quinta-feira, 21 de julho de 2011

A CONCEPÇÃO DE TEMPO EM AGOSTINHO







David Camilo *
 Agostinho em seu gabinete

Resumo:
Entre os grandes autores da história da filosofia Medieval, Aurelius Augustinus, mais conhecido como Santo Agostinho, ocupa um lugar de destaque. Tendo tratado filosoficamente sobre a questão da existência de Deus, abordou dentro desse tema vários assuntos, provas e reflexões como: a Fé na Trindade, O Exemplarismo, a ordem moral, a caridade como cerne da moral, as provas: psicológica, moral e cosmológica da existência de Deus e mais alguns outros caminhos que julgou necessário para formular sua estrutura de pensamento.
Uma das reflexões que fazem parte da questão tratada por Agostinho é o conceito de tempo.
Neste trabalho tenho por objetivo analisar e compreender o pensamento de Santo Agostinho em relação ao conceito de tempo em seu aspecto psicológico, para em seguida, compreender a idéia de passado, presente e futuro estabelecendo relações entre si. A problemática tratada neste trabalho consistirá em tentar responder de forma argumentativa a seguinte questão: Como pode o presente "ser", dado que, passado e futuro "não são?"
Palavras-chave: Agostinho, Deus, tempo, passado-presente-futuro, alma.


Este artigo tem por objetivo analisar e compreender o pensamento de Santo Agostinho (354-430) em relação ao conceito de tempo em seu aspecto psicológico, para em seguida, compreender a idéia de passado, presente e futuro estabelecendo relações entre si. Para que isso seja possível, será necessário buscar no pensamento de Agostinho, como se deu o conceito de tempo e que situação o levou a refletir sobre esse assunto.

É importante sabermos que Agostinho viveu na época Medieval e também por esse motivo seu pensamento trata de questões relacionadas à existência de Deus. Dentro desse assunto aborda uma série de reflexões para que se chegue a uma linha de pensamento solidificada a respeito desse tema. Uma destas reflexões é o tempo, o qual será tratado neste trabalho.

Deste modo, levando em consideração a concepção de tempo que o mundo em que vivemos exerce sobre nós, nos faz buscar e mostrar a partir de uma outra perspectiva, neste caso Santo Agostinho, as possíveis carências e ou deficiências que temos da visão de tal conceito. Para tanto, analisar a concepção de tempo torna-se um elemento de suma importância para compreendê-lo e percebê-lo a partir de uma outra ótica. 

COMPREENSÃO E RECONSTRUÇÃO DO TEMA
O tempo é algo que mexe com todos e está na boca e no cotidiano de todas as pessoas. Como diz Agostinho, "que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo?".Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando deles nos falam". Contudo, quando queremos nos colocar a explicá-lo, já não mais o sabemos.

Forçado pela controvérsia com os maniqueus, Agostinho assume uma postura equilibrada e cautelosa diante do difícil enigma (implicatissimum aenigma-cf. Conf.,XI, 22, 28). Por isso, diante da pergunta ontológica: "o que é, por conseguinte, o tempo?" (Conf., XI, 14, 17), ele responde: Se ninguém me perguntar, eu sei; porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei" ( Conf., XI, 14, 17). Essa resposta de Agostinho não impede, entretanto, que ele seja ousado em sua construção, considerada, até hoje, como uma das mais importantes.

Agostinho usa com grande maestria a dialética
para expor suas idéias, para tanto, 
usaremos também deste método para melhor 
compreendermos seu raciocínio.

Entre os grandes autores da história da filosofia Medieval, Aurelius Augustinus, mais conhecido como Santo Agostinho, ocupa um lugar de destaque. Tendo tratado filosoficamente sobre a questão da existência de Deus, abordou dentro desse tema, vários assuntos, provas e reflexões como a Fé na Trindade, O Exemplarismo, a ordem moral, a caridade como cerne da moral, as provas: psicológica, moral e cosmológica da existência de Deus e mais alguns outros caminhos que julgou necessário para formular sua estrutura de pensamento e assim explicar essa existência. Uma das reflexões que fazem parte da questão da existência de Deus tratada por Agostinho é o conceito de tempo, em seu aspecto psicológico.

O tempo é um ser de razão com fundamento na realidade. Santo Agostinho estuda o problema do tempo sob o aspecto psicológico: como nós o apreendemos. Não o estuda sob o aspecto ontológico: como é em si mesmo. Para este último caso teria de considerá-lo como indivisível.[2]

Esta afirmação torna-se muito importante para entender e contextualizar o pensamento de Agostinho. A afirmação de que o pensador refletia o tempo no aspecto subjetivo, ou psicológico, mostra que é preciso que o homem se perceba em relação a si mesmo e ao mundo entendendo como isso se dá.
Para compreendermos melhor sobre o conceito de tempo em Santo Agostinho, é necessário que se entenda de onde parte essa reflexão e a que ela está ligada.

Em sua argumentação dialética para provar a existência de Deus, Santo Agostinho desenvolve uma série de reflexões dentro desse pensamento para fazer-se melhor compreendido.

Dentro dessa dinâmica, o problema do tempo tem como ponto de partida a existência de Deus e a criação do mundo.
Não houve nenhum tempo em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo. Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? 

Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? 
Quem o poderá apreender mesmo
só com o pensamento.[3]

Santo Agostinho para explicar que não havia possibilidade de existir tempo antes da criação do mundo, descreve sobre a superioridade de Deus em relação ao tempo e a inferioridade deste para com Aquele, que é bem explicitada na seguinte citação:

Como poderiam ter passado inumeráveis séculos, se Vós, que sois o autor de todos os séculos, ainda os não tínheis criado? Que tempo poderia existir se não fosse estabelecido por Vós? E como poderia esse tempo decorrer, se nunca tivesse existido?[4]

Certamente foi Santo Agostinho quem, ante o colapso da Civilização Antiga e ao principiar toda sua filosofia por uma análise do fenômeno do tempo, deu o passo decisivo na direção do subjetivismo transcendente. Agostinho foi o primeiro pensador a ousar associar a consciência do Eu à intuição do Tempo.foi também o primeiro, concomitantemente, a introduzir essa noção temporal como elemento essencial de todo filosofar religioso e moral. Há aí uma coincidência curiosa e enigmática. 

A filosofia do Tempo, a qual o bispo de Hipona surpreendentemente intuiu, se enquadra tanto em sua obra eminente de Apologética como na análise psicológica, essencialmente subjetivista e "existencial", que empreendeu em suas famosas "Confissões", onde nos deparamos com um arrazoado de natureza metafísica.
O tempo que conhecemos é dividido da seguinte maneira:

1-Presente: sucessão de fatos que acontecem no aqui, agora, neste momento.
2-Passado: sucessão de fatos que já decorreram em um presente já superado.
3-Futuro: sucessão de fatos que não ocorreram, não ocorrem agora, mas que ainda irão ocorrer. 

Para Santo Agostinho, o tempo presente existe, mas interroga-se em relação ao passado e ao futuro, já que não podem ser medidos pela sensibilidade."Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, já lá não estão.[5]

O pensamento de Agostinho analisa os três tempos não como sendo três, mas como um só tempo, pois o analisa como um tempo contínuo, e, sendo assim, classifica-os como um eterno presente do seguinte modo:
PRESENTE DO PRESENTE, PRESENTE DO PASSADO E PRESENTE DO FUTURO.
Dado isso:

1 – O presente é:
O presente é porque o vivo neste momento e por isso posso percebê-lo e com isso medi-lo.
2 – O passado não é:
O passado é tempo, porém um tempo que já passou e se já passou não pode ser medido pela sensibilidade, portanto ele não é.
3 – O futuro não é:

O futuro ainda não chegou, 
por isso, não podemos medi-lo, 
portanto ele não é.

Tendo em vista que para Agostinho existe um único tempo, a partir desta perspectiva, podemos então, através de uma análise crítica, levantar a problemática que norteia esta pesquisa: "Como pode o presente "ser", dado que, passado e futuro "não são?"

Assim como Agostinho, Plotino, algumas décadas antes, já afirmava que o tempo não existe fora da alma: "é a vida da alma e consiste no movimento graças ao qual a alma passa de uma condição de sua vida para outra". Assim, pode-se dizer que até o universo está no tempo só na medida em que está na alma, ou seja, na alma do mundo.[6]

Já na filosofia moderna, Bergson reexpôs essa concepção, contrapondo-a ao conceito científico de tempo. Segundo ele, o tempo da ciência é espacializado e, por isso, não tem nenhuma das características que a consciência lhe atribui. Ele é representado como uma linha, mas a linha é imóvel, enquanto o tempo é mobilidade. A linha já está feita, ao passo que o tempo é aquilo que se faz; aliás, é aquilo graças a que todas as coisas se fazem. [7]

Em sua primeira obra, Essai sur lês données immédiates de la conscience, Bergson insistira na exigência de considerar o tempo vivido ( a duração da consciência) como corrente fluida na qual é impossível até distinguir estados, porque cada instante dela transpõe-se no outro em continuidade ininterrupta, como acontece com as cores do arco-íris.

Esse ficou sendo o conceito fundamental de sua filosofia. Segundo Bergson, o tempo como duração possui duas características fundamentais: 1º novidade absoluta a cada instante, em virtudedo que é um processo contínuo de criação; 2º conservação infalível e integral de todo o passado, em virtude do que age como umabola de neve e continua crescendo à medida que caminha para o futuro.

Não muito diferente, é o conceito de Husserl sobre o "tempo fenomenológico". Ele afirma: "Toda vivência efetiva é necessariamente algo que dura; e com essa duração insere-se em um infinito contínuo de durações, em um contínuo pleno". Tem necessariamente um horizonte temporal atualmente infinito de todos os lados. Isso significa que pertence a uma corrente infinita de vivências.

Cada vivência isolada, assim como pode começar, pode acabar e encerrar sua duração; é o que acontece, por exemplo, com a experiência de uma alegria. Mas a corrente de vivências não pode começar nem acabar. Isso significa que, assim como a duração bergsoniana, a corrente de vivências tudo conserva e é uma espécie de eterno presente.

