Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, uma das proposições mais importantes contidas em A evolução criadora, obra que neste ano completa um centenário de lançamento, é o convite a “desvendar a consciência que nos habita” Para Lecerf, “isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência.
Trata-se de uma virada radical no seio da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância”. Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Lecerf é professor de Filosofia na Universidade Paris VIII, Saint-Denis e autor de inúmeros livros, entre os quais Le sujet du chômage (Paris, Budapest, Torino: Harmattan, 2002) e La famine des temps modernes: es sai sur le chômeur (Paris: Harmattan, 1992). Obteve diploma em História Contemporânea pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e foi diretor de programa no Collège International de Philosophie (Colégio Internacional de Filosofia).
IHU On-Line - No contexto da filosofia de Bergson, como se explica a valorização que ele deu à intuição, deixando a inteligência em segundo plano? Qual é a explicação filosófica para esta opção?
Eric Lecerf - Em primeiro lugar, não me parece correto dizer que Bergson teria colocado a inteligência em segundo plano em relação à intuição. Na verdade, ele se esforçou em marcar os limites de uma inteligência implicada pela lógica num momento em que a filosofia era compartilhada entre positivismo e irracionalismo. Bergson explica que ele próprio hesitou por muito tempo antes de utilizar o termo intuição. Em seu primeiro livro, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, publicado em francês em 1889, a intuição como conceito só aparece nos usos correntes da filosofia clássica. Ele faz mesmo referência, nesta obra, a uma “intuição matemática” que não corresponde em nada à intuição bergsoniana.
Portanto, o que Bergson chamará mais tarde de intuição está no centro deste ensaio, mas sob a forma de um sentido particular totalmente voltado para a percepção pura e a compreensão da duração.
Em Matéria e memória, seu segundo livro, publicado sete anos mais tarde, a intuição só aparece verdadeiramente no terceiro capítulo e é deduzida da experiência de re-apreensão colocada na introdução do livro (eu nada sei da matéria, nem do corpo e do espírito... o que é que me aparece: imagens). Só é realmente em A introdução à metafísica, artigo publicado em 1903, que Bergson conjuga uma relação específica entre intuição e método, cujos fundamentos ontológicos ele retomará cerca de dez anos mais tarde, numa conferência intitulada “A intuição filosófica”.
Seu objetivo não é o de condenar a inteligência nem mesmo rebaixá-la, mas simplesmente o de notar que a inteligência, estando interessada pela ação e levada por uma necessidade de espacializar sua duração, não pode de forma alguma tocar na essência da vida que é móvel.
A inteligência constrói mundos, instrui artífices, produz sistemas, ela é uma potência ativa. Mas captar a vida implica, para Bergson, renunciar a esta potência e retomar aquele sentido íntimo, ao qual, por não dispor de um termo novo, ele dará o nome de intuição.
IHU On-Line - De que modo as esquerdas se apropriaram do bergsonismo? Qual é o uso que elas fizeram do conceito de “elã vital”?
Eric Lecerf - Para responder a esta questão, seria preciso estar em condições de redimensionar o que constituía, então, a paisagem política no seio da qual uma parte da esquerda apelaria ao bergsonismo. De que se trata? De modo geral, de dissidentes ou de intelectuais que levavam a peito fazer evoluir o marxismo fora dos dogmas nos quais suas determinações científicas o inscreveram.
Para ser mais claro, no momento em que uma maioria dos intelectuais de esquerda aderia a um positivismo implicando uma série de determinismos históricos. Aqueles que se declaravam adeptos do bergsonismo procuravam precisamente defender noções de virtualidade e espontaneidade para explicar os movimentos revolucionários. Os nomes que se impõem são os de Georges Sorel[1], Edouard Berth[2] e Charles Péguy[3]. Sorel ocupa efetivamente, nesta história, um lugar essencial. Autor das Reflexões sobre a violência (Petrópolis: Vozes, 1993), nelas ele faz explicitamente referência à conexão bergsoniana entre inteligência e intuição, para opor o socialismo teórico das seitas marxistas ao sindicalismo revolucionário.
Associando o nome de Bergson aos de Proudhon[4] e de Vico[5], ele explica que é nesta percepção intuitiva da história que se produz o novo. As teses de Sorel terão influência particularmente importante na Itália. Antonio Gramsci[6] escreverá, então, um artigo em 1921, intitulado “bergsoniano!”, onde ele reivindicará a participação nesta herança. Na França, Bergson será, no entanto, objeto de críticas importantes da parte dos jovens filósofos marxistas, e notadamente da parte de Politzer (O bergsonismo, o fim de uma impostura) e de Paul Nizan[7] (Os cães de guarda[8]).
