domingo, 2 de junho de 2013

DA CRIAÇÃO EM NIETZSCHE E EM BERGSON - ao som de J.S.Bach - Las Suites para Orquestra - 82m



J.S.Bach -Las Suites para Orquestra - 82m


A questão da criação em Nietzsche e em Bergson

Rosa Maria Dias  


Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),

 
Resumo: O artigo tem por objetivo confrontar a filosofia de Nietzsche – da vontade criadora – com a filosofia de Bergson – da duração. Procura perscrutar a compreensão que este filósofo tem da noção de duração, pensada como criação, isto é, como movimento contínuo que traz o passado e gera o futuro no presente: “jorro ininterrupto de novidade”.

Estabelecer pontos de convergência entre a filosofia de Nietzsche e a de Bergson, no que tange à relação vida e arte, focalizar a noção de vontade criadora em Nietzsche e a de criação em Bergson são esses os objetivos deste estudo. Para serem esclarecidos, esses pontos de convergência não foram enunciados arbitrariamente: há algo indissolúvel que liga os dois filósofos. Ambos procuram entender a vida em todos os seus ângulos, determinando o seu caráter complexo e singular e propõem uma profunda mutação de sentido no paradigma que domina a Filosofia, que, direcionada por uma concepção matemática do ser, por uma metafísica do estável e do permanente, por uma concepção essencialista e intelectualista do real, deixou de levar em conta a dimensão criadora, isto é, a potência eminentemente plástica e criadora da existência.

A noção de criação é central, tanto para Nietzsche quanto para Bergson, o que torna adequado e proveitoso um confronto entre os dois filósofos. O primeiro olha a vida como o produto mais elevado da natureza e reclama para ela “um insistente ato criador”, que cria sempre mais vida e as mais altas formas de vida. O segundo, ao pensar a vida como duração pura, considera-a, também, como o mais elevado fenômeno da natureza.

Há ainda outro aspecto a destacar que justifica a pertinência de um confronto entre os dois pensadores. Como pretendo mostrar, Bergson, em sua análise da criação de si, também delineia a possibilidade de se construir uma vida em sentido artístico. A análise que ele faz da alegria, na conferência de 1911 sobre  “A consciência e a vida”[1], vem nesse sentido. Oposta ao prazer – que está a serviço da conservação da vida, da inteligência e da vida prática –, a alegria é sinal da vitória da vida sobre os obstáculos encontrados em seu caminho para a realização da liberdade, que emana da personalidade inteira de um indivíduo singular.
Mais ainda, em ambos os filósofos, podemos observar uma crítica à linguagem, mais precisamente, ao conceito. Como filósofos-artistas da linguagem, criaram para si uma forma de escrita que corresponde fielmente à sua forma de fazer filosofia e de conceber o mundo. Cada imagem, cada metáfora, cada palavra busca traduzir de modo poético uma forma de reação ao conceito, que só consegue pensar o mundo em sua imobilidade e deixa escapar a natureza mesma do objeto concreto, em sua multiplicidade e pluralidade.

As filosofias de Nietzsche e Bergson embora apresentem acentuadas semelhanças, têm também algumas diferenças. Dirigirei meu olhar com muito cuidado para cada uma dessas filosofias para destacar a singularidade de cada um desses pensadores. Saliento, de antemão, um aspecto que pretendo tratar e que me parece fundamental na análise do tema da criação: a afirmação de Bergson de que a vida é criação contínua de imprevisível novidade, em que, a todo momento há “o jorro ininterrupto de novidade”[2].

Considerando a concepção, segundo a qual a vida é conquista ou criação, saliento que tanto Nietzsche como Bergson partem de uma crítica a Herbert Spencer para evidenciar o que entendem por vida. Nietzsche, na Genealogia da Moral, apontando para o equívoco de Spencer sobre a teoria da vida, criticando-o por retirar da vida a atividade, escreve:
Sob a influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a “adaptação”, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas (Herbert Spencer). Mas com isso se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; com isso não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a “adaptação” (GM/GM II,12, KSA 5.315-6).[3]
 Bergson também partiu da crítica às teorias evolucionistas e às dos utilitaristas ingleses para determinar a vida como duração. Ele próprio confessa que, logo no início de suas investigações sobre a vida, só a filosofia de Herbert Spencer lhe parecia ajustar-se à realidade; ao longo da vida, porém, descobre que o tempo científico não dura. Em uma declaração a Ch. du Bos, para um Jornal de Paris 22-2-1922, diz: “Hoje me dou conta de que o que me atraía em Spencer era o concreto de seu espírito, o desejo de reconduzir sempre o espírito ao terreno dos fatos. Pouco a pouco, abandonei um depois do outro, todos os seus pontos de vista, e só mais tarde, em A Evolução Criadora, é quando tive plena consciência do lado fictício do evolucionismo spenceriano.”