QUANTO AO TEMPO PSICOLÓGICO, HISTÓRICO E CRONOLÓGICO.
A Agostinho devem-se as primeiras análises sobre o tempo e ele mesmo reconheceu que é muito difícil encontrar uma resposta sobre "o que é o tempo?" afirmando que é um dos conhecimentos que todos sabemos o que é, todavia, sabemos também que não é fácil explicá-lo. Toda a nossa vivência é feita num tempo. 

O tempo nas diversas dimensões que possui, não deixa, entretanto, de ser um só tempo, ou seja, único. Contudo, toda a nossa vivência situa-se num tempo cronológico, num tempo histórico e num tempo psicológico. O nosso nascer, o crescer, envelhecer e morrer estão sempre situados num tempo, porque "Espaço e Tempo" fazem parte da nossa existência.

Quando estamos esperando ansiosamente uma pessoa em um encontro e esta pessoa está atrasada a apenas alguns minutos, parecem-nos esses minutos longas horas, todavia não foram horas mas sim minutos. Isto denota que o tempo também é afetado pelo nosso espírito, ou seja, é abstraído psicologicamente como se tivesse outro tipo de contagem fora do relógio, que faz com que se prolongue ou se abrevie. 

Na realidade o temponão para, mas quantas são as vezes que nos parece ter parado? Quantas ocasiões a nossa noção de tempo parece estar a parte ao tempo cronológico?
Pois bem, a partir disso, verifica-se que o tempo da consciência ou tempo psicológico não se regula ao mesmo passo ou a mesma medida que o tempo cronológico.

O TEMPO E SUAS DIMENSÕES
John Quinn[8], em seu artigo El Tiempo en San Agustín, explicita a plena consciência que Agostinho possui sobre as várias dimensões presentes no tempo, que são:

1- Tempo Psicológico –futuro, passado e presente existem na alma por atos psíquicos.
2- Tempo Físico-tempo é uma distenção da alma.
3- Tempo Moral- o tempo não depende do movimento físico.
4- Tempo Histórico- estabelece que o tempo real é o presente.

Todos estes elementos estão bem presentes e pontuados no texto de John M Quinn em seu artigo intitulado El Tiempo en San Agustín.
No tempo psicológico, o qual é tratado neste trabalho, e que, por conseguinte mais nos interessa, a investigação teórica levanta três questões: Existe o objeto? O que é? Qual é a sua dignidade ou valor ôntico?. 

A duvida acerca da existência do tempo está suscitada brevemente, e depois se desfaz em seguida, porque há testemunhos massivos em favor da realidade do tempo. O status ôntico do tempo é ressaltado implicitamente em algumas referências a inferioridade do tempo em comparação com a eternidade. O tratado sobre o tempo se centra quase exclusivamente na tarefa de formular uma definição do tempo.

A exposição se divide em três partes: a parte primeira estabelece que o tempo real é o tempo presente; a parte segunda afirma que o tempo não depende do movimento físico, a parte terceira afirma empiricamente que o tempo é uma distenção da alma, com provas que resolvem a perplexidade inicial. Um capítulo final resolve o problema inicial. Fazendo ver que o futuro, o passado e o presente, existem na alma por atos psíquicos.

Antes da investigação, sabemos e não sabemos o que é o tempo. Se ninguém suscita a questão, sabemos o que é o tempo; uma percepção teoricamente vaga e prática do tempo está indicada na maneira de falar acerca do tempo passado, do tempo presente e do tempo futuro. Mas quando convidados a dar uma definição, não somos capazes inicialmente de declarar com precisão o significado do tempo.

Quando uma investigação rudimentaria pode desfaze-se de que exista um passado e um futuro, sem dúvida uma análise ulterior reabilita sua condição real. Se o passado e o futuro foram completamente inexistentes, então não seriam conhecíveis. Mas partes da literatura profana e sagrada predizem o futuro ou voltam a contar o passado. Além do que, nem o passado existe como passado nem o futuro existe como futuro; se não que ambos existem precisamente como presentes.
As imagens que Agostinho evoca de sua infância são reavivadas na memória presente. 

O futuro existe antes 
de sua atualização como evento 
em projetos presentes. 

A observação presente implica uma concepção antecipada do que o processo presente significa ao que está preordenado casualmente; o amanhecer prediz a saída do sol, ou seja, em outras palavras: os três tempos são em algum sentido tempos presentes: tempo como presente, tempo como re-presente (novamente presente), tempo como pré-presente 
(antecipadamente presente). Aqui o presente não designa o presente físico, que é puntiforme e indivisível. Se o presente físico fosse divisível, então seria impossível dividir o futuro do passado, de certa forma o passado e o futuro se fundiriam. 

TEMPO COMO DISTENÇÃO DA ALMA
Aqui temos nítidos exemplos, no caso três induções, que verificam empiricamente que o tempo é uma distenção da alma.
Na seção Deus creator omnium,o ouvido – com prática – compara sílabas largas. Nós não podemos medir sílabas passadas, a menos que as mantenhamos em existência, não medimos os sons físicos agora passados, mas sim suas impressões psíquicas ainda presentes.

Assim como medimos os tempos em que os corpos estão em repouso, também damos atributos de tempo a períodos de silêncio. Com a imaginação podemos por uma longitude temporal de som ao longo das pausas que serão medidas, somente porque o tempo é uma distenção psíquica. Em certas ocasiões o silêncio é anterior a ação de falar. 

A prática interior de uma poesia memorizada mede uma duração de som antes que seja pronunciada; a longitude do som que deve exteriorizar-se é medida por uma distenção interior em silêncio. Estas induções, que culminam com anterioridade as análises dialéticas, dissipam a perplexidade inicial.
O paradoxo do conhecer e do não conhecer o tempo. A definição do tempo como distenção pavimenta o caminho para resolver o problema de como existem e coexistem tempos fisicamente inexistentes. 

O futuro, o presente estendido e o passado recebem sua continuidade por atos da alma. A expectação fundamenta o futuro; o aguardar corresponde o presente; a memória retém o passado.

Ao apreender o tempo, nos retemos mentalmente o fator anterior e o fator posterior juntamente com os seguimentos interpostos: o tempo, tal como o conhecemos, é uma linha do tempo psíquico. Para alguns que ainda insistem em que, aos olhos de Agostinho, o tempo é irremediavelmente subjetivo, uma pura "construção" da mente, a plena verdade de que para Agostinho o tempo não é menos objetivo e não é menos subjetivo que o movimento. Como o tempo, seu concomitante, o movimento em sua totalidade, é apreendido também unicamente pela atividade retentora da mente, ou seja, a mente é onde podemos medir os intervalos de tempo.

Segundo alguns autores, a distenção de Agostinho é uma tradução aproximada de La diastases de Plotino, para quem a distenção da vida da alma implica tempo. Segundo a apreciação de Plotino, que é metafísica e não natural-psicológica, o tempo não pertence a alma humana, mas sim a Alma. Posto que a alma causa a natureza e, por tanto, o tempo, sua vida é a única que é verdadeiro tempo.

O TEMPO E SUA MEDIDA
É claramente notada uma distinção entre aqueles que postulam um tempo exterior, ou um tempo absoluto como que embutido no espaço e passível de medição, como relata José Osvaldo no artigo Implicatissimum Aenigma: O Tempo e Santo Agostinho, e aqueles que, na linha de Agostinho, se debruçam sobre o tempo subjetivo, na intimidade da alma ou da consciência. Pois bem, medimos o tempo como desejam os físicos e os naturalistas.

Diria Bergson, contudo, que medimos a durée, medimos a duração do tempo pela confirmação da memória relativa à permanência, ordenada e sucessiva, de fenômenos observados, de eventos constatados ou de idéias pensadas. Mas, afinal, como podemos medir aquilo que não existe concretamente? De fato, como podemos fazê-lo se o passado já passou, se o futuro ainda não chegou e se o presente não se fixa numa extensão permanente da realidade observada? 

Como para Agostinho, 

"O que é o presente 
senão um simples ponto de transição
entre a imensidão do passado e o abismo do futuro",
esvaecendo antes mesmo que sobre ele 
se possa aplicar qualquer medida?" 
E o futuro? 

Não é verdade que, para mim, só existe futuro como uma imagem antecipada, em minha consciência,daquilo que se impõe sobre mim como determinação externa ou como aquilo que espero e aguardo. Na verdade, tudo que é passado não mais existe. O passado existiu. Tudo que é futuro não existe, pois existirá. 

E tudo que é presente tampouco existe pois apenas configura a transição imediata e instantânea do passado para o futuro. Características essas apontadas por José Osvaldo analisando o tempo agostiniano.
A existência só é valida, portanto, numa extensão de tempo, numa durée bergsoniana eminentemente subjetiva ou numa outra dimensão que corta perpendicularmente as três dimensões do espaço. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No livro XI de suas "Confissões", as palavras de Agostinho sobre o tempo tornaram-se justamente célebres e sempre merecem ser citadas, até mesmo, pelo seu sublime valor metafísico e também pelo seu conteúdo moral: "O que é então o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se devo explicá-lo a quem me levanta a questão, não sei (Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat scio; se quaerenti explicare velim, néscio)". E continua sua meditação: "Mas de qualquer forma isto, pelo menos, ouso afirmar que sei: se nada houvesse ocorrido, não haveria tempo passado; se nada se aproximasse, não haveria tempo futuro; se nada há, não haveria tempo presente".

Outra vez nos encontramos envoltos em nossa problemática e percebemos como ela percorre todo o longo caminho em nossa empreitada durante esta pesquisa. Isso se torna notório quando continua Agostinho em sua meditação:"Mas os dois tempos, passado e futuro, como podem ser, uma vez que o passado já não é mais, e o futuro ainda não é? Por outro lado, se o presente sempre fosse presente e nunca fluísse para longe no passado, não seria tempo de modo algum, porém eternidade.

Em suas "Investigações" sobre a Natureza da Filosofia, Ludwig Wittgenstein assinala que a pergunta sobre algo que sabemos quando ninguém nos pergunta, mas que não mais sabemos quando somos solicitados a fornecer uma explicação, é algo difícil que devemos lógica e constantemente recordar na pesquisa. 

O esforço de compreensão lógica da questão que se colocou na mente do pensador possui uma profundidade peculiar. Ela está desde logo, obviamente, diante de nossa mente. Mas, em certo sentido, não podemos compreendê-la. Wittgenstein tentou desenvolver a investigação filosófica pela análise gramatical do fenômeno do tempo.

