J.S.Bach -Las Suites para Orquestra - 82m
A questão da criação em Nietzsche e em Bergson
Rosa Maria DiasProfessora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),
Resumo: O artigo tem por
objetivo confrontar a filosofia de Nietzsche – da vontade criadora – com
a filosofia de Bergson – da duração. Procura perscrutar a compreensão
que este filósofo tem da noção de duração, pensada como criação, isto é,
como movimento contínuo que traz o passado e gera o futuro no presente:
“jorro ininterrupto de novidade”.
Estabelecer pontos de convergência entre
a filosofia de Nietzsche e a de Bergson, no que tange à relação vida e
arte, focalizar a noção de vontade criadora em Nietzsche e a de criação
em Bergson são esses os objetivos deste estudo. Para serem esclarecidos,
esses pontos de convergência não foram enunciados arbitrariamente: há
algo indissolúvel que liga os dois filósofos. Ambos procuram entender a
vida em todos os seus ângulos, determinando o seu caráter complexo e
singular e propõem uma profunda mutação de sentido no paradigma que
domina a Filosofia, que, direcionada por uma concepção matemática do
ser, por uma metafísica do estável e do permanente, por uma concepção
essencialista e intelectualista do real, deixou de levar em conta a
dimensão criadora, isto é, a potência eminentemente plástica e criadora
da existência.
A noção de criação é central, tanto para
Nietzsche quanto para Bergson, o que torna adequado e proveitoso um
confronto entre os dois filósofos. O primeiro olha a vida como o produto
mais elevado da natureza e reclama para ela “um insistente ato
criador”, que cria sempre mais vida e as mais altas formas de vida. O
segundo, ao pensar a vida como duração pura, considera-a, também, como o
mais elevado fenômeno da natureza.
Há ainda outro aspecto a destacar que
justifica a pertinência de um confronto entre os dois pensadores. Como
pretendo mostrar, Bergson, em sua análise da criação de si, também
delineia a possibilidade de se construir uma vida em sentido artístico. A
análise que ele faz da alegria, na conferência de 1911 sobre “A
consciência e a vida”[1],
vem nesse sentido. Oposta ao prazer – que está a serviço da conservação
da vida, da inteligência e da vida prática –, a alegria é sinal da
vitória da vida sobre os obstáculos encontrados em seu caminho para a
realização da liberdade, que emana da personalidade inteira de um
indivíduo singular.
Mais ainda, em ambos os filósofos,
podemos observar uma crítica à linguagem, mais precisamente, ao
conceito. Como filósofos-artistas da linguagem, criaram para si uma
forma de escrita que corresponde fielmente à sua forma de fazer
filosofia e de conceber o mundo. Cada imagem, cada metáfora, cada
palavra busca traduzir de modo poético uma forma de reação ao conceito,
que só consegue pensar o mundo em sua imobilidade e deixa escapar a
natureza mesma do objeto concreto, em sua multiplicidade e pluralidade.
As filosofias de Nietzsche e Bergson
embora apresentem acentuadas semelhanças, têm também algumas diferenças.
Dirigirei meu olhar com muito cuidado para cada uma dessas filosofias
para destacar a singularidade de cada um desses pensadores. Saliento, de
antemão, um aspecto que pretendo tratar e que me parece fundamental na
análise do tema da criação: a afirmação de Bergson de que a vida é
criação contínua de imprevisível novidade, em que, a todo momento há “o
jorro ininterrupto de novidade”[2].
Considerando a concepção, segundo a qual
a vida é conquista ou criação, saliento que tanto Nietzsche como
Bergson partem de uma crítica a Herbert Spencer para evidenciar o que
entendem por vida. Nietzsche, na Genealogia da Moral, apontando para o equívoco de Spencer sobre a teoria da vida, criticando-o por retirar da vida a atividade, escreve:
Sob a influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a “adaptação”, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas (Herbert Spencer). Mas com isso se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; com isso não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a “adaptação” (GM/GM II,12, KSA 5.315-6).[3]
Bergson também partiu da crítica às
teorias evolucionistas e às dos utilitaristas ingleses para determinar a
vida como duração. Ele próprio confessa que, logo no início de suas
investigações sobre a vida, só a filosofia de Herbert Spencer lhe
parecia ajustar-se à realidade; ao longo da vida, porém, descobre que o
tempo científico não dura. Em uma declaração a Ch. du Bos, para um
Jornal de Paris 22-2-1922, diz: “Hoje me dou conta de que o que me
atraía em Spencer era o concreto de seu espírito, o desejo de reconduzir
sempre o espírito ao terreno dos fatos. Pouco a pouco, abandonei um
depois do outro, todos os seus pontos de vista, e só mais tarde, em A Evolução Criadora, é quando tive plena consciência do lado fictício do evolucionismo spenceriano.”
