quinta-feira, 24 de outubro de 2013

CRIATIVIDADE: UM DIÁLOGO COM BERGSON ao som de W.A. Mozart 4 Horn Concertos, Hermann Baumann


W.A. Mozart 4 Horn Concertos, Hermann Baumann
W.A. Mozart 4 Horn Concertos, Hermann Baumann

Konzert No.3 Es-dur, KV 447 0:00-16:22
I. Allegro
II. Romanza: Larghetto
III. Allegro

Konzert No.2 Es-dur, KV 417 16:22-29:55
I. Allegro maestoso
II. Andante
III. Rondo: Allegro

Konzert No.1 D-dur, KV 412 29:55-39:16
I. Allegro
II. Rondo: Allegro

Konzert No.4 Es-dur, KV 495 39:16
I. Allegro moderato
II. Romanza: Andante cantabile
III. Rondo: Allegro vivace

St. Paul Chamber Orchestra
Pinchas Zukerman

Rec. 1984

Número 2 - Dezembro de 2011 27
Criatividade: entre tantas vozes, um diálogo com
Bergson

Isabel Orestes Silveira

Dra. Comunicação e Semiótica PUC/SP
Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie
e-mail:isasilveira@mackenzie.br

Resumo
Este artigo se propõe a discorrer de forma sucinta sobre as diversas contribuições teóricas sobre o fenômeno criativo, que ao longo do tempo foram e ainda estão sendo feitas em torno dessa temática tão rica.

Nosso enfoque teórico será embasado por alguns pressupostos do filósofo francês Henri-Louis Bergson (1859-1941), que aponta para o caráter não determinista ou imprevisível da criatividade, na sua visão algo inseparável do processo de viver. Para o filósofo, o élan vital é um impulso ou uma força que move o desenvolvimento e a expansão do universo, mas também move os processos criativos e impulsiona o pensamento, alimenta a experiência pessoal, possibilita o trabalho, amplia a prática e reinsere nas produções diversas os contornos históricos e culturais do sujeito.
Palavras-chave: Tempo, Mudança, Duração, memória

Número 2 - Dezembro de 2011 28

Introdução
Pesquisar a criatividade é, sem dúvida, uma tarefa intensa. A começar porque, apesar de a busca por uma definição do termo remontar aos tempos da antiguidade, até hoje os estudiosos sofrem com falta de um conceito que dê conta de explicá-la.

Devido à complexidade do tema, inúmeras correntes tentaram chegar a um conceito, ou seja, o fenômeno criativo passou por vários esforços de definição ao longo do tempo e as contribuições para o avanço em estudá-la ora anulavam o conhecimento existente, ora se sobrepunham ao mesmo.

Conscientes do desafio em revisitar tal assunto, arriscamo-nos a fazê-lo na tentativa de contribuir com as pesquisas que investigam esse universo tão vasto, mesmo sob o risco de percorrer os caminhos já trilhados pelos teóricos que, no passado, se debruçaram exaustivamente sobre ele.

Nossa intenção, ainda que modesta, será realizar um esforço intelectual para compreender as possibilidades e as limitações da potência criativa que revela ser impactante na resolução de problemas e na expressão da originalidade humana.

Para isso, fizemos a opção metodológica de, primeiramente, discorrer de forma sucinta sobre as diversas contribuições teóricas sobre a criatividade, deixando claro, de partida, que não poderemos tentar uma simplificação desse assunto, reduzindo nos apontamentos que se seguirão todas as pesquisas que já foram e ainda estão sendo feitas em torno do fenômeno criativo. Pretendemos avançar nesse território com uma nota de humildade, pois nosso intuito é despertar no leitor a consciência de como é vasta a discussão dessa temática.

Em seguida, vamos apresentar nosso enfoque, embasado em alguns dos pressupostos teóricos do filósofo francês Henri-Louis Bergson (1859-1941). Dialogaremos, então, com um personagem que foi crítico do pensamento dogmático e, entre o fim do século 19 e o início do 20, falou do movimento criativo como um fenômeno primordial na nossa experiência de vida consciente.