Na tentativa de aproximar os dois autores, em relação ao pensamento sobre a determinação da realidade, procuro evidenciar, em Nietzsche, a noção de vontade de potência enquanto vida, tal como ele a define no parágrafo 12 da segunda dissertação da Genealogia da Moral e no aforismo 36 de Para além do bem e do mal, como matriz geral de todo devir, relação conflituosa de forças que esculpe a cada instante todo fenômeno do mundo, vivo ou não, material ou não. Em Bergson, privilegio a noção de duração que, como ele mesmo mostra em A evolução criadora, dá forma, conjuntamente à vida psicológica, à vida orgânica e ao universo.

            Assim, considerando, como faz Nietzsche, a vida como vontade de potência, jogo de forças que opera em todas as coisas, como acumulação ou desagregação da potência, e, segundo pensa Bergson, como um devir diferenciador, em tensão e distensão, em uma heterogeneidade qualitativa, impõe-se a pergunta: que papel cada um reserva para a arte no âmbito imanente da vida? Em uma breve e provisória resposta, cabe dizer que ela se desvela como infinitamente criadora. Os dois filósofos partilham da ideia de que a essência da vida não é elucidada pela ciência, em termos de adaptação ou de conservação, mas pela arte, enquanto criação.
           Para elucidar a proposta deste artigo, iniciarei por dizer que Nietzsche elabora o conceito de vida como “vontade criadora” (schaffender Wille) a partir da arte, “o grande estimulante da vida” (Nachlass/FP, 17[23], KSA 13.521). Seu conceito de vida, como vontade de potência, adquire, então, a significação de vontade criadora quando as forças criadoras predominam sobre as forças inferiores de adaptação e conservação.

          Que sentido tem, então, para Nietzsche, o termo criação? Será que ele o utiliza na sua acepção metafísico-religiosa? Evidentemente, não o emprega no sentido judaico e cristão “de um nada tudo se fez”. Com a “morte de Deus”, também as palavras foram desnudadas; retirou-se delas seu manto sagrado. A palavra criação, despida de sua significação teológico-cristã, pertence à atividade humana. Porém é preciso que se diga, para evitar futuros mal-entendidos, que não se pode substituir a ideia de um Deus criador pela ideia, também absurda, de homens-deuses criadores que, por um ato de vontade, de uma vez por todas, criaram o mundo. Assim como não existe mundo acabado, fechado sobre si mesmo, não existem seres anteriores ao mundo. Se existissem homens-deuses criadores, com certeza, a palavra criação seria obsoleta. Designaria uma ação que esgotou toda a sua potencialidade num fragmento de tempo para o qual não se tem memória.

          Não é nesse contexto que a palavra criação ganha significação na obra de Nietzsche: “A hipótese de um mundo criado – diz o filósofo – não deve nos afligir nem por um instante. O conceito de ‘criação’ é hoje totalmente indefinível, inexequível, é apenas mais uma palavra que se mantém no estado rudimentar, desde o tempo da superstição, e com uma palavra não se explica nada” (Nachlass/FP 14[188], KSA 13.374).

           Apesar da conotação substancialista que o termo envolve, Nietzsche não deixa de usá-lo para descrever uma nova conduta para com o mundo, uma conduta criadora. Criar, para ele, é atividade a partir da qual se produz constantemente a vida; portanto não há por que se envergonhar da linguagem dos mitólogos.

