1 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade -44min.
2 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade -45min.
3- Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 43min.
4 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 42min.
5 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 45min.
6 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade-45 min.
7 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 42 min.
8 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 41min.
9 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 45min.
10 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade- 41min.
11 - Filosofia e Intuição Poética na Modernidade - 44min.
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Intuição
Etimologia
Latim intus actionis = o dentro (ou íntimo) da ação[1].Significado
Saber o íntimo da ação. Ver o fazer. (cfr. com "ciência").Conhecer os modos ou estruturas interiores de um projeto de ação ou evento.
Colher as coordenadas de uma gestalt.
Saber antes dos efeitos.
À luz das descobertas da escola ontopsicológica, a intuição pode ser assim definida:
-
- Formalização do Eu a priori em "relação a". Posição de ótima funcionalidade por parte do Em Si ôntico em relação a um projeto ou evento.[2]
Intuição e processo perceptivo-cognitivo
Para compreender a relevância que a intuição assume para a escola ontopsicológica, é preciso compreender importantes conceitos que se referem aos níveis-base de percepção elementar, que são três: esteroceptivo, proprioceptivo e egoceptivo[3]. (cfr. Charles Scott Sherrignton, prêmio Nöbel em Medicina, 1932)Percepção esteroceptiva
A percepção esteroceptiva compreende qualquer variação excitante interna e externa ao organismo.Refere-se a todas as formas de sensibilidade:
- Cutânea: tátil, térmica, dolorosa;
- Orgânica: visão, audição, olfato e gosto; e
- Visceral ou neurovegetativa: todas as variações das funções vitais, viscerotônicas, neuromusculares em referência aos sistemas nervosos cerebro-espinal e neurovegetativos, e o sistema parasimpático preposto à reconsituição celular.
Percepção proprioceptiva
A percepção proprioceptiva é qualquer estimulação sensorial que se torna informática única para o organismo. Nela, as múltiplas aferências internas ou internas são unificadas em relação à estrutura-base da individuação e veiculadas em uma percepção unitária do organismo.A percepção esteroceptiva é ainda setorial enquanto a percepção proprioceptiva envolve o total organismo, de modo que todos os setores do organismo são informados.
Percepção egoceptiva
O conhecimento egoceptivo é a percepção egóica, o quanto selecionado a partir dos dois níveis precedentes que é referido ao Eu consciente, voluntário e operativo.O quanto, o como e o qual da informação total atinge o Eu e, por consequência, o Eu é envolvido irrevocavelmente a uma responsabilidade.
Porque a intuição é perdida?
O Eu deveria ser a reverberação ou reflexão única do total perceptivo, ou seja, o conhecimento ou consciência do quanto se existe como individuação é um fato natural e normalmente adquirível, como o conhecimento da audição ou da visão[2].De fato, a "consciência", em Ontopsicologia, é definida como monitor de reflexão, ou seja, ela é uma superfície ou plano ótico sobre o qual se podem ler ou ver as projeções do real ou concreto em todos os seus aspectos. É um espelho por meio do qual os módulos da percepção se projetam holograficamente, instaurando o processo das imagens.
O cientista Antonio Meneghetti assim a descreveu porque a consciência dá a imagem correta: é um espelho psicodélico onde as imagens coincidem com o vivido real. Essas imagens (ou reflexões) e objetos (ou estruturas relativas) são iguais e reversíveis.
Porém, a Ontopsicologia relevou que no interior do ser humano se sobrepõe uma projeção especular, que altera os processos do conhecimento organísmico: o monitor de deflexão, que foi assim chamado justamente porque distorce a imagem do real:
-
- "Quando chegam sinais, as percepções mais importantes, intervém sistematicamente um outro sinal que se sobrepõe. Susbstancialmente, ocorre que o feixe escpecular do monitor de deflexão torna-se prioritário na percepção reflexiva e a percepção organísmica resta excluída." [4]
Intuição e inconsciente
O inconsciente se constitui inteiramente pela perda do conhecimento do sistema proprioceptivo e, em parte, do sistema esteroceptivo. Ele não é "tenebrosidade de monstros ou caos", mas ordem perfeita da vida no ser humano. É o conjunto global das informações contínuas provenientes do ambiente.É o quântico de vida psíquico e somático que o indivíduo é, mas do qual não é consciente, e que age de todo modo, para além da lógica da consciência.
