Marcel Proust e o triunfo da memória
Marcel Proust: o grande monumento literário do século XX para a memória cultural
A la recherche du temps perdu é a história do nascimento de uma vocação de escritor, ou o romance do romance, ou do romancista. É, ainda, a história de uma época e de uma consciência, marcada pela observação e introspecção; é o mundo e o eu, pois a grande descoberta de Proust é que o mundo não se ordena somente em torno de nós, mas está em nós, somos nós mesmos.
Há, de um lado, a observação irônica e satírica dos modos de uma sociedade; do outro, uma análise prodigiosamente delineada das impressões mais tênues da consciência e das nuances mais subtis do pensamento. Uma parte de A la recherche procede da orquestração literária dos milagres da memória afetiva; outra parte da obra apresenta um quadro da sociedade, uma crônica dos tempos.
As passagens mais poéticas figuram, sobretudo, no primeiro tomo [1], consagrado às lembranças da infância e da juventude de Marcel.
A passagem do narrador da terceira (il) para a primeira (je) pessoa[2] coincide com o desejo de fundar o romance sobre uma experiência íntima. O narrador de A la recherche empreende uma constituição do passado, uma vez que o presente indeterminado onde ele está situado é como o termo absoluto de sua existência. Não há futuro para ele.
A ambição do narrador
é recuperar a totalidade
de sua experiência vivida.
E o modo que o narrador encontra para recuperar tais experiências é por meio da arte, capaz de decifrar a significação das aparências.
Para o autor de Le roman depuis la Révolution,
[e]ntre l’inconsistance d’un présent qui glisse à la surface des choses et le charme d’un passé dont ont est tragiquement séparé, le souvenir et, en particulier, les experiénces privilégiées de la mémoire affective fournissent la matiére d’une vraie vie, liberée des contingences et saisie dans la pureté de son essence. L’art n’est point divertissement, mais retour à soi (RAIMOND, 1967, p. 150)[3].
Desse modo, passa-se do plano da vida ao plano da arte, pois o real já não pode mais satisfazer o espírito. Então, o romancista irá buscar nas profundezas de seu passado a exploração de um espaço interior do qual irá surgir, de modo fragmentado, rostos, fragmentos de paisagens, um barulho de talher ou o cheiro de um perfume de aubépines, de modo que a narrativa apresente uma composição arquitetônica das lembranças rememoradas, pois “o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência”, conforme assinala Benjamim (1994, p. 37).
Proust não descreve uma vida
como ela de fato foi,
mas uma vida lembrada por quem a viveu.
A ambição do narrador proustiano é, em essência, recuperar a totalidade de sua experiência vivida por meio da arte. Tanto é verdade que o autor termina o livro exatamente no momento em que a personagem Marcel inicia o seu. Notamos, portanto, a estrutura circular dessa narrativa em que o passado é tido como o tempo privilegiado.
A personagem Marcel busca as experiências
vividas no passado, principalmente aquelas
relacionadas à sua infância.
É válido ressaltar que não devemos confundir a personagem com o autor, pois aquele pertence ao universo da ficção e é como personagem que “assume a função de herói em torno do qual se constrói o mundo romanesco criado por Proust” (SOUSA-AGUIAR, 1984, p. 17).
O próprio Proust criticou, em Contre Sainte-Beuve, o “método célebre” da crítica,
selon laquelle l’oeuvre d’un écrivain serait avant tout le reflet de sa vie et pourrait s’expliquer par elle. En fait, plus une sensibilité créatice est riche et complexe, moins elle est réductible aux donnés visibles d’une biographie: ‘Un livre, dit proust, est le produit d’un autre moi que celuis que nous manifestons dans nous habitudes, dans la société, dans nos vices’” (apud LAGARDE; MICHARD, 1969, p. 219)[4].
Sendo assim, a obra proustiana nos revelará da sociedade francesa mais que sua existência frívola e fácil, uma realidade quase continuamente dolorosa e atormentada, turbulenta, haja vista que a arte mergulha suas raízes na vida social, de modo a desmascarar as várias facetas que a compõem, como, e.g., os tormentos, os segredos e o esnobismo, que propiciam ao romancista um inesgotável campo de análises de uma sociedade que vive de aparências.