Dada à profundidade do pensamento do autor, optamos por refletir a criatividade lançando luz em algumas associações que Bergson desenvolve sobre a duração, bem como a própria vida, como sendo um constante processo dinâmico criativo de transformação impulsionado por um “élan vital”. Esse impulso vital justifica a evolução da vida e sua complexidade cada vez maior, vulnerável e crescente.

Na tentativa de compreender suas ideias, levaremos em conta sua visão sobre o modelo de um universo que está em contínua mutação, ou seja, tudo está mudando o tempo todo, a expansãodo macro sugere o aparecimento do novo. Então, nesse fluxo contínuo, nesse impulso vital, nessa força evolutiva, ao qual Bergson deu o nome de “duração”, poderemos pensar o tempo - que se constitui tema fundamental do pensamento desse autor - como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação.

Um breve panorama sobre as pesquisas sobre a criatividade

O processo de criação foi concebido ora como inspiração divina, ora como loucura. Em outros momentos, foi tido como espontaneidade ou como resultado de experiências vivenciadas.

Foi considerado como estímulo-resposta e até como busca por soluções de uma gestalt (a forma percebida pelos sentidos). Outras vezes, ainda, experimentou os postulados da psicanálise, cuja ênfase valorizava a afetividade e os estados emocionais inconscientes.

Nesse alto nível de generalização introdutória, não poderíamos desconsiderar os postulados de Sigmund Freud (1856-1939) e sua contribuição sobre a constituição psíquica humana, com obras que também focalizavam a questão da criatividade. Nos conceitos freudianos, vê-se que é a criatividade pode estar associada ao devaneio ou à fantasia, que na dimensão lúdica prevê a atividade do brincar. A imaginação, no artista, estaria sendo concretizada pela obra de arte (um substituto do brincar).

Em Carl Gustav Jung (1875-1961), a arte não é expressão de um complexo pessoal. Ao observarmos sua noção de imagem primordial, presente no psiquismo coletivo, que também chamou de arquétipo, podemos entender que, para Jung, a capacidade de criação estaria contida no inconsciente impessoal, coletivo, de onde emerge o novo (JUNG, 1985).

Posteriormente, Gaston Bachelard (1884-1962) encontrou em Jung a noção de arquétipo e de inconsciente coletivo para fundamentar suas concepções acerca do psiquismo e do caráter arquetípico da imagem artística.

Tantas outras correntes sugiram. Umas tentando explicar a criatividade do ponto de vista cognitivista, ou seja, pela estrutura do intelecto chegaram ao conhecido pensamento divergente, que poderia estar associado à fluência, à flexibilidade e à originalidade, entre outras atributos do indivíduo criativo.

Em outros momentos no decorrer da história, esse tema tão rico encontrou respaldo nas considerações de Vygotsky (1898-1934), que apontava para a origem da criatividade nas brincadeiras infantis.

Em Jean Piaget (1896-1880), a criatividade envolvia dois pontos de vista e argumentava: 
 
“O primeiro problema é das origens ou causas da criatividade. 
O segundo é o do mecanismo: como acontece? 
Qual o processo de um ato criativo? Como alguém cria algo novo? 
Sem existir antes, como algo novo pode surgir?”
 (VASCONCELOS, 2001:11 a 15).

Quanto ao problema da origem, Piaget assumia a posição de que se tratava de um mistério, sendo, então, inexplicável. O psicólogo dizia que o novo, ainda que modesto, surgia a partir de esforços pessoais. Em relação ao segundo problema, ou seja, ao mecanismo da criatividade ou como ela acontece, Piaget enfatizava que a psicologia da inteligência poderia auxiliar na busca por respostas. Então, sua hipótese era: 
 
“[...] a criação do novo ocorre devido a um processo de abstração reflexiva”. 
Dito de outro modo, Piaget percebia, nas pesquisas com crianças em desenvolvimento, que a ação reflexiva ocorria quando a criança adquiria em suas experiências a consciência da totalidade de seus atos, ou seja, estava refletindo sobre sua ação total.

Ainda citamos Donald W. Winnicott (1971), tido como referência por estudiosos contemporâneos da criatividade. Ele evoca a temática da criatividade como sinônimo da atividade lúdica e livre do brincar, tanto na criança quanto no adulto.