A essência do inconsciente corresponde ao Em Si do homem[5].
A egoceptividade reduzida, que de fato se encontra na generalidade humana, ocorre por duas causas:
- Superego social;
- Superego materno, ou matriz reflexa.
Por esse motivo o inconsciente resta desconhecido, na medida em que o homem é dividido, ainda que em parte, do próprio conjunto.
Mas se o homem se faz consciente do total proprioceptivo individual, ele se auto-colhe e não adverte contraposições.
O aspecto ético baseia-se sobre critérios heterosubjetivos, confrontáveis apenas racionalmente, com exclusão do sentido visceral e da proprioceptividade subjetiva. Fomos constrangidos ao apagamento do nosso pessoal profundo.
Adicionalmente, o condicionamento e a atividade linguística impuseram ao homem a extinção das faculdades interiores de orientação, que foram substituídas por critérios lógico-linguísticos.
A intuição do organismo foi substituída pela teoria linguística e o quanto extinto sobrevive de modo inconsciente.
Por isso, a egoceptividade, ao invés de uniformar-se à esteroceptividade e à proprioceptividade, é coagida a estabilizar-se na aprendizagem da "letra". Desta espécie é a introjeção das formas comportamentais de adaptação externa, com reificação da elaboração ou informação intraorganísmica.
Ao contrário, a egoceptividade otimal seria uma compensação decisional e operativa em reflexão correspondente ao total orgânico ou organísmico.
A intuição segundo a escola ontopsicológica
Em Si ôntico
A interação dialética entre Em Si ôntico, Eu lógico histórico e monitor de deflexão determina, para a escola ontopsicológica, toda a vida do homem.O Em Si ôntico é o starter da vida, o Eu é a tomada de consciência que controla a situação e, conexo, há o monitor de deflexão (Cfr. feixe de estereótipos), inserido no interior de determinados processos sinápticos cerebrais.
-
- "O Em Si é o projeto base de natureza que constitui o ser humano. É o princípio formal inteligente que faz autóctise histórica; o ponto primeiro a partir do qual principia a determinar-se uma individuação, o princípio que faz ser ou não ser, existir ou não existir".
Eu a priori
O Eu a priori é a reflexão última entre Em Si ôntico e situação histórica. É o Eu antes da escolha ou interação. Constitui aquele possível otimal a concretizar-se por sucessiva tomada de consciência e de vontade, para o nascimento constante do Eu em progresso intrínseco. É o representativo ideal da solução possível como única perfeição, mas se realiza apenas se e no modo que o Eu consciente decide o escopo último da totalidade do Ser. É o ótimo na ética da situação, ou seja, "a escolha otimal que deveria enverar-se a cada interação entre pessoa e ambiente".Eu a priori e Em Si ôntico são sempre conexos e se refletem.
O Em Si ôntico dá o real, o Eu a priori dá a forma, ou seja, o "como" o sujeito deve evolver-se.
A cada impacto do devir, o homem é "necessitado a", e isto é o próprio a priori de ação histórica.
Portanto, o Eu a priori não é uma matriz fixa, mas "o instante que se renova a cada impacto do devir".
Eu lógico-histórico
O Eu (lógico histórico) é aquela função mediante a qual o sujeito se autocolhe, é mensurado e mede.É a parte lógica e consciente de todas as operações voluntárias, responsáveis, inteligentes, racionais, mnemônicas etc.
É a estrutura mediatriz entre o real introverso e o real extroverso, e vice-versa. É o ponto onde ocorre a tomada de consciência, de responsabilidade, de voluntarismo, de racionalidade.
O Eu não deve ser entendido apenas como forma consciente, porque na zona do eu há também os mecanismos de defesa e vastas zonas do inconsciente.
O Eu lógico-histórico é a capacidade de mediar o real externo segundo a exigência individual do íntimo. É a função de concretizar o real segundo a exigência introversa ou extroversa. Em suma, o Em Si faz a discriminação de ser ou não ser; o Eu a priori dá o otimal e o Eu lógico-histórico dá o fato último existencial.
O resultado da intencionalidade do Em Si ôntico consiste em levar a pessoa à autorrealização. Isso é possível à luz da guia do Eu a priori, que é a reflexão do Em Si ôntico em situação histórica.
O homem autêntico, portanto, é aquele que possui um Eu lógico-histórico em ação unívoca com o Eu a priori.