De acordo com Benjamim, Proust descreveu uma classe obrigada a dissimular integralmente sua base material, e que em conseqüência precisa imitar um feudalismo sem significação econômica, e por isso mesmo eminentemente utilizável como máscara da grande burguesia. Esse desiludido e implacável desmistificador do Eu, do amor, da moral, como o próprio Proust se via, transforma sua arte imensa num véu destinado a encobrir o mistério único e decisivo de sua classe: o econômico (1994, p. 44-45).
Exemplares desses valores sociais e econômicos desvelados na obra de Proust são os salões, freqüentados, supostamente, pela alta burguesia francesa. O núcleo dos Verdurin é o mais referido na obra e destaca-se por seus membros, quase todos homens, que são escolhidos minuciosamente pela Sra. Verdurin ao levar em consideração, principalmente, a posição econômica na sociedade.
Proust oferece um retrato da sociedade francesa e uma caricatura dos costumes sócio-culturais de uma classe que vive no plano do eu superficial que se deixa levar pela exterioridade, pela coletividade e, sobretudo, pelo aspecto mecânico da vida social.
Assim, o narrador põe em relevo
o caráter artificial das condutas mundanas.
O próprio narrador adverte ao leitor “que não freqüenta a sociedade para ‘tomar notas’ ou ‘fazer um estudo’, mas para observá-la por dentro, para vê-la pelo interior” (LINS, 1968, p. 117). Podemos dizer que se trata de uma transfiguração da realidade por meio de uma visão estética, ao contrário de um Stendhal ou Balzac, Dickens ou Tolstoi, em que a “impureza” salta aos olhos; impureza advinda da tentativa de uma reprodução exata de uma realidade diretamente perceptível.
A memória voluntária e a memória involuntária em Proust
A sociedade moderna é marcadamente industrializada e capitalista. É a época do progresso científico, industrial e, sobretudo, da aceleração do tempo.
O homem moderno
não consegue se integrar feliz
nessa sociedade.
Não estabelece uma relação de correspondência, de analogia com essa sociedade capitalista, industrializada, em que a essência do ser é coisificada. Sendo assim, há uma negação, uma ruptura entre o artista moderno e essa sociedade.
Octavio Paz (1984) demonstra que essa negação pode ocorrer de dois modos: pela ironia e pela analogia. A ironia seria a própria manifestação dessa fissura estabelecida entre o eu e o mundo moderno, ao passo que a analogia representa a busca do eu por um lugar em que não houvesse se estabelecido essa fissura e fragmentação do eu. A infância é, por excelência, o espaço com o qual o artista moderno irá estabelecer uma relação de analogia, de correspondência.
Deste modo, a recordação da infância, o trazer de volta ao coração, torna-se um meio de resistência ao desencantamento do mundo moderno e propicia, sobretudo, a ressacralização da memória, uma vez que a invocação do pretérito está intimamente ligada à angústia ancestral da humanidade frente à irreversibilidade do que passou, à transitoriedade do tempo, frente, em última instância, à fugacidade da vida, à morte.
Mas, no caso da arte moderna,
a recorrência à memória como impulso
primeiro de criação está ligada também à fratura
que se opera entre o artista moderno
e a época moderna.
Não conseguindo se integrar na sociedade burguesa, não encontrando ressonâncias para sua arte na cidade modernizada, desacreditado do progresso técnico e científico, sofrendo as conseqüências dessas e de outras fraturas tais que, o artista busca freqüentemente, em sua criação, recuperar um tempo em que ainda não houvesse se manifestado essa cisão entre o eu e o mundo. Floresce, assim, abundantemente, a recriação artística de um passado - notadamente a infância - em que é possível viver em estado de graça, com o qual é possível manter uma relação de fusão (YOKOZAWA, 1998, p. 63-64).
No romance de Proust, é exatamente por meio das sensações, dos sentidos, que propiciam a recordação, o rememorar, que o personagem-narrador Marcel irá voltar a Combray, ao mundo da infância, que simboliza o microcosmo, o abrigo fechado e seguro para o qual o herói deseja voltar; microcosmo que se transforma no macrocosmo também fechado e circular da obra como um todo.
Para Sousa-Aguiar,
o prazer provocado por tais sensações não depende diretamente delas, mas se deve ao fato de que, pertencendo simultaneamente ao presente e ao passado, provocam uma momentânea libertação do tempo e da contingência pela projeção do sujeito que as experimenta num plano intemporal e situado fora do espaço limitador (1984, p. 25).