As posições “patrióticas” tomadas por Bergson durante a Primeira Guerra Mundial, e depois a publicação das As duas fontes da moral e da religião (Rio de Janeiro: Zahar, 1978), desempenharam papel determinante nessas críticas que explicam porque, em 1947, Sartre[9] se creia em condições de dizer que o bergsonismo era uma “filosofia ultrapassada”.
IHU On-Line - No contexto da Filosofia contemporânea, qual é o lugar ocupado por Bergson?
Eric Lecerf - O nome de Gilles Deleuze[10] se impõe aqui, e eu poderia mesmo dizer que por vezes ele tende a ocupar todo o espaço, como se Bergson tivesse tido por principal interesse ser um “pré-deleuziano”. Mais seriamente, a leitura que fez Gilles Deleuze de Bergson é verdadeiramente muito forte. Desde 1956, ele publica dois artigos (republicados em Iles desertes), que permitem compreender o que Deleuze veio procurar em Bergson, a saber, um método implicando uma teoria do conhecimento que associasse o empirismo e a busca de um absoluto.
Desde esses artigos, Deleuze define a filosofia como criação de conceitos e é, no entanto, em Bergson, que explica que convém para a filosofia pensar por imagens antes do que por conceitos, que ele vem procurar seus predicados teóricos. De fato, o conceito deleuziano é primeiramente derivado da imagem bergsoniana, desta imagem da qual Bergson dizia possuir três qualidades. Em primeiro lugar, ela induz uma pluralidade de sentidos lá onde o conceito procura destacar uma univocidade; em segundo lugar, ela é concreta lá onde o conceito é por essência abstrato; em terceiro lugar, sua imprecisão constrange a um exercício da atenção que se aproxima bastante da intuição, lá onde o conceito tende à expressão de uma certeza.
E são estas qualidades que permitem a Deleuze situar a invenção de um novo valor do conceito como foco de indeterminação entre o que ele chama de articulações do real e de linhas de fatos; entre a coleção de qualidades que induz uma categoria e o nome etiqueta que se desdobra numa multidão de aventuras lingüísticas.
Vinte e cinco anos mais tarde, Deleuze retomará a imagem bergsoniana para pensar, desta vez, não o cinema[11], mas antes as condições de possibilidade de uma filosofia na era do cinema. E é então que, seguindo um caminho inverso, Deleuze repensa uma imagem bergsoniana, inteiramente enriquecida por jogos, nos quais o conceito se desdobrou como virtualidade gramatical e existencial.
IHU On-Line - Como pode a obra A evolução criadora ajudar-nos a reler e compreender a pós-modernidade em sua complexidade?
Eric Lecerf - Eu jamais compreendi o que se poderia designar pelo termo de “pós-modernidade”. Basta, aliás, reler a introdução de La pensée et le mouvant (O pensamento e o movente[12]), notadamente a parte intitulada “a lógica retrospectiva do verdadeiro”, para constatar até que ponto este conceito é vazio de sentido.
IHU On-Line - Quais são as proposições filosóficas desta obra que o senhor considera as mais importantes?
Eric Lecerf - A evolução criadora é um livro fascinante no seio do qual Bergson se dedica, não só a defender uma tese, mas também a ilustrar e adaptar um estilo de escritura suscetível de trazer nele essas linhas de virtualidades, pelas quais a vida se desenvolve sem cessar. Eu retomaria, pois, uma tese que me parece decisiva, isto é, sem a qual a obra de Bergson seria ilegível. Bergson nos engaja, em A evolução criadora, num trabalho de recompreensão da vida em nós. De que se trata? De um conhecimento psicológico de nossa personalidade? Absolutamente.
Para Bergson, trata-se de bem outra coisa do que do inconsciente. Pelo contrário, o que ele nos engaja mesmo a redescobrir em nós é precisamente aquilo que ele chama de consciência. Mas de que consciência se trata? De uma consciência que perpassa todo ser vivo, que está em cada um de nós em ato e que, no mundo vegetal, permanece em posição de torpor.
De uma consciência que é a vida. Desvendar a consciência que nos habita, isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência.
Trata-se de uma virada radical no seio da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância.
IHU On-Line - De que forma o ser humano consegue mover-se na dicotomia dos dois mundos nos quais ele vive: o do conhecimento imediato (onde tudo é “continuum”) combinado com o do tempo, concebido como construção intelectual?
Eric Lecerf - A resposta a esta questão me parece estar em parte respondida na precedente.
A verdadeira questão não é a de saber como o humano consegue mover-se, mas antes, como ele chega a crer que ele construiu uma estabilidade. Assim, poder-se-ia dizer que toda a história intelectual se declina como uma perseguição ao infinito desta busca de estabilidade. Isso é verdade na produção de instituições, bem como nesse cuidado de ordem que, mesmo quando nos damos um destino de revolucionários, configura uma parte decisiva de nossos atos.