Síntese
Sintetizando o quanto dito a partir das descobertas da Ontopsicologia, podemos definir intuição como segue:-
- "A cada momento da vida de um homem há uma só ação otimal, e esta é refletida como Eu a priori, porque é justamente o projeto formalizado ou sublimado pela pulsão ôntica."
Referências
- ↑ MENEGHETTI, Antonio. Dicionário de Ontopsicologia. 2 ed. rev. Recanto Maestro: Ontopsicologica Editrice, 2008. ISBN 978-85-88381-41-4
- ↑ MENEGHETTI, Antonio. Manual de Ontopsicologia. 4 ed. rev. Recanto Maestro: Ontopsicologica Ed, 2010. ISBN 978-85-88381-52-0
- ↑ SHERRINGTON, C.S. The integrative action of the nervous system (1906).
- ↑ MENEGHETTI, Antonio. O monitor de deflexão na psique humana. 5 ed. Recanto Maestro: Ontopsicologica Ed, 2005. ISBN 85-88381-20-6
- ↑ MENEGHETTI, Antonio. O Em Si do Homem. 5 ed. Recanto Maestro: Ontopsicologica Ed, 2004. ISBN 85-8838115-X
Ética, Moral e Política
ADAUTO
O objetivo destas notas não é
primordialmente estabelecer diferenças mais ou menos nítidas entre termos, para
aferir o alcance do uso que fazemos de cada um deles. Gostaríamos de perseguir
uma finalidade menos precisa, embora talvez, ao mesmo tempo, mais ambiciosa:
distinguir e relacionar as dimensões ética, moral e política no plano da
experiência, entendida aqui como a tensão entre as vivências subjetivas e as
exigências objetivas que se colocam para o indivíduo na sua vida histórica.
Se admitimos que a ética pode
ser entendida como o modo de ser humano na sua universalidade, isto é, a
maneira pela qual o ser humano habita seu mundo e ao mesmo tempo o constitui,
veremos que a palavra ethos, que está na origem do termo e do conceito
de ética, não poderia ser interpretada meramente como hábitos e costumes do
animal humano, sob pena de empobrecer, por via de uma redução ao significado
comportamental, aquilo que seria, na sua mais ampla e profunda acepção, a forma
substantiva de todos os atos que configuram essencialmente a realidade que
temos de viver: estar-no-mundo. Podemos entender que, no plano
ontológico-existencial, o estar-no-mundo se explicita em condutas que
correspondem a escolhas que o indivíduo faz quando e enquanto, sujeito de sua
liberdade, ele pode ou deve se conduzir rumo à realização de projetos
compatíveis com o valor que cada um atribui à existência histórica.
O significado de moral também
corre o risco de empobrecimento se nos ativermos com demasiada exatidão à
origem etimológica da palavra. Com efeito, a trivialização do termo costume
pode induzir a associar a moral a comportamentos repetitivos, a partir de
instâncias normativas de diversas ordens e que resultam em regras introjetadas
pelo indivíduo e que o compelem a cumprir aquilo que se costuma denominar suas obrigações.
Na verdade, mores, se considerarmos inclusive o campo de uma
determinada experiência histórica do que se chamou romanidade, veremos
que o termo traz consigo a difícil tarefa de construção de uma singularidade,
em termos de valores e modos de vida, que conferem ao indivíduo uma força
peculiar, algo como a “têmpera” do cidadão, que lhe permite viver a
excelência moral como virtude cívica.
Tanto na polis grega quanto na
Roma republicana é evidente a presença forte do aspecto político na vida ética,
a tal ponto que a relação
entre ética, moral e
política é um problema para nós, já que os antigos teriam vivido estes vínculos
como pertinência intrínseca à vida do indivíduo e da comunidade. A nossa
dificuldade se explica pela transformação e perda das significações originárias,
o que se traduziu historicamente na progressiva abstração que foi
caracterizando cada vez mais o entendimento que temos de modo de vida,
comunidade e indivíduo. O desaparecimento dos conteúdos concretos destas formas
de existência é paralelo ao avanço da consolidação do perfil funcional da
sociedade, e da concepção formal do agente social – que, não por acaso, é
designado muitas vezes como o “ator” que deve “atuar” num determinado
“cenário”.