Na tentativa de aproximar os dois
autores, em relação ao pensamento sobre a determinação da realidade,
procuro evidenciar, em Nietzsche, a noção de vontade de potência
enquanto vida, tal como ele a define no parágrafo 12 da segunda
dissertação da Genealogia da Moral e no aforismo 36 de Para além do bem e do mal,
como matriz geral de todo devir, relação conflituosa de forças que
esculpe a cada instante todo fenômeno do mundo, vivo ou não, material ou
não. Em Bergson, privilegio a noção de duração que, como ele mesmo
mostra em A evolução criadora, dá forma, conjuntamente à vida psicológica, à vida orgânica e ao universo.
Assim, considerando, como
faz Nietzsche, a vida como vontade de potência, jogo de forças que opera
em todas as coisas, como acumulação ou desagregação da potência, e,
segundo pensa Bergson, como um devir diferenciador, em tensão e
distensão, em uma heterogeneidade qualitativa, impõe-se a pergunta: que
papel cada um reserva para a arte no âmbito imanente da vida? Em uma
breve e provisória resposta, cabe dizer que ela se desvela como
infinitamente criadora. Os dois filósofos partilham da ideia de que a
essência da vida não é elucidada pela ciência, em termos de adaptação ou
de conservação, mas pela arte, enquanto criação.
Para elucidar a proposta
deste artigo, iniciarei por dizer que Nietzsche elabora o conceito de
vida como “vontade criadora” (schaffender Wille) a partir da
arte, “o grande estimulante da vida” (Nachlass/FP, 17[23], KSA 13.521).
Seu conceito de vida, como vontade de potência, adquire, então, a
significação de vontade criadora quando as forças criadoras predominam
sobre as forças inferiores de adaptação e conservação.
Que sentido tem, então, para Nietzsche, o termo criação?
Será que ele o utiliza na sua acepção metafísico-religiosa?
Evidentemente, não o emprega no sentido judaico e cristão “de um nada
tudo se fez”. Com a “morte de Deus”, também as palavras foram
desnudadas; retirou-se delas seu manto sagrado. A palavra criação,
despida de sua significação teológico-cristã, pertence à atividade
humana. Porém é preciso que se diga, para evitar futuros mal-entendidos,
que não se pode substituir a ideia de um Deus criador pela ideia,
também absurda, de homens-deuses criadores que, por um ato de vontade,
de uma vez por todas, criaram o mundo. Assim como não existe mundo
acabado, fechado sobre si mesmo, não existem seres anteriores ao mundo.
Se existissem homens-deuses criadores, com certeza, a palavra criação
seria obsoleta. Designaria uma ação que esgotou toda a sua
potencialidade num fragmento de tempo para o qual não se tem memória.
Não é nesse contexto que a palavra criação ganha significação na obra de Nietzsche: “A hipótese de um mundo criado
– diz o filósofo – não deve nos afligir nem por um instante. O conceito
de ‘criação’ é hoje totalmente indefinível, inexequível, é apenas mais
uma palavra que se mantém no estado rudimentar, desde o tempo da
superstição, e com uma palavra não se explica nada” (Nachlass/FP
14[188], KSA 13.374).
Apesar da
conotação substancialista que o termo envolve, Nietzsche não deixa de
usá-lo para descrever uma nova conduta para com o mundo, uma conduta
criadora. Criar, para ele, é atividade a partir da qual se produz
constantemente a vida; portanto não há por que se envergonhar da
linguagem dos mitólogos.
Nietzsche apoderou-se do termo criar (schaffen), que também está ligado a uma atitude teológica (Gott schuf die Welt), e deu a ele novo sentido. Em Assim falou Zaratustra, “Nas ilhas bem-aventuradas”, utiliza-o para descrever uma atividade humana. Schaffen tem
aí um sentido de fazer, produzir, conseguir, na perspectiva do homem.
