quarta-feira, 31 de outubro de 2012

BERGSON E A NATUREZA TEMPORAL DA VIDA PSIQUICA AO SOM DE BACH - St MatthewMatthäus Passion BWV 244, Herreweghe - 2:41:04



Enviado por em 05/09/2011
http://www.youtube.com/playlist?list=PL40DCC693D211D6BD&feature=view_all

Christoph Pregardien : Tenor

Tobias Brndt : Bariton
Dorothee Mields : Sopran
Hana Blazikova : Sopran
Damien Guillon : Alto or Countertenor
Robin Blaze : Alto or Conturtenor
Chorus and Orchestra Collegium Vocale Gent
Conducted by Philipph Herreweghe

Psicologia: Reflexão e Crítica

Print version ISSN 0102-7972

Psicol. Reflex. Crit. vol.14 no.3 Porto Alegre  2001

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722001000300017 

Bergson e a Natureza Temporal da Vida Psíquica


Bergson e a Natureza Temporal da Vida Psíquica

Regina Rossetti 1
Universidade de São Paulo 2



Resumo
Para Bergson, a vida interior é de natureza temporal e não espacial. Na psique, a multiplicidade qualitativa dos estados psicológicos se modifica o tempo todo numa sucessão contínua e solidária; se algo parece solidificar-se e fragmentar-se é porque se representa, ilusoriamente, a consciência como se existisse num tempo homogêneo e espacial. Na raiz do problema está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza exclusivamente temporal. A partir dessa confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multiplicidade quantitativa dos estados psicológicos como se fossem de natureza física, como o fez a psicofísica, porque se concebe a vida psíquica existindo num ilusório tempo espacial.
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Palavras-chave: Bergson; tempo; psicológico; espaço.
Bergson and the Temporal Nature of Psychological Life
Abstract
For Bergson, interior life is temporal and not spatial in nature. In the "psyché", the qualitative multiplicity of psychological states modifies itself all the time in a continuous and solidary succession; if something seems to solidify and to fragment it is because conscience is represented, illusorily, as if it existed in a homogeneous and spatial time. In the root of the problem lies the confusion that is done between time and space when it is not noticed that the psychological states and all psychic life are exclusively of a temporal nature. Starting from this confusion, one has the representation of oneself and a quantitative multiplicity of psychological states as if they were of a physical nature, as psychophysics did, because psychic life is conceived as existing in an illusory spatial time.
Keywords:
Bergson; time; psychological space.
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O filósofo Henri Bergson é um crítico dos pressupostos filosóficos da ciência de sua época, particularmente, da psicologia e da biologia. O período que compreende o final do século XIX e o começo do século XX é marcado pelo positivismo e pelo cientificismo; as ciências particulares deveriam seguir o paradigma das ciências positivas ¾ cujo modelo era a física ¾ e assim trabalhar com dados empíricos e mensuráveis submetidos à lei de causalidade. Nessa atmosfera científica, desenvolveram-se pesquisas que buscavam determinar um paralelismo rigoroso entre a vida psíquica e o cérebro; este fato contribuiu para que a psicologia tivesse seu ramo psicofísico reforçado: a psicologia passou a buscar no físico a explicação do psíquico e a propor a quantificação dos fenômenos psicológicos a partir de suas pretensas causas físicas. Neste contexto, Bergson se coloca como um crítico da psicofísica e seu determinismo psicológico, mostrando que o campo de investigação da psicologia, dada a própria natureza de seu objeto, estende-se para além do meramente material. Segundo o filósofo, a psicofísica, que entendia os fatos da consciência como se fossem de natureza física, reduziu o mental ao cerebral e pensou poder medir os fenômenos psíquicos da mesma maneira como era possível medir os fenômenos físicos. 

Assim procederam porque não perceberam a distinção fundamental entre tempo e espaço ¾ e, conseqüentemente, entre interioridade e exterioridade ¾ e tentaram fazer dos estados internos da consciência uma multiplicidade quantitativa, isto é, uma justaposição numérica e espacial dos estados psicológicos, marcados pela exterioridade recíproca de seus elementos, como veremos. Não se deram conta de que a realidade psicológica é pura duração, isto é, uma sucessão indistinta da multiplicidade qualitativa dos estados da consciência que se interpenetram em constante e continua mudança. Ao confundirem o tempo com o espaço atribuíram extensão àquilo que somente possui intensidade pura e, assim, trataram a realidade psíquica como se fosse espacial, exterior e extensa. Já em um de seus primeiros estudos, Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889/1988), Bergson trata desses pressupostos filosóficos da psicologia de sua época, criticando seu determinismo psicofísico. 

O Eu Profundo e o Eu Superficial
Para entender a natureza da vida psíquica, Bergson distingue dois eus existindo no psiquismo. Segundo o filósofo: "Haveria, pois, dois eus diferentes, sendo um como que a projeção do outro, a sua representação espacial, por assim dizer social" (Bergson, 1889/1988, p. 159); este é um eu superficial. Por outro lado, haveria também, na duração de nossa vida interior, o eu profundo, que experimentamos através de "nossos estados internos como seres vivos, incessantemente em vias de formação, como estados refratários à medida que se penetram reciprocamente e cuja sucessão na duração nada tem de comum com uma justaposição no espaço homogêneo" (Bergson, p. 159).
Trata-se de dois momentos na totalidade da vida psíquica, que nem por isto perde sua unidade: um mais superficial e outro mais profundo. Esse aspecto do eu total que aparentemente não dura, porque adere à realidade exterior, o eu superficial, é a apenas a crosta rígida da psique que encobre o verdadeiro eu. "Pode-se deduzir que a relação do eu profundo e do eu superficial não será de exclusão absoluta, mas de recobertura" (Trotignon,1967, p.103). Se escavarmos por baixo dessa superfície de contato com as coisas exteriores, penetraremos nas profundezas da consciência e chegaremos ao eu profundo, vivendo na pura duração:
"É, por sob estes cristais bem recortados e este congelamento superficial, uma continuidade que se escoa de maneira diferente de tudo o que já vi escoar-se. É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu" (Bergson, 1903/1984, p. 16).
Da mesma maneira, mas indo à direção oposta, Bergson esclarece o processo pelo qual o eu profundo superficializa-se:
"Pouco a pouco, estes estados (profundos) transformam-se em objetos ou em coisas; não se separam apenas um do outro, mas também de nós. Então só os percepcionamos no meio homogêneo em que condensamos a sua imagem e através da palavra, que lhes empresta a sua banal coloração. Assim se forma um segundo eu que esconde o primeiro, num eu cuja existência tem momentos distintos, cujos estados se separam um dos outros e se exprimem sem dificuldade, por meio de palavras" (Bergson, 1889/1988, p. 96).
O eu profundo sofre a influência do eu superficial que caminha até as profundezas da consciência dominando nossas sensações, sentimentos e idéias que, então, desprendem-se uns dos outros e justapõem-se numa duração homogênea. E isto ocorre a maior parte do tempo em que vivemos exteriormente a nós mesmos.
Por um esforço da inteligência e movidos pela necessidade de sobrevivência, representamo-nos existindo mais no tempo espacializado do que no tempo real que dura, o que torna difícil uma existência verdadeiramente livre, vivida pelo eu profundo. O papel da inteligência é fundamental para compreendermos a natureza desse eu superficial. Segundo Bérgson, podemos "distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que rodeemos a coisa; a segunda, que entremos nela" (Bergson, 1903/1984, p.13). A primeira é a inteligência; a segunda, a intuição; uma é conhecimento exterior; a outra, conhecimento interior. Uma surge moldada à matéria e é por ela limitada e situada; a outra é conhecimento do espírito, não tem fronteiras e pode ver a totalidade. A primeira conhece somente imobilidade; a outra é a única que pode alcançar a essência movente da realidade. Por ser conhecimento exterior, a primeira é conceitual por natureza; a segunda, pela sua interioridade, é inexprimível. Assim, a inteligência, como conhecimento exterior, é a maneira própria de conhecer que objetiva nossa ação no mundo exterior. 