Esta concepção
encoraja a expansão da noção de “papel social” para o campo moral, até porque,
numa perspectiva positivista, a obrigação moral é socialmente determinada e sua
força sobre os indivíduos deriva da objetividade que lhe é inerente, enquanto
condição da vida social da qual a moral seria um desdobramento. O caráter
sistêmico e objetivo da organização social deve sua força ao significado
moralizante por via do qual ele se impõe aos indivíduos, não simplesmente como
a obrigação de cumprir regras, mas também como o sentimento de pertinência do
indivíduo ao corpo coletivo, o que seria algo como a interiorização do “papel
social” que corresponderá à exteriorização de comportamentos adequados e
proporcionais à eficiência que se espera da internalização da “obrigação
social”, na esfera que Bergson denomina moral fechada.
Mas o próprio
Bergson entende que este feixe de determinações que constitui o circuito
restrito de uma moralidade social não corresponde a todas as dimensões da
experiência humana da ação. Seria preciso considerar também e, de certa
forma, em sentido oposto, que a singularidade individual se pode afirmar
perante essas regras objetivas de um modo intensamente questionador e, até
mesmo destrutivo – subversivo - se considerarmos as possibilidades de uma
conduta individual quebrar as cadeias que prendem o indivíduo ao sistema. Mais
do que o destaque da individualidade, devemos entender esta possibilidade como o
exercício efetivo da subjetividade: em última instância, sujeito é aquele que eleva a dimensão do
si-mesmo à altura de um critério pelo qual se escolhem modos de existência.
Neste sentido, a liberdade pode ser definida como a plena assunção de si pelo
sujeito – e é isto que abre para ele o horizonte da atividade e da ação no
sentido de H. Arendt.
O caráter moral da ação deriva de que ela, enquanto
imponderável, é causa do nascimento do concreto, e das consequências que daí
poderão advir. Com efeito, não há como medir a liberdade presente na ação,
assim como não faz sentido tentar estabelecer relação de determinação causal
entre a liberdade e a ação. A ação se dá no mundo, constrói um mundo – o que é
muito diferente de fazer ou fabricar objetos, caso em que os princípios e
finalidades podem ser medidos e articulados.
Podemos ainda
recorrer, para reforçar esta diferença, ao vínculo entre ação e liberdade,
presente na filosofia de Sartre. Não sendo a liberdade uma faculdade ou
atributo do sujeito, mas sendo a subjetividade idêntica à liberdade, o sujeito
sempre age livremente, mesmo quando deliberadamente renuncia ao exercício de
sua liberdade. Somos fatalmente livres e não há como mudar isto; portanto, a
ação não deriva do sujeito pela mediação de vínculo causal, mas dele emana
expressando a subjetividade com a mesma imediatez com que os gestos expressam o
corpo.
Ora, assim
como não é possível distinguir o que, em mim, seria causa das minhas ações,
também não se poderia vincular ações do sujeito a instâncias extrínsecas e
determinantes senão com a condição de não mais considerar tais ações como
pertencentes àquele sujeito. A heteronomia e a alienação surgem quando já não
reconhecemos o sujeito como razão e realidade suficientes de suas ações – e
quando ele mesmo já não se vê assim. Podemos perguntar, no entanto, por que não
é óbvia a relação de pertinência entre a ação e o sujeito que age? Acaso não
seria “natural” supor que aquele que age seja o sujeito de suas ações?
A dificuldade
provém justamente de que a relação entre o sujeito e suas ações não é “natural”
e sim moral. Não se trata de entender como alguém faz alguma
coisa, isto é, por quais meios, exteriores a si mesmo, ele teria chegado a
produzir ou a fabricar alguma coisa que atendesse a certos propósitos; de que
instrumentos se teria servido e como teria articulado tais instrumentos com a
finalidade a atingir, 4
Daí o caráter
específico da ação e a impossibilidade de dizer que, em tudo que faz, um
homem age. Se faço o que me mandam, não ajo; se o resultado de minha
interferência no mundo provém de algo que me foi imposto, que eu fui obrigado a
fazer, ou mesmo levado a fazer, então não agi; simplesmente me fiz instrumento
para veicular a vontade de outro, seus objetivos e propósitos. Configurei o que
ele queria, como alguém que fabrica um objeto a partir do desenho de quem o
encomendou. Este resultado não mantém vinculação interna com o sujeito, o qual,
portanto, não agiu neste caso como sujeito no sentido ativo do termo, mas
simplesmente fez algo assujeitando-se a outro.
