo possível, ocupariam mais de 250 séculos de nosso história.

p. 242
"O espaço aliás, no fundo, não é mais do que o esquema da divisibilidade indefinida."

p. 243 a 244
"Esse pretenso tempo homogêneo, como tentamos demonstrar em outra parte, é um ídolo da linguagem, uma ficção cuja origem é fácil de encontrar. Em realidade, não há um ritmo único da duração; é possível imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e deste modo fixariam seus respectivos lugares na série dos seres. Essa representação de durações com elasticidade desigual é talvez incômoda para nosso espírito, que contraiu o hábito útil de substituir a duração verdadeira, vivida pela consciência, por um tempo homogêneo e independente; mas em primeiro lugar é fácil, como dissemos, desmascarar a ilusão que torna uma tal representação incômoda, e em segundo essa idéia conta, no fundo, com o consentimento tácito de nossa consciência. Não nos acontece perceber em nós mesmos, durante o sono, duas pessoas contemporâneas e distintas, sendo que uma dorme alguns minutos enquanto o sonho da outra ocupa dias e semanas? E a história inteira não caberia num tempo muito curto para uma consciência mais tensa que a nossa, que assistisse ao desenvolvimento da humanidade condensando-o, por assim dizer, nas grandes fases de sua evolução? Perceber consiste portanto, em suma, em condensar períodos enormes de uma existência infinitamente diluída em alguns momentos mais diferenciados de uma vida mais intensa, e em resumir assim uma história muito longa. Perceber significa imobilizar."

p. 244 a 246
"Mas, se você suprime minha consciência, o universo material subsiste tal qual era: apenas, como foi feita abstração do ritmo particular de duração que era a condição de minha ação sobre as coisas, essas coisas retornam a si mesmas para se separarem na infinidade de momentos que a ciência distingue, e as qualidades sensíveis, sem desaparecerem, espalham-se e dissolvem-se numa duração incomparavelmente mais dividida. A matéria converte-se assim em inumeráveis estímulos, todos ligados numa continuidade ininterrupta, todos solidários entre si, e que se propagam em todos os sentidos como tremores. - Volte a ligar uns aos outros, em uma palavra, os objetos descontínuos de sua experiência diária; faça fluir, em seguida, a continuidade imóvel de suas qualidades como estímulos locais; adira a esses movimentos, desvencilhando-se do espaço divisível que os subentende, para já não considerar senão sua mobilidade, esse ato indiviso que sua consciência capta nos movimentos que você mesmo executa: você irá obter da matéria uma visão fatigante talvez para a imaginação, no entanto pura, e desembaraçada daquilo que as exigências da vida o obrigam a acrescentar na percepção exterior. - Restabeleça agora minha consciência e, com ela, as exigências da vida: a longos intervalos repetidos, e transpondo a cada vez enormes períodos da história interior das coisas, visões quase instantâneas serão tomadas, visões desta vez pitorescas, cujas cores mais definidas condensam uma infinidade de repetições e de mudanças elementares. É assim que os milhares de posições sucessivas de um corredor se contraem numa única atitude simbólica, que nosso olho percebe, que a arte reproduz, e que se torna, para todo o mundo, a imagem de um homem que corre. O olhar que lançamos ao nosso redor, de momento a momento, só percebe portanto os efeitos de uma infinidade de repetições e evoluções interiores, efeitos por isso mesmo descontínuos, e cuja continuidade é restabelecida pelos movimentos relativos que atribuímos a "objetos" no espaço. A mudança encontra-se por toda parte, mas em profundidade; nós a localizamos aqui e acolá, mas na superfície; e constituímos assim corpos ao mesmo tempo estáveis quanto a suas qualidades e móveis quanto a suas posições, uma simples mudança de lugar condensando nele, a nossos olhos, a transformação universal."