A inteligência é sempre operacional para Bergson, e o eu que está em contato com o mundo e assim pode relacionar-se socialmente e manipular os objetos exteriores é o eu superficial, então, a inteligência é seu modo próprio de conhecer. 

Em suma, numa direção da vida psíquica temos o eu superficial que toca o mundo exterior pela superfície, está em contato direto com as causas externas das sensações conservando delas algo de sua exterioridade e, ao olhar para si, divide a vida psíquica em partes distintas à imagem das coisas exteriores com as quais se relaciona. Este eu rígido cujos estados são bem definidos, se presta muito melhor às exigências da vida social e prática, pois tem o formato das coisas distintas e definidas com as quais tem que lidar para sobreviver. Em outra direção, temos o eu profundo, assim descrito por Bergson: "o eu interior, o que sente e se apaixona, o que delibera e decide, é uma força cujos estados e modificações se penetram intimamente" (Bergson, 1889/1988, p. 88). O eu profundo move-se livremente, longe da estabilidade e imobilidade da exterioridade material. Nele estão os sentimentos mais íntimos, as paixões mais profundas, os pensamentos mais próprios, a vontade mais livre, porque nele os estados mais profundos duram sem a influência estabilizadora do exterior; nele as sensações, percepções e emoções se organizam de forma autêntica, viva e original. 

A Natureza Qualitativa dos Estados Psicológicos
Aprofundado nosso estudo, vemos que a consciência no eu profundo é constituída por uma multiplicidade qualitativa de estados psicológicos que se sucedem, interpenetrando-se em contínua mudança. Esta multiplicidade dos estados psíquicos é qualitativa e não deve ser confundida com uma multiplicidade quantitativa, típica do eu superficial. Portanto, é necessário distinguir dois tipos de multiplicidade: uma quantitativa, outra qualitativa. A primeira, objetiva e exterior, refere-se aos objetos extensos; a segunda, subjetiva e interior, refere-se aos fatos da consciência. 

Antes devemos entender que consciência para Bergson não é a consciência intencional da fenomenologia, ou seja, consciência de alguma coisa, isto é, a consciência que visa o objeto. Para Bergson, "a consciência é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro" (Bergson, 1903/1984, p.71). Assim, consciência é memória do passado e antecipação do futuro iminente, unidas numa continuidade incorruptível garantida pela duração que é a própria essência da consciência. Consciência é o próprio movimento de sucessão de seus estados, em interpenetração recíproca; a essa continuidade de movimentos Bergson (1889/1988, p.72) chama de duração pura. 

Quanto a sua origem, a consciência psicológica é o resultado da evolução da vida e do esforço do élan vital em introduzir na matéria uma corrente de consciência que fizesse surgir à vida. Na Evolução Criadora (1907/1964), Bergson descreve o movimento de evolução da vida desde seu impulso original de vida, o élan vital, até o surgimento do ser humano e, com ele, da consciência psicológica; através da consciência psicológica ainda atravessa a energia do élan vital que lhe garante as mesmas qualidades do movimento que a criou, dessa maneira, também, ela é criadora (artística e eticamente), una em seu movimento contínuo e múltipla em virtualidades. 

Tratemos, agora, da primeira das multiplicidades referidas: a multiplicidade quantitativa ou multiplicidade numérica. Bergson (1889/1988, p. 57) chega à definição de multiplicidade quantitativa a partir de uma exaustiva análise da idéia de número. O número é construído da seguinte forma: primeiro as unidades a serem contadas devem ser consideradas idênticas entre si, distintas somente pelo lugar que ocupam no espaço; para tanto, devem ser retiradas todas suas qualidades, restando somente a extensão. Depois, para formar um número, estes objetos extensos e idênticos devem ser separados uns dos outros e justapostos num meio vazio e homogêneo ¾ o espaço. 

Tem-se, assim, o número: uma coleção de unidades idênticas. Porém, aqui se torna necessário a intervenção do espírito: para formarem uma multiplicidade numérica, é necessário acrescentar novas unidades às já existentes, que se unificarão através da soma. Tal síntese das unidades através da soma é um ato do espírito, que possibilita ao número tornar-se uno e, portanto indivisível, todavia, esta indivisibilidade é provisória porque a matéria com a qual o espírito constrói o número é o espaço e o espaço é sempre divisível. O processo pelo qual forma-se uma multiplicidade numérica dá-se pela soma de unidades justapostas no espaço e, por isso, percepcionadas simultaneamente.

 É a simultaneidade que destaca o caráter espacial, e não temporal, do número; isto porque, para que possamos contar os objetos extensos é necessário conservá-los e representá-los simultaneamente, o que seria impossível de ocorrer no tempo porque um instante não pode ser conservado para ser acrescentado a outro, logo, ela somente pode ocorrer no espaço. Podemos concluir que a idéia de espaço é aqui essencial, é a própria matéria com que o espírito constrói o número, que se torna assim, expressão do espaço. O objetivo de Bergson, ao formular a gênese do número, é enfatizar que todo número é espacial na origem, para então demonstrar a identidade da multiplicidade numérica com o espaço e sua conseqüente inadequação para definir os estados psicológicos que são de natureza temporal e qualitativa. 