E qual seria o
requisito para esta relação sintética ou este vínculo interno entre o sujeito e
sua ação? Ou, mais simplesmente, o que é e como acontece uma ação? Pelo
menos desde Agostinho, sabemos que o que nos mantém na existência temporal é o
movimento da consciência. Lembrar é ter consciência do passado; esperar é ter
consciência do futuro; perceber é ter consciência do presente. Esta presença de
nós a nós mesmos, que é também a presença de Deus em nós, nos faz saber quem
somos, de modo anterior e mais profundo do que as definições formais, como
animal racional e outras. E, no cogito cartesiano, ficará mais clara esta consciência
de si que é a certeza fundamental. Mas, se recordarmos o que dizia Sócrates
acerca da presença íntima de um daimon que tinha, sobretudo, poder de
dissuadir, vemos, nesta época anterior à afirmação do si, e do que entendemos
por consciência na acepção que nos é mais habitual, algo que auxilia o
discernimento sem afetar a liberdade. O daimon dissuade de algo que se poderia
fazer, mas não determina a agir. Como entender, no contexto agostiniano, a
presença simultânea da alma (si-mesmo) e de Deus na interioridade? 5
Como entender a confiança que Sócrates depositava no seu
daimon? Como entender a identidade cartesiana como a presença imediata de si a
si ou a auto-revelação da essência do homem?
À primeira vista, diríamos que
são manifestações da alma recolhida a si mesma, despojada de tudo que pudesse
levar a confundi-la com o que ela não é: episódios de encontro da identidade.
Mas este si-mesmo nunca está absolutamente só: a presença do daimon é a
presença de outro; a presença de Deus na alma é a presença do Outro; a presença
da ideia de infinito (representação de Deus na alma) é o que define a minha
finitude. E isto que me acompanha, tão intimamente que se torna difícil
distinguir de mim mesmo, é o que permite a Sócrates, a Agostinho e a Descartes
o encontro da Verdade e do Bem. O que nos leva a reparar que a consciência
(com-ciência), a ciência que tenho de mim mesmo enquanto presença imediata, já
é uma relação, ainda que seja do sujeito com ele mesmo. O que nos traz este
peculiar estado de espírito em que estar só é
estar consigo mesmo?
“A moralidade
diz respeito ao indivíduo na sua singularidade. O critério do certo e do
errado, a resposta à pergunta ‘o que devo fazer’, não depende, em última
análise, nem dos hábitos e costumes que partilho com aqueles ao meu redor, nem
de uma ordem de origem divina e humana, mas do que decido com respeito a mim
mesma. (...) O estar só significa que, apesar de estar sozinha, estou junto de
alguém (isto é, eu mesma). Significa que sou duas-em-uma, enquanto a solidão e
o isolamento não conhecem este tipo de cisma, esta dicotomia interior em que
posso fazer perguntas a mim mesma e receber respostas. O estar só e sua
atividade correspondente que é o pensar podem ser interrompidos(...)” (H.
ARENDT, Algumas Questões de Filosofia Moral. IN: Responsabilidade e Julgamento.
Companhia das Letras, S. Paulo, 2004. Pg. 162-163).
Alguns
aspectos que devemos destacar neste texto. Em primeiro lugar, há um modo de
estar com os outros que corresponde ao que Bergson chamava de camada
superficial do Eu, ou a consciência no seu contato pragmático com o mundo:
“hábitos e costumes que partilho com aqueles ao meu redor”. Se isto for critério
de minhas decisões, nunca sairei do circuito fechado da moral social, ou das
regras sociológicas da moral. Tampouco, se depender de uma instância
transcendente com poderes sobre 6
“o que devo fazer”, seja esta instância interpretada como
divina ou como autoridade humana. A decisão é minha; o sujeito está só.
Em segundo lugar, como vimos,
esta solitude (que Arendt distingue de solidão),
significa estar só com sua consciência, num duplo sentido: estou só e
(porque) estou “apenas” com minha consciência – comigo mesmo. O peso desta
situação peculiar de solitude é enorme: somente quando estou comigo mesmo é que
estou com alguém cuja “companhia” não posso dispensar. Duas pessoas em uma:
mesmo que não haja intencionalmente qualquer referência teológica, podemos
dizer que estamos diante do mistério da pessoa: duas, distintas e a mesma. Mais
ainda: um “cisma”, quer dizer uma separação em que cada uma das partes
separadas reivindicará que ela é autenticamente “una”. Só que, neste caso, o
cisma é reconhecido como possibilidade de diálogo: “posso fazer perguntas a mim
mesma e receber respostas”. A “dicotomia interior” permite descortinar um vasto
campo de reflexão que ocorre como uma interrogação de si mesmo – nos passos do
exame socrático da alma.