Podemos, então, constatar a relevância desta temática, que, com o passar do tempo, faz surgir novas pesquisas e abordagens.

A discussão da criatividade encaminhou o assunto para uma nova direção. De uma modalidade individual para uma modalidade coletiva. E encontrou em Maslow (1908- 1970) a ênfase nas necessidades básicas humanas do ponto de vista hierárquico. Também deu lugar para o estudo de alguns especialistas que imprimiram a ênfase de inúmeros modelos que deveriam estimular o processo criativo e orientar o planejamento estratégico em empresas, como foi o caso de Alex Osborn (1953), o criador do brainstorming (tempestade de ideias) e de tantos outros que não caberia citar nesse curto espaço, mas que valorizaram a eficiência da criatividade e da liderança criativa.

Vale destacar que essa valorização dos grupos criativos pela motivação dos vários membros de uma determinada equipe ou pela liderança da organização passou a estar vinculada ao aspecto lucrativo da empresa (ênfase da sociedade de consumo). Afinal, um grupo criativo geralmente apresenta um perfil especulativo e empreendedor.

Então, reiteramos que são muitas as contribuições para a compreensão da criatividade trazidas por áreas do saber como psicologia, psiquiatria, sociologia, educação, neurociência e por tantas vozes que até hoje se dedicam a analisar seus processos.

Dando sequência ao fascinante estudo da criatividade, passaremos a dialogar com Bergson e a levar em conta alguns de seus pensamentos, que poderão somar a tantos estudos já feitos.

Nosso recorte sugere pensarmos a dinâmica da criatividade de modo mais alargado. Não se trata de valorizar a criatividade do ponto de vista individual ou grupal somente, mas do ponto de vista sistêmico, pois Bergson propõe uma analogia da criatividade conectada com todas as formas de vida. Para isso, parte de um ‘élan vital’, que para ele está embasado num fluxo contínuo da própria vida.

Inteligência e intuição como processo da vida
Para Bergson, é por meio dos sonhos que as lembranças ou a memória se evidenciam e se manifestam, sendo indispensável à função do inconsciente e do consciente para o entendimento do fenômeno da natureza do homem. Nós vivenciamos esse fluxo por meio de nossos sentidos e, então, agimos, decidimos e temos nosso livre-arbítrio pelo conhecimento imediato e intimo que possuímos, ou seja, com o que Bergson denomina de nossa “intuição”.

O tema da intuição se torna relevante nos dias atuais, especialmente quando constatamos que a sociedade clama por uma alternativa de compreensão do humano, na esperança de que os valores socioculturais se deem de forma mais integral, capaz de equilibrar a presença de uma racionalidade exacerbada, que valoriza o pensamento lógico e os mecanismos de apreensão do conhecimento, com uma consciência pautada na sensibilidade.

O conceito ‘intuição’ já de longa data foi visto pelos filosóficos gregos com um termo de múltiplos sentidos. Interessa-nos o fato de que o termo vem da palavra latina intuitus: “in”- em, dentro, e “tuitus”, do verbo particípio passado de “tueri” - olhar, ou seja, “um olhar para dentro” ou, simplesmente, “olhar dentro” (MUNIZ, 1988).

Bergson (1974) diz que o espírito é objeto da intuição e, por meio dele, é possível apreender a realidade. Trata-se de uma percepção imediata, voltada para dentro de si. Sem a intervenção de mediadores, podemos, de forma sintética, imediata e ancorada na experiência, obter uma percepção sensível e peculiar pela intuição.

Não se trata de uma experiência sobrenatural. Mas aquele que sente intui com uma dimensão espiritual, com uma sensibilidade que o habilita a juntar os pensamentos dispersos e prepara o sujeito a responder com uma ideia nova (mediante sua experiência acumulada e seu conhecimento prévio) diante de determinados contingentes da vida prática.

Então, para Bergson, o conhecimento prevê duas formas que caminham para direções na atividade do pensamento: inteligência e intuição.