A multiplicidade numérica é clara para objetos exteriores, mas e quando se tratar da realidade interior? É inadequada. O erro do senso comum, elevado ao grau de ciência pela psicofisiologia, é tentar aplicar o princípio da multiplicidade numérica aos estados internos. O senso comum perguntaria: se os estados se sucedem na consciência por que não podemos então contá-los?

Por vezes não dizemos: agora estou triste, depois indiferente, esperançoso e por fim radiante de alegria? Então é só contar... foram quatro estados diferentes que se sucederam. Raciocinam assim porque estão habituados a pensar que os fatos psíquicos à semelhança das coisas extensas formam uma multiplicidade numérica. Mas os estados da alma não estão no espaço, não possuem extensão, portanto, não podem ser justapostos nem percepcionados simultaneamente. Para estados internos é necessário que exista uma multiplicidade qualitativa. 

Bergson, segundo Deleuze (1989, p. 29), chega à noção de multiplicidade qualitativa não somente por oposição à multiplicidade numérica, mas a partir da distinção entre sujeito e objeto. O objeto é aquele que pode ser dividido infinitas vezes, sem se desnaturar, conseqüentemente, um objeto ao dividir-se somente muda de grandeza, não muda de natureza. Este objeto será chamado, então, de multiplicidade numérica, porque segue o modelo do número que se divide sem mudar de natureza. Mesmo que estas divisões não cheguem a se realizar, mas somente sejam pensadas como possíveis, o aspecto total do objeto não muda, pois somente o seu grau varia. Por outro lado, podemos pensar um tipo de "divisão" da duração psicológica ocorrendo no sujeito, num sentido metafórico e não espacial de divisão.

 A vida psíquica, apesar de contínua, é múltipla em seus aspectos, portanto, e de certa forma, divide-se para formar uma multiplicidade. Entretanto, esta divisão é muito especial porque a duração ao dividir-se muda de natureza; se não mudasse permaneceria homogênea e seria, então, uma multiplicidade numérica. A verdadeira duração é heterogênea e a cada divisão podemos no momento considerá-la como indivisível. Nesta divisão, que na realidade é uma mudança essencial, surge "o outro" sem que com isto venham a existir "muitos" no sentido numérico, porque os "muitos" estados fundem-se num só e cada novo estado de consciência toma conta da alma inteira, resultando num mesmo e único estado que dura. Assim, a multiplicidade qualitativa consegue conciliar características aparentemente divergentes da duração psicológica: a heterogeneidade e a continuidade. 

Bergson, (1889/1988, p. 63) ao revelar a noção de multiplicidade qualitativa, pôde respeitar a verdadeira natureza dos estados internos. Os estados psicológicos são qualidade pura, não tem nada a ver com quantidades; é exatamente esta sua natureza qualitativa que os impede de formarem uma multiplicidade numérica. Somente podemos empregar termos que designam quantidade quando nos referimos às coisas que ocupam lugar no espaço e podem justapor-se a fim de serem comparadas para serem medidas; essa comparação entre coisas semelhantes é o que permite sua quantificação. 

Contudo, não faz sentido buscar uma relação numérica entre qualidades, isto porque elas nunca são idênticas. Então, um estado interno, sendo qualitativo, nunca é igual a outro, sendo assim, não pode ser sobreposto e comparado, no intuito de buscar semelhanças quantitativas e de estabelecer graus de diferenciação, visando-se a construir uma multiplicidade numérica que se mostra, assim, inteiramente inadequada para representar a realidade interior.
Para estarmos a salvo de tais confusões devemos separar duas multiplicidades que são absolutamente distintas. Quando o meio é o espaço temos uma multiplicidade quantitativa; quando o meio é o tempo temos uma multiplicidade qualitativa. A primeira refere-se às coisas extensas e exteriores; a segunda refere-se aos estados intensivos e internos. Essa distinção entre multiplicidade quantitativa e multiplicidade qualitativa é assim resumida por Bergson:
"Considerados em si mesmos, os estados da consciência profundos não têm nenhuma relação com a quantidade, são qualidade pura; misturam-se de tal maneira que não se pode dizer se são um ou vários, nem sequer examiná-los sob este ponto de vista sem logo os desnaturar. A duração que assim criam é uma duração cujos momentos não constituem uma multiplicidade numérica" (Bergson , 1889/1988, p. 95).
Trata-se de uma multiplicidade de qualidades, porque os fatos da consciência são qualidade pura, penetram-se reciprocamente quando percepcionados de forma imediata. Todavia, quando representados simbolicamente no espaço tornam-se unidades homogêneas e exteriores umas às outras ocupando lugar no espaço. Tornam-se rígidas e impenetráveis formando uma multiplicidade distinta semelhante ao número e somente sob estas condições é que imaginamos contá-los, quando os projetamos no espaço. E este foi precisamente o engano de uma psicologia não atenta à constituição qualitativa dos estados psicológicos: não perceber que existem dois tipos distintos de multiplicidade, uma qualitativa e outra quantitativa. 

Em suma, a multiplicidade quantitativa tem por condição o espaço, é nítida, precisa, sua função é separar e distinguir a realidade sempre indistinta e fluida, dando-lhe limites e definindo-a na exterioridade. Tal multiplicidade diz respeito aos objetos externos, extensos e materiais, que podemos ver e tocar porque estão no espaço. Estes objetos, por serem exteriores uns aos outros, estão justapostos de forma definida e ordenada formando um conjunto semelhante ao número. "É representada pelo espaço... é uma multiplicidade de exterioridade, de simultaneidade, de justa posição, de ordem, de diferenciação quantitativa, de diferença de grau, uma multiplicidade numérica, descontinua e atualizada" (Deleuze, 1989, p. 30). 

A multiplicidade qualitativa, por sua vez, é interna, sucessiva e somente aparece na pura duração, porque é uma multiplicidade temporal e não espacial. Própria dos estados internos da consciência, que se sucedem fundindo-se e a cada nova fusão mudando por completo sua natureza. "Presente na duração pura; é uma multiplicidade interna, de sucessão, de fusão, de organização qualitativa ou de diferença de natureza, uma multiplicidade virtual e contínua, irredutível ao número" (Deleuze, p. 30). 

Portanto, na duração interna tudo se modifica o tempo todo porque o progresso dos estados psicológicos é dinâmico; se algo se solidifica é porque nos deixamos representar, ilusoriamente, a nós mesmos, como se existíssemos num tempo homogêneo e espacial. Nossa representação, de nossa duração psicológica como uma multiplicidade quantitativa e homogênea, se origina de uma invasão imprópria do espaço no âmbito da pura duração, como veremos. 