Em terceiro lugar,
o estar só é condição do pensar porque esta atividade seria o
“estado correspondente” à solitude. A decisão moral é tomada pelo sujeito a sós
consigo mesmo, isto é, numa situação de auto-exame, de interrogação de si por
si. Nesta situação, as solicitações extrínsecas são despojadas de seu poder de
pressão e o sujeito pode perguntar e responder a si mesmo sem interferência
alheia, desde que saiba preservar o estar só. A confirmação que se trata de uma
situação de diálogo e não de puro solipsismo está na referência que a autora
faz à possibilidade de que eu possa falar com outra pessoa numa tal
coincidência de espírito (de preocupações e inquietações) que seria como se
falasse a “outro eu”: caso que Aristóteles nomeia como philia, amizade.
O amigo é um outro eu.
Certamente porque a amizade consiste no caminhar junto
de duas consciências.
Finalmente, “o
estar só e sua atividade correspondente que é o pensar, podem ser
interrompidos”. Afirmação ousada: o pensar pode ser interrompido. Aqui temos de
nos valer da diferença que se pode estabelecer entre uma definição formal e uma
concepção da realidade do pensamento. A fórmula aristotélica “animal racional”
como definição do homem tem sido criticada pelo menos desde Descartes, não por
estar errada, mas no que concerne à sua impropriedade para nos fazer
compreender o que 7 seja “essencialmente” o homem.
Sabemos que em Descartes tal
crítica está comprometida com o dualismo radical, que não pode admitir a
síntese entre o animal
(mecanismo) e a
razão, entendida como alma, ou substância espiritual. Por outro lado, já
nos acostumamos com a distinção entre vários níveis ou modalidades do pensar,
que a fenomenologia, por ex., nos fez constatar. Ora, se estamos falando de
moralidade, ou do pensar como decisão moral que o sujeito toma
interrogando-se a si mesmo, percebemos que a capacidade de pensar de que se
trata aqui diz respeito não à racionalidade em seu sentido geral e formal, mas
à possibilidade de discernir moralmente o que se apresenta como o melhor no
plano do agir. Por isto Arendt adverte que pensar não é o mesmo que contemplar,
em que pese a assimilação muitas vezes observada na história da filosofia.
Pensar é uma atividade que precede a ação e da qual se distingue.
“A principal
distinção, em termos políticos, entre Pensamento e Ação, reside no fato de que,
quando estou pensando, estou apenas com o meu próprio Eu ou com o Eu de outra
pessoa, ao passo que estou na companhia de muitos assim que começo a agir.”
(Idem, p.171.)
Mas o que nos interessa é menos a diferença do que a relação, ou
uma certa continuidade. Talvez nos ajude a distinção entre a pura representação
das ideias e o juízo. É significativo que Descartes não veja, em relação às
ideias isoladas, qualquer problema quanto à verdade ou falsidade, e que remeta
tal questão ao plano do juízo, em que afirmo ou nego alguma coisa das ideias
que sou capaz de representar. E ainda é mais significativo que Kant, na Crítica
do Juízo, estude casos em que as ideias utilizadas no juízo não correspondem
aos preceitos da analítica transcendental, nos termos da objetividade dentro
dos limites da experiência possível. E desde Descartes sabemos também que o
juízo está diretamente relacionado com a liberdade humana.
Dito de outro
modo, que atenda mais ao que nos interessa, as possibilidades contidas no juízo
só são objeto de regras e normas com respeito às condições e limites se o
sujeito aceitar a regra cartesiana da limitação da vontade ou a regra kantiana
da reflexão como oposta à determinação. Em outras palavras, como já foi
mencionado, o juízo remete à liberdade. É neste sentido que se diz, desde
Aristóteles, que a racionalidade prática, enquanto formulação de juízos morais,
depende mais do discernimento do que do conhecimento. O que justifica a
afirmação de Arendt, de que 8
a consciência está no juízo. Pelo menos se entendermos que a
função principal da consciência não seria atestar a realidade, mas julgar
possibilidades e opções que dizem respeito à ação.