Isso fica claro quando Zaratustra afirma: “Para longe de Deus e dos
deuses me atraiu essa vontade; que haveria para criar, se houvesse -
deuses!” (“was wäre denn zu schaffen, wenn Gotter – da wäre!”) (Za/ZA, “Nas ilhas bem-aventuradas”). Tal como os artistas, Nietzsche se apodera do termo criação
para designar um tipo de fazer que não se esgota em um único ato, nem
em inúmeros atos. E vai mais além dessa atitude: amplia a noção de arte
para dar conta dos atos que produzem continuamente a vida. A seu ver, o
ato de criar não é um simples fazer prático que diz respeito ao terreno
da utilidade; não designa apenas um ato particular, mas um ato fora do
qual nada existe. Criar é uma atividade constante e ininterrupta. É
estar sempre efetivando novas possibilidades de vida.
Assim, ao sofisma
originário de um Deus criador, Nietzsche contrapõe a vontade criadora e,
com esse objetivo, procura impedir a existência de se fixar, de ser
expressão do instinto de conservação, e nos convida a conceber a vontade
criadora como constantemente autoinventora. A doutrina da vontade
criadora privilegia a atividade. É uma nova maneira de pensar que se
aplica ao devir, opõe-se à metafísica, que busca o estável e a
permanência. O perene não é o sujeito criador, nem o objeto criado, mas
uma ação contínua, um fluxo de vida constante.
Dito isso,
reapresentamos a pergunta: mas o que é criar para Nietzsche? E é ele
quem responde: “É vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é,
criar e, no criar, está incluído o destruir” (Nachlass/FP,17[13], KSA
13.521). Tal fragmento que responde à pergunta “o que é criar?”, e até
mesmo como se cria, define lapidar e sinteticamente o ato de criação.
Criar é fazer da realidade, devir, isto é, aos olhos do criador, não há
mundo sensível já realizado ao qual é preciso se integrar. Criar não é
buscar, não é buscar um lugar ao sol, mas inventar um sol próprio. “Eu
quero mais, escreve Nietzsche, eu não sou um buscador. Quero criar para
mim meu próprio sol” (FW/GC 320)[4].
Esse movimento de
chegar a uma forma é preciso entendê-lo em relação ao tempo, sem o qual,
perderíamos a dimensão do devir. Uma forma, uma vez realizada, não dura
eternamente – o tempo se encarrega de destruí-la. É uma característica
da vontade criadora tender a um aumento de potência, crescer e
expandir-se. Tender a um aumento de potência, querer crescer, não tem
nada a ver com a busca desenfreada de um objetivo fora do tempo. O
querer crescer da vontade criadora é afirmação da temporalidade. Esse
tempo não é cumulativo nem evolutivo; não há evolução contínua, mas um
constante recomeçar. Para Nietzsche, estamos submetidos tanto à lei do
crescimento quanto à da morte. Essa ideia não nos deve abater; pelo
contrário, devemos suportá-la com certo júbilo, pois, sem destruição,
não há processo criador. É ele que mantém a vida, a força de vida –
força que, ao se voltar sobre si mesma, vai além de si, para, de novo,
voltar a si mesma e retomar o processo criador. Poder criar, assim como
destruir, exige excesso. A destruição, como consequência de uma
superabundância de vida, é prenhe de futuro.
A doutrina da
vontade criadora, da vontade como força artística, tal como Nietzsche a
concebe, é uma nova maneira de pensar que se aplica ao devir. A
realidade do devir, da mudança, é a única realidade. Não há começo, nem
ponto final; tudo está ainda por se fazer. E dizer que tudo está em
mudança é dizer que tudo está sujeito às leis da destruição.
Em alguns textos,
Nietzsche opõe de fato o conceito de devir ao conceito de ser.