A intuição opõe-se à inteligência. Não que a inteligência seja inútil: ela serve para fabricar, é principalmente geométrica, técnica [...]. O mundo tecnológico é sua obra. Mas a intuição não serve para agir, e sim para compreender. Não se compreende nada da vida quando se pensa através de conceitos que são destinados a agir sobre a matéria (conceitos matemático-físicos...), é preciso partir da intuição, da experiência “de ser vivos”, do movimento da própria vida. 
E isto vale para todas as coisas. A intuição é, pois, método de conhecimento, e ela é também libertação, já que sem ela somos condenados a viver apenas num mundo útil. (MONTEBELLO, 2007, p.18)

Na vida prática, a inteligência consiste na eficácia da satisfação de interesses materiais, estando atenta à exatidão e às abstrações. A inteligência nesse sentido reelabora as ideias preconcebidas.

Por caminhar numa perspectiva de que o real já está dado, essa inteligência intelectual percebe da realidade somente os momentos fixos e corre no equivoco de não levar em conta a realidade como processo contínuo de fluxos e transformações. A inteligência, por isso, torna-se uma ilusão, sendo incapaz de compreender a natureza do espírito, que consiste em fluir.

A intuição, no entanto, leva em conta a duração, a passagem do tempo, que é um dado da realidade que consiste em um fluxo de criação no qual cada momento é único.

Essa visão desafia nossa vivência pessoal, pois convida a ressignificar o modo como percebemos a realidade. Encoraja-nos a voltarmo-nos para dentro de nós mesmos a fim de estarmos totalmente comprometidos com o momento, com o “aqui e agora”, e plenamente conscientes do presente que passa. A intuição nos auxilia a manter a sintonia com nosso interior, trazendo à tona os estados inconscientes, que nos impulsionam e nos capacitam a criar algo inteiramente novo.

Trata-se, portanto, de um conhecimento intuitivo, advindo dos sentidos, de uma emoção arrebatadora, da sensibilidade que não descarta a razão, ao contrário. A razão, nesses termos, estaria a serviço da intuição, dando lugar aos sentimentos.

Mas a intuição de Bergson aponta para além da personalidade psíquica individual, ela apreende, sim, o modus vivendi psicológico, que consiste em produzir atos livres, mas também desvela que o universo é um movimento de expansão cujo germe está baseado em uma intuição espontânea, num élan, numa potência ativa e se torna uma força evolutiva que possibilita a criação.

Élan vital e Processo de criação
Seria uma tarefa impossível, nesse artigo, compreender toda a complexidade do pensamento de Bergson, mas para direcionar nossa atenção sobre a criatividade, julgamos ser oportuno esclarecer o conceito de ‘élan vital’, que remete ao processo evolutivo dos seres vivos, em caráter individual ou coletivo.

O conceito de élan vital diz respeito à potência que consiste na criação, no ato de gerar em meio a um constante esforço direcionado ao fazer surgir.

Bergson admite que o processo criador se revela nas atitudes individuais e no dinamismo interno do ser, bem como no campo das ciências, das técnicas e das artes. Na sua concepção, todavia, o ato criativo adquire sentido quando compreendido como movimento criador que se enraíza na força de um élan (ardor, fervor).

A criatividade, então, deve ser compreendida à luz do aspecto dinâmico, em que pode ser encontrada em toda a parte, no todo ampliado da vida, na história do universo marcado pela mudança e pela temporalidade que lhe é constitutiva. Logo, toda existência deve ser entendida como um processo contínuo de mudanças em que o novo surge.

Bergson sugere que o élan vital seja uma força virtual e vital, presente em toda forma de vida. O élan pode ser percebido pelo esforço das espécies em se manter e em lutar pela vida.

O élan motiva a perseguição de um propósito que se expressa e se afirma, tal qual um motor que impulsiona o pensamento sendo inerente à vida. Por isso, é o responsável pelas mudanças constantes que se operam na natureza e pelas diferenciações existentes na vida biológica que nos cerca. Vida que se vê marcada pela criação e pela imprevisibilidade, mas principalmente pela duração.

O ser humano, na condição de espécie, tenta adaptar-se ao meio ambiente, buscando sempre “autonomia e memória”, com objetivo de permanecer e durar no tempo (VIEIRA, 2008b,

p. 19).