p. 246
"Que existem, num certo sentido, objetos múltiplos, que um homem se distingue de outro homem, uma árvore de outra árvore, uma pedra de outra pedra, é incontestável, uma vez que cada um desses seres, cada uma dessas coisas tem propriedades características e obedece a uma lei determinada de evolução. Mas a separação entre a coisa e seu ambiente não pode ser absolutamente definida; passa-se, por gradações insensíveis, de uma ao outro: a estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material, a perpetuidade de suas ações e reações recíprocas, demonstra suficientemente que eles não têm os limites precisos que lhes atribuímos. Nossa percepção desenha, de certo modo, a forma de seu resíduo; ela os delimita no ponto em que se detém nossa ação possível sobre eles, e em que eles cessam, conseqüentemente, de interessar nossas necessidades."

p. 246 a 247
"para dividir assim o real, devemos nos persuadir inicialmente de que o real é arbitrariamente divisível. Devemos em conseqüência estender abaixo da continuidade das qualidades sensíveis, que é a extensão concreta, uma rede de malhas indefinidamente deformáveis e indefinidamente decrescentes: tal substrato meramente concebido, tal esquema inteiramente ideal de divisibilidade arbitrária e indefinida, é o espaço homogêneo."

p. 247
"ao mesmo tempo que nossa percepção atual e, por assim dizer, instantânea efetua essa divisão da matéria em objetos independentes, nossa memória solidifica em qualidades sensíveis o escoamento contínuo das coisas. Ela prolonga o passado no presente, porque nossa ação irá dispor do futuro na medida exata em que nossa percepção, aumentada pela memória, tiver condensado o passado. Responder a uma ação sofrida por uma reação imediata que se ajusta ao seu ritmo e se prolonga na mesma duração, estar no presente, e num presente que recomeça a todo instante, eis a lei fundamental da matéria: nisso consiste a necessidade."
/
"A independência de sua ação sobre a matéria ambiental afirma-se cada vez melhor à medida que eles se libertam do ritmo segundo o qual essa matéria escoa-se."

p. 247 a 248
"as qualidades sensíveis, tal como figuram em nossa percepção acompanhada de memória, são efetivamente os momentos sucessivos obtidos pela solidificação do real. Mas, para distinguir esses momentos, e também para juntá-los através de um fio que seja comum à nossa própria existência e à das coisas, somos forçados a imaginar um esquema abstrato da sucessão em geral, um meio homogêneo e indiferente que esteja para o escoamento da matéria, no sentido do comprimento, assim como o espaço no sentido da largura: nisto consiste o tempo homogêneo."

p. 248
"Espaço homogêneo e tempo homogêneo não são portanto nem propriedades das coisas, nem condições essenciais de nossa faculdade de conhecê-los: exprimem, de uma forma abstrata, o duplo trabalho de solidificação e de divisão do real para nela encontrarmos pontos de apoio, para nela fixarmos centros de operação, para nela introduzirmos, enfim, mudanças verdadeiras; estes são os esquemas de nossa ação sobre a matéria."

p. 249
"as concepções errôneas da qualidade sensível e do espaço encontram-se tão profundamente enraizadas no espírito, que não se poderiam atacá-las de uma só vez num grande número de pontos."

p. 252
"como se o papel da memória não fosse justamente fazer sobreviver a complexidade do efeito à simplificação da causa!"
/
"não é verdade que, na percepção visual de um objeto, o cérebro, os nervos, a retina e o próprio objeto formam um todo solidário, um processo contínuo do qual a imagem retiniana não é mais que um episódio? Qual o direito de isolar essa imagem para resumir toda a percepção nela?"

p. 254
"A verdade é que o espaço não está mais fora de nós do que em nós, e que ele não pertence a um grupo privilegiado de sensações. Todas as sensações participam da extensão."