           Nietzsche apoderou-se do termo criar (schaffen), que também está ligado a uma atitude teológica (Gott schuf die Welt), e deu a ele novo sentido. Em Assim falou Zaratustra, “Nas ilhas bem-aventuradas”, utiliza-o para descrever uma atividade humana. Schaffen tem aí um sentido de fazer, produzir, conseguir, na perspectiva do homem. Isso fica claro quando Zaratustra afirma: “Para longe de Deus e dos deuses me atraiu essa vontade; que haveria para criar, se houvesse - deuses!” (“was wäre denn zu schaffen, wenn Gotter – da wäre!”) (Za/ZA, “Nas ilhas bem-aventuradas”). Tal como os artistas, Nietzsche se apodera do termo criação para designar um tipo de fazer que não se esgota em um único ato, nem em inúmeros atos. E vai mais além dessa atitude: amplia a noção de arte para dar conta dos atos que produzem continuamente a vida. A seu ver, o ato de criar não é um simples fazer prático que diz respeito ao terreno da utilidade; não designa apenas um ato particular, mas um ato fora do qual nada existe. Criar é uma atividade constante e ininterrupta. É estar sempre efetivando novas possibilidades de vida.

           Assim, ao sofisma originário de um Deus criador, Nietzsche contrapõe a vontade criadora e, com esse objetivo, procura impedir a existência de se fixar, de ser expressão do instinto de conservação, e nos convida a conceber a vontade criadora como constantemente autoinventora. A doutrina da vontade criadora privilegia a atividade. É uma nova maneira de pensar que se aplica ao devir, opõe-se à metafísica, que busca o estável e a permanência. O perene não é o sujeito criador, nem o objeto criado, mas uma ação contínua, um fluxo de vida constante.

           Dito isso, reapresentamos a pergunta: mas o que é criar para Nietzsche? E é ele quem responde: “É vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no criar, está incluído o destruir” (Nachlass/FP,17[13], KSA 13.521). Tal fragmento que responde à pergunta “o que é criar?”, e até mesmo como se cria, define lapidar e sinteticamente o ato de criação. Criar é fazer da realidade, devir, isto é, aos olhos do criador, não há mundo sensível já realizado ao qual é preciso se integrar. Criar não é buscar, não é buscar um lugar ao sol, mas inventar um sol próprio. “Eu quero mais, escreve Nietzsche, eu não sou um buscador. Quero criar para mim meu próprio sol” (FW/GC 320)[4].

           Esse movimento de chegar a uma forma é preciso entendê-lo em relação ao tempo, sem o qual, perderíamos a dimensão do devir. Uma forma, uma vez realizada, não dura eternamente – o tempo se encarrega de destruí-la. É uma característica da vontade criadora tender a um aumento de potência, crescer e expandir-se. Tender a um aumento de potência, querer crescer, não tem nada a ver com a busca desenfreada de um objetivo fora do tempo. O querer crescer da vontade criadora é afirmação da temporalidade. Esse tempo não é cumulativo nem evolutivo; não há evolução contínua, mas um constante recomeçar. Para Nietzsche, estamos submetidos tanto à lei do crescimento quanto à da morte. Essa ideia não nos deve abater; pelo contrário, devemos suportá-la com certo júbilo, pois, sem destruição, não há processo criador. É ele que mantém a vida, a força de vida – força que, ao se voltar sobre si mesma, vai além de si, para, de novo, voltar a si mesma e retomar o processo criador. Poder criar, assim como destruir, exige excesso. A destruição, como consequência de uma superabundância de vida, é prenhe de futuro.

           A doutrina da vontade criadora, da vontade como força artística, tal como Nietzsche a concebe, é uma nova maneira de pensar que se aplica ao devir. A realidade do devir, da mudança, é a única realidade. Não há começo, nem ponto final; tudo está ainda por se fazer. E dizer que tudo está em mudança é dizer que tudo está sujeito às leis da destruição.
          