É pela memória involuntária que Marcel irá ressuscitar o verdadeiro paraíso perdido, a imagem idealizada, idílica, da paz da infância feliz em Combray. O passado torna-se a matéria, única e singular, da obra de arte.
De acordo com a teoria de Bérgson (1998), há duas formas de sobrevivência do passado:
1) em mecanismos motores e
2) em lembranças independentes.
A memória voluntária é aquela adquirida pelo hábito, pela repetição de um mesmo esforço, de uma mesma ação, como, por exemplo, saber usar um computador, dirigir um carro, pedalar em uma bicicleta. Trata-se, pois, de uma lembrança-hábito, de uma lembrança-adquirida, conquistada pelo esforço e dependente de nossa vontade.
Por outro lado, a memória involuntária ou lembrança-espontânea independe de nossa vontade, surge de uma lembrança e é imprevisível. Há como que uma amplificação de um ponto do passado. É o resultado de uma emoção, de uma sensação, que pode ser olfativa, auditiva, gustativa ou pelo tato, haja vista que a percepção pela visão é, por excelência, representante da memória voluntária.
Proust e Bérgson viveram
praticamente na mesma época e tiveram,
é bem provável, os mesmos professores
no Liceu Condorcet.
Como denominador comum entre os dois podem-se estabelecer os seguintes pontos: o tempo, a memória, a dupla vida do eu, o papel da intuição e da sensibilidade em face da inteligência.
É válido ressaltar que Proust se nega
e recusa-se a aplicar ao seu romance
o epíteto de bergsoniano,
“pois afirma que a distinção essencial
entre a memória involuntária e voluntária
em que este se baseia é contrariada
pela filosofia de Bérgson”
(SOUSA-AGUIAR, 1984, p. 150).
Devemos evidenciar ainda a reação de ambos ao Positivismo e ao materialismo tainiano do fim do século XIX, sob influência do filósofo Alphonse Darlu, que defendia um racionalismo idealista. Entretanto, há mais divergências do que confluências entre os dois.
Para Bérgson,
o tempo é, sobretudo, “duração”,
entendida em oposição ao tempo mensurável
e destruidor, acompanhada de um movimento
de entusiasmo e de uma perspectiva otimista.
Já para Proust, o tempo é, principalmente,
a fragmentação do eu.
Em se tratando de tempo e espaço, Bérgson estabelece uma relação essencialmente opositiva em que o tempo aparece como dinâmico, não espacializado, como unidade e simultaneamente eterno. Além disso, de acordo com sua teoria, a totalidade do passado é conservada em seus mínimos detalhes. Trata-se, portanto, de uma lembrança individual em que a determinação histórica da experiência é rejeitada por Bérgson.
Ao lermos A la recherche du temps perdu, observamos que Marcel, ao recuperar o passado, o tempo perdido, não rememora somente o tempo, mas também o espaço onde tais eventos ocorreram. Espaços internos, como a casa e o quarto e espaços externos, como o jardim, a praça, as ruas e as estradas. Entretanto, esse passado que ressurge é descontínuo e fragmentário, de onde apenas um pequeno número de lembranças é resgatado do “edifício imenso da recordação” (CS, 1998, p. 51).
Há, dessa forma, uma relação estreita entre tempo e espaço em Proust, pois a lembrança individual seria, na verdade, um ponto de vista sobre a memória coletiva, para falarmos com Halbwachs, ex-aluno de Bérgson, que contestou suas teorias acerca da lembrança individual dissociadas do aspecto social.
De acordo com Sousa-Aguiar (1984), a memória e o tempo subjetivo, aspectos fundamentais da vida psicológica, só podem ser considerados corretamente na reflexão proustiana quanto bergsoniana a partir da concepção de um eu duplo:
1) o eu superficial e social e
2) o eu profundo e original.
Proust e Bérgson concordam em relação ao eu superficial que se deixa levar pela coletividade, a projetar-se para a exterioridade, movido pelo aspecto mecânico. As experiências desse eu são exteriores e superficiais, como verificamos nos salões da sociedade francesa que são retratados por Proust.