No dizer de Bergson: 
 
“O universo dura. 
Quanto mais aprofundarmos a natureza do tempo,
 melhor compreenderemos que a duração significa invenção,
 criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo”
 (BERGSON, 2005, p. 12).

“Como o universo em seu conjunto, 
como cada ser consciente tomado em separado, 
o organismo que vive é algo que dura. 
Seu passado prolonga-se inteiro no seu presente,
nele permanece atual e atuante”
(BERGSON, 2005, p. 16).

Se até aqui nos parece claro o conceito de élan, penso que precisamos de um tempo maior para meditar sobre o que Bergson quis dizer a respeito de mudança e duração. Seu pensamento é encharcado de uma profundidade - e não podemos avançar nossa reflexão sem compreender o significado desses conceitos. Menos útil seria nos adiantarmos sem conseguir aplicar tais conceitos à nossa área de interesse, a saber: a criatividade. Segue então um élan, que pode ser entendido aqui como um ímpeto nosso, que caminha na tentativa de esclarecer o que pensava Bergson.

Tempo: Mudança, Duração e Memória.
Desde que Albert Einstein (1879-1955) argumentou em defesa da teoria da relatividade, já se tornou sabido que há uma íntima conexão entre tempo e espaço, portanto um “espaço--tempo”. Henri Bergson, por razões filosóficas, foi duramente criticado por se recusar a aceitar tais noções. Hoje, no entanto, ele é valorizado justamente por haver apontado uma visão que avança para além do amálgama espaço-tempo.

Dentre os cientistas que reconheceram o alcance do pensamento de Bergson, encontra-se Ilya Prigogine, que valorizou as intuições bergsonianas em relação ao tempo. Nas palavras de Ilya:

Com efeito, uma ciência que tenta, a partir de um “real” inteligível, mas intemporal, reconstruir a verdade objetiva dos fenômenos certamente não poderá compreender a “experiência íntima do tempo” de Bergson (PRIGOGINE E STENGERS, 1992, p. 35).

Bergson fala de um tempo vivido, tempo que diz respeito à nossa experiência imediata, aquele diferente do tempo mensurável pela física ou do tempo estanque como o método científico que se propõe a explicar a realidade. Segundo Bergson, o tempo dos filósofos e dos cientistas oculta a natureza do tempo real, pois o tempo da experiência vivida é sucessão, continuidade, mudança, memória e criação, ou seja, está vinculado aos acontecimentos físicos e psicológicos.

Reforçamos que o tempo foi alvo das reflexões de Bergson:

 “De que serve o tempo? [...] O tempo é o que impede que tudo seja dado de uma só vez.  Ele atrasa, ou antes, ele é o atraso. Deve, pois, ser elaboração. Não seria, então, o veículo de criação e escolha?
 A existência do tempo não provaria que há certa indeterminação nas coisas?” (BERGSON apud PRIGOGINE, 1996, p.22).

Ainda ficamos com as interrogações: Por que, então, as questões que envolvem o tempo são tão sedutoras para nós? E por que foi para Bergson? Por que pensar as questões do tempo nos remete à criatividade?

Primeiramente, porque quando se pensa na intensidade da vida, no fluxo da história, no cotidiano, no comportamento e nas ações humanas, valorizamos intensamente o instante, as horas, os dias, a duração, o tempo, enfim.

[...] é sabido desde a própria origem do pensar filosófico que o tempo é um enigma e um desafio insolúvel que se coloca ante a nossa capacidade de compreensão. [...] A experiência do tempo é penetrante, íntima e imediata [...] o tempo é um componente de todas as formas de conhecimento humano, de todos os modos de expressão e está associado às funções da mente. É também um aspecto funcional do Universo. (WHITROW, 2005, p. 9).

Todavia, constatamos que o tempo foi e ainda é compreendido de várias maneiras. Pode ser entendido como fenômeno, mensurado em antes e depois, ou também dado a priori. Com efeito, percebemos no senso comum o tempo imerso no cotidiano pelo uso da linguagem e também da sensibilidade:

[...] A sensibilidade está sempre em atraso em relação às aquisições da inteligência, e ainda hoje somos levados ancestralmente a pensar que o “sol se ergue” mesmo que já faça três séculos e meio que nossos antepassados aprenderam na escola que o sol não se move. (ECO, 2005, p. 158).