Exemplifico tal observação com uma passagem de Ecce homo, na qual
ele escreve que o devir comporta “a rejeição total do conceito de ser”
(EH/EH, “O nascimento da tragédia”, 3, KSA 6.312-3) ou com o parágrafo
13 da primeira dissertação da Genealogia da Moral, quando afirma:
“Por trás do fazer, do agir, do devir, não há ser” (GM/GM I 13, KSA
5.278-81). Porém, o que seria aparentemente uma contradição é, na
realidade, um aspecto do trabalho crítico de Nietzsche. De quando em
quando, ele se põe no lugar do adversário e passa a pensar a partir do
discurso que recusa, pois dramatizar as ideias faz parte de sua
estratégia. É peculiar aos filósofos acreditar no ser. Por esse motivo,
Nietzsche, em determinado momento de sua exposição, para deixar mais
clara a posição de seu opositor, que expressa as ideias do mundo do
além, contrapõe ser a devir, reconhecendo, porém, que não podem se opor.
Ser e devir são as duas modalidades do Sim criador. Logo, um fragmento
isolado, uma frase destacada de um livro, não pode servir de apoio para
uma interpretação. Nietzsche não opõe ser a devir; opõe-se, sim, a uma
concepção doentia do ser e a uma interpretação doentia do devir. A
afirmação do devir é condição para que haja constante criação. Dizer que
tudo está em devir é dizer que tudo está sujeito às leis da destruição e
que algo permanece, apesar da destruição. Permanece o insistente ato
criador. Uma ação criadora contínua imprime ao devir o caráter de ser.
No que diz respeito à
filosofia da criação de Bergson, meu interesse maior é estudar como o
filósofo aborda a criação, mais fundamentalmente, “a criação de si”, e
identificar os pontos de convergência com a interpretação de criação,
segundo Nietzsche.
Como já ressaltado, a
filosofia de Bergson recusa a identificação do ser ao imóvel e ao
imutável. Instalada no devir, ela fez da duração a realidade fundamental
e a vida mesma das coisas. A ideia de criação escapa a toda forma de
apreensão intelectual, a todas as categorias de nosso pensamento. A
inteligência é inapta a captar o que há de criação, de original, em cada
momento da história e, ainda mais, rejeita toda criação, a aparição do
absolutamente novo. Assim como não compreende a criação, também não
compreende a vida nem a duração. E essa incompreensão é um obstáculo, já
que a experiência da criação se impõe a cada um de nós, de maneira
constante e ininterrupta.
Bergson afirma que nós
vivemos a cada instante uma criação – a da nossa própria existência,
aquela de nossas próprias obras. Estamos sempre criando algo de
radicalmente novo, de imprevisível novidade que parece prosseguir
através do universo. Essa impressão é tão única que, frequentemente, ele
a compara à impressão de originalidade que a obra de arte produz. No
entanto, tudo parece obscuro na ideia de criação, se pensarmos em coisas
que seriam criadas e em alguém que as tivesse criado, como o exemplo da
arte parece convidar e como a nossa inteligência não pode deixar de
fazer. A experiência, porém, nos revela que estamos no coração da
criação, e tudo está em ato, imanente a tudo o que existe.
A questão da criação, entretanto, não aparece de forma articulada, em seu primeiro livro Ensaio sobre os dados imediatos da Consciência. O que existem são algumas noções que preparam a doutrina da criação, que será aprofundada em A evolução criadora.
Nesse livro, Bergson não deixa de apontar para um aspecto da criação:
ela não é um mistério: nós a experimentamos em nós desde que agimos
livremente. No Ensaio, ele mostra que a criação se faz sob a
forma de liberdade. Agindo, temos a intuição de nossa liberdade
criadora, que emana de nossa personalidade inteira e exprime,
independentemente de toda razão, o que há em nós de mais essencial. Nada
nos define melhor que um ato livre.
O eu é, então, a cada
instante de criação, decisão plena e livre. O dinamismo, que amadurece o
ato livre, desenvolve em nós uma força, uma verdadeira energia
criadora, que elabora sem cessar o novo. Essa potência é, ela mesma, um
devir. Essa mobilidade forma uma duração, uma sucessão sem
exterioridade, uma multiplicidade qualitativa, um devir de tudo o que
nós somos e onde a novidade brota sem cessar. Nosso eu interior – aquele
que sente, apaixona-se e decide livremente – é uma força, uma
espontaneidade que dura.
Segundo Bergson, somos
artesãos de nossa vida, ou melhor, somos artistas de nós mesmos e,
assim, já que somos nossa própria obra, trabalhamos continuamente a
modelar, com a matéria que nos forneceu o passado e o presente, uma
figura única, nova, original e imprevisível.