No entanto, na discussão, em contexto fenomenológico e psicológico, assinala Agostinho que o passado, o presente e o futuro encontram-se na alma, respectivamente, como memória, como contuitus (visão, observação, percepção) e como exspectatio (espera, expectativa). É este o problema central que se depara perante nossa angustiada curiosidade filosófica.

Foi Edmund Husserl
um dos primeiros pensadores modernos
a salientar a importância da descoberta 
feita por Agostinho.

Em sua "Fenomenologia da Consciência do Tempo Interior", acentua o filósofo alemão que, nos textos citados, se descobre o cerne da psicologia descritiva e da teoria do conhecimento tendo sido Agostinho "o primeiro a sentir as dificuldades tremendas com que aí nos deparamos e o primeiro a sobre elas trabalhar quase que com desespero". 

Husserl acrescenta que o livro XI de as Confissões deve ainda ser estudado em profundidade por quem quer que se ocupe com o problema do tempo."Pois tão segura de seus conhecimentos, a modernidade não avançou tão gloriosamente ou consideravelmente mais adiante nessa matéria do que o grande e perseverante pensador". Husserl conclui a introdução do argumento de seu livro com a famosa citação: "si nemo a me quaerat, scio: si querenti explicare velim, néscio"... 

No entanto, na discussão, em contexto fenomenológico e psicológico, assinala Agostinho que o passado, o presente e o futuro encontram-se na alma, respectivamente, como memória, como contuitus (visão, observação, percepção) e como exspectatio (espera, expectativa). É este o problema central que se depara perante nossa angustiada curiosidade filosófica.
David Camilo
*1] Graduando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Riassunto:
Tra in grandi autori della storia della filosofia Medievale, Aurelius Agustinus, più conosciuto come Santo Agostino, occupa un posto di distacco. All'interno della questione della esistenza di Dio, Agostino ha abbordato diversi argomenti, prove e riflessioni come: la Fede, le prove: psicologica, morale e cosmologica della esistenza di Dio e più alcuni altri cammini che ha giudicato necessario per formulare la sua struttura di pensiero.
Una delle riflessioni che fanno parte della questione trattata da Agostino è il concetto di tempo.
In questo lavoro ho per obbiettivo fare l'analisi e comprendere il pensiero di Santo Agostino in rapporto al concetto di tempo nel suo aspetto psicologico, per in seguito comprendere l'idea di passato, presente e di futuro stabilendo i rapporti tra di loro. La problematica trattata in questo lavoro consisterà in cercare di rispondere in modo argomentativo la seguente questione: Come il presente può "essere", giacché il passato e il futuro "non sono"?
Parole chiavi: Agostino, Dio, tempo, pasatto-presente-futuro, anima.
Introdução

Fonte:
NETSABER ARTIGOS
http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_6843/artigo_sobre_a_concepcao_de_tempo_em_agostinho
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

A METAFÍSICA DE HENRI BERGSON


A metafísica de Henri Bergson

Angel Vega Rodríguez
Prof. Adjunto do Dep. de Filosofia 
- Mestre em Filosofia. da Educação

INTRODUÇÃO:
 
A intuição foi sempre a arma preferida do filósofo. Por isso se nos apresenta como o método fundamental da filosofia de todos os tempos.

Trata-se de um ato simples, único, do espírito por meio do qual captamos a realidade de um objeto dado. Intuição vale tanto como visão, (do latim intuere = ver) e ver algo significa conhecer esse algo direta e imediatamente, sem intermediários de espécie alguma. Esse é o caráter mais evidente do conhecimento intuitivo.

Costuma-se opor à intuição o conhecimento discursivo. Este consiste, não num só ato, senão numa série de atos, dirigidos ao objeto para apreender a sua essência, a sua realidade. O conhecimento discursivo, o discurso (do latim discurrere = discorrer) sugere a idéia de um conjunto de atos que o nosso espírito deve praticar para chegar, por rodeios e pontos de vista diversos, à captação do objeto que se propõe. O conhecimento discursivo é, essencialmente, mediato e indireto. Este é o seu caráter distintivo.

Cabe perguntar: existe realmente a intuição? Que existe, ninguém o pode negar. Temos um primeiro exemplo na intuição sensível. Percebemos imediatamente o dado na experiência externa, uma árvore, uma mesa; na experiência interna, a dor, a alegria. Não é esta, entretanto, a intuição de que se vale o filósofo para fazer filosofia. Por duas razões fundamentais: a primeira, porque a intuição sensível aplica-se única e exclusivamente a objetos que se oferecem aos nossos sentidos, e os filósofos trabalham com objetos não sensíveis. A Segunda, porque a intuição sensível só pode nos proporcionar um conhecimento válido apenas para esse objeto particular; ao passo que a filosofia só se preocupa com o conhecimento universal dos objetos.

Existe, entretanto, na nossa vida psíquica, um outro tipo de intuição que podemos denominar de "espiritual", pois é o espírito e só o espírito que pode praticá-la. Quando eu digo, por exemplo, que a cor amarela é distinta da cor verde, que a distância de um metro é menor do que a distância de dois metros, etc. vejo essas diferenças com os olhos do espírito através de uma visão direta e imediata. Sensível é a intuição do amarelo e também a do verde. Porém, a relação de diferença, que não é um objeto sensível, só pode ser percebida diretamente pelo espírito.

Os exemplos citados, que podem multiplicar-se indefinidamente, nos ilustram sobre a existência de certos objetos não sensíveis, que se constituem por relações e têm um caráter puramente formal, isto é, prescindindo, portanto, do conteúdo, do que eles sejam realmente. Essa intuição espiritual formal, entretanto, nada tem a ver com a intuição que o filósofo pratica para penetrar, além da forma, na essência, na realidade mesma das coisas que é sua pretensão específica como pensador. Para esse exemplo, a filosofia dispõe de outro tipo de intuição que, para distinguí-la da anterior, chamaremos de "intuição real", pois é esta intuição de caráter real que vai permitir o filósofo sair de si, através do espírito, para entrar em contato com a realidade íntima das coisas em seus aspectos vários.

Esta intuição real pode ser de diversa índole. Conforme o filósofo adote uma atitude intelectual, emocional ou volitiva, teremos, consequentemente, três tipos diferentes de intuição: intelectiva, volitiva, emotiva.

Tentemos preencher este esquema formal abstrato com um conteúdo histórico concreto, destacando alguns filósofos atuais mais representativos. Em primeiro lugar, a intuição intelectual é um esforço, por parte do filósofo, para captar diretamente, mediante um só ato do espírito, a essência, isto é, o que o objeto é. Intuição intelectual vale tanto como visão de essências. Filósofos como Platão, Descartes, Schelling, Husserl, são seus representantes mais genuínos.

Notadamente Husserl se esforça, através do método fenomenológico, por mostrar, que toda representação sensível vem lastrada de uma essência, de um "éidos", pois, segundo ele, toda representação ou fenômeno, pode ser olhado de dois pontos de vista: um psicológico, porquanto ele tem uma individualidade psicológica própria; outro, referencial, porquanto ele contém a referência intencional a um objeto.

A intuição husserliana consiste então em olhar para uma representação qualquer, prescindindo de sua singularidade própria, despindo-a de seu caráter existencial, e tentar ver nela, com um ato da inteligência, o que tem de essencial, a sua essência geral, universal, o seu "éidos". Por este aspecto, bem pode ser qualificada de intuição essencial.

A intuição volitiva tem, por sua vez, também seu correlato no objeto.

Trata-se agora, não da essência, senão da existência do objeto.

A existência revela-se diretamente à nossa vontade, porquanto é o objeto, como existente, que oferece resistência e constitui um obstáculo ao nosso agir, ao nosso querer.

Também a intuição volitiva tem seus porta-vozes na história da filosofia: Fichte, Maine de Biran, Dilthey. Este, no seu ensaio "Sobre a origem e Legitimidade de Nossa Crença na Realidade Exterior", mostra a impossibilidade da inteligência, da razão, para informar-nos da realidade, da existência das coisas. A experiência íntima do homem constitui-se pela consciência de impulsos volitivos e pela consciência da resistência e dos impedimentos que o dinamismo impulsivo experimenta. O homem é, antes de tudo, um ser de vontade, de desejo, um ser dinâmico que, quando quer, tropeça com mil obstáculos. São esses obstáculos e dificuldades, impostos ao nosso agir, que nos dão notícia, direta e imediatamente, da existência das coisas.

Os objetos, entretanto, não são apenas, não existem apenas; eles valem. É o valor o correlato da intuição emotiva que conta com expressivo número de representantes: Plotino, Santo Agostinho, São Boaventura, Espinosa, Hume e, na época contemporânea, Max Scheler chamado o filósofo dos valores. Para este, os valores são campo fechado ao intelecto, o qual torna-se tão cego para eles, como o ouvido para as cores. Os valores são apreendidos imediatamente pelo espírito, de modo análogo àquele em que as cores o são pelos nossos olhos.

Ao lado dos tipos de conhecimento intuitivo, acima mencionados, queremos estudar a intuição como é concebida por Henry Bergson, cognominado, o filósofo da intuição. Tal é a pretensão específica do nosso trabalho, que dividimos em três partes assim distribuídas:

 1 O objeto da filosofia bergsoniana.
 2 A inteligência, órgão da filosofia?
 3 A intuição, órgão específico da filosofia.

1 OBJETO DA FILOSOFIA BERGSONIANA

É bem sabido que o pensamento filosófico da Segunda metade do século XIX e primeiras décadas do XX, esteve dominado amplamente pela técnica positivista e cientificista. Julgava-se então que a filosofia, e mais concretamente a metafísica, carecia do direito à existência.

Ela não possui, dizia-se, um objeto real próprio que conhecer, nem um método seguro e frutífero que aplicar. Os problemas que por ventura ela vem estudando, desde o seu nascimento, ou são fictícios ou insolúveis, e em nenhum dos dois casos vale a pena ocupar-se deles. Consequentemente, os métodos empregados para resolvê-los hão de ser forçosamente ineficazes.