 Em alguns textos, Nietzsche opõe de fato o conceito de devir ao conceito de ser. Exemplifico tal observação com uma passagem de Ecce homo, na qual ele escreve que o devir comporta “a rejeição total do conceito de ser” (EH/EH, “O nascimento da tragédia”, 3, KSA 6.312-3) ou com o parágrafo 13 da primeira dissertação da Genealogia da Moral, quando afirma: “Por trás do fazer, do agir, do devir, não há ser” (GM/GM I 13, KSA 5.278-81). Porém, o que seria aparentemente uma contradição é, na realidade, um aspecto do trabalho crítico de Nietzsche. De quando em quando, ele se põe no lugar do adversário e passa a pensar a partir do discurso que recusa, pois dramatizar as ideias faz parte de sua estratégia. É peculiar aos filósofos acreditar no ser. Por esse motivo, Nietzsche, em determinado momento de sua exposição, para deixar mais clara a posição de seu opositor, que expressa as ideias do mundo do além, contrapõe ser a devir, reconhecendo, porém, que não podem se opor. Ser e devir são as duas modalidades do Sim criador. Logo, um fragmento isolado, uma frase destacada de um livro, não pode servir de apoio para uma interpretação. Nietzsche não opõe ser a devir; opõe-se, sim, a uma concepção doentia do ser e a uma interpretação doentia do devir. A afirmação do devir é condição para que haja constante criação. Dizer que tudo está em devir é dizer que tudo está sujeito às leis da destruição e que algo permanece, apesar da destruição. Permanece o insistente ato criador. Uma ação criadora contínua imprime ao devir o caráter de ser.

           No que diz respeito à filosofia da criação de Bergson, meu interesse maior é estudar como o filósofo aborda a criação, mais fundamentalmente, “a criação de si”, e identificar os pontos de convergência com a interpretação de criação, segundo Nietzsche.

           Como já ressaltado, a filosofia de Bergson recusa a identificação do ser ao imóvel e ao imutável. Instalada no devir, ela fez da duração a realidade fundamental e a vida mesma das coisas. A ideia de criação escapa a toda forma de apreensão intelectual, a todas as categorias de nosso pensamento. A inteligência é inapta a captar o que há de criação, de original, em cada momento da história e, ainda mais, rejeita toda criação, a aparição do absolutamente novo. Assim como não compreende a criação, também não compreende a vida nem a duração. E essa incompreensão é um obstáculo, já que a experiência da criação se impõe a cada um de nós, de maneira constante e ininterrupta.

           Bergson afirma que nós vivemos a cada instante uma criação – a da nossa própria existência, aquela de nossas próprias obras. Estamos sempre criando algo de radicalmente novo, de imprevisível novidade que parece prosseguir através do universo. Essa impressão é tão única que, frequentemente, ele a compara à impressão de originalidade que a obra de arte produz. No entanto, tudo parece obscuro na ideia de criação, se pensarmos em coisas que seriam criadas e em alguém que as tivesse criado, como o exemplo da arte parece convidar e como a nossa inteligência não pode deixar de fazer. A experiência, porém, nos revela que estamos no coração da criação, e tudo está em ato, imanente a tudo o que existe.

           A questão da criação, entretanto, não aparece de forma articulada, em seu primeiro livro Ensaio sobre os dados imediatos da Consciência. O que existem são algumas noções que preparam a doutrina da criação, que será aprofundada em A evolução criadora. Nesse livro, Bergson não deixa de apontar para um aspecto da criação: ela não é um mistério: nós a experimentamos em nós desde que agimos livremente. No Ensaio, ele mostra que a criação se faz sob a forma de liberdade. Agindo, temos a intuição de nossa liberdade criadora, que emana de nossa personalidade inteira e exprime, independentemente de toda razão, o que há em nós de mais essencial. Nada nos define melhor que um ato livre.

           O eu é, então, a cada instante de criação, decisão plena e livre. O dinamismo, que amadurece o ato livre, desenvolve em nós uma força, uma verdadeira energia criadora, que elabora sem cessar o novo. Essa potência é, ela mesma, um devir. Essa mobilidade forma uma duração, uma sucessão sem exterioridade, uma multiplicidade qualitativa, um devir de tudo o que nós somos e onde a novidade brota sem cessar. Nosso eu interior – aquele que sente, apaixona-se e decide livremente – é uma força, uma espontaneidade que dura. 

           Segundo Bergson, somos artesãos de nossa vida, ou melhor, somos artistas de nós mesmos e, assim, já que somos nossa própria obra, trabalhamos continuamente a modelar, com a matéria que nos forneceu o passado e o presente, uma figura única, nova, original e imprevisível.
           Contudo, é, em A evolução criadora, que Bergson dá à liberdade seu nome verdadeiro de criação. Nesse livro, o filósofo parece se dar conta de que cada momento de nossa vida é testemunha de um ato livre e constitui uma espécie de criação. Para o filósofo de Matéria e Memória, nós nos criamos continuamente a nós mesmos[5]. Somos livres porque somos criadores, porque nossa natureza é essencialmente capaz de ir para além da totalidade do que nós somos e acrescentar a uma soma de nosso passado e de nosso presente o novo e o imprevisível. Nossa consciência é, assim, inconscientemente criadora.