Em relação ao eu profundo, Bérgson acredita que não há uma cisão entre os dois eus, tendo em vista que a personalidade é una, ao passo que para Proust haveria uma descontinuidade que se instalaria entre os dois eus, pois as experiências desse eu são emoções profundas, como o amor, a vida espiritual e, sobremodo, estética. A descontinuidade, em Proust, opera-se até mesmo no seio do próprio eu profundo, pois a memória involuntária faz alternar a lembrança com o esquecimento. O resultado dessa descontinuidade é a fragmentação das lembranças rememoradas por Marcel e, mais tarde, por Swann.
De acordo com Benjamin (1994, p. 450), Proust não nos faz vislumbrar uma eternidade de tempo infinito, mas a eternidade de um tempo entrecruzado, resultado do envelhecimento (externo) e da reminiscência (interno), ou seja, diante de uma sociedade moderna, em que o eu apresenta-se esfacelado, fragmentado e envelhecido pela ação do tempo externo é no “edifício imenso da recordação”, no reino das “correspondências”, da memória involuntária, que o narrador irá buscar o seu rejuvenescimento para enfrentar o envelhecimento.
A respeito da memória voluntária assim se manifesta o narrador proustiano:
Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim (CS, 1998, p. 48).
A memória voluntária, a memória da inteligência é incapaz de ressuscitar as lembranças mais profundas do “palácio da memória” do narrador, que só podem ser trazidas à tona por meio das sensações, das correspondências de uma sensação presente análoga à outra passada, fazendo reviver as imagens de outrora, as lembranças desagregadas pelo tempo, responsável pelo envelhecimento exterior do ser.
É através da sensação do paladar de um pedaço de uma madelaine, embebida em uma xícara de chá, que propicia uma alegria indizível, que permite a Marcel resgatar uma imagem interior rejuvenescedora: a lembrança visual ligada ao sabor desse biscoito, quando ia, pela manhã, aos domingos, ao quarto de tia Léonie, dar-lhe um beijo antes de sair para a missa.
Sensações análogas à da madelaine embebida em uma xícara de chá ocorrem quando Swann, já envelhecido, durante a recepção de Mme. de Saint-Euverte, ouve a “pequena frase” da sonata do músico Vinteuil e rememora os tempos de outrora em que Odette de Crécy era enamorada por ele e, sobremodo, aqueles momentos felizes que passavam juntos nos salões.
Outras sensações significativas na narrativa proustiana são aquelas três sensações seguidas, que acometem Marcel, já adulto, em O tempo redescoberto, durante a recepção da princesa de Guermantes.
A primeira sensação ocorre quando Marcel, ao entrar no pátio da residência dos Guermantes, em um momento de distração, não vê um carro que se aproximava, e ao grito do wattman, recua e tropeça nas pedras irregulares do calçamento em frente à cachoeira. De súbito, uma sensação inexplicável, análoga a que sentira quando comera o pedaço de madeleine embebida no chá, lho envolve e o possibilita reconstituir e reconhecer a “sensação outrora experimentada sobre dois azulejos desiguais do batistério de São Marcos” (TR, 2001, p. 149) em Veneza.
A segunda sensação refere-se ao ruído de uma colher no prato, provocado por um deslize do copeiro, que faz Marcel reviver a sensação de uma de suas viagens de trem, em que estava enfastiado de observar e descrever as árvores de uma paisagem silvestre, tomando uma caneca de cerveja. A sensação é tão forte e real que Marcel chega mesmo a acreditar que está novamente dentro do vagão até que o ruído de um martelo de algum empregado, que conserta alguma coisa, em uma das rodas do trem, o faz despertar e retornar à biblioteca do palácio, onde aguarda para adentrar no salão em que será realizada a recepção da princesa.
Por fim, um copeiro, antigo no serviço do príncipe, ao reconhecer Marcel, traz-lhe um prato de petits-fours e um copo de laranjada. Marcel, ao enxugar os lábios no guardanapo, engomado exatamente como aquela toalha de Balbec, sente novamente um emaranhado de sensações e de imagens o conduzirem à praia de Balbec, às férias frustradas, pois se sentia triste e fatigado na época. O roçar do guardanapo provoca-lhe uma sensação análoga àquela que lhe provocou a toalha engomada com a qual tivera tanta dificuldade em enxugar-se defronte da janela de seu quarto.
É exatamente a partir dessas sensações que o narrador se abandona a cantar seu êxtase, sua felicidade, seu sentimento de renascimento, sua certeza de ser salvo porque ele entrevê a possibilidade de criar uma obra: uma obra vinda das “reminiscências”.