Fica claro que o tempo se comunica com todas as áreas da vida humana, estabelecendo, a partir da percepção e do modo como ele é compreendido, o princípio da ação na vida pessoal e coletiva.

O processo de criação, que está inserido no tempo, é, igualmente, um estado de tempo particular para cada sujeito. A hipótese que se aventa caminha na direção de haver diferentes temporalidades (internas e subjetivas) durante os procedimentos e as ações criativas.

Bergson propõe pensarmos o tempo como um fluxo ou mesmo como uma duração, ou seja, as coisas duram, mas também mudam. Isso implica dizer que a sucessão é contínua, mas também passível de mudança, por isso a mudança é heterogênea. Para Bergson, toda mudança é o mesmo que memória. Então, Bergson reflete sobre o tempo duração como sendo um movimento interno, ininterrupto, indivisível e contínuo, onde a memória prolonga o passado no presente.
“A evolução do ser vivo, como a do embrião, 
implica um registro contínuo da duração, 
uma persistência do passado no presente, e, consequentemente, 
pelo menos uma aparência de memória orgânica”
(BERGSON, 1991, p. 510).

A memória, como procuramos prová-la, não é uma faculdade de classificar recordações em uma gaveta ou de inscrevê-la em um registro, não há gaveta, não há aqui, propriamente falando, sequer uma faculdade, pois uma faculdade se exerce intermitentemente, quando quer ou quando pode, ao passo que o amontoamento do passado prossegue sem trégua. Na verdade, o passado conserva-se por si mesmo, automaticamente. Inteiro, sem dúvida, ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos, quisemos desde a nossa primeira infância está aí, debruçado sobre o presente que a ele irá juntar-se, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo para fora.
 
 O mecanismo cerebral é feito exatamente para recalcar a quase totalidade do passado no inconsciente e introduzir na consciência apenas aquilo que é de natureza a iluminar a situação presente, a ajudar a ação que se prepara, a restaurar enfim, num trabalho útil. (BERGSON, 2005, p. 05).

Na visão de Bergson, toda história que vivemos desde o nosso nascimento torna-se presente: “[...] Sem dúvida, pensamos apenas com uma parte do nosso passado, mas é com nosso passado inteiro, inclusive nossa cultura de alma original, que desejamos, queremos, agimos”. O autor continua: 
 
“Nosso passado, portanto, manifesta-se-nos Número
integralmente por seu impulso e na forma de tendência, 
ainda que apenas uma sua diminuta parte se torne representação” 
 (BERGSON, 2005, p. 06).
Então, essa visão considera todo fenômeno que se passa na história como um fenômeno de conjunto, isto é, as relações dinâmicas ocorrem na interdependência entre o cultural, o histórico e o biológico, legitimando esse emaranhado de ações humanas no tecido social, que se dá ao longo de um tempo, supondo uma realidade em movimento, ou seja, instável, em constante transformação. Seus pressupostos dizem respeito ao tempo que constrói o caminhar dos homens, demarcando gerações, criando ritmos que regulam suas vidas, seus trabalhos e suas linguagens.

Os acontecimentos e as determinações passadas interferem no presente, tornando possível como diz Bergson: “a continuidade do que não é mais no que é”. Isso significa que o passado de uma pessoa pode se “conservar na memória” desta e, de alguma forma, influenciar o presente e criar possibilidades de futuro. O filósofo continua: .A verdade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada”.

Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples ‘signos’, destinados a nos trazerem à memória antigas imagens. [...] Por mais breve que se suponha uma percepção, com efeito, ela culpa sempre uma certa duração, e exige consequentemente um esforço da memória, que prolonga, uns nos outros, uma pluralidade de momentos. Mesmo a ‘subjetividade’ das qualidades sensíveis, como procuraremos mostrar, consiste, sobretudo em uma espécie de contração do real, operada por nossa memória. Em suma, a memória sob essas duas formas enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas. (BERGSON, 2006, p.30,31)
Dito de outro modo, o passado pode ser matéria de um possível potencial criativo. Ele coexiste com o presente, pois incide no presente que passa e projeta o futuro. A consciência torna-se, então, um campo em que atuam a percepção do real e a memória, o mesmo que presente e passado atuando em um fluxo contínuo que jamais se encerra estaticamente.