Na Origem do Problema: A Confusão entre Tempo e Espaço
Na raiz do problema está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza temporal e não espacial. A partir desta confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multiplicidade quantitativa dos estados da consciência porque se concebe a vida psíquica existindo num tempo espacial. 

Os pressupostos do determinismo psicológico, enquanto ciência, foram levantados sobre uma base filosófica comum, onde encontramos como idéia central o conceito de tempo homogêneo. Este conceito surge da aplicação imprópria de noções como quantidade, extensão e espaço à concepção do tempo psíquico, deformando o tempo-qualidade vivido pelo eu, transformando-o no tempo-quantidade representado pelo espaço. Tal deformação, no fundo, ocorre porque se confunde a verdadeira duração da psique com sua representação simbólica, ou seja, substitui-se o tempo pelo espaço. Este tempo homogêneo pode ser definido como um misto de tempo e espaço.

 A duração homogênea não é a verdadeira duração, mas um conceito híbrido, formado por meio da representação espacial que introduz seus cortes descontínuos na sucessão interna, heterogênea e contínua da duração psicológica. Bergson explica como se processa esta confusão entre tempo e espaço:
"Mas familiarizados com esta última idéia (espaço), e obsessionados até por ela, introduzimo-la sem saber na nossa representação da sucessão pura; justapomos nossos estados da consciência de maneira a percepcioná-los simultaneamente, não já um no outro, mas um ao lado do outro; em resumo, projetamos o tempo no espaço, exprimimos a duração pela extensão, e a sucessão toma para nós a forma de uma linha contínua, ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se penetrar." (Bergson, 1889/1988, p. 73)
O tempo-quantidade (ou duração homogênea) é apresentado como um meio homogêneo onde os fatos da consciência se alinham e se justapõem formando uma multiplicidade quantitativa e onde cada estado separadamente se sucede um após o outro, sendo assim, é uma representação absolutamente distinta da verdadeira duração. Quando definimos o tempo desta forma o que estamos definindo na realidade é o espaço e a verdadeira duração não tem a menor relação com o espaço. 

"Esta forma do tempo é somente uma representação 
 da nossa intuição do tempo em termos de espaço"
 (Hude 1990, p. 136). 
 
O tempo homogêneo tem sua origem numa "endosmose entre o interno e o externo" (Prado Jr., 1989, p. 99). A confusão é bilateral. De um lado, ocorre uma aparente temporalização do espaço, por meio da ilusão de que possa ocorrer uma sucessão num meio homogêneo; fato impossível porque qualquer sucessão somente ocorre no tempo e para a consciência. 

A ilusão da existência de sucessão num meio homogêneo surge porque inventamos um espaço invadido pelo tempo, sobre o qual podemos justapor quantidades, esquecendo do ato essencial do espírito que realiza esta justaposição. De outro lado, ocorre uma especialização do tempo interno invadido pelo modo de ser do que é externo, dando origem, assim, a duração homogênea. A duração interna representada como homogênea, surge exatamente desta troca entre a exterioridade e a interioridade. O que possibilita este movimento de endosmose, entre o tempo puro e o espaço puro, é a simultaneidade, que segundo Bergson: "se poderia definir como a intersecção do tempo e do espaço." (Bergson, 1889/1988, p. 78). 

Se não houvesse simultaneidade, entre o externo e o interno, a endosmose seria impossível. Somente porque um fenômeno exterior ocorre ao mesmo tempo em que o percebo no meu interior modificando os estados da minha consciência, é que ocorre uma troca ente o espaço exterior e a duração interior. Portanto, é a simultaneidade que possibilita a endosmose espaço-temporal que produz o tempo homogêneo. "Na medida em que o tempo aparece como multiplicidade numérica, medir a duração significa contar simultaneidades. 

 Quando aplicamos este conceito de duração à vida psicológica, formamos um conjunto suscetível de decomposição e recomposição de elementos simultâneos. A simultaneidade é a noção-chave nesta endosmose entre tempo e espaço" (Leopoldo e Silva, 1994, p. 136). 

Substituímos o espaço pelo tempo e definimos o tempo interior como um meio vazio e homogêneo preenchido por uma sucessão de fatos psicológicos, da mesma maneira que concebemos o espaço como um meio vazio e homogêneo preenchido por uma coexistência. Essa homogeneidade pode ser entendida como ausência de qualidade, assim, o tempo homogêneo é um tempo sem qualidade no qual os fatos da consciência com seus contornos definidos e exteriores uns aos outros se sucederiam.

 "A tese geral de Bergson é bem conhecida:
 nós projetamos sobre a duração verdadeira,
 infinitamente móvel, o espaço no qual nós vivemos 
visando a comodidade social"
 (Vieillard-Baron, 1991, p. 58). 

Mas o tempo homogêneo não é o tempo real porque, segundo Bergson: "os fatos da consciência, ainda que sucessivos, penetram-se, e no mais simples deles pode refletir-se a alma inteira" (Bergson, 1889/1988, p. 71). Assim, Bergson vê o tempo real como heterogêneo e qualitativo. Se o tempo fosse homogêneo e sem qualidade seria espaço; se definirmos espaço como homogêneo tudo que é homogêneo é espaço, isto porque seria contraditória a existência de duas homogeneidades distintas. A confusão entre estes "dois tempos" ocorre porque movidos por interesses úteis à ação, espontaneamente substituímos o tempo verdadeiro da existência e da consciência pela ilusão do tempo da ciência e da vida cotidiana. Assim é que, introduzindo a idéia de espaço na pura duração que se chega à idéia de um tempo homogêneo e sem qualidade, usado pela ciência determinista e pela psicofísica que acabaram por tirar do tempo o essencial, isto é, a duração. 

Bergson (1889/1988), como vimos, constrói sua crítica ao conceito de tempo homogêneo espacial a partir da percepção de que existem dois tipos distintos de multiplicidade, uma qualitativa e outra numérica, que levam respectivamente a duas concepções diferentes acerca da natureza do tempo: um heterogêneo e contínuo e outro homogêneo e divisível. O erro do determinismo psicológico, denunciado por Bergson, foi o de ter aplicado o conceito de tempo espacial à compreensão do modo de ser do psiquismo. Bergson demonstra que o tempo homogêneo é uma noção híbrida de tempo e de espaço que surge porque se concebe a duração como homogênea, concepção que no fundo não passa de uma representação simbólica e inexata da verdadeira realidade psíquica. 

Para Bergson (1889/1988), há o tempo real: a duração. Tempo que é mudança essencial e contínua; tempo que passa incessantemente modificando tudo e que constitui a própria essência da realidade psíquica. Todavia, não é assim que percebemos a realidade; presos aos hábitos da inteligência visando a nossa ação no mundo, percebemos a realidade como estática e passível de ser fragmentadas em partes que facilitam nosso agir no mundo. Temos, assim, uma concepção espacial da realidade, que olha o mundo do ponto de vista da extensão.