           É importante ainda observar que, da mesma forma que Nietzsche, Bergson trata a questão da criação não como poder criador transcendente, mas como um ato de liberdade imanente à realidade. Ela vem da vida mesma – que é pura mobilidade. O elã vital consiste, em suma, em uma exigência de criação; cria, a cada instante, alguma coisa de original e de imprevisível.

           Acrescente-se, ainda, que o ato, pelo qual a vida se encaminha à criação de uma forma, encontra, primeiramente, um obstáculo. Ele tende a se esgotar na forma que toma, e o elã vital, em se esgotando, recai na matéria. A vida, em seu movimento criador, depara com a matéria, que é o movimento inverso. A matéria é, ao mesmo tempo, o produto da criação e o principal obstáculo que ela encontra: o limite intransponível contra o qual ela se choca. Entretanto a recaída na matéria é essencial a todo elã da criação. O esforço de criação não é possível sem a matéria: pela resistência que opõe, ela é, simultaneamente, obstáculo, instrumento e estímulo da criação. Sem a matéria, não haveria de todo modo a criação. [6]

           Diante do exposto, é preciso notar que o principal erro a ser cometido, ao tentar compreender a liberdade e a criação, é imaginar que ambas são absolutas. A criação cria um novo radicalmente incomensurável a partir do preexistente. Como poderia ela ser uma criação ex-nihilo,já que, para Bergson, a ideia de nada é uma pseudoideia? Certamente, tal como Nietzsche, ele não define a criação como um ato que consiste em realizar alguma coisa a partir do nada. Criar é durar. Na criação, tem mais importância o ato de criar do que a criatura que cria. Bergson nega que haja alguma coisa fora do movimento, uma substancialidade subjacente ao movimento. Para ele, é inconcebível a ideia de criação em relação a coisas que são criadas e a alguém que as cria. A cada momento, afirma que a realidade inteira é um fluxo contínuo; duração, torrente de vida, pura mobilidade sem móvel, sem que se possa pensar em algo que esteja sob o durar ou o devir.[7] Em “A Percepção da Mudança”, conferência pronunciada na Universidade de Oxford, em 26 e 27 de maio de 1911, chama a atenção para o fato de que “Há mudanças, mas não há, sob a mudança, coisas que mudam: a mudança não precisa de um suporte. Há movimentos, mas não há objeto inerte, invariável, que se mova: o movimento não implica um móvel[8].

           Contudo é importante assinalar que, assim como Nietzsche, Bergson não prescinde da ideia de substância nem da ideia de ser – apenas transfere o conceito de substância para a mudança mesma: “A mudança, diz ele, se consentirem em olhá-la diretamente, sem véu interposto, bem rapidamente lhes aparecerá como o que pode haver no mundo de mais substancial e de mais durável. Sua solidez é infinitamente superior à de uma fixidez, que não é mais do que um arranjo efêmero de mobilidades”(P.M.,1385).[9] Assim, se nos esforçarmos em perceber a mudança tal qual é, vemos que ela é a substância mesma das coisas, ainda que tenha se despojado de sua rigidez e imutabilidade. A substância é o movimento e a mudança mesma.
           A realidade é um crescimento perpétuo, uma criação de si sem fim. É da essência da criação ser a cada instante limitada e parcial. Ela é sempre uma retomada, e porque é inesgotável, dura. O absoluto está na duração. A ideia de criação se confunde com a de crescimento. Ela é, todo o tempo, uma criação de um mundo e a criação do mundo.