Contudo, é, em A evolução criadora,
que Bergson dá à liberdade seu nome verdadeiro de criação. Nesse livro,
o filósofo parece se dar conta de que cada momento de nossa vida é
testemunha de um ato livre e constitui uma espécie de criação. Para o
filósofo de Matéria e Memória, nós nos criamos continuamente a nós mesmos[5].
Somos livres porque somos criadores, porque nossa natureza é
essencialmente capaz de ir para além da totalidade do que nós somos e
acrescentar a uma soma de nosso passado e de nosso presente o novo e o
imprevisível. Nossa consciência é, assim, inconscientemente criadora.
É importante ainda observar
que, da mesma forma que Nietzsche, Bergson trata a questão da criação
não como poder criador transcendente, mas como um ato de liberdade
imanente à realidade. Ela vem da vida mesma – que é pura mobilidade. O
elã vital consiste, em suma, em uma exigência de criação; cria, a cada
instante, alguma coisa de original e de imprevisível.
Acrescente-se, ainda, que o
ato, pelo qual a vida se encaminha à criação de uma forma, encontra,
primeiramente, um obstáculo. Ele tende a se esgotar na forma que toma, e
o elã vital, em se esgotando, recai na matéria. A vida, em seu
movimento criador, depara com a matéria, que é o movimento inverso. A
matéria é, ao mesmo tempo, o produto da criação e o principal obstáculo
que ela encontra: o limite intransponível contra o qual ela se choca.
Entretanto a recaída na matéria é essencial a todo elã da criação. O
esforço de criação não é possível sem a matéria: pela resistência que
opõe, ela é, simultaneamente, obstáculo, instrumento e estímulo da
criação. Sem a matéria, não haveria de todo modo a criação. [6]
Diante do exposto, é preciso
notar que o principal erro a ser cometido, ao tentar compreender a
liberdade e a criação, é imaginar que ambas são absolutas. A criação
cria um novo radicalmente incomensurável a partir do preexistente. Como
poderia ela ser uma criação ex-nihilo,já que, para Bergson, a
ideia de nada é uma pseudoideia? Certamente, tal como Nietzsche, ele
não define a criação como um ato que consiste em realizar alguma coisa a
partir do nada. Criar é durar. Na criação, tem mais importância o ato
de criar do que a criatura que cria. Bergson nega que haja alguma coisa
fora do movimento, uma substancialidade subjacente ao movimento. Para
ele, é inconcebível a ideia de criação em relação a coisas que são
criadas e a alguém que as cria. A cada momento, afirma que a realidade
inteira é um fluxo contínuo; duração, torrente de vida, pura mobilidade
sem móvel, sem que se possa pensar em algo que esteja sob o durar ou o
devir.[7]
Em “A Percepção da Mudança”, conferência pronunciada na Universidade de
Oxford, em 26 e 27 de maio de 1911, chama a atenção para o fato de que “Há
mudanças, mas não há, sob a mudança, coisas que mudam: a mudança não
precisa de um suporte. Há movimentos, mas não há objeto inerte,
invariável, que se mova: o movimento não implica um móvel”[8].
Contudo é importante
assinalar que, assim como Nietzsche, Bergson não prescinde da ideia de
substância nem da ideia de ser – apenas transfere o conceito de
substância para a mudança mesma: “A mudança, diz ele, se consentirem em
olhá-la diretamente, sem véu interposto, bem rapidamente lhes aparecerá
como o que pode haver no mundo de mais substancial e de mais durável.
Sua solidez é infinitamente superior à de uma fixidez, que não é mais do
que um arranjo efêmero de mobilidades”(P.M.,1385).[9]
Assim, se nos esforçarmos em perceber a mudança tal qual é, vemos que
ela é a substância mesma das coisas, ainda que tenha se despojado de sua
rigidez e imutabilidade. A substância é o movimento e a mudança mesma.
A realidade é um crescimento
perpétuo, uma criação de si sem fim. É da essência da criação ser a cada
instante limitada e parcial. Ela é sempre uma retomada, e porque é
inesgotável, dura. O absoluto está na duração. A ideia de criação se
confunde com a de crescimento. Ela é, todo o tempo, uma criação de um
mundo e a criação do mundo.