p. 255 a 256
"o espaço é de fato o símbolo da fixidez e da divisibilidade ao infinito. A extensão concreta, ou seja, a diversidade das qualidades sensíveis, não está nele; é ele que colocamos nela. O espaço não é o suporte sobre o qual o movimento real se põe; é o movimento real, ao contrário, que o põe abaixo de si. Mas nossa imaginação, preocupada antes de tudo com a comodidade de expressão e as exigências da vida material, prefere inverter a ordem natural dos termos. Habituada a buscar seu ponto de apoio num mundo de imagens inteiramente construídas, imóveis, cuja fixidez aparente reflete sobretudo a invariabilidade de nossas necessidades inferiores, ela não consegue deixar de ver o repouso como anterior à mobilidade, de tomá-lo por ponto de referência, de instalar-se nele, e de não perceber no movimento, enfim, senão uma variação de distância, o espaço precedendo o movimento. Então, num espaço homogêneo e indefinidamente divisível nossa imaginação desenhará uma trajetória e fixará posições: aplicando a seguir o movimento contra a trajetória, o fará divisível como essa linha e, como ela, desprovido de qualidade. É de admirar que nosso entendimento, exercendo-se desde então sobre essa idéia que representa justamente a inversão do real, só descubra nela contradições?"


p. 256 a 257
"Relegado ao espaço, e ao espaço abstrato, onde não há mais que um instante único e onde tudo recomeça sempre, o movimento renuncia a essa solidariedade do presente e do passado que é sua própria essência."

p. 257
"Nossa percepção, dizíamos, encontra-se originariamente antes nas coisas do que no espírito, antes fora de nós do que em nós. As percepções de diversos tipos assinalam algumas das muitas direções verdadeiras da realidade. Mas essa percepção que coincide com seu objeto, acrescentávamos, existe mais de direito do que de fato: ela teria lugar no instantâneo. Na percepção concreta intervém a memória, e a subjetividade das qualidades sensíveis deve-se justamente ao fato de nossa consciência, que desde o início não é senão memória, prolongar uns nos outros, para condensá-los numa intuição única, uma pluralidade de momentos."

p. 258
"A matéria extensa, considerada em seu conjunto, é como uma consciência em que tudo se equilibra, se compensa e se neutraliza".
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"E o espaço homogêneo, que se erguia entre os dois termos [percepção e matéria] como uma barreira intransponível, não tem mais outra realidade senão a de um esquema ou de um símbolo. Ele diz respeito aos procedimentos de um ser que age sobre a matéria, mas não ao trabalho de um espírito que especula sobre sua essência."

p. 259
"se existe passagem gradual da idéia à imagem e da imagem à sensação, se, à medida que evolui nos sentido da atualidade, ou seja, da ação, o estado da alma se aproxima da extensão, se finalmente, essa extensão, uma vez atingida, permanece indivisa e por isso não contraria de maneira alguma a unidade da alma, compreende-se que o espírito possa colocar-se sobre a matéria no to da percepção pura, conseqüentemente unindo-se a ela, e que não obstante dela se distinga radicalmente. Ele se distingue na medida em que condensa os momentos dessa matéria para servir-se dela e para manifestar-se através de ações que são a razão de ser de sua união com o corpo. Tínhamos portanto razão ao afirmar, no início deste livro, que a distinção do corpo e do espírito não deve ser estabelecida em função do espaço, mas do tempo."

p. 260
"as dificuldades atenuam-se num dualismo que, partindo da percepção pura em que sujeito e objeto coincidem, promova o desenvolvimento desses dois termos em suas respectivas durações - a matéria, à medida que se leva mais a fundo sua análise, tendendo a não ser mais que uma sucessão de momentos infinitamente rápidos que se deduzem uns dos outros e portanto se equivalem; o espírito sendo já memória na percepção, e afirmando-se cada vez mais como um prolongamento do passado no presente, um progresso, uma evolução verdadeira."