Trata-se, portanto, de uma memória poética involuntária, de uma “mnemopoética”, capaz de curar “dos medos do tempo e da morte e traz[er] felicidade aos seres humanos que a ela se confiam” (WEINRICH, 2001, p. 212), que se serve dos sentidos, com exceção da visão, que é utilizado na “mnemotécnica”.
Weinrich, ao refletir sobre a poesia da lembrança surgida das profundezas do esquecimento em Proust, salienta que a memória involuntária passa por baixo de um esquecimento longo e profundo. Muito daquilo que afinal é invocado na memória por uma constelação mais ou menos casual de acontecimentos em si desimportantes, antes disso talvez tenha repousado durante metade de uma vida, oculto nas profundezas de um esquecimento insondável (2001, p. 211).
São exatamente essas lembranças que repousam “nas profundezas de um esquecimento insondável”, no paraíso perdido, que Marcel, por meio de sensações presentes análogas àquelas emoções sentidas em tempos de outrora, irá rememorar.
O único meio que o narrador encontra
para reaver e reter o tempo perdido
é a obra de arte,
pois o escritor tem como dever traduzir as relações
entre as sensações e lembranças
que nos envolvem simultaneamente,
pois [a] grandeza da verdadeira arte, da que Norpois tacharia de jogo de diletante, consiste ao contrário em captar, em fixar, revelar-nos a realidade longe da qual vivemos, da qual nos afastamos cada vez mais à medida que aumentam a espessura e a impermeabilidade das noções convencionais que se lhe substituem, essa realidade que corremos o risco de morrer sem conhecer, e é apenas a nossa vida, a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e tornada clara, a única vida, por conseguinte, realmente vivida, essa vida que, em certo sentido, está sempre presente em todos os homens e não apenas nos artistas. Mas não vêem, porque não a tentam desvendar.
E assim seu passado se entulha
de inúmeros clichês, inúteis porque
não “revelados” pela inteligência.
Captar a nossa vida; e também a dos outros; pois o estilo para o escritor como para o pintor é um problema não de técnica, mas de visão. É a revelação, impossível por meios diretos e conscientes, da diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós
[...] Graças à arte,
em vez de contemplar um só mundo,
o nosso, vemo-lo multiplicar-se [...]
Em suma, esta arte tão complicada, é justamente a única viva. Só ela exprime para os outros e a nós mesmos mostra a nossa própria vida, essa vida que não pode ser “observada”, cujas aparências observáveis precisam ser traduzidas, freqüentemente lidas às avessas, e a custo decifradas (TR, 2001, p. 172).
O passado torna-se, desse modo, a matéria da obra de arte: uma matéria única, singular, que o narrador-personagem Marcel irá imprimir em seu livro, como único meio de reter e fixar a memória involuntária, notadamente de natureza efêmera. O narrador não irá apenas fixar as sensações de outrora, mas interpretar as imagens que são recriadas na e pela memória. Essas sensações tornam-se o leitmotiv que o narrador tanto ansiava por encontrar para iniciar o seu livro, pois o mesmo, desde o princípio da narrativa, manifestara o desejo de escrever um livro.
Esse livro é, na verdade,
o que se acaba de ler,
por isso o caráter cíclico da obra.
Notas:
[1] Neste estudo, tomaremos como corpus o primeiro e o último tomo: No caminho de Swann e O tempo redescoberto, doravante, CS e TR, respectivamente.
[2] Com exceção de Um amor de Swann, toda a obra é escrita em primeira pessoa.
[3] “Entre a inconsistência de um presente que desliza à superfície das coisas e o charme de um passado do qual nos separamos tragicamente, a lembrança e, em particular, as experiências privilegiadas da memória afetiva fornecem a matéria de uma verdadeira vida, libertada das contingências e agarrada na pureza de sua essência. A arte não é ponto de divertimento, mas retorno sobre si mesma”. Tradução de minha autoria.
[4] “Segundo o qual a obra de um escritor será antes de tudo o reflexo de sua vida e se poderá explicar por ela. Em efeito, quanto mais sensibilidade criativa é rica e complexa, menos a obra é redutível aos dados visíveis de uma biografia: ‘Um livro, diz Proust, é o produto de um outro eu que nós manifestamos em nossos hábitos, na sociedade, nos vícios’”. Tradução de minha autoria.
Flávio Pereira Camargo
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