Em As duas fontes da moral e da religião,
Bergson retoma o problema da criação, mas o aborda sob o ângulo mais
específico da criação humana propriamente dita. Nesse livro, há uma
continuidade entre as criações da vida – da vida em geral e das criações
do espírito, mais particularmente, o espírito do homem que se sente
criador. A criação artística permanece como um exemplo privilegiado: um
ato de espírito, tal como a criação do poeta. No ato de criação, o
espírito permanece excitado por uma emoção supraintelectual,
indivisível, com a qual o criador, intensificado, coincide; de fato, a
criação significa, antes de tudo, emoção. A obra genial sai,
frequentemente, de uma emoção única em seu gênero, de uma emoção
original, nascida de uma coincidência entre seu autor e o seu tema. Ela
culmina com uma emoção: a alegria, alegria metafísica, sinal de que
nosso ato está de acordo com a nossa destinação e que o elã vital
triunfou. Para Bergson, em toda parte onde há alegria, há criação: mais
rica é a criação, mais profunda é a alegria.
[2] BERGOSN, H. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (Oeuvres, p.1259).
[6]
Esse aspecto que acabamos de descrever é muito similar ao conceito de
vontade de potência tal como Nietzsche o entende. A vontade de potência,
em seu movimento de expansão, encontra sempre um obstáculo, e ele serve
de estímulo para mais expansão, para mais vida.
[7] Nietzsche, em Genealogia da Moral,
primeira dissertação parágrafo 13 expressa essa mesma ideia. Diz ele:
“Não existe ser por trás do fazer, do atuar, do devir; o agente é uma
ficção acrescentada à ação – a ação é tudo”.
[8] BERGOSN, H. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.169.
referências bibliográficas
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Edição critica organizada por Giogio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, 1988.
_______. Genealogia da Moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_______. Para além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_______. Ecce homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
_______. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:Companhia das Letras, 2011.
BERGSON, H. Oeuvres. Paris: PUF, 1963.
_______. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Artigo recebido em 10/04/2012.
Artigo aceito para publicação em 15/05/2012.
Sumário
n.31, 2012
Download:PDF
- Cadernos Nietzsche 31.08
-
Rosa Maria Dias
Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: r.maria.dias@gmail.com.
Sobre a inteligência e a intuição
[...] a inteligência e o instinto acham-se voltados em dois sentidos opostos, aquela para a matéria inerte, este para a vida.[...] a inteligência permanece o núcleo luminoso em torno do qual o instinto, mesmo alargado e depurado como intuição, constitui apenas uma vaga nebulosidade. Mas, na ausência do conhecimento propriamente dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá fazer-nos apreender aquilo para que os dados da inteligência são aqui insuficientes, e deixar-nos entrever o meio de os completar. (Bergson, 1964:187)”
A Filosofia do Espírito é a forma de autoconhecimento, na medida em que traça o percurso do princípio espiritual em seu processo de criação. O primeiro momento desse processo da Criação consiste na diferenciação da Unidade na multiplicidade de seres naturais. Desse modo constitui-se a fenomenologia da vida, cujo prolongamento, para Bergson, é a fenomenologia do espírito. Tal processo permite descrever a gênese do intelecto, de modo a fundamentar sua estrutura analítica e estabelecer uma crítica do conhecimento.
O intelecto, dada a sua vocação pragmática, é que vai pautar os procedimentos racionais da ciência; porém, dada a sua concepção quantitativa do real aparente, não se presta ao conhecimento da metafísica. À inteligência cumpre, porém o papel inicial de procurar a presença imanente no mundo fenomênico, dando acesso, portanto ao espírito subjetivo de conhecer a substância espiritual em si mesma, em sua imediatez.
Acompanhar o processo do desdobramento do Espírito em sua imediatez só é possível pela intuição, que permite uma identificação em essência com o processo gerador, de modo a constituir assim uma metafísica positiva, como pedra angular na edificação de uma Enciclopédia das Ciências ,assim como a possibilidade de cumprir com a finalidade interna, que é criar infinitamente.
Sobre intuição como método
“[...] a intuição forma um método, com suas três (ou cinco) regras. Trata-se de um método essencialmente problematizante (crítica de falsos problemas e invenção de verdadeiros), diferenciante (cortes e intersecções) e temporalizante (pensar em termos de duração) (Deleuze, 1999: 26)”.
Fontes:
www.cadernosdenietzsche.unifesp.br
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