 A esta visão espacial da realidade, escapa o tempo real, que flui incessantemente em seu contínuo movimento, porque pensa o tempo nos moldes do espaço e, assim, concebe um tempo ilusório: o tempo espacializado, originado da confusão que inadvertidamente se faz entre tempo e espaço3. E a consciência, imbuída de representações espaciais, olha para si mesma e não se reconhece como duração pura, enxerga estados que se sucedem sem se penetrarem, não vê o eu no seu conjunto inter-relacionado, esquece o passado num lugar escondido sem relação com o presente, torna as sensações e os sentimentos unidades estanques sem movimento, concebe a imobilidade como substrato da realidade. 
 
Somente da confusão entre duas realidades distintas, tempo e espaço, é que surge a idéia de tempo homogêneo, representação simbólica da verdadeira duração, sobre a qual se construiu a psicofísica e outras formas de representação do mundo que carregaram consigo este equívoco primordial. Para evitar equívocos, é necessário distinguir o tempo do espaço e pensar a vida psíquica como essencialmente temporal. Para tanto, Bergson esclarece que:
"Há um espaço sem duração, mas onde fenômenos aparecem e desaparecem simultaneamente com os nossos estados da consciência. Há uma duração real, cujos momentos heterogêneos se interpenetram podendo cada momento aproximar-se de um estado do mundo exterior que é dele contemporâneo e separar outros momentos por efeito dessa aproximação. Da comparação destas duas realidades nasce uma representação simbólica da duração, tirada do espaço. A duração toma assim a forma ilusória de um meio homogêneo" (Bergson, 1889/1988, p. 78).
Assim, não podemos reduzir a noção de tempo à noção de espaço porque são realidades distintas. Logo, é necessária a depuração do misto entre tempo e espaço, da qual surgirá, de um lado, o puro espaço e, de outro lado, a pura duração4. Esclarecer essa confusão é um dos principais objetivos do Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (Bergson, 1889/1988); trata-se, pois, de separar duas concepções diferentes de tempo, de um lado, o tempo-espacial utilizado pela ciência, de outro lado, o tempo interior, no qual vive e dura o eu. "Em verdade, o tempo da ciência é assim o tempo da linguagem, a expressão de uma espécie de 'senso comum' cuja vocação natural e de pensar visando a agir. O tempo da existência é, ao contrário, esse da duração interiormente vivida e, de fato, interiormente percebida" (Gouhier, 1989, p. 
42). Portanto, devemos separar duas realidades distintas: primeiro, um espaço sem duração onde somente existe o presente absoluto e, segundo, uma duração pura onde encontramos o tempo real passando contínuo e heterogêneo, no qual ocorrem os fenômenos psíquicos. 

Bergson (1889/1988) busca construir uma metafísica que não ignora a realidade de fato. Compreende que o primeiro acesso a essa realidade é a vida interior, constituída por nossa psique; assim, volta seu olhar a esse acesso privilegiado, buscando compreender sua natureza, antes de buscar investigar a realidade tida como exterior. Descobre que essa vida interior é de natureza temporal: o tempo, enquanto duração, é a essência da vida psíquica. Todavia, não é assim que, no geral, a psicologia de seu tempo a entendeu; marcada pelo determinismo psicofísico, acabou por não reconhecer a verdadeira natureza psíquica, ao confundi-la com o físico, entendendo-a como sendo de natureza espacial.

 A contribuição de Bergson
 está em mostrar que é necessário pensar
 os pressupostos filosóficos da psicologia e, assim,
 manter um diálogo entre filosofia e psicologia, 
disciplinas que por muito tempo caminharam juntas.
 
Referências

Bergson, H. (1988). Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (J. S. Gama, Trad.). Lisboa: Edições 70. (Original publicado em 1889)         [ Links ]
Bergson, H. (1984). Cartas, conferências e outros escritos (F. L. Silva, Trad.). São Paulo, SP: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores. (Original publicado em 1903)         [ Links ]
Bergson, H. (1964). A evolução criadora (A. C. Monteiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora Delta. (Original publicado em 1907)         [ Links ]
Deleuze, G. (1989). Le bergsonisme. Paris: P.U.F.         [ Links ]
Gouhier, H. (1989). Bergson dans l'histoire de la pensée occidentale. Paris: J. Vrin.         [ Links ]
Hude, H. (1990). Bergson. Paris: Éditions Universitaires.         [ Links ]
Leopoldo e Silva, F. (1994). Bergson: Intuição e discurso filosófico. São Paulo, SP: Loyola.         [ Links ]
Prado Jr., B. (1989). Presença e campo transcendental: Consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo, SP: Edusp.         [ Links ]
Trotignon, P. (1967). L'idée de vie chez Bergson. Paris: P.U.F.         [ Links ]
Vieillard-Baron, J. L. (1991). Bergson. Paris: P.U.F.         [ Links ]
 
 
Recebido: 26/12/2000
Revisado: 02/05/2001
Aceite Final: 18/06/2001


Sobre a autora
Regina Rossetti 
é Filósofa, Pesquisadora de Pós-Doutorado da Fapesp,
 Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
 
 
1 Endereço para correspondência: Av Goiás, 3.400, Santo Caetano do Sul, 09550-051, SP. Fax/Fone: (11) 4239-3200. E-mail: rrossetti@imes.edu.br
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Este artigo é resultado de pesquisa de pós-doutorado financiada pela FAPESP.
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Bergson trata dessa ilusão em seu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889/1988, a partir da p. 57).
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Distinção que permanecerá até a formulação da duração como sendo a própria substância das coisas, em A Evolução Criadora (1907), que tornará evidente o caráter metodológico desta distinção. Por hora, aceitemos esta distinção, que nos ajudará em muito a compreender a noção de tempo homogêneo.
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PabloPicasso
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Enviado por em 05/09/2011
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 Sejam felizes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.

HENRI-LOUIS BERGSON - Citações ao som de EDGAR VARÈSE: Poème électronique (1958) 7:58



Enviado por em 24/03/2011
Edgar Varése (1897-1965): Poème électronique, per nastro magnetico (1958).