           Em As duas fontes da moral e da religião, Bergson retoma o problema da criação, mas o aborda sob o ângulo mais específico da criação humana propriamente dita. Nesse livro, há uma continuidade entre as criações da vida – da vida em geral e das criações do espírito, mais particularmente, o espírito do homem que se sente criador. A criação artística permanece como um exemplo privilegiado: um ato de espírito, tal como a criação do poeta. No ato de criação, o espírito permanece excitado por uma emoção supraintelectual, indivisível, com a qual o criador, intensificado, coincide; de fato, a criação significa, antes de tudo, emoção. A obra genial sai, frequentemente, de uma emoção única em seu gênero, de uma emoção original, nascida de uma coincidência entre seu autor e o seu tema. Ela culmina com uma emoção: a alegria, alegria metafísica, sinal de que nosso ato está de acordo com a nossa destinação e que o elã vital triunfou. Para Bergson, em toda parte onde há alegria, há criação: mais rica é a criação, mais profunda é a alegria.

[1] Cf. Bergson, H. “La conscience et la vie”. In: L’énergie spirituelle, p. 815.
[2] BERGOSN, H. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (Oeuvres, p.1259).
[3] Tradução brasileira (vide “referências bibliografias”).
[4] Tradução brasileira (vide “referências bibliografias”).
[5] Cf. BERGSON, H., L’évolution créatrice, p. 513.
[6] Esse aspecto que acabamos de descrever é muito similar ao conceito de vontade de potência tal como Nietzsche o entende. A vontade de potência, em seu movimento de expansão, encontra sempre um obstáculo, e ele serve de estímulo para mais expansão, para mais vida.
[7] Nietzsche, em Genealogia da Moral, primeira dissertação parágrafo 13 expressa essa mesma ideia. Diz ele: “Não existe ser por trás do fazer, do atuar, do devir; o agente é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo”.
[8] BERGOSN, H. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.169.
[9] Tradução brasileira (vide “referências bibliografias”).

referências bibliográficas
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Edição critica organizada por Giogio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, 1988.
­­­_______. Genealogia da Moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_______. Para além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 
_______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 
_______. Ecce homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 
_______. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:Companhia das Letras, 2011.        
BERGSON, H. Oeuvres. Paris: PUF, 1963.
_______. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.     
           
Artigo recebido em 10/04/2012.
Artigo aceito para publicação em 15/05/2012.

Sobre a inteligência e a intuição
[...] a inteligência e o instinto acham-se voltados em dois sentidos opostos, aquela para a matéria inerte, este para a vida.[...] a inteligência permanece o núcleo luminoso em torno do qual o instinto, mesmo alargado e depurado como intuição, constitui apenas uma vaga nebulosidade. Mas, na ausência do conhecimento propriamente dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá fazer-nos apreender aquilo para que os dados da inteligência são aqui insuficientes, e deixar-nos entrever o meio de os completar. (Bergson, 1964:187)”

 
 A Filosofia do Espírito é a forma de autoconhecimento, na medida em que traça o percurso do princípio espiritual em seu processo de criação. O primeiro momento desse processo da Criação consiste na diferenciação da Unidade na multiplicidade de seres naturais. Desse modo constitui-se a fenomenologia da vida, cujo prolongamento, para Bergson, é a fenomenologia do espírito. Tal processo permite descrever a gênese do intelecto, de modo a fundamentar sua estrutura analítica e estabelecer uma crítica do conhecimento. 

O intelecto, dada a sua vocação pragmática, é que vai pautar os procedimentos racionais da ciência; porém, dada a sua concepção quantitativa do real aparente, não se presta ao conhecimento da metafísica. À inteligência cumpre, porém o papel inicial de procurar a presença imanente no mundo fenomênico, dando acesso, portanto ao espírito subjetivo de conhecer a substância espiritual em si mesma, em sua imediatez.

 Acompanhar o processo do desdobramento do Espírito em sua imediatez só é possível pela intuição, que permite uma identificação em essência com o processo gerador, de modo a constituir assim uma metafísica positiva, como pedra angular na edificação de uma Enciclopédia das Ciências ,assim como a possibilidade de cumprir com a finalidade interna, que é criar infinitamente.

Sobre intuição como método
“[...] a intuição forma um método, com suas três (ou cinco) regras. Trata-se de um método essencialmente problematizante (crítica de falsos problemas e invenção de verdadeiros), diferenciante (cortes e intersecções) e temporalizante (pensar em termos de duração) (Deleuze, 1999: 26)”.



 Fontes:
 www.cadernosdenietzsche.unifesp.br
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