Este modo de pensar positivo, estreito e dogmático, é contestado, com brilhantismo, por Henry Bergson. Toda a sua doutrina está voltada, precisamente, para a defesa da legitimidade da filosofia, assegurando-lhe um objeto próprio, e para a conquista, dentro do quadro geral do conhecimento, de um lugar adequado à metafísica. Nisto consiste o seu mérito principal como filósofo.

Mas, existe, verdadeiramente, alguma porção da realidade inabordável aos métodos científicos? A grande originalidade de H. Bergson está em mostrar que, efetivamente, existem vastas regiões da realidade, onde o conhecimento científico não penetra, nem pode penetrar; regiões acessíveis unicamente à filosofia ou metafísica.

O real, segundo H. Bergson, pode ser estudado tanto pela filosofia como pela ciência. Cabe, porém, à filosofia o domínio da realidade espiritual, ao passo que à ciência o que é material.

"Nada do grande sistema que abraça todo o possível e, às vezes, também o impossível: Contentemo-nos com o real, matéria e espírito... só haverá então uma filosofia, como só há uma ciência". (1)

Mais explicitamente se exprime nosso filósofo, quando diz:

"Assinalamos, pois, à metafísica um objeto limitado, principalmente o espírito, e um método especial, antes de tudo a intuição. Assim distinguimos nitidamente a metafísica da ciência". (2)

A metafísica, portanto, (Bergson usa os termos "filosofia e metafísica", indistintamente) tem, com objeto principal, a vida interior da alma. A psicologia, segundo Bergson, não pode ser uma ciência do cálculo e da medida, porquanto ela é rebelde ao cálculo e à medida. Nem pode ser reduzida ao estudo anatômico e filosófico do cérebro, porquanto não existe uma equivalência perfeita entre o cérebro e o espírito. Sendo mobilidade pura contínua e consciência subtrai-se a ser tratada com categorias estáticas e científicas, forjadas para conhecer a matéria imóvel, sólida e divisível. O só intento de aplicação dos métodos científicos implicaria necessariamente no endurecimento, na materialização da própria alma, reduzindo-a a um falso atomismo de estados de consciência.

"Isto não quer dizer que a ciência não possa obter aí algum conhecimento; mas este conhecimento torna-se tanto mais vago quanto mais se distancia da fronteira comum ao espírito e à matéria". (3)

Assim os resultados do intento, não somente são nulos ou insignificantes, senão que a empresa torna-se essencialmente irrealizável tão logo nos ponhamos em contato imediato com a consciência.

O grande erro que os filósofos cometeram até agora, foi dispensar um tratamento científico a um objeto que só pode ser alcançado por meios filosóficos, confundindo assim ciência com metafísica.

"Tal é, entretanto, a tentativa dos filósofos que buscam recompor a pessoa com estados psicológicos... Empiristas e racionalistas são vítimas aqui da mesma ilusão. Uns e outros tomam as notações parciais, por parte reais, confundindo assim o ponto da análise com a intuição, a ciência com a metafísica... Psicólogos pelo método que aplicam permaneceram metafísicos pelo objeto que se propõem". (4)

Essa confusão entre metafísica e a ciência desaparece tão logo saibamos respeitar o que corresponde a uma e a outra e os seus métodos respectivos.

"Bem diferente é a metafísica que colocamos ao lado da ciência. Reconhecendo à ciência o poder de se aprofundar na matéria somente pela força da inteligência, se reserva o espírito". (5)

Temos, pois, que a metafísica possui um objeto próprio. Cabe a ela investigar, primeiramente, a realidade espiritual, "quem diz espírito diz antes de tudo, consciência, e quem diz consciência diz ação que incessantemente se cria e se enriquece".

Acontece, porém, que o homem não é o único que vive no universo. Com ele e antes dele, vive uma infinita variedade de seres, animais, vegetais, grandes, pequenos e até microscópicos.

Uma corrente imensa atravessa o mundo em todas as direções: corrente que culmina no homem, na alma humana, prolongação terminal e expressão suprema dessa vida. Assim a metafísica deve estender seu campo de ação à vida em geral, porquanto essa corrente vital escapa, de igual modo e por definição, aos métodos da inteligência discursiva, isto é, da ciência.

"Mas, simpatizamos apenas com a existência? Se todo ser vivo nasce, desenvolve-se e morre; se a vida é uma evolução e se a duração é uma realidade, não existe uma intuição do vital e, consequentemente, uma metafísica da vida, que prolongaria a ciência do vivente? Sem dúvida". (6)

A ciência biológica, desde sempre, não tem poupado esforços para apoderar-se desse "quid" essencialmente inapreensível que é a vida. Esforços inúteis, porque seu maior êxito consiste em adquirir notícia, ora de uma forma nova, ora de uma função inédita, ora, em fim, de uma semelhança original entre formas ou funções que pareciam, a simples vista inconciliáveis. Contudo, os métodos utilizados até agora, não conseguiram descobrir além daquilo que a vida tem de material e que nela existe de exprimível em termos de extensão: formas, funções, caracteres visíveis, organização exterior. Mas não podemos confundir a vida com a concreção material, em que ela se veste. É certo que

"a ciência nos dará cada vez melhor a físico-química da matéria organizada; mas a causa profunda da organização, que, vemos bem, não entra nem no quadro do puro mecanismo nem no da finalidade propriamente dita... não a atingiremos reinstalando-nos pela consciência no elã de vida que existe em nós?" (7)

A ciência, pois, em todo o refinamento de seus métodos não chega, nem pode chegar à causa profunda do organismo que é o elã vital, a própria vida. Esta é também movimento indivisível e contínuo, sendo o espírito humano uma etapa, a última e a mais intensa dessa prodigiosa corrente que começa no humilde protoplasma e se expande por toda a natureza em esplêndidas criações vitais.

Alma e vida são, assim, os objetos típicos da filosofia bergsoniana.

À inteligência científica, a matéria, o sólido, a extensão.

À filosofia, a vida, o espírito, o movimento indiviso da intimidade psíquica e vital. Para a ciência, o externo. Para a filosofia, o interno.

Ciência e filosofia distinguem-se, pois, pelos objetos que investigam.

Essa distinção, entretanto, na concepção bergsoniana, não é tão radical como, a primeira vista, pode aparecer. Bergson descarta, pura e simplesmente, tratar-se de uma superposição de conhecimentos de tal maneira que a metafísica correspondesse um saber superior e mais profundo de objetos que estão além dos físicos.

"A metafísica não é superior à ciência positiva; ela não vem, depois da ciência considerar o mesmo objeto e obter um conhecimento mais alto. Supor entre elas esta relação, como faz a maior parte dos filósofos, é ser infiel a uma e a outra". (8)

Bergson concebe sua metafísica, não em oposição senão como alargamento ou prolongação do labor científico. Embora distintas nos seus objetivos e métodos, elas devem manter-se unidas e conjugar esforços no sentido de acelerar o progresso do conhecimento humano. Distinção não significa separação. E essa união efetiva-se em dois pontos principais. De um lado, a metafísica não dispensa, sem mais, os conceitos que podem ser-lhe úteis e até, em determinados casos, imprescindíveis. Contudo, ela deve liberar-se da rigidez conceitual inflexível, e trabalhar com "representações flexíveis, móveis, quase fluídas, sempre prestes a se moldarem sobre as formas fugitivas da intuição". Às vezes, sem clausurar-se nos estreitos limites da representação conceitual, "a intuição pode ser-nos sugerida por imagens".

De outro, a experiência se constitui como ponto de contato comum a ambos conhecimentos. "Ciência e metafísica se diferenciarão pelo método, mas se comunicarão na experiência". (9)

Repetidamente Bergson nos adverte que seu método e pensamento se afastam da experiência que recolhem os dados da observação, não só do senso comum, como também dos resultados das ciências positivas, sendo sua metafísica construída sobre a experiência verdadeira da vida e não sobre vazias abstrações racionais.
Pois


"a metafísica nada tem em comum 
com a generalização da experiência e, entretanto,
ela se poderia definir como a experiência integral". 
(10)

Por último para dissipar temores infundados de que a filosofia tivesse a pretensão de minimizar ou mesmo substituir o projeto científico, Bergson assim exprime:


"È preciso levar a filosofia 
a uma maior precisão, colocá-la 
em condições de resolver problemas mais especiais,
fazer dela a auxiliar e, se for preciso, 
a reformadora da ciência positiva". (11)

E conclui: 
"Para resumir,
queremos uma diferença de método,
não admitimos uma diferença de valor 
entre a metafísica e a ciência". 
 (12)

Assim a metafísica complementa a ciência pelo lado que a ciência não pode conhecer. A ciência limitando-se à matéria e através da inteligência, tem que ir, necessariamente, de um lado a outro, ligando-os por meio de leis e relações, porém sacrificando a interioridade, a realidade plena de cada elemento do enlace. Ao passo que a filosofia, prescindindo dos enlaces, se lança diretamente sobre a coisa mesma, penetrando-a na sua intimidade por meio da intuição. Com isso colocamos o problema do método da filosofia.

  2. A INTELIGÊNCIA: MÉTODO DA FILOSOFIA?


È importante destacar o que Bergson pensa sobre a inteligência e as funções que lhe atribui. Pois é em oposição a ela que aparece com mais nitidez a sua doutrina sobre a intuição. O princípio pedagógico antigo: "opposita inter se positamagis elucescunt" (coisas opostas, colocadas, umas frente às outras, mais se destacam), tem, no pensamento bergsoniano, sua concreta aplicação.

A inteligência constitui, junto com a intuição, o tema central de sua filosofia, ao qual nos remete constantemente ao longo de sua obra. Em particular, encontramos uma análise mais detalhada do papel que ela desempenha no conhecimento humano, na 2ª parte de "O pensamento e o movente" e no 2º capítulo de "A evolução Criadora".

Deveríamos começar pela definição de inteligência mas isso é impossível. "Nem inteligência, nem instinto se prestam a definições rígidas; trata-se de tendências e não de coisas". (13)

Mas, se não podemos dar uma definição rigorosa do que seja a inteligência, podemos, entretanto, descrever-lhe os traços essenciais a partir do momento em que ela sai das mãos da natureza.

Pelo seu processo evolutivo mostra, que ela está destinada a fabricar objetos. Ora, a fabricação se exerce sobre a matéria bruta; e mesmo emprega materiais organizados, ela os trata como objetos inertes.