 PabloPicasso
 HENRI-LOUIS  BERGSON

Citações...01
página 13
"É o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro." 

p. 14
"Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe." 

p. 15 a 16
"Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles." 

p. 20
"a ficção de um objeto material isolado não implicará uma espécie de absurdo, já que esse objeto toma emprestado suas propriedades físicas das relações que ele mantém com todos os outros, e deve cada uma de suas determinações - sua própria existência, conseqüentemente - ao lugar que ocupa no conjunto do universo?"
/
"Há um sistema de imagens que chamo minha percepção do universo, e que se conturba de alto a baixo por leves variações de uma certa imagem privilegiada, meu corpo. essa imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se todas as outras; a cada um de seus movimentos tudo muda, como se girássemos um caleidoscópio. Há, por outro lado, as mesmas imagens, mas relacionadas cada uma a si mesma, umas certamente influindo sobre as outras, mas de maneira que o efeito permanece sempre proporcional à causa: é o que chamo de universo." 

p. 21
"Toda imagem é interior a certas imagens e exterior a outras; mas do conjunto das imagens não é possível dizer que ele nos seja interior ou que nos seja exterior, já que a interioridade e a exterioridade não são mais que relações entre imagens." 

p. 26
"O cérebro não deve portanto ser outra coisa, em nossa opinião, que não uma espécie de central telefônica: seu papel é "efetuar a comunicação", ou fazê-la aguardar. Ele não acrescenta nada àquilo que recebe; mas, como todos os órgãos perceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, e todos os mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano têm aí seus representantes titulares, ele constitui efetivamente um centro, onde a excitação periférica põe-se em contato com este ou aquele mecanismo motor, escolhido e não mais imposto." 

p. 27
"tanto nos centro superiores do córtex quanto na medula, os elementos nervosos não trabalham com vistas ao conhecimento: apenas esboçam de repente uma pluralidade de ações possíveis, ou organizam uma delas." 

p. 27 a 28
"não caberia pensar que a percepção [...] seja inteiramente orientada para a ação, e não para o conhecimento puro? E, com isso, a riqueza crescente dessa percepção não deveria simbolizar simplesmente a parte crescente de indeterminação deixada à escolha do ser vivo em sua conduta em face das coisas?" 

p. 31
"a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção." 

p. 33
"O que a distingue, enquanto imagem presente, enquanto realidade objetiva, de uma imagem representada é a necessidade em que se encontra de agir por cada um de seus pontos sobre todos os pontos das outras imagens, de transmitir a totalidade daquilo que recebe, de opor a cada ação uma reação igual e contrária, de não ser, enfim, mais do que um caminho por onde passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na imensidão do universo. Eu a converteria em representação se pudesse isolá-la." 

p. 34
"Ora, se os seres vivos constituem no universo "centros de indeterminação", e se o grau dessa indeterminação é mediado pelo número e pela elevação de suas funções, concebemos que sua simples presença possa equivaler à supressão de todas as partes dos objetos nas quais suas funções não estão interessadas. Eles se deixarão atravessar, de certo modo, por aquelas dentre as ações exteriores que lhes são indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-ão "percepções" por seu próprio isolamento. Tudo se passará então, para nós, como se refletíssemos nas superfícies a luz que emana delas, luz que, propagando-se sempre, jamais teria sido revelada.

As imagens que nos cercam parecerão voltar-se em direção a nosso corpo, mas desta vez iluminada a face que o interessa; elas destacarão de sua substância o que tivermos retido de passagem, o que somos capazes de influenciar. Indiferentes umas às outras em razão do mecanismo radical que as vincula, elas apresentam reciprocamente, umas às outras, todas as suas faces ao mesmo tempo, o que equivale a dizer que elas agem e reagem entre si por todas as suas partes elementares, e que, conseqüentemente, nenhuma delas é percebida nem percebe conscientemente.

E se, ao contrário, elas deparam em alguma parte com uma certa espontaneidade de reação, sua ação é diminuída na mesma proporção, e essa diminuição de sua ação é justamente a representação que temos dela. Nossa representação das coisas nasceria portanto, em última análise, do fato de que ela vêm refletir-se contra nossa liberdade." 

p. 35
"A percepção assemelha-se [...] aos fenômenos de reflexão que vêm de uma refração impedida; é como um efeito de miragem." 

p. 35 a 36
"há para as imagens um simples diferença de grau, e não de natureza, entre ser e ser conscientemente percebidas. A realidade da matéria consiste na totalidade de seus elementos e de suas ações de todo tipo. Nossa representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os corpos; ela resulta da eliminação daquilo que não interessa nossas necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções.

Num certo sentido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto material inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, é infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, já que esse ponto recolhe e transmite as ações de todos os pontos do mundo material, enquanto nossa consciência só atinge algumas partes por alguns lados. A consciência - no caso da percepção exterior - consiste precisamente nessa escolha. Mas, nessa pobreza necessária de nossa percepção consciente, há algo de positivo e que já anuncia o espírito: é, no sentido etimológico da palavra, o discernimento." 

p. 38 a 39
"O que você tem a explicar, portanto, não é como a percepção nasce, mas como ela se limita, já que ela seria, de direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, àquilo que interessa a você." 

p. 39
"o cérebro é uma imagem como as outras, envolvida na massa das outras imagens, e seria absurdo que o continente saísse do conteúdo." 

p. 40
"ciência e consciência coincidiriam no instantâneo". 

p. 41
"ao nos exprimirmos assim, estaremos apenas nos curvando às exigências do método científico; não descreveremos em absoluto o processo real." 

p. 44
"a percepção, em seu conjunto, tem sua verdadeira razão de ser na tendência do corpo a se mover." 

p. 46
"nossa representação começa sendo impessoal. Só pouco a pouco, e à força de induções, ela adota nosso corpo por centro e torna-se nossa representação. O mecanismo dessa operação, aliás, é fácil de compreender. À medida que meu corpo se desloca no espaço, todas as outras imagens variam; a de meu corpo, ao contrário, permanece invariável. Devo portanto fazer dela um centro, ao qual relacionarei todas as outras imagens." 

p. 47
"As coisas se esclarecem se vamos assim da periferia da representação ao centro, como faz a criança, como nos convidam a fazê-lo a experiência imediata e o senso comum. Tudo se obscurece, ao contrário, e os problemas se multiplicam, se pretendemos ir do centro à periferia, como fazem os teóricos."
/
"nessa idéia de que projetamos fora de nós estados puramente internos há tantos mal-entendidos, tantas respostas defeituosas a questões mal colocadas" 

p. 48
"nossos sentidos terão igualmente necessidade de educação - não, certamente, para se conciliarem com as coisas, mas para se porem de acordo entre si" 

p. 49
"Perceber todas as influências de todos os pontos de todos os corpos seria descer ao estado de objeto material. Perceber conscientemente significa escolher, e a consciência consiste antes de tudo nesse discernimento prático."
/
"As percepções diversas do mesmo objeto que oferecem meus diversos sentidos não reconstituirão portanto, ao se reunirem, a imagem completa do objeto; permanecerão separadas umas das outras por intervalos que medem, de certo modo, muitos vazios em minhas necessidades: é para preencher tais intervalos que uma educação dos sentidos é necessária. Essa educação tem por finalidade harmonizar meus sentidos entre si, restabelecer entre seus dados uma continuidade que foi rompida pela própria descontinuidade das necessidades do meus corpo, enfim, reconstruir aproximadamente a totalidade do objeto material." 