p. 260 a 261
"Mas a relação entre corpo e espírito torna-se com isso mais clara? Substituímos uma distinção espacial por uma distinção temporal: os dois termos serão mais capazes de se unir? Convém notar que a primeira distinção não comporta graus: a matéria está no espaço, o espírito está fora do espaço; não há transição possível entre eles. Ao contrário, se o papel mais modesto do espírito é ligar os momentos sucessivos da duração das coisas, se é nessa operação que ele toma contato com a matéria e também se distingue dela inicialmente, concebe-se uma infinidade de graus entre a matéria e o espírito plenamente desenvolvido, o espírito capaz de ação não apenas indeterminada, mas racional e refletida. Cada um desses graus sucessivos, que mede uma intensidade crescente de vida, corresponde uma tensão mais alta de duração e se traduz exteriormente por um maior desenvolvimento do sistema sensório-motor. O importante é então esse sistema nervoso? Sua complexidade crescente parecerá deixar uma amplitude cada vez maior à atividade do ser vivo, a capacidade de esperar antes de reagir, e de colocar a excitação recebida em relação com uma variedade cada vez mais rica de mecanismos motores. Mas isto é apenas o exterior, e a organização mais complexa do sistema nervoso, que parece assegurar uma maior independência do ser vivo em face da matéria, não faz mais que simbolizar materialmente essa própria independência, isto é, a força interior que permite ao ser vivo libertar-se do ritmo do transcorrer das coisas, reter cada vez melhor o passado para influenciar profundamente o futuro, ou seja, enfim, sua memória, no sentido especial que damos a essa palavra. Assim, entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão há todas as intensidades possíveis da memória, ou, o que vem a ser o mesmo, todos os graus da liberdade."

p. 262
"As dificuldades do dualismo vulgar não advêm de que os dois termos [matéria e espírito] se distingam, mas de que não se percebe como um deles se introduz no outro. Ora, mostramos que a percepção pura, que seria o grau mais baixo do espírito - o espírito sem a memória -, faria verdadeiramente parte da matéria tal como a entendemos. Vamos mais longe: a memória não intervém como uma função da qual a matéria não tivesse algum pressentimento e que já não imitasse à sua maneira. Se a matéria não se lembra do passado, é porque ela o repete sem cessar, porque, submetida à necessidade, ela desenvolve uma série de momentos em que cada um equivale ao precedente e pode deduzir-se dele: assim, seu passado é verdadeiramente dado em seu presente. Mas um ser que evolui mais ou menos livremente cria a todo instante algo de novo: é portanto em vão que se buscaria ler seu passado em seu presente se o passado não se depositasse nele na condição de lembrança. Assim, para retomar uma metáfora que já apareceu várias vezes neste livro, é preciso, por razões semelhantes, que o passado seja desempenhado pela matéria, imaginado pelo espírito."

p. 267
"a memória de um ser vivo parece medir antes de tudo a capacidade de sua ação sobre as coisas, e não ser mais do que a repercussão intelectual disso."

p. 268
"se fossem reunidos todos os estados de consciência, passados, presentes e possíveis, de todos os seres conscientes, só se abrangeria com isso, a nosso ver, uma parte muito pequena da realidade material, porque as imagens ultrapassam a percepção por todos os lados."

p. 269
"não há entre o "fenômeno" e a "coisa" a relação da aparência à realidade, mas simplesmente a da parte ao todo."

p. 271 a 272
"As mesmas necessidades, a mesma capacidade de agir, que recortaram nosso corpo na matéria, irão delimitar corpos distintos no meio que nos cerca. Tudo se passará como se deixássemos filtrar a ação real das coisas exteriores para deter e reter delas a ação virtual: essa ação virtual das coisas sobre nosso corpo e de nosso corpo sobre as coisas é propriamente a nossa percepção. Mas, como os estímulos que nosso corpo recebe dos corpos circundantes determinam constantemente, em sua substância, reações nascentes, e como os movimentos interiores da substância cerebral esboçam assim a todo momento nossa ação possível sobre as coisas, o estado cerebral corresponde exatamente à percepção. Não é nem sua causa, nem seu efeito, nem, em nenhum sentido, sua duplicata: ele simplesmente a prolonga, a percepção sendo nossa ação virtual e o estado cerebral nossa ação começada."

p. 272 a 273
"Nossa percepção, dizíamos, desenha a ação possível de nosso corpo sobre os outros corpos. Mas nosso corpo, sendo extenso, é capaz de agir sobre si mesmo tanto quanto sobre os outros. Em nossa percepção entrará portanto algo de nosso corpo. Todavia, quando se trata dos corpos circundantes, eles são, por hipótese, separados do nosso corpo por um espaço mais ou menos considerável, que mede o afastamento de suas promessas ou de suas ameaças no tempo: é por isso que nossa percepção desses corpos só desenha ações possíveis. Ao contrário, quanto mais a distância diminui entre esses corpos e o nosso, tanto mais a ação possível tende a se transformar em ação real, a ação tornando-se mais urgente à medida que a distância decresce. E, quando essa distância é nula, ou seja, quando o corpo a perceber está em nosso próprio corpo, é uma ação real, e não mais virtual, que a percepção desenha. Tal é precisamente a natureza da dor, esforço atual da parte lesada para recolocar as coisas no lugar, esforço local, isolado, e por isso mesmo condenado ao insucesso num organismo que já não é mais apto senão aos efeitos de conjunto. A dor portanto está no local onde se produz, como o objeto está no lugar onde é percebido. Entre a afecção sentida e a imagem percebida existe a diferença de que a afecção está em nosso corpo, a imagem fora de nosso corpo. E por isso a superfície de nosso corpo, limite comum deste corpo e dos outros corpos, nos é dada ao mesmo tempo na forma de sensação e na forma de imagem."

p. 274
"É portanto a percepção pura, isto é, a imagem, que devemos nos dar em primeiro lugar. E as sensações, longe de serem os materiais com que a imagem é fabricada, aparecerão como a impureza que nela se mistura, sendo aquilo que projetamos de nosso corpo em todos os outros."

p. 274 a 275
"o próprio universo material, definido como a totalidade das imagens, é uma espécie de consciência, uma consciência em que tudo se compensa e se neutraliza, uma consciência em que todas as partes eventuais, equilibrando-se umas às outras através de reações sempre iguais às ações, impedem-se mutuamente de se destacarem."

p. 276
"como nossa percepção do objeto presente era algo desse objeto mesmo, nossa representação do objeto ausente será um fenômeno completamente diferente da percepção, uma vez que entre a presença e a ausência não há nenhum grau, nenhum meio-termo."

p. 278
"o reconhecimento não se fazia em absoluto por um despertar mecânico de lembranças adormecidas no cérebro. Ele implica, ao contrário, uma tensão mais ou menos alta da consciência, que vai buscar na memória pura as lembranças puras, para materializá-las progressivamente em contato com a percepção presente."

p. 280
"A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos de um "estado virtual", que conduzimos pouco a pouco, através de uma série de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se materializa numa percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna um estado presente e atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência em que se desenha nosso corpo."

p. 280 281
"Mas a verdade é que nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso: ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e motor; - nosso presente é antes de tudo o estado de nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, o que agirá ao inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade. É verdade que, no momento em que a lembrança se atualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se novamente percepção."

p. 281
"a lembrança não poderia resultar de um estado cerebral. O estado cerebral prolonga a lembrança; faz com que ela atue sobre o presente pela materialidade que lhe confere; mas a lembrança pura é uma manifestação espiritual. Com a memória estamos efetivamente no domínio do espírito."

p. 282
"menos sonhada, isto é, mais próxima da ação e por isso mesmo mais banal, mais capaz de se modelar - como uma roupa de confecção - conforme a novidade da situação presente."

p. 282 a 283
"Entre o plano da ação - o plano em que nosso corpo contraiu seu passado em hábitos motores - e o plano da memória pura, em que nosso espírito conserva em todos os seus detalhes o quadro de nossa vida transcorrida, acreditamos perceber, ao contrário, milhares e milhares de planos de consciência diferentes, milhares de repetições integrais e no entanto diversas de totalidade de nossa experiência vivida. Completar uma lembrança com detalhes mais pessoais não consiste, de modo algum, em justapor mecanicamente lembranças a esta lembrança, mas em transportar-se a um plano de consciência mais extenso, em afastar-se da ação na direção do sonho. Localizar uma lembrança não consiste também em inseri-la mecanicamente entre outras lembranças, mas em descrever, por uma expansão crescente da memória em sua integralidade, um círculo suficientemente amplo para que esse detalhe do passado aí apareça. Esses planos não são dados, aliás, como coisas inteiramente prontas, superpostas umas às outras. Eles existem antes virtualmente, com essa experiência que é própria à coisas do espírito. A inteligência, movendo-se a todo instante ao longo do intervalo que as separa, as reencontra, ou melhor, as cria de novo sem cessar: sua vida consiste nesse próprio movimento."

p. 283
"O interesse de um ser vivo é perceber numa situação presente o que se assemelha a uma situação anterior, em seguida aproximar dela o que a precedeu e sobretudo o que a sucedeu, a fim de tirar proveito de sua experiência passada. De todas as associações que se poderiam imaginar, as associações por semelhança e contigüidade são portanto as únicas que têm inicialmente uma utilidade vital."

p. 284
"E por isso será sempre fácil para uma certa filosofia, dizíamos, localizar a idéia geral em uma das duas extremidades, cristalizando-a em palavras ou evaporando-as em lembranças, quando em realidade ela consiste na marcha do espírito que vai de uma extremidade a outra."


p. 286
"O que é dado não são sensações inextensivas: como haveriam elas de juntar-se ao espaço, escolher um lugar, coordenar-se enfim a ele para construir uma experiência universal? O que é real também não é uma extensão dividida em partes independentes: de que maneira aliás, não tendo assim nenhuma relação possível com nossa consciência, ela haveria de desenvolver uma série de mudanças cuja ordem e cujas relações correspondessem exatamente à ordem e às relações de nossa representação? O que é dado, o que é real, é algo intermediário entre a extensão dividida e o inextenso puro; é aquilo que chamamos de extensivo."

p. 289
"Entre as qualidades sensíveis consideradas em nossa representação e essas mesmas qualidades tratadas como mudanças calculáveis, há portanto apenas uma diferença de ritmo de duração, uma diferença de tensão interior."


p. 290 a 291
"O progresso da matéria viva consiste numa diferenciação das funções que leva primeiramente à formação, e depois à complicação gradual, de um sistema nervoso capaz de canalizar excitações e organizar ações: quanto mais os centros superiores se desenvolverem, mais numerosas se tornarão as vias motoras entre as quais uma mesma excitação irá propor à ação uma escolha. Uma amplitude cada vez maior oferecida ao movimento no espaço, eis efetivamente o que se vê.

O que não se vê é a tensão crescente e concomitante da consciência no tempo. Não apenas, por sua memória das experiências já antigas, essa consciência retém cada vez melhor o passado para organizá-lo com o presente numa decisão mais rica e mais nova, como, vivendo uma vida mais intensa, condensando, por sua memória da experiência imediata, um número crescente de momentos exteriores em sua duração presente, ela torna-se mais capaz de criar atos cuja indeterminação interna, devendo repartir-se em uma multiplicidade tão grande quanto se queira dos momentos da matéria, passará tanto mais facilmente através das malhas da necessidade.

Assim, quer a consideremos
no tempo ou no espaço, a liberdade parece sempre 
lançar na necessidade raízes profundas 
e organizar-se intimamente com ela."

BERGSON, Henri (1859-1941).
Matéria e Memória. 2a ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. 291p.; 18,5 cm.
Fonte
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.