"Da matéria bruta em si ela só retém o sólido, o resto se esquiva por sua própria fluidez. Assim, se a inteligência tende a fabricar, pode-se prever que o existente de fluído no real lhe escapará em parte, e o que há de propriamente vital no ser vivo lhe escapará completamente. Nossa inteligência, tal como sai das mãos da natureza tem por objeto principal o sólido inorgânico". (14)

Não é estranho, pois, que, por sua mesma estrutura e inteligência tenda a solidificar tudo, a reduzir tudo a matéria.
Ela
"Não se sente à vontade, não está plenamente em sua casa, a não ser quando atua sobre a matéria bruta, em particular sobre os sólidos". (15)

Acontece que a propriedade geral da matéria é a extensão; e é por meio desta que a matéria nos apresenta os objetos, exteriores uns aos outros, e cada objeto, constituído de partes exteriores, umas às outras.

Assim é que, sendo a matéria em si mesma continuidade, a inteligência nos apresenta as coisas como descontínuas, isto é, como unidades distintas, justapostas no espaço. Esse comportamento da inteligência sobre a matéria é explicável, se tomarmos em consideração a finalidade a que ela se destina, que é a manipulação de tudo, visando necessidades de ordem prática. Com isso pretende fazer-nos crer que a descontinuidade é o lado real e positivo da matéria, quando é tudo o contrário. "A inteligência só se representa claramente o descontínuo". (16)

Mas, se atentarmos para a realidade como tal, veremos que ela consta de objetos móveis. O movimento em si é o que, nela, existe de real, sendo a imobilidade puramente aparente e relativa. Contudo, para efeitos utilitários, o entendimento substitui o movimento por imobilidades justapostas, pois, naturalmente, ele tende sempre ao estável e ao mutável. 

"Nossa inteligência só se representa claramente a imobilidade". (17)

E como fabricar consiste precisamente em talhar em certa matéria a forma de um dado objeto, a ação da inteligência se caracteriza "Pela capacidade infinita de decompor de acordo com qualquer lei e de recompor em qualquer sistema". (18)

Esse poder limitado sobre a matéria reaparece sempre que

"projetamos, em bloco, todas essas decomposições possíveis por trás da extensão real, sob forma de um espaço homogêneo vazio e indiferente que a reduzisse. Esse espaço é, pois, antes de tudo o esquema de nossa ação possível sobre as coisas". (19)

O tempo por sua vez, presta-se a idêntica manipulação por parte do entendimento, que o espaço. "Assim como separamos no espaço, fixamos no tempo". A inteligência se representa também o tempo com um descontínuo, isto é, como uma série de momentos imóveis num espaço homogêneo. Ela

"não foi feita para pensar a evolução, no sentido próprio da palavra, isto é, a continuidade de uma transformação que fosse mobilidade pura... se representa o transformasse como uma série de estados, cada um dos quais homogêneos consigo mesmo e por conseguinte não se transforma". (20)

E justamente, na medida em que trata de

"reconstituir como dado, a inteligência deixa escapar o que há de novo a cada momento de uma história. Ela não admite o imprevisível. Ela rejeita toda criação". (21)

Daí manifestar uma incompreensão total para com a vida

"ao obstinar-se em tratar o ser vivo como se trata o inerte e em pensar toda realidade, por mais fluida que seja, sob a forma de sólido definitivamente parado. Só nos sentimos à vontade no descontínuo, no imóvel, no que está morto. A inteligência é caracterizada por uma incompreensão natural da vida". (22)

Bergson insiste e persiste em repetir, de muitos modos essas idéias que, em última análise, reduzem-se sempre ao mesmo: a tendência incoercível de nossa atividade intelectual a transformar tudo que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis, a solidificar tudo que encontra no seu caminho; ao mesmo tempo que revela sua incapacidade radical de pensar a mudança, a mobilidade, a vida, o devir em geral. Essa incapacidade de pensar o devir foi magistralmente (e também poeticamente) exprimida por H. Bergson, quando compara o mecanismo de nosso pensamento com a cinematografia.

Nossa inteligência, nos diz, se comporta com o conhecimento da realidade como um aparelho de cinema. Toma uma série de instâncias imóveis de devir e intenta depois reconstituir o movimento, projetando na tela a sucessão de fotografias, por exemplo, de um pelotão de soldados marchando. Assim o mecanismo de nosso conhecimento intelectual é de "natureza cinematográfica". Para pensar o devir não fazemos outra coisa que acionar o nosso "toma-vistas" interior. Porém, esse mecanismo deixa escapar o peculiar, o típico da vida, que é a continuidade do devir. E por mais que se esforça por apreendê-lo só consegue transformá-lo em uma série de imobilidades sucessivas.

À inteligência atribui-se outra função peculiar; a linguagem e a formação dos conceitos.

O homem é um ser isolado; ele vive em sociedade, é um ser social. Um ser inteligente que se associa a outro ser inteligente. E dessa associação nasce irremediavelmente a comunicação que se faz mediante sinais para satisfazer as necessidades de uma "ação comum". O conjunto desses sinais é a linguagem, que é eminentemente social.

Há uma linguagem do instinto e outro da inteligência. Nos animais, as necessidades da ação são sempre limitadas e determinadas pela própria ação. Por isso sua linguagem se constitui por um reduzido número de sinais que visam sempre coisas concretas. Não acontece assim com o homem no qual as necessidades da ação são ilimitadas e variáveis. É por isso que sua linguagem está constituída por sinais "móveis" em número tal que possam aplicar-se a coisas as mais diversas. O que caracteriza, pois, a linguagem humana é, precisamente, esse alargamento de adaptação de um mesmo signo à objetos diferentes. "O signo inteligente é um signo móvel". (23)

A invenção de uma linguagem "móvel", capaz de transitar livremente de um objeto para outro, tornou possível uma adaptação das coisas às idéias e contribuiu enormemente para a libertação da inteligência, "hipnotizada pelo seu trabalho".

Pois, a partir o dia em que

"a inteligência, refletindo sobre seus desempenhos, a si mesma se percebe como criadora de idéias, como faculdade de representação em geral, não há objeto que não queira Ter a idéia, mesmo que ela não tenha relação direta com a atividade prática". (24)

Com o apoio da linguagem, a inteligência elabora os conceitos nascidos não da "percepção", senão da "concepção". Trata-se de um trabalho ou ato do espírito por trás do qual está "a faculdade de conceber ou de perceber generalidades". Conceito confunde-se assim com idéia geral que se define como "uma representação que agrupa um número indefinido de coisas sob o mesmo nome. A maior parte das palavras corresponderá assim a uma idéia geral". (25)

a qual é fruto de um processo de abstração e generalização. Essa operação abstrativa, entretanto, não é de caráter lógico e sim de caráter biológico, pois, "os conceitos e as generalizações são o que são, porque são úteis, porque são necessários à vida". (26)

Todo ser vivo

"isola a característica que o interessa, vai direto a uma propriedade comum; em outros termos, ele classifica, e, consequentemente, abstrai e generaliza". (27)

Mas, essa ação abstrativa torna-se, para ele, instintiva, "vivida", não pensada, com vistas às necessidades imediatas mais permanentes.

Só o homem chega à representação abstrata, classificando diversos objetos num gênero e criando assim a idéia geral, o conceito, através de uma ação abstrativa "consciente, refletida, intencionalmente criada".

Pode-se dizer que a inteligência é a faculdade das idéias gerais, dos conceitos, os quais são a reunião, a síntese daquilo que uma multidão de objetos singulares tem de comum ou de semelhante. Quando dizemos, por exemplo, de um objeto que é uma árvore, não nos referimos, na realidade, ao objeto mesmo na sua singularidade, no seu puro ser, senão à comparação estabelecida entre esse objeto e outros muito semelhantes. Assim, por meio de conceitos, conhecemos um aspecto das coisas, o aspecto geral a todas elas, o que elas tem em comum. Esse aspecto é que chamamos de abstrato. Com efeito, fazer um conceito, é por definição, juntar o comum e prescindir do peculiar a cada objeto, é abstrair. Conhecimento intelectual vale tanto como conhecimento abstrato, conhecimento de relações de coisas pelo seu lado externo e superficial.

"A inteligência é, antes de tudo, a faculdade de relacionar um ponto do espaço a outro ponto do espaço, um objeto material a outro objeto material; ela se aplica a todas as coisas, mas permanecendo fora delas, e de uma causa profunda só percebe sempre a difusão em efeitos justapostos". (28)

Falamos, e com razão, que o conceito é um instrumento de que nos servimos para conhecer o concreto, o singular. Isso é verdade.

Mas, examinaremos, mais de perto, essa apreensão das coisas singulares. Em que consiste? Consiste em que colocados diante de uma coisa nova, fazemos uma separação entre os elementos já conhecidos e os elementos inéditos. Os já conhecidos não nos causam nenhuma surpresa, nenhuma emoção.

Possuímos um conceito onde enquadrá-los: parecem-se ao já visto; cumprem, obedientes, com aquilo que esperamos de antemão. "O pensamento se representa geralmente o novo, como um novo arranjo de elementos preexistentes". (29)

Diríamos então que os elementos já conhecidos são os que menos pertencem à coisa nova. Não é por eles que nós dizemos que a coisa é nova para nós. A novidade da coisa encontra-se, realmente, nos elementos inéditos. Estes, entretanto, nos desconcertam, não se parecem a nada, nem nada semelhante nós tínhamos percebido. Não podemos dizer o que são porque nossa realidade não possui o conceito adequado para lhes aplicar. E, "como não os podemos reconstruir com elementos preexistentes... nosso primeiro movimento é taxá-la de incompreensível". (30)

e não descansamos até, que, por meio de uma observação mais minuciosa, uma revisão mais completa de conceitos anteriores nos permita encaixar também os elementos novos nos marcos intelectuais.

"É esta a razão porque orientamos em várias direções sucessivas nosso conhecimento do mesmo objeto e fazemos variar os pontos de vista sobre ele...

O objeto é remetido então, não a um conceito único, mas a vários conceitos nos quais ele é dito "particular"". (31)

Este esforço de compreensão, por parte da inteligência, não tem, nem pode Ter nunca pleno êxito; pois sempre existirá em cada coisa particular algo puramente seu, incomparável, inefável, incompreensível que ela jamais poderá alcançar.