p. 50
"um conhecimento cada vez mais aproximado da matéria é possível. Bem longe de suprimir nela algo de percebido, devemos ao contrário reaproximar todas as qualidades sensíveis, redescobrir seu parentesco, restabelecer entre elas a continuidade que nossas necessidades romperam." 

p. 54
"não há percepção que não possa, por um crescimento da ação de seu objeto sobre nosso corpo, tornar-se afecção e, mais particularmente, dor."
/
"o que seria uma dor separada do sujeito que a sente?" 

p. 56
"por que esse momento e não outro? E qual a razão especial que faz com que um fenômeno, de que eu era de início apenas o espectador indiferente, adquira de repente um interesse vital para mim?" 

p. 56 a 57
"Quando um corpo estranho toca um dos prolongamentos da ameba, esse prolongamento se retrai; cada parte da massa protoplasmática é portanto igualmente capaz de receber a excitação e de reagir contra ela; percepção e movimento confundem-se aqui numa propriedade única que é a contratibilidade. Mas, à medida que o organismo se complica, o trabalho se divide, as funções se diferenciam, e os elementos anatômicos assim constituídos alienam sua independência.

Num organismo como o nosso, as fibras ditas sensitivas são exclusivamente encarregadas de transmitir excitações a uma região central de onde o estímulo se propagará por elementos motores. Parece portanto que elas renunciaram à ação individual para contribuir, na qualidade de sentinelas avançadas, às evoluções de corpo inteiro. Mas ainda assim permanecem expostas, isoladamente, às mesmas causas de destruição que ameaçam o organismo em seu conjunto; e, enquanto esse organismo tem a faculdade de se mover para escapar ao perigo ou para reparar suas perdas, o elemento sensitivo conserva a imobilidade relativa à qual a divisão do trabalho o condena.

Assim nasce a dor, que não é, para nós, senão um esforço do elemento lesado para repor as coisas no lugar - uma espécie de tendência motora sobre um nervo sensitivo. Toda dor consiste portanto num esforço, e num esforço impotente. Toda dor é um esforço local, e esse próprio isolamento do esforço é a causa de sua impotência, porque o organismo, em razão da solidariedade de suas partes, já não é apto senão para os efeitos de conjunto. É também por ser local que a dor é absolutamente desproporcional ao perigo que corre o ser vivo: o perigo pode ser mortal e a dor pequena; a dor pode ser insuportável (como uma dor de dentes) e o perigo insignificante." 

p. 58
"A percepção [...] mede nossa ação possível sobre as coisas e por isso, inversamente, a ação possível das coisas sobre nós. Quanto maior a capacidade de agir do corpo [...], mais vasto o campo que a percepção abrange." 

p. 59
"a superfície, limite comum do exterior e do interior, é a única porção da extensão que é ao mesmo tempo percebida e sentida." 

p. 62
"a educação subsiste uma vez recebida, e os dados da memória, mais úteis na vida prática, deslocam os da consciência imediata" 

p. 63 a 64
"Minha percepção, em estado puro e isolado de minha memória, não vai de meu corpo aos outros corpos: ela está no conjunto dos corpos em primeiro lugar, depois aos poucos se limita, e adota meu corpo por centro. E é levada a isso justamente pela experiência da dupla faculdade que esse corpo possui de efetuar ações e experimentar afecções, em uma palavra, pela experiência da capacidade sensório-motora de uma certa imagem, privilegiada entre as demais.

De um lado, com efeito, essa imagem ocupa sempre o centro da representação, de maneira que as outras imagens se dispões em torno dela na própria ordem em que poderiam sofrer sua ação; de outro lado, percebo o interior dessa imagem, o íntimo, através de sensações que chamo afetivas, em vez de conhecer apenas, como nas outras imagens, sua película superficial. Há portanto, no conjunto das imagens, uma imagem favorecida, percebida em sua profundidade e não apenas em sua superficialidade, sede de afecção ao mesmo tempo que fonte de ação: é essa imagem particular que adoto por centro de meu universo e por base física de minha personalidade." 

p. 67 a 68
"ela [a percepção] exprime e mede a capacidade de agir do ser vivo, a indeterminação do movimenta ou da ação que seguirá o estímulo recolhido. Essa indeterminação [...] se traduzirá por uma reflexão sobre si mesmas, ou melhor, por uma divisão das imagens que cercam nosso corpo; e, como a cadeia de elementos nervosos que recebe, retém e transmite movimentos é justamente a sede e dá a medida dessa indeterminação, nossa percepção acompanhará todo o detalhe e parecerá exprimir todas as variações desses mesmos elementos nervosos.

Nossa percepção, em estado puro, faria portanto verdadeiramente parte das coisas. E a sensação propriamente dita, longe de brotar espontaneamente das profundezas da consciência para se estender, debilitando-se, no espaço, coincide com as modificações necessárias que sofre, em meio às imagens que a influenciam, esta imagem particular que cada um de nós chama seu corpo." 

p. 68
"se esses corpos têm por objeto receber excitações para elaborá-las em reações imprevistas, também a escolha se inspira, sem dúvida nenhuma, em experiências passadas, e a reação não se faz sem um apelo à lembrança que situações análogas foram capazes de deixar atrás delas. A indeterminação dos atos a cumprir exige portanto, para não se confundir com o puro capricho, a conservação das imagens percebidas. Poderíamos dizer que não temos poder sobre o futuro sem uma perspectiva igual e correspondente sobre o passado, que o impulso de nossa atividade para diante cria atrás de si um vazio onde as lembranças se precipitam, e que a memória é assim a repercussão, na esfera do conhecimento, da indeterminação de nossa vontade." 

p. 69
"Justamente porque a lembrança de intuições anteriores análogas é mais útil que a própria intuição, estando ligada em nossa memória a toda a série dos acontecimentos subseqüentes e podendo por isso esclarecer melhor nossa decisão, ela desloca a intuição real, cujo papel então não é mais [...] que o de chamar a lembrança, dar-lhe um corpo, torná-la ativa e conseqüentemente atual."
/
"perceber acaba não sendo mais do que uma ocasião de lembrar." 

p. 72
"O que constitui o mundo material [...] são objetos, ou, se preferirem, imagens, cujas partes agem e reagem todas através de movimentos umas sobre as outras. E o que constitui nossa percepção pura é, no seio mesmo dessas imagens, nossa ação nascente que se desenha. A atualidade de nossa percepção consiste portanto em sua atividade, nos movimentos que a prolongam, e não em sua maior intensidade: o passado não é senão idéia, o presente é ideo-motor.