E assim chegamos a explicitar
melhor por que a solitude é condição do pensar e porque a decisão moral não
pode levar em conta hábitos, costumes, autoridade, crenças, mas deve ser obra
exclusiva da consciência. Quando penso no significado de ter que viver comigo,
posso lançar mão de uma analogia. Será que seria agradável viver em estreita
companhia com alguém que seja criminoso, corrupto, mentiroso, etc.?
Ora, sempre
posso me afastar dessas pessoas; mas se eu mesmo tiver feito algo neste
sentido, ainda que ninguém mais saiba, eu saberei e nunca poderei abandonar a
mim mesmo, por mais que me exercite no esquecimento.
Note-se que isto não significa
apenas que o sujeito está sempre diante de si e que é muito difícil calar a
consciência. O mais importante, neste caso, é o diálogo consigo mesmo, a
decisão tomada em regime de solitude, as perguntas e as respostas que devo a
mim mesmo.
Devo fazer?
Posso fazer?
Essas perguntas são limites e levam a
decisões em situações-limites.
Elas são respondidas por discernimento, isto é,
ao mesmo tempo são terrivelmente complicadas e extraordinariamente simples.
Arendt menciona o caso daqueles que, na Alemanha, não compactuaram com o
nazismo. A própria vida e a dos seus em risco iminente: situação-limite. Mas,
ao mesmo tempo, uma resposta simples, desonerada de razões e justificativas; não
posso. “Em outras palavras, não sentiam uma obrigação, mas agiam de acordo com
algo que lhes era evidente por si mesmo, mesmo que não fosse evidente para
aqueles ao seu redor. Assim a sua consciência, se é disso que se tratava, sem
caráter obrigatório, dizia: ‘isso não posso fazer’.” (Idem, ibidem, pg142).
Existiu, neste caso, não uma obrigação moral, regras, preceitos ou imperativos,
mas uma evidência da consciência: não se pode matar pessoas inocentes. Sem
argumentação e sem justificativa. Quase diríamos: “naturalmente” se não se
mostrasse nesta atitude algo muito distinto da natureza: a capacidade humana de
pensar no sentido de formar juízo. E é tal a força deste juízo que ultrapassa a
evidência formal: é mais evidente que uma proposição lógica ou matemática. É
algo que emana do indivíduo tão diretamente que ele simplesmente não vê
possibilidades de agir de outro modo. Como quando Sócrates diz: é melhor 9
sofrer o mal do que causar o mal. Um juízo moral; uma
evidência, não um heroísmo. Mas uma evidência que jamais se mostrará como fruto
de uma demonstração, porque nunca será possível provar a adequação entre um
juízo moral e a realidade. Nunca se poderá concluir que a proposição “é melhor
sofrer o mal do que causar o mal” possui alguma correspondência com a
“realidade”. Lembremos das razões pelas quais Trasímaco e Cálicles defendem a
força como critério de justiça: por serem argumentos conformes à natureza.
É preciso, diante do que foi
dito, tirar uma consequência.
A existência do mal, inegável a despeito dos
esforços lógicos das teodiceias, encontra uma explicação na incapacidade de
pensar por si mesmo, isto é, de formular juízo moral. É preciso constatar que
há indivíduos, em quem a subjetividade se encontra de tal modo esvaziada, que a
racionalidade se exerce como uma forma indiferente, assim como o instinto do
animal se exerce de modo cego, sem reflexão. Trata-se de um deslocamento
fundamental da questão, com profundas implicações éticas e políticas. As
explicações metafísicas e onto-teológicas se revelaram formais diante da
experiência histórica do mal. Numa “segunda navegação” o mal será tratado de
modo antropológico: histórico e ético, o que quer dizer, também, político.
O
homem está na raiz do mal como de tudo que se fez e se desfez em termos de civilização.
O mal é produto histórico, e a sua explicação depende de uma articulação
cuidadosa entre as condições objetivas da história e as disposições dos
indivíduos.
O indivíduo pensa por si e age
com os outros.
Nesta correlação está a verdade da História em geral e das
histórias pessoais. E na diferença, que é também uma continuidade, entre
pensar, ajuizar e agir situa-se a relação necessária entre liberdade e
responsabilidade. O que faz com que liberdade e responsabilidade estejam sem
dúvida no plano da ação, mas sejam também atos de pensar. O juízo deve
engendrar a ação e a responsabilidade, derivada de uma decisão autônoma.