Os tempos filtrados pelo sujeito se fundem, constituindo a historicidade do processo criativo,e se tornam a memória que permite estabelecer relação com seu passado vivido (repertório) e com o presente quando se propõe a criar. Cada experiência possui seu tempo diferente, o que favorece a adaptabilidade, a criatividade e mais: como resultado de uma expressão criativa, podemos notar a relação entre continuidade e mudança. É algo novo que surge, mas é também a continuidade imbricada pelo passado que não é mais.

A semelhança do élan que move o desenvolvimento e a expansão do universo, o élan que move a criatividade, impulsiona o pensamento, alimenta a experiência pessoal, possibilita o trabalho, amplia a prática, mas reinsere nas produções diversas os contornos históricos e culturais do sujeito.

Então, as condições de resistência e conflito com o próprio tempo, na experiência criativa e sob o movimento particular das emoções, dispersões e ideias, fazem o processo de criação fluir no seu próprio ritmo, por entre pausa, descanso, aceleração, reflexão, instabilidade, interrupções,mudanças e retomadas. Trata-se de uma multiplicidade de momentos ou de temporalidades vivenciadas pelo sujeito que realiza, projeta, cria, sempre em busca da duração: “A duração é o processo contínuo do passado [...]” (BERGSON, 2005, p 05). Pode ser considerado como um fluxo contínuo de mudança, de transformação ininterrupta.

A duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distintamente a imagem incessantemente crescente do passado, seja, mais ainda, porque testemunha a carga sempre mais pesada que arrastamos atrás de nós à medida que envelhecemos. Sem essa sobrevivência do passado no presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade. (BERGSON, 1993b, p.200)

Em última instância, criamos o novo com os pressupostos do passado, com as experiências acumuladas na nossa história pessoal, com o contexto biológico e cultural no qual estamos

inseridos. Criamos com uma temporalidade psíquica distinta, que pode ser representada como “um espaço ideal, onde supomos alinhados todos os acontecimentos passados, presentes e futuros[...]” (BERGSON, 1993a, p.9).

Ainda que haja uma apropriação de uma ideia, de uma representação de outrem ou do próprio sujeito, a criatividade que traduz algo em forma de representação simbólica não o faz baseado na repetição ou na cópia de impressos anteriores, pois a mudança é constitutiva do real. Bergson, diz: “[.] creio na mutabilidade da realidade [.]”(BERGSON,1979, p.08).

O pensamento recolhe, organiza, sintetiza uma ideia e a cada instante acolhe o que é útil e rejeita o supérfluo. Essa mudança contínua e heterogênea é memória propiciadora de imprevisibilidade e novidade.

Bergson introduz um elemento de incerteza na previsão do futuro, demonstrando, desse modo, o caráter não determinista da criatividade. E assume que a criatividade é inseparável do processo de viver. Afinal: “[…] aquilo que fazemos depende do que somos; mas impõe-se acrescentar que somos, até certo ponto, o que fazemos, e que criamo-nos a nós mesmos continuamente” (BERGSON, 2005, p. 07).

Essa dinâmica que envolve o processo criativo pode revelar-se nos indivíduos, mas, antes de tudo, essa perspectiva leva em consideração o fato de que a criatividade humana como expressão singular é comum a todos os níveis da natureza, ou seja, a criação revela-se na evolução da vida que se mostra criadora e faz com que a realidade surja como um jorro ininterrupto de novidades. É o élan vital que prevalece na totalidade do mundo.


Considerações finais
Com essa breve descrição, procuramos tecer uma rede cujos fios em forma de rizoma apenas deixam ainda mais aparente a ideia do potencial que é a criatividade e da complexidade que envolve seus conceitos.