3. O MÉTODO DA FILOSOFIA É A INTUIÇÃO

Se a inteligência é assim como acabamos de descrever anteriormente, se, por sua natureza, ela se singe inseparavelmente, à matéria, então, ou devemos renunciar a penetrar o objeto próprio da filosofia, que é a alma, a vida, isto é, tudo aquilo que no universo há de imaterial, ou teremos que buscar, para esta especulação, um método próprio, inconfundível com o intelecto. Existe esse órgão de conhecimento não intelectual? De um modo mais geral, é possível conhecer sem intelecto?

A responder esta pergunta destina-se toda a obra de H. Bergson. Tocamos, portanto, o núcleo de sua filosofia.

Com freqüência confundimos e identificamos a significação destes dois termos: conhecer e estabelecer relações. Semelhante identificação, entretanto, não é legítima, pois junto ao modo de conhecer por conceitos está a intuição. É certo que o conhecimento intuitivo possui caracteres radicalmente diferentes daqueles que tem a inteligência; penetra o singular, deprecia o símbolo e até, em certo sentido, se rebela contra a própria linguagem. Mas, nem por ser outra espécie de conhecimento deixa de ser conhecimento.

Dizíamos anteriormente, ao falar da função do conceito que, quando estamos diretamente em presença de uma coisa nova, sentimo-nos desconcertados e admirados ao ver que os marcos preparados pela inteligência não tem aplicação ao caso particular.

Esse desconcerto e admiração provém de que estamos conhecendo sem conceitos, de que estamos conhecendo por intuição.

Suponhamos, por exemplo, que uma pessoa nunca visitou Paris.

De repente, alguém lhe oferece uma série completíssima de fotografias dessa cidade, tomadas de todos os pontos de vista possíveis. Essa pessoa, com o intuito de saber, passa-as em revista, observa-as, analisa-as, estuda-as detidamente. Ao final desse processo, ela poderá obter uma idéia aproximada de Paris, tanto mais próxima à realidade quanto maior for o número de fotografias a sua disposição. Mas, que diferença entre a idéia assim obtida e a intuição viva e imediata:

"Todas as fotografias de uma cidade, tomadas de todos os pontos de vista possíveis poderão completar indefinidamente uma as outras, porém não eqüivalem nunca a este exemplar em relevo que é a cidade por onde caminhamos". (32)

A intuição sensível, entretanto, tem um inconveniente; ela é incomunicável, e portanto, inutilizável em termos práticos. Para que possa prestar algum serviço na vida, é preciso que ela seja conceitualizada, intelectualizada. Esta intelectualização da intuição, tratando-se da matéria, não acarreta maiores dificuldades ou conseqüências. Afinal de contas, inteligência e matéria afinam perfeitamente. O problema começa quando ela se dirige para além da matéria e tenta captar a vida interior do espírito. Eis aí um mundo fechado para ela. A intimidade da consciência é, precisamente, onde a intuição se exercita com preferência, seu domínio específico. Uma coisa, pelo menos, aprendemos todos na sua interioridade: o nosso próprio eu e a sua duração no tempo.

"Desçamos então ao interior de nós mesmos; quanto mais profundo for o ponto que tocarmos, mais forte será o impulso que nos reenviará à superfície. A intuição filosófica é este contato, e a filosofia é este elã". (33)

Nosso conhecimento do mundo exterior pode ser apenas intelectual; porém nosso conhecimento de nós mesmos só pode ser intuitivo. Se tentarmos vertê-lo em imagens, logo advertiremos que toda comparação deixa sempre algo inefável sem exprimir.

Poderemos então multiplicar as comparações, as metáforas, completando-se uma às outras, e sempre teremos a impressão de não Ter esgotado a plenitude do saber intuitivo que temos do nosso próprio eu. Em pior situação ficaremos, se quisermos fazer uso dos conceitos. Os conceitos manifestam o geral, o comum, o imóvel, e cada um, uma parte do objeto; nenhum, o resto inefável. Além disso, os conceitos marcam, não sugerem, não podem se contradizer, sob pena de fazer-se absurdos e incompreensíveis.

Damos, pois, todavia uma vantagem à tradução em imagens da intuição do eu. E a vantagem está em que as imagens sugerem e solidificam, de certo modo, o espírito para a intuição mesmo, coisa que os conceitos não podem fazer.

"Aquele que não for capaz de se dar a intuição da duração constituída do seu ser, nada será capaz de fazê-lo, e os conceitos menos ainda que as imagens...

Ora, a imagem tem ao menos esta vantagem: ela nos mantém no concreto. Nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens diversificadas, emprestadas a ordem de coisas muito diferentes, poderão por convergência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso em que há uma certa intuição a ser apreendida". (34)

Um problema à vista. Mas, a intuição pode transcender a esfera da própria vida interior e penetrar na totalidade da corrente vital? A especulação do filósofo, vai ficar restringida a ver-se viver na pura duração contínua do seu ser? Ou, pelo contrário, poderá o filósofo sair de se mesmo, adentrar-se torrente íntima da vida, adotar por um instante seu movimento e intuí-lo?

"Mas, se a metafísica deve proceder por intuição, se a intuição tem por objeto a mobilidade de duração, e se a duração é de essência psicológica, não vamos encerrar o filósofo na contemplação exclusiva de si mesmo?" (35)

H. Bergson não responde diretamente e tenta solucionar o problema, referindo a intuição a outra forma de atividade psicológica que chamamos instinto; o instinto dos animais e do homem.

O instinto nos animais, é um modo de conhecimento totalmente diverso do da inteligência. Quase estaríamos tentados a dizer que o instinto é a intuição inconsciente de si mesma.

Pois bem, todo mundo conhece as espetaculares manifestações do instinto de certos insetos, dos himenópteros, por exemplo. Lembremos a habilidade do sítaris, o pequeno escaravelho. Este animalzinho deposita seus ovos na entrada da galeria fabricada por uma abelha antífora. A larva do sítaris espera a saída do macho

"agarra-se a ele, fica aferrada a ele até o "vôo nupcial"; nessa oportunidade, ela aproveita para passar do macho à fêmea, e espera tranqüilamente que esta ponha seus ovos. Salta então sobre o ovo, que lhe vai servir de sustento do mel, devora o ovo em alguns dias e, instalada na concha sofre a primeira metamorfose. Organizada para flutuar sobre o mel, ela consome esse suprimento de alimentação e torna-se ninfa, depois inseto perfeito". (36)

Tudo se passa como se a larva do sítaris soubesse de antemão, tudo que vai acontecer nas galeria das antóforas.

E que dizer do esfex de asas amarelas? Ele sabe que

"o grilo tem três centros nervosos que movem seus três pares de patas, ou pelo menos age como se o soubesse. Ele pica o inseto primeiro debaixo do pescoço, e depois atrás do protórax, e finalmente na base do abdômen". (37)

Como explicar esta pergunta do instinto, esta verdadeira ciência? É evidente que devemos excluir totalmente toda idéia de consciência. No instinto, o conhecimento se explicita em ação e só em ação. Guardemo-nos, entretanto, de traduzir essa ação, essa ciência de himenópteros, em termos de inteligência; nem a suponhamos precedida de uma representação por conceitos do que vai acontecer. Admitamos, pelo contrário, que se trata de uma compenetração entre o esfex e sua vítima, de "uma simpatia (no sentido etimológico da palavra) que o informasse por dentro, por assim dizer, sobre a vulnerabilidade da lagarta". (38)

Em todo caso, e isto é importante assinalar, estamos diante de um saber que não sabe, de um saber que sente, que intui sem consciência, que dirige cegamente sua ação para onde ela deve ir, ao ponto concreto que interessa. É verdade que

"O esfex apreende pouca coisa, precisamente o que lhe interessa; mas, pelo menos, o apreende por dentro... por uma intuição (vivida mais que representada) que se assemelha sem dúvida ao que chamamos de comunhão adivinhadora... Instinto é comunhão". (39)

Consideramos o impulso vital cindido, por força da evolução, em duas direções opostas: uma, perdendo sua energia de penetração, se abrindo em extensão, tomando, de fora, o maior número possível de ângulos do objeto que pretende captar. É a inteligência. A outra, conservando sua direção para o singular e concreto, tentando apreender os objetos por dentro, na sua interioridade. É o instinto.

A primeira amolda-se à matéria. O segundo, acomoda-se, especialmente, à vida. Essas duas direções encontram-se no homem. Cada um de nós sente em si mesmo "algo que deve ocorrer na consciência de um inseto que age por instinto". (40)

As emoções irracionais que costumamos Ter, as apreensões, os pressentimentos são, provavelmente, dessa mesma ordem. Se agora, por um esforço de tensão especial, pudéssemos fazer coincidir, por um instante, inteligência e instinto, teríamos certamente, como resultado, uma intuição, isto é, "um instinto que se tornou desprendido, consciente de si mesmo, capaz de refletir seu objeto e de o ampliar infinitamente". (41)

Se, no conhecimento do objeto, a intuição ultrapassa à inteligência, isso se deve, precisamente, à própria inteligência, pois, sem ela, jamais passaria de ser simples instinto.

"Mas se, com isso, a intuição ultrapassa a inteligência, da inteligência terá vindo o arranco que a terá feito subir ao ponto em que ela se encontra. Sem a inteligência, ela teria permanecido, sob forma de instinto, cravada ao objeto especial que a interessa na prática". (42)

A intuição, assim concebida, pode transcender da intuição do eu e estender-se à vida em geral, como o seu objeto próprio. A ela aplicamos à seguinte definição:

"Chamamos aqui intuição a simpatia pela qual nos transporta para o interior de um objeto para coincidir com que ela tem de único e, consequentemente, de inexprimível". (43)

Por ela entraríamos no objeto como entramos no nosso eu, viveríamos sua vida como vivemos a nossa; duraríamos na sua duração ao mesmo tempo que seguimos durando na nossa.

A diferença entre esse objeto e o nosso eu, entretanto, não percebida por relações; pois sabemos que as relações são obras da inteligência: Essa diferença seria, antes de tudo, vivida e sentida como algo único que, para ser exprimido, necessitaria exteriorizar-se num complexo conjunto de imagens, de metáforas, convergentes todas a suscitar, a sugerir, no leitor a intuição requerida.