O mal histórico, tal como
aconteceu na Alemanha na época do nazismo, pode ser explicado por esta
incapacidade de pensar/ajuizar, que é típica de uma situação cujo princípio de
compreensão está na menoridade
de que fala Kant no
texto Resposta à Pergunta; o que é o Iluminismo?. Mas não se trata somente de
uma menoridade intelectual ou de um uso ainda deficiente da razão. Na verdade,
o que se encontra 10
diminuído, ou porventura anulado, é a humanidade. O que
distingue o ser humano é o pensamento, mas não no sentido da racionalidade
formal, e sim no sentido do julgamento, isto é, discernimento entre o certo e o
errado, e não a partir de normas e fórmulas, mas a partir da liberdade. Como
num estado totalitário todos são obrigados a seguir uma única ideia, é claro
que não há condições para que o indivíduo exerça a interrogação a si mesmo
acerca do que deve e pode fazer. Temos então o fenômeno contrário do descrito
acima: ausência de pensamento; incapacidade para formar juízo; recusa da
liberdade e não assunção da responsabilidade. Ainda assim, as condições
objetivas, a aclamação da força, a sedução e até a unanimidade podem ser
enfrentadas, como foram, embora por poucos, por via do pensamento: pensar o mal
pode preveni-lo e, talvez, evitá-lo.
Isto nos leva a entender que
toda imposição, mesmo por meios não violentos, é de índole totalitária.
Sócrates é exemplar neste sentido: não sou eu que devo convencer o outro; é ele
que deve se convencer, aceitando aquilo que foi produzido pelo próprio
pensamento. Neste caso, o ponto de partida em todo processo de formação de
juízo, é sempre a diversidade. Há, portanto, relação entre juízo e democracia,
desde que possamos supor que numa democracia cada indivíduo pensa por si mesmo
e age com os outros. A pluralidade seria ocasião de esclarecimento e de
conhecimento do outro. Pensar por si mesmo e agir com os outros é algo
perfeitamente compatível com o espaço público, pois a dimensão coletiva, se for
entendida como diversidade, busca exatamente o equilíbrio entre a singularidade
dos juízos e o consenso deliberado a partir do pensamento e da palavra
partilhados.
Desde que penso por mim mesmo
e ajo com os outros sou levado a encontrar um equilíbrio tenso entre a
subjetividade e a intersubjetividade, pois a experiência da ação, que não
exclui a experiência do pensamento, é plural. Ao mesmo tempo este pluralismo,
que não é multidão no sentido de massa, remete constantemente às diferenças
entre os sujeitos. Assim, pode-se dizer que já em Sócrates pensar é um
exercício político. Os seus juízes bem o perceberam, bem como o potencial
subversivo desta conduta. Entretanto, se podemos dizer que com Sócrates isto já acontecia, não
podemos afirmar que ocorre desde Sócrates, porque o desenvolvimento
histórico da filosofia e da política acabou por desvincular pensamento e esfera
pública. 11
Por isso
temos atualmente dificuldades para julgar as ações políticas, e se trata de um
obstáculo radical, pois a causa primária desta situação é o próprio
desaparecimento da política, substituída pela gestão das necessidades dentro do
contexto de uma racionalidade instrumental. O esvaziamento do espaço público
enseja não apenas a confusão entre o público e o privado – e a consequente
apropriação do público pelo privado - mas também a tendência a julgar
comportamentos públicos com critérios de moralidade privada.
Esta dificuldade
de formular um juízo moral consistente se prolonga ou se desdobra na
impossibilidade de formular juízo político. Quando já não nos indignamos com a
banalização da política, com a corrupção em seus vários aspectos, com o assalto
constante à coisa pública, com a exclusão da divergência, com a ausência total
de ideias e princípios, isto significa a falência de critérios, seja de
moralidade pública, seja de moralidade privada, que são intercambiadas conforme
as conveniências. Torna-se então, patente, a ausência de pensamento, de juízo e
de responsabilidade, o que nos mostra como é atual o pensamento de Hanna Arendt
quando o aplicamos à relação desordenada que se observa entre ética, moral e
política nas democracias formais.
Fontes:
WIKIPÉDIA
ADAUTO.BRASILIA.12.pdf
Licença padrão do YouTube
http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2012/07/pdf-integra-da-palestra-etica-moral-e-politica
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