Mas eis aí o que se insiste em não ver, porque se toma a percepção por uma espécie de contemplação, porque se lhe atribui sempre uma finalidade puramente especulativa, porque se quer que ela vise a não se sabe qual conhecimento desinteressado: como se, isolando-a da ação, cortando assim seus vínculos com o real, ela não se tornasse ao mesmo tempo inexplicável e inútil! A partir daí, toda diferença é abolida entre a percepção e a lembrança, já que o passado é por essência o que não atua mais, e que ao se desconhecer esse caráter do passado se é incapaz de distingui-lo realmente do presente, ou seja, do atuante." 

p. 73
"Nossa percepção pura, com efeito, por mais rápida que a suponhamos, ocupa uma certa espessura de duração, de sorte que nossas percepções sucessivas não são jamais momentos reais das coisas, como as supusemos até aqui, mas momentos de nossa consciência. O papel teórico da consciência na percepção exterior, dizíamos nós, seria o de ligar entre si, pelo fio contínuo da memória, visões instantâneas do real. Mas, na verdade, não há jamais instantâneo para nós. Naquilo que chamamos por esse nome existe já um trabalho de nossa memória, e conseqüentemente de nossa consciência, que prolonga uns nos outros, de maneira a captá-los numa intuição relativamente simples, momentos tão numerosos quanto os de um tempo indefinidamente divisível." 

p. 75
"as questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser colocadas mais em função do tempo que do espaço." 

p. 77
"A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela." 

p. 83
"Tudo deve se passar portanto como se uma memória independente juntasse imagens ao longo do tempo à medida que elas se produzem, e como se nosso corpo, com aquilo que o cerca, não fosse mais que uma dessas imagens, a última que obtemos a todo momento praticando um corte instantâneo no devir em geral. Nesse corte, nosso corpo ocupa o centro." 

p. 84
"O reconhecimento de um objeto presente se faz por movimentos quando procede do objeto, por representações quando emana do sujeito." 

p. 87
"A lembrança de uma determinada leitura é um representação, e não mais que um representação; diz respeito a uma intuição do espírito que posso, a meu bel-prazer, alongar ou abreviar; eu lhe atribuo uma duração arbitrária: nada me impede de abarcá-la de uma só vez, como num quadro. Ao contrário, a lembrança da lição aprendida, mesmo quando me limito a repetir essa lição interiormente, exige um tempo bem determinado, o mesmo que é necessário para desenvolver um a um, ainda que em imaginação, todos os movimentos de articulação requeridos: portanto não se trata mais de uma representação, trata-se de uma ação." 

p. 89
"Dessas duas memórias, das quais uma imagina e a outra repete, a segunda pode substituir a primeira e freqüentemente até dar a ilusão dela." 

p. 90
"Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo. Também o passado que remontamos deste modo é escorregadio, sempre a ponto de nos escapar, como se essa memória regressiva fosse contrariada pela outra memória, mais natural, cujo movimento para diante nos leva a agir e a viver." 

p. 91
"Nossa existência decorre em meio a objetos em número restrito, que tornam a passar com maior ou menor freqüência diante de nós: cada um deles, ao mesmo tempo que é percebido, provoca de nossa parte movimentos pelo menos nascentes através dos quais nos adaptamos a eles. Esses movimentos, ao se repetirem, criam um mecanismo, adquirem a condição de hábito, e determinam em nós atitudes que acompanham automaticamente nossa percepção das coisas." 

p. 92
"ao mesmo tempo que se desenvolve esse processo de percepção e adaptação que resulta no registro do passado sob forma de hábitos motores, a consciência, como veremos, retém a imagem de situações pelas quais passou sucessivamente, e as alinha na ordem em que elas sucederam. Para que servirão essas imagens-lembranças?

Ao se conservarem na memória, ao se reproduzirem na consciência, não irão elas desnaturar o caráter prático da vida, misturando o sonho á realidade?

Seria assim, certamente, se nossa consciência atual, consciência que reflete justamente a exata adaptação de nosso sistema nervoso à situação presente, não descartasse todas aquelas imagens passadas que não são capazes de se coordenar à percepção atual e de formar com ela um conjunto útil. No máximo algumas lembranças confusas, sem relação com a situação presente, ultrapassam as imagens utilmente associadas, desenhando ao redor delas uma franja menos iluminada que irá se perder numa imensa zona obscura." 

p. 93
"Certamente são imagens de sonho; certamente costumam aparecer e desaparecer independentemente de nossa vontade".
/
"deveremos constatar uma exaltação da memória espontânea na maioria dos casos em que o equilíbrio sensório-motorn do sistema nervoso for perturbado, e, ao contrário, uma inibição, no estado normal, de todas as lembranças espontâneas incapazes de consolidar utilmente o equilíbrio presente". 

p. 96
"Essa lembrança espontânea, que se oculta certamente atrás da lembrança adquirida, é capaz de revelar-se por clarões repentinos: mas ela se esconde, ao menor movimento da memória voluntária." 

p. 97
"o passado parece efetivamente armazenar-se, conforme havíamos previsto, sob essas duas formas extremas, de um lado os mecanismos motores que o utilizam, de outro as imagens-lembranças pessoais que desenham todos os acontecimentos dele com seu contorno, sua cor e seu lugar no tempo. Dessas duas memórias, a primeira é verdadeiramente orientada no sentido da natureza; a segunda, entregue a si mesma, iria antes em sentido contrário. A primeira, conquistada pelo esforço, permanece sob a dependência de nossa vontade; a segunda, completamente espontânea, é tanto volúvel em reproduzir quanto fiel em conservar.

O único serviço regular e certo que a segunda pode prestar à primeira é mostrar-lhe as imagens daquilo que precedeu ou seguiu situações análogas à situação presente, a fim de esclarecer sua escolha." 

p. 100
"o sentimento do déjà vu viria de uma justaposição ou de uma fusão entre a percepção e a lembrança". 

p. 101
"a percepção de uma semelhança é antes um efeito da associação do que sua causa." 

p. 106
"exercemos em geral nosso reconhecimento antes de pensá-lo. Nossa vida diária desenrola-se em meio a objetos cuja mera presença nos convida a desempenhar um papel: nisso consiste seu aspecto de familiaridade. As tendências motoras já seriam suficientes, portanto, para nos dar o sentimento do reconhecimento." 

Fonte: 
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.