Uma pergunta final. É possível a transformação do simples instinto em intuição, isto é, em instinto consciente de si mesmo?

Bergson responde: não só é possível, como também é um fato.

A existência da criação artística no homem, demonstra-o suficientemente. O artista adentra-se na matéria; sua visão vai além da superfície, penetrando no coração mesmo do seu ser.

Para ele, o aspecto material se apresenta como a exteriorização de algo inédito e único, de um movimento original simples, que ele sente e ao mesmo tempo derrama, verte com confusão, por assim dizer, nas suas obras, tornando explícita essa realidade latente e fazendo com que o espectador participe da intuição que o próprio artista sentiu primeiro.

"A intenção da vida... é o que o artista visa captar, colocando-se no interior do objeto por uma espécie de comunhão abaixando, por um esforço de intuição, a barreira que o espaça interpõe entre ele e o modelo". (44)

A intuição artística, entretanto, é individual. Este é seu pecado de origem. "Mas pode conceber-se uma pesquisa orientada no mesmo sentido que a arte e que assumiria por objeto à vida em geral". (45)

Tal seria a intuição filosófica.

Como resumo, tentemos caracterizar, por tópicos, a intuição tal como H. Bergson a concebe.

  1º - A intuição não é possível de uma definição estrita. "Que não nos seja pedida, pois, uma definição simples e geométrica da intuição". (46)



2º - O conhecimento por intuição é imediato, isto é, realiza-se sem intermediários de espécie alguma, sobretudo, sem conceitos, juízos, raciocínios; sem a aparelhagem conceitual da inteligência. "A inteligência se ela é possível, é um ato simples". (47)


3º - A intuição é um conhecimento intrínseco, em profundidade. Penetra o fundo mesmo da realidade e alcança i absoluto. "O conhecimento intuitivo instala-se no movente e adota a própria vida das coisas. Esta intuição atinge o absoluto". (48)

4º - A intuição conhece por uma certa simpatia com que se transporta ao interior de um objeto para coincidir com que ele te de único e inexprimível.

"Pois não obtemos uma intuição da realidade, isto é, uma simpatia espiritual com o que ela tem de mais interior, se não ganhamos sua confiança por uma longa camaradagem". (49)

5º - A intuição percebe a mobilidade, a continuidade fluente da vida em que consiste a realidade. "A intuição parte do movimento, coloca, ou melhor, percebe-o como a realidade mesma". (50)

6º -
"Pensar intuitivamente
é pensar na duração e duração é criação contínua, 
"ininterrupto jorro de novidade"". 
(51)

"Para a intuição, o essencial é a mudança". Pois é a duração que percebe uma continuidade ininterrupta de novidade imprevisível". (52)


7º - "A intuição é difícil e penosa de prolongar". (53) Supõe um esforço doloroso para torcer o curso do nosso modo comum de conhecer. O hábito de pensar com conceitos nos impede o uso da intuição, a qual procede em sentido inverso.

"Filosofar consiste em inverter 
a marcha habitual do trabalho do pensamento". 
(54)

"Da intuição podemos passar à análise,
mas não da análise à intuição". 
(55)

- Por último,                  a intuição é o órgão, 
por excelência, da filosofia ou metafísica.

"Hesitemos muito tempo em nos servir do termo "intuição", e, quando nos decidimos a empregá-lo, designamos por esta palavra a função metafísica do pensamento; principalmente o conhecimento íntimo do espírito pelo espírito, subsidiariamente o conhecimento, pelo espírito, do que há de essencial na matéria, uma vez que a inteligência fora feita para manipular a matéria e consequentemente para conhecê-la, mas não para tocar-lhe o fundo". (56)

CONCLUSÃO

Digamos duas palavras apenas à guisa de conclusão.

É fácil de prever o comportamento que o nosso filósofo vai adotar em relação às filosofias que o procederam e o rumo que deve seguir a metafísica para tornar-se digna de seu nome.

Com base na doutrina exposta, H. Bergson critica impiedosamente e sempre do mesmo ângulo, empiristas e racionalistas, idealistas, dogmáticos e críticos. Todos eles fracassaram no empenho filosófico e se contradisseram, ao tentar reconstruir a realidade viva com conceitos rígidos pré-fabricados. Todos pensaram inteligentemente, isto é, indo dos conceitos às coisas. Este é o seu pecado capital.

Se algo de permanente e duradouro encontramos em suas doutrinas, deve-se àquilo que mais se aproxima da fonte intuitiva original. Acontece que esses brotes vivos da fonte, os filósofos verteram-nos em moldes inflexíveis intelectuais, condenando, assim, a filosofia a um eterno conflito entre as escolas e instalando a contradição no próprio coração do objeto e do método. 

Todos assumiram um compromisso com a realidade, semelhante ao dos cientistas. Com uma diferença: os cientistas, trabalhando sobre conceitos de relações, geraram o simbolismo científico; ao passo que os filósofos, operando sobre conceitos de coisas, desembocaram no simbolismo metafísico. Uns e outros deslizam-se sobre o exterior da realidade, deformando-a com imagens e símbolos relativos.

Diríamos que os cientistas construíram uma ponte elegante por cima e os filósofos cavaram um túnel profundo por baixo, enquanto que a corrente viva do rio da realidade transita livremente "entre estas duas obras de arte sem as tocar".

Para que a metafísica possa ser ela mesma autenticamente, andar desembaraçadamente sobre os seus próprios pés e alcançar seu destino próprio, só resta um caminho, a intuição filosófica. Só ela pode revelar o segredo da vida, só ela pode acompanhar todas as ondulações do real.

É evidente que ela não abarcará de uma só vez a totalidade das coisas, como pretendem os filósofos construtores de sistemas: mas, de cada coisa, ela pode dar-nos uma explicação que se adapte exatamente, exclusivamente a ela. A filosofia não é, nem pode ser nunca obra exclusiva de um só filósofo. Ela se constitui pelo esforço coletivo e progressivo de muitos pensadores que se completam, corrigem e endereçam uns aos outros, sem nunca esgotar a totalidade da realidade de que se prolonga indefinidamente.

Se agora, na conclusão de nosso trabalho, quiséssemos enquadrar a intuição que o próprio Bergson rotulou de "filosófica" ou "metafísica", num dos três mencionados na introdução, não duvidaríamos em qualificá-las de "intuição emotiva".

Fonte:

UNIVERSIDADE  FEDERAL  DO  MARANHÃO
DEPARTAMENTO  DE  FILOSOFIA
http://cynthia_m_lima.sites.uol.com.br/henri.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

sábado, 9 de julho de 2011

Time - Pink Floyd



nviado por em 11/06/2006

This is as old upload. Click for a much higher quality video: http://www.youtube.com/watch?v=MUt7qmSvxLI

This is Time (The Dark Side of the Moon, 1973), from Pink Floyd, live at P.U.L.S.E; recorded at Earls Court, London, in 1994. Roger Waters, one of the the composers of Time, is not in this show.
Current members of Pink Floyd are: David Gilmour (guitars, lead vocals) • Richard Wright(keyboards, secondary vocals, backing vocals) • Nick Mason(drums, percussion);

Lyrics:

Ticking away the moments that make up a dull day
You fritter and waste the hours in an offhand way
Kicking around on a piece of ground in your home town
Waiting for someone or something to show you the way

Tired of lying in the sunshine staying home to watch the rain
You are young and life is long and there is time to kill today
And then one day you find ten years have got behind you
No one told you when to run, you missed the starting gun

And you run and you run to catch up with the sun,
but it's sinking
And racing around to come up behind you again
The sun is the same in a relative way, but you're older
Shorter of breath and one day closer to death

Every year is getting shorter, never seem to find the time
Plans that either come to naught or half a page of scribbled lines
Hanging on in quiet desperation is the English way
The time has gone, the song is over,
thought I'd something more to say

Home, home again
I like to be here when I can
When I come home cold and tired
It's good to warm my bones beside the fire
Far away across the field
The tolling of the iron bell
Calls the faithful to their knees
To hear the softly spoken magic spells.
_______________________
Ripped, edited, and encoded by me. I did my best to maintain the quality, but for some reason there is a problem of sync, with some audio lag. Please enjoy the wonderful music.
http://www.pinkfloyd.co.uk/

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Regina Rosseti, doutora em filosofia pela USP, aprofundou seus estudos no filósofo Henri Bergson e nos diz que:

O filósofo Henri Bergson é um crítico dos pressupostos filosóficos da ciência de sua época, particularmente, da psicologia e da biologia. O período que compreende o final do século XIX e o começo do século XX é marcado pelo positivismo e pelo cientificismo; as ciências particulares deveriam seguir o paradigma das ciências positivas ¾ cujo modelo era a física ¾ e assim trabalhar com dados empíricos e mensuráveis submetidos à lei de causalidade. Nessa atmosfera científica, desenvolveram-se pesquisas que buscavam determinar um paralelismo rigoroso entre a vida psíquica e o cérebro; este fato contribuiu para que a psicologia tivesse seu ramo psicofísico reforçado: a psicologia passou a buscar no físico a explicação do psíquico e a propor a quantificação dos fenômenos psicológicos a partir de suas pretensas causas físicas. Neste contexto, Bergson se coloca como um crítico da psicofísica e seu determinismo psicológico, mostrando que o campo de investigação da psicologia, dada a própria natureza de seu objeto, estende-se para além do meramente material. Segundo o filósofo, a psicofísica, que entendia os fatos da consciência como se fossem de natureza física, reduziu o mental ao cerebral e pensou poder medir os fenômenos psíquicos da mesma maneira como era possível medir os fenômenos físicos. Assim procederam porque não perceberam a distinção fundamental entre tempo e espaço ¾ e, conseqüentemente, entre interioridade e exterioridade ¾ e tentaram fazer dos estados internos da consciência uma multiplicidade quantitativa, isto é, uma justaposição numérica e espacial dos estados psicológicos, marcados pela exterioridade recíproca de seus elementos, como veremos. Não se deram conta de que a realidade psicológica é pura duração, isto é, uma sucessão indistinta da multiplicidade qualitativa dos estados da consciência que se interpenetram em constante e continua mudança. Ao confundirem o tempo com o espaço atribuíram extensão àquilo que somente possui intensidade pura e, assim, trataram a realidade psíquica como se fosse espacial, exterior e extensa. Já em um de seus primeiros estudos, Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889/1988), Bergson trata desses pressupostos filosóficos da psicologia de sua época, criticando seu determinismo psicofísico.