A filosofia de Bergson não procura, de nenhum modo, afastar-nos das formas graças às quais nós tentamos congelar o movimento. Ele procura simplesmente lembrar-nos que estas formas são apenas ilusões e que o conhecimento da vida, que deve fundar toda metafísica, não saberia satisfazer-se com essas formas. Não é menos verdade que há em Bergson uma verdadeira análise daquilo que o marxismo chamará de coisificação.
Em Bergson, tratar-se-á antes de um tornar-se autômato, do repetitivo que tende a rejeitar toda intrusão do inédito. De fato, como o mostra Deleuze em Diferença e repetição (2 ed.: São Paulo: Graal, 2006), mesmo lá onde tudo parece congelado, o movimento se insere na própria repetição como elemento de diferenciação. Em Bergson, encontra-se isso efetivamente, mas sem esse otimismo desesperado que caracteriza a filosofia de Deleuze. De fato, ninguém escapa à vida, afora aquele que a teoriza. Dito de outra forma, se há um autômato absoluto em Bergson, este não é o operário que trabalha em série, mas o filósofo que crê que a vida seja uma questão de leis e de sistemas lógicos.
[1] Georges Eugène Sorel (1847-1922): francês e teórico do sindicalismo revolucionário, muito popular na França, Itália e EUA. Sua influência começou a decair depois de 1920. È um autor controverso quanto à linha política a qual adere. Suas idéias foram aceitas tanto pelo fascismo italiano quanto pelos comunistas deste país. Também influenciou os anarco-sindicalistas. (Nota da IHU On-Line)
[2] Édouard Berth (1875-1939): téorico do sindicalismo revolucionário francês, discípulo de Georges Sorel. (Nota da IHU On-Line)
[3] Charles Péguy (1873-1914): poeta, dramaturgo e ensaísta francês, considerado um dos principais escritores católicos modernos. Foi o fundador da revista Cahiers de La Quinzaine (1900-1914), na qual colaboraram muitos dos principais escritores da época. Grande defensor da causa da justiça social, foi um firme defensor do oficial francês Alfred Dreyfus. Morreu na Batalha de Marne, durante a I Guerra Mundial. (Nota da IHU On-Line)
[4] Pierre Joseph Proudhon (1809-1865): socialista e reformador francês. Publicou Ensaio de gramática geral (1837), trabalho que lhe valeu uma pensão de três anos da Academia de Besançon. Três anos depois, porém, seu livro Que é a propriedade? fê-lo perder a aprovação da academia. Essa obra revelava suas idéias socialistas e afirmava que "a propriedade é um roubo". Suas atividades literárias e políticas o levaram, muitas vezes, a entrar em conflito com o governo francês. Passou vários anos na prisão e no exílio. Em 15-03-2006 o Prof. Dr. Aloísio Teixeira (UFRJ) palestrou no II Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, com o título Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e o Socialismo utópico. (Nota da IHU On-Line)
[5] Giambattista Vico (1668-1744): filósofo, historiador e jurista italiano. (Nota da IHU On-Line)
[6] Antonio Gramsci (1891-1937): escritor e político italiano. Com Togliatti, criou o jornal L'Ordine Nuovo, em 1919. Secretário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em 1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadura do proletariado pela "hegemonia" do proletariado, dando ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição 231 da IHU On-Line, de 13-08-2007, intitulada Gramsci, 70 anos depois. (Nota da IHU On-Line)
[7] Paul Nizan (1905-1940): escritor, engajado no Partido Comunista, autor de Os cães de guarda (um libelo contra os intelectuais que não aceitavam o engajamento político ou se isolavam em suas torres de marfim). Decepcionado com o pacto germano-soviético, rompeu com o partido. Foi acusado de espionagem pelos ex-camaradas. Paul Nizan morreu na frente de combate: tinha apenas 35 anos de idade. (Nota da IHU On-Line)
[8] Les Chiens de guarde (Paris: Rieder, 1932). (Nota da IHU On-Line)
[9] Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencialista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças teatrais e contos. Seu primeiro romance foi A náusea (1938), e seu principal trabalho filosófico é O ser e o nada (1943). Sartre define o existencialismo, em seu ensaio O existencialismo é um humanismo, como a doutrina na qual, para o homem, "a existência precede a essência". Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou suas teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da IHU On-Line)
[10] Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bergson, Nietzsche e Espinosa poderosas intersecções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou idéias como as de devir, acontecimentos, singularidades, enfim conceitos que nos impelem a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)
[11] Sobre o tema, confira nesta edição a entrevista com Adrián Cangi, A crítica bergsoniana ao cinema. (Nota da IHU On-Line)
[12]BERGSON, Henri; BACHELARD, B Gaston. Cartas, conferencias e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 514 p. (Coleção Os Pensadores). (Nota da IHU On-Line)
(www.unisinos.br/ihu)
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