Para aqueles que se identificam com as premissas dessa temática, nosso intuito foi o de aproximar o leitor ao movimentado pensamento de Bergson, pinçando desse autor o que tange a sua visão sistêmica especialmente quando este deixa de lado as dicotomias entre processos biológicos e processos cognitivos, pois acreditava na unidade entre vida e conceitos e apontava para uma teoria do conhecimento sendo inseparável de uma teoria da vida.

Com o conceito de élan vital, Bergson reafirma a tendência que a vida tem para a mudança e para a diferenciação, e abre a possibilidade para que a novidade e a criatividade surjam em todas as esferas da vida.

Bergson evidencia a criação como processo ativo e propõe o tempo subjetivo que reafirma a produção de uma multiplicidade de histórias, as quais revelam a expansão e as possibilidades de novas criações.

A intenção foi apontar o fato de que o tempo articula a experiência humana da vida com o tempo do universo e da história, que compreendem os processos humanos e os do universo imbricados numa relação dinâmica. Essa visão nos força a uma leitura da realidade do fenômeno cultural na dimensão de um élan, que se oferece no contexto da história – lugar em que se permite a comunicação, a experiência vivida, as trocas e os envolvimentos interativos com outros tipos de sociedade e com as várias linguagens, mas principalmente possibilita o surgimento do novo, isto é da criatividade.

Dessa forma contextual, os resultados de produção e do pensamento humano, bem como a experiência vivida, a cultura e o meio ambiente estarão sujeitos a alteração e a gestão de coisas novas.

Esperamos ter sido possível considerar nesse curto diálogo com Bergson o processo de criação como um fenômeno contínuo, sendo a semelhança da história e do universo um infinito campo de imprevisibilidade, de incertezas e de contradições que envolvem a ordem e a desordem, as aproximações e as distâncias, e toda complexidade que, movida pela intensidade da força propulsora de um élan, propicia a singularidade do psíquico, mas também da própria vida.

Por fim, diante de toda vibração do pensamento de Bergson, ou ficamos paralisados ou aceitamos o desafio de tatear por um território cuja hipercomplexificação de conceitos se faz rica a cada leitura. Nossa intenção foi aceitar primeiramente a dupla proposta de Bergson: a necessidade de um voltar-se para dentro e a sua insistência em afirmar que só existem percepção e pensamento a partir do movimento e na medida em que este gera movimento.

Movimentamo-nos na busca do novo e nos deparamos com a capacidade ativa, que se efetiva com a criatividade humana, mas trazendo sempre à mente o sentido da potência do élan vital, que despe o ser humano de todo orgulho quando este supõe ser superior a todos os outros seres da natureza. Na imensidão de um Cosmos infinito e em devir, compreendemos a nossa pequenez e a nossa insignificância.

Conscientes da nossa incompletude, podemos pensar que a nossa busca por conhecer continua em processo sempre aberto sem o fundamento dogmático das certezas.

Nosso desafio em dialogar com Bergson amplia o conceito de criatividade ao incorporar o conhecimento racional acumulado, o intuitivo que é imprevisível e base para toda existência.
Existir 
supõe ação criativa, supõe duração.
Compreender tal dimensão exige, sobretudo, uma atitude de despojamento diante das ideias preconcebidas. Como diz Caeiro:
“Isso exige um estudo profundo/
Uma aprendizagem
de desaprender”.

(PESSOA, 2005, p. 49)
 
 
Abstract:
The present paper proposes a brief discussion on several theoretical contributions on the creative phenomenon
that, along time, have been made concerning such rich theme. The aim is to point to our theoretical
target which will be based in some assumptions by French philosopher, Henri-Louis Bergson
(1859-1941), who alludes to the non-determinist or unpredictable character of creativity that, according
to his point of view, accompanies the living process. The philosopher also indicates the vital elan
as an impulse or force which moves the development and expansion of the universe, but also moves the
creative processes and gives impulse to thought, feeds personal experience, makes work possible, broadens
practice and re-inserts in several productions the historical and cultural outlines of any subject.
Keywords: time; change; duration; memory
 

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Como citar este artigo
SILVEIRA, Isabel Orestes. Criativdade: entre tantas vozes, um diálogo com Bergson. Tessituras & Criação.
No. 2 Dez 2011 [suporte eletrônico] Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/tessitura>. Acesso em
dia/mês/ano. 


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