Na Origem do Problema: A Confusão entre Tempo e Espaço

Na raiz do problema está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza temporal e não espacial. A partir desta confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multiplicidade quantitativa dos estados da consciência porque se concebe a vida psíquica existindo num tempo espacial.

Os pressupostos do determinismo psicológico, enquanto ciência, foram levantados sobre uma base filosófica comum, onde encontramos como idéia central o conceito de tempo homogêneo. Este conceito surge da aplicação imprópria de noções como quantidade, extensão e espaço à concepção do tempo psíquico, deformando o tempo-qualidade vivido pelo eu, transformando-o no tempo-quantidade representado pelo espaço. Tal deformação, no fundo, ocorre porque se confunde a verdadeira duração da psique com sua representação simbólica, ou seja, substitui-se o tempo pelo espaço. Este tempo homogêneo pode ser definido como um misto de tempo e espaço. A duração homogênea não é a verdadeira duração, mas um conceito híbrido, formado por meio da representação espacial que introduz seus cortes descontínuos na sucessão interna, heterogênea e contínua da duração psicológica. Bergson explica como se processa esta confusão entre tempo e espaço:

“Mas familiarizados com esta última idéia (espaço), e obsessionados até por ela, introduzimo-la sem saber na nossa representação da sucessão pura; justapomos nossos estados da consciência de maneira a percepcioná-los simultaneamente, não já um no outro, mas um ao lado do outro; em resumo, projetamos o tempo no espaço, exprimimos a duração pela extensão, e a sucessão toma para nós a forma de uma linha contínua, ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se penetrar.” (Bergson, 1889/1988, p. 73)

O tempo homogêneo tem sua origem numa “endosmose entre o interno e o externo” (Prado Jr., 1989, p. 99). A confusão é bilateral. De um lado, ocorre uma aparente temporalização do espaço, por meio da ilusão de que possa ocorrer uma sucessão num meio homogêneo; fato impossível porque qualquer sucessão somente ocorre no tempo e para a consciência. A ilusão da existência de sucessão num meio homogêneo surge porque inventamos um espaço invadido pelo tempo, sobre o qual podemos justapor quantidades, esquecendo do ato essencial do espírito que realiza esta justaposição. De outro lado, ocorre uma especialização do tempo interno invadido pelo modo de ser do que é externo, dando origem, assim, a duração homogênea. A duração interna representada como homogênea, surge exatamente desta troca entre a exterioridade e a interioridade. O que possibilita este movimento de endosmose, entre o tempo puro e o espaço puro, é a simultaneidade, que segundo Bergson: “se poderia definir como a intersecção do tempo e do espaço.” (Bergson, 1889/1988, p. 78). Se não houvesse simultaneidade, entre o externo e o interno, a endosmose seria impossível. Somente porque um fenômeno exterior ocorre ao mesmo tempo em que o percebo no meu interior modificando os estados da minha consciência, é que ocorre uma troca ente o espaço exterior e a duração interior. Portanto, é a simultaneidade que possibilita a endosmose espaço-temporal que produz o tempo homogêneo. “Na medida em que o tempo aparece como multiplicidade numérica, medir a duração significa contar simultaneidades. Quando aplicamos este conceito de duração à vida psicológica, formamos um conjunto suscetível de decomposição e recomposição de elementos simultâneos. A simultaneidade é a noção-chave nesta endosmose entre tempo e espaço” (Leopoldo e Silva, 1994, p. 136).

Substituímos o espaço pelo tempo e definimos o tempo interior como um meio vazio e homogêneo preenchido por uma sucessão de fatos psicológicos, da mesma maneira que concebemos o espaço como um meio vazio e homogêneo preenchido por uma coexistência. Essa homogeneidade pode ser entendida como ausência de qualidade, assim, o tempo homogêneo é um tempo sem qualidade no qual os fatos da consciência com seus contornos definidos e exteriores uns aos outros se sucederiam. “A tese geral de Bergson é bem conhecida: nós projetamos sobre a duração verdadeira, infinitamente móvel, o espaço no qual nós vivemos visando a comodidade social” (Vieillard-Baron, 1991, p. 58).

Mas o tempo homogêneo não é o tempo real porque, segundo Bergson: “os fatos da consciência, ainda que sucessivos, penetram-se, e no mais simples deles pode refletir-se a alma inteira” (Bergson, 1889/1988, p. 71). Assim, Bergson vê o tempo real como heterogêneo e qualitativo. Se o tempo fosse homogêneo e sem qualidade seria espaço; se definirmos espaço como homogêneo tudo que é homogêneo é espaço, isto porque seria contraditória a existência de duas homogeneidades distintas. A confusão entre estes “dois tempos” ocorre porque movidos por interesses úteis à ação, espontaneamente substituímos o tempo verdadeiro da existência e da consciência pela ilusão do tempo da ciência e da vida cotidiana. Assim é que, introduzindo a idéia de espaço na pura duração que se chega à idéia de um tempo homogêneo e sem qualidade, usado pela ciência determinista e pela psicofísica que acabaram por tirar do tempo o essencial, isto é, a duração.

Bergson (1889/1988), como vimos, constrói sua crítica ao conceito de tempo homogêneo espacial a partir da percepção de que existem dois tipos distintos de multiplicidade, uma qualitativa e outra numérica, que levam respectivamente a duas concepções diferentes acerca da natureza do tempo: um heterogêneo e contínuo e outro homogêneo e divisível. O erro do determinismo psicológico, denunciado por Bergson, foi o de ter aplicado o conceito de tempo espacial à compreensão do modo de ser do psiquismo. Bergson demonstra que o tempo homogêneo é uma noção híbrida de tempo e de espaço que surge porque se concebe a duração como homogênea, concepção que no fundo não passa de uma representação simbólica e inexata da verdadeira realidade psíquica.

Para Bergson (1889/1988), há o tempo real: a duração. Tempo que é mudança essencial e contínua; tempo que passa incessantemente modificando tudo e que constitui a própria essência da realidade psíquica. Todavia, não é assim que percebemos a realidade; presos aos hábitos da inteligência visando a nossa ação no mundo, percebemos a realidade como estática e passível de ser fragmentadas em partes que facilitam nosso agir no mundo. Temos, assim, uma concepção espacial da realidade, que olha o mundo do ponto de vista da extensão. A esta visão espacial da realidade, escapa o tempo real, que flui incessantemente em seu contínuo movimento, porque pensa o tempo nos moldes do espaço e, assim, concebe um tempo ilusório: o tempo espacializado, originado da confusão que inadvertidamente se faz entre tempo e espaço3. E a consciência, imbuída de representações espaciais, olha para si mesma e não se reconhece como duração pura, enxerga estados que se sucedem sem se penetrarem, não vê o eu no seu conjunto inter-relacionado, esquece o passado num lugar escondido sem relação com o presente, torna as sensações e os sentimentos unidades estanques sem movimento, concebe a imobilidade como substrato da realidade.

Somente da confusão entre duas realidades distintas, tempo e espaço, é que surge a idéia de tempo homogêneo, representação simbólica da verdadeira duração, sobre a qual se construiu a psicofísica e outras formas de representação do mundo que carregaram consigo este equívoco primordial. Para evitar equívocos, é necessário distinguir o tempo do espaço e pensar a vida psíquica como essencialmente temporal. Para tanto, Bergson esclarece que:

“Há um espaço sem duração, mas onde fenômenos aparecem e desaparecem simultaneamente com os nossos estados da consciência. Há uma duração real, cujos momentos heterogêneos se interpenetram podendo cada momento aproximar-se de um estado do mundo exterior que é dele contemporâneo e separar outros momentos por efeito dessa aproximação. Da comparação destas duas realidades nasce uma representação simbólica da duração, tirada do espaço. A duração toma assim a forma ilusória de um meio homogêneo” (Bergson, 1889/1988, p. 78).

Assim, não podemos reduzir a noção de tempo à noção de espaço porque são realidades distintas. Logo, é necessária a depuração do misto entre tempo e espaço, da qual surgirá, de um lado, o puro espaço e, de outro lado, a pura duração4. Esclarecer essa confusão é um dos principais objetivos do Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (Bergson, 1889/1988); trata-se, pois, de separar duas concepções diferentes de tempo, de um lado, o tempo-espacial utilizado pela ciência, de outro lado, o tempo interior, no qual vive e dura o eu. “Em verdade, o tempo da ciência é assim o tempo da linguagem, a expressão de uma espécie de ‘senso comum’ cuja vocação natural e de pensar visando a agir. O tempo da existência é, ao contrário, esse da duração interiormente vivida e, de fato, interiormente percebida” (Gouhier, 1989, p. 42). Portanto, devemos separar duas realidades distintas: primeiro, um espaço sem duração onde somente existe o presente absoluto e, segundo, uma duração pura onde encontramos o tempo real passando contínuo e heterogêneo, no qual ocorrem os fenômenos psíquicos.

Bergson (1889/1988) busca construir uma metafísica que não ignora a realidade de fato. Compreende que o primeiro acesso a essa realidade é a vida interior, constituída por nossa psique; assim, volta seu olhar a esse acesso privilegiado, buscando compreender sua natureza, antes de buscar investigar a realidade tida como exterior. Descobre que essa vida interior é de natureza temporal: o tempo, enquanto duração, é a essência da vida psíquica. Todavia, não é assim que, no geral, a psicologia de seu tempo a entendeu; marcada pelo determinismo psicofísico, acabou por não reconhecer a verdadeira natureza psíquica, ao confundi-la com o físico, entendendo-a como sendo de natureza espacial. A contribuição de Bergson está em mostrar que é necessário pensar os pressupostos filosóficos da psicologia e, assim, manter um diálogo entre filosofia e psicologia, disciplinas que por muito tempo caminharam juntas.”

Regina Rossetti in ” Bergson e a Natureza Temporal da Vida Psíquica” Psicol. Reflex. Crit. vol.14 no.3 Porto Alegre 2001

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722001000300017&script=sci_arttext

Regina Rossetti é Filósofa, Pesquisadora de Pós-Doutorado da Fapesp, Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo.