1-3. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.1 in E major, RV 269 "La primavera"
4-6. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.2 in G minor, RV 315 "L'estate"
7-9. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.3 in F major, RV 293 "L'autunno"
10-12. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.4 in F minor, RV 297 "L'inverno"
13-15. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.9 in D minor, RV 454
16-18. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.8 in G minor, RV 332
4-6. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.2 in G minor, RV 315 "L'estate"
7-9. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.3 in F major, RV 293 "L'autunno"
10-12. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.4 in F minor, RV 297 "L'inverno"
13-15. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.9 in D minor, RV 454
16-18. Antonio Vivaldi - Concerto op.8 no.8 in G minor, RV 332
Gustavo Fujiwara
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Henri Bergson: algumas aproximações sobre a arte e a filosofia: a arte como espelho do pensamento filosófico
“(...) quanto mais estamos preocupado em viver, tanto menos estamos inclinados a contemplar, e que as necessidades da ação tendem a limitar o campo da visão.”
Henri Bergson
É certo, para os leitores atentos de Bergson, que a experiência da Duração está aquém daquelas propiciadas pela lógica da inteligência, que por definição, atem-se ao utilitarismo. Apreender o inefável, ou seja, a própria Vida, é intuir o movimento, o jorro incessante das novidades onde ser e tempo se embrenham, é, afinal, coincidir com a própria duração. Destarte, diante desta realidade em si mesma, a qual se apresenta para além da vida pragmática, como podemos, fazendo uso da linguagem que é um instrumento forjado pela lógica utilitária, comunicar nossa experiência profunda do Ser?
Nesta toada, pretendemos realizar uma inflexão das várias obras do filósofo francês, para que possamos entender o modo pelo qual ele concebe a linguagem para falar de uma filosofia que é filosofia da duração. O problema esboçado não pode ser ignorado tendo em vista o projeto bergsoniano [1]. Nossa tarefa será árdua, pois, se Bergson trata daquilo que não pode ser explicado pelo discurso formal, como, ainda assim, ele pode explicitá-lo através de suas obras? Tarcísio Jorge Santos Pinto indica o problema:
A filosofia de Bergson visa conhecer a duração dos seres em sua realidade absoluta, mutável e dinâmica, realidade esta que é apreendida através da intuição e não pode ser representada adequadamente através dos conceitos simbólicos tradicionais – estáticos e exatos – formulados pela inteligência analítica. Estes símbolos apenas efetivam a tradução do ser em função daquilo que é considerado como comum a ele e a toda uma classe de outros seres e que por convenção é tomado como sendo universal. (...) como representar adequadamente então tal experiência intuitiva? (...) para Bergson a linguagem é “um produto da inteligência concebida como faculdade instrumental”. Ou seja, em si mesma a linguagem originalmente não foi feita para representar a fluidez da duração captada através da intuição. [2]
Caso queiramos entender a amplitude do problema que agora nos aparece como paradoxal, devemos explanar algumas trajetórias que compõem o itinerário filosófico de Bergson. Façamos ainda um último aviso: no desenrolar-se desta caminhada, com que espanto esbarraremos na questão da arte como espelho para o fazer-se da filosofia? Acostumados aos ditames da inteligência que assevera o utilitarismo, como não nos espantar com tal fatura bergsoniana?
Primeiro, apresentemos a intuição em detrimento da inteligência, para logo em seguida tornar viável a explicação acerca do esforço criador que faz uso de imagens cujo movimento é similar ao da duração. Depois, caminhemos na direção da arte como exemplo à filosofia, para que assim possamos estudar o estatuto da linguagem.
A metafísica bergsoniana pretende atingir o absoluto, mergulhar no real, diferente das ontologias da tradição filosófica que apenas rodeavam a coisa sem jamais coincidirem com ela. Lemos:
(...) os filósofos, a despeito de suas aparentes divergências, concordam em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que se dêem voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela. A primeira depende do ponto de vista no qual nos colocamos e dos símbolos pelos quais nos exprimimos. A segunda não remete a nenhum ponto de vista e não se apóia em nenhum símbolo. Do primeiro conhecimento diremos que se detém no relativo; do segundo, ali onde ele é possível, que atinge o absoluto.
O método filosófico de nosso autor em comento, sem sombra de dúvidas, é o segundo, onde a coisa em questão é o próprio movimento caracterizado pela Duração. Para ele, a herança filosófica grega, cuja tradição remonta a Zenão, concebia o movimento através de um conjunto de segmentos percebidos por meio da percepção sensível, dava ao Ser a imobilidade em detrimento à mobilidade. O imutável (eterno) detinha para si todas as superioridades, era a própria nervura do real: “A metafísica nasceu, com efeito, dos argumentos de Zenão de Eléia relativos à mudança e ao movimento. Foi Zenão, ao chamar a atenção para o absurdo daquilo que ele chamava de movimento e de mudança, quem levou os filósofos – Platão em primeiro lugar – a procurar a realidade coerente e verdadeira naquilo que não muda” [3].
Em Bergson, o real é alheio as regras da inteligência analítica - forjada pela natureza para que pudéssemos sobreviver -, sendo assim, apreender tal mobilidade incessante e criadora, torna-se tarefa difícil na medida em que fomos criados tendo em vista nossa urgente sobrevivência no mundo. Se o conhecimento que procuramos é estranho ao pragmatismo, devemos dilatar nosso pensamento para aquém de nossas necessidades mundanas; neste sentido, a filosofia compactua com o fazer-se da arte, ambas são conhecimentos desinteressados da Vida, miram certa singularidade. Com isso, anunciamos que o método de tal filosofia será a intuição, diferente dos símbolos e dos pontos de vista que nos situam fora da coisa. A intuição será uma simpatia“pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único, e, por conseguinte, de inexprimível” [4]. Esta intuição será uma visão da totalidade enquanto interioridade, ato simples, consciência imediata da temporalidade interna que habita meu eu mais profundo, será a visão do espírito sobre o espírito. Tida como método rigoroso, ela deve expandir nossa inteligência, insuflá-la pela Duração; a intuição deve reverter a marcha habitual de nosso pensamento voltado para o domínio da vida prática. Quando somos tomados pela experiência intima do Tempo: incessante e gerador de novidades contínuas, só o fazemos porque a intuição torna a inteligência lúcida, mantêm-na em alerta contra sua vocação intrínseca de matematizar e simbolizar o real que nos cerca. Galvanizados pela intuição, não operamos mais pela justaposição, separação, recorte e imobilidade que são as marcas acentuadas do pensamento, mas somos levados a apreender a totalidade do Ser em sua singularidade mais intima e profunda, Rita Paiva assevera:
A intuição mobiliza a inteligência na direção daquilo que, para ela, é inalcançável. Ela nos desvela o espírito, a mudança em seu movimento genuíno e criador (...). Essa experiência, que poderíamos qualificar reveladora, transfigura completamente o pensar filosófico, o qual, em vez de visar o alcance de um todo a partir de suas partes justapostas, instala-se num ponto único onde os sentidos últimos do real podem ser apreendidos de uma só vez em toda a sua simplicidade. (...) Um método que pretenda coincidir com o fluxo contínuo da duração deve trazer em sua própria constituição a espontaneidade e a imprevisibilidade, tal qual seu objeto. [5]
Ainda sobre a intuição enquanto método, Deleuze:
A intuição não é a própria duração. A intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós. Sem a intuição como método, a duração permaneceria como simples experiência psicológica. Inversamente, sem a coincidência com a duração, a intuição não seria capaz de realizar o programa correspondente às regras precedentes: a determinação dos verdadeiros problemas ou das verdadeiras diferenças de natureza... [6]
O método intuitivo alarga a inteligência, coloca os verdadeiros problemas, faz com que esta salte do domínio da materialidade ao domínio do Ser, em outras palavras, alargamos os conceitos os tornando flexíveis, somos levados do plano dos símbolos utilitários para o plano dos conceitos imagéticos; a metafísica tem por objetivo a consolidação e criação de representações móveis e fluidas, sempre prontas a se moldarem pelas formas escorregadias da intuição. Todavia, a imagem também não seria capaz de restituir tal experiência em seu todo, “pois o desenrolamento de nossa duração se assemelha por certos lados à unidade de um movimento que progride, por outros a uma multiplicidade de estados que se esparramam” [7], assim, metáfora alguma daria contando da multiplicidade em constante movimento da Duração. Todavia, se as imagens sacrificam um lado desta experiência, os conceitos forjados pela inteligência muito mais, visto sua tendência a fixar, justapor e fragmentar. De acordo com nossa leitura, Bergson concede à imagem[8] o fato de ela nos deixar no concreto porque há nela uma falta de representação que não irá jamais substituir a intuição da própria duração.
Não são gratuitas as imagens que colorem, tracejam e perpassam os textos do filósofo, são elas (as imagens) que se contrapõem aos conceitos universais da ciência e da filosofia cuja tradição é grega:
Escolhendo imagens tão disparatadas quanto possível, impedir-se-á uma qualquer dentre elas de usurpar o lugar da intuição que ela está encarregada de convocar, uma vez que seria então imediatamente expulsa por suas rivais. Fazendo com que todas exijam de nosso espírito, a despeito de suas diferenças de aspecto, a mesma espécie de atenção e, de certa forma, o mesmo grau de tensão, acostumaremos pouco a pouco a consciência a uma disposição inteiramente particular e bem determinada, precisamente aquela que a consciência precisará adotar para aparecer a si mesma sem véu. [9]
A intuição, através das imagens, deve coincidir com seu objeto, nos lançar ao campo do real por sugestão e não por representação; ela é uma série indefinida de atos, apreende a Duração em diferentes modos e graus [10]. Para passar da inteligência a intuição, deve-se realizar uma verdadeira conversão do espírito, um esforço originário e criador. É preciso transcender os conceitos para chegar ao contrário da inteligência. Delineia-se aqui o verdadeiro esforço criador e doloroso, contrario a qualquer tipo de relaxamento. Ajustemos as lentes acerca do esforço.
É n’O esforço intelectual, que Bergson sublinhará o salto da inteligência à intuição, porque se o caminho da filosofia presa o conhecimento do ser em todas as suas reverberações, ela deve romper necessariamente com o caminho simbólico da matéria. O esforço estará acompanhado da vontade criadora, será então esta decisão de torcer a inteligência sobre si mesma, de caminhar contra nossos hábitos voltados para as dimensões da vida utilitária.
O esforço intelectual não é esforço físico, ele engaja o corpo e o espírito criando o embate entre a matéria e a espiritualidade. Todavia, é através do esquema dinâmico (que se dá na duração) vivificado pelo esforço criador, que nos voltamos para as representações simples, apreendemos o todo da coisa, indo do centro às periferias, do espírito à matéria. Devemos ressaltar que tal esquema não é como uma sinopse, um resumo, mas um sentido vago onde os elementos condensados se interpenetram, apontando para o advir das imagens. O esforço criador deve trabalhar a matéria associado com a inteligência para que haja possibilidade de criação, o advir da novidade transpassada pela novidade. As imagens criadas são insufladas pela criação, que é própria à duração, vale por isso fazer notar que o esforço criador é a mais alta forma do esforço intelectual e está naturalmente presente na arte e no espírito do artista. O artista, por meio desse esforço criador, vislumbra o todo de sua obra, o nó que terá que desatar fazendo uso de sua inteligência alargada e atenta. Tais imagens, advindas por meio do esforço criador não são fixas, mas mudam, dançam entre si e faz com que a percepção se enriqueça de detalhes, assim “(...) inúmeras imagens diversificadas, convergindo em suas ondulações, viabilizariam a mobilização da consciência para o ponto preciso no qual se inscreve a intuição” [11].
O esforço criador, próprio da arte, é algo que rompe com a finalidade pragmática da inteligência, nos expressamos com imagens sem perder o movimento ininterrupto da duração, há uma conversão da atenção própria da arte e que na qual a filosofia deve espelhar-se e tomar como método. Em sua conferência A percepção da mudança, Bergson atenta para o fato de que o alargamento da consciência atravessada pelo esforço entraria a fundo no devir que nos constitui e que o artista detêm de tal privilégio, observemos:
(...) suponham que, ao invés de querermos nos elevar acima de nossa percepção das coisas, nela nos afundássemos para cavá-la e alargá-la. Suponham que nela inseríssemos nossa vontade e que essa vontade, dilatando-se, dilatasse nossa visão das coisas. Obteríamos desta vez uma filosofia na qual não se sacrificaria nada dos dados dos sentidos e da consciência: nenhuma qualidade, nenhum aspecto do real se substituiria ao resto sob pretexto de explicá-lo. (...) Dirão que esse alargamento é impossível. Como pedir aos olhos do corpo ou aos do espírito que vejam mais do que aquilo que vêem? A atenção pode tornar mais preciso, iluminar, intensificar: ela não faz surgir, no campo da percepção, aquilo que ali não se encontrava de início. Eis a objeção (...) Com efeito, há séculos que surgem homens cuja função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas. O que visa a arte, a não ser nos mostrar, na natureza e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não impressionavam explicitamente nossos sentidos e nossa consciência? O poeta e o romancista que exprimem um estado de alma decerto não a criam peça por peça; não os compreenderíamos caso não observássemos em nós, até certo ponto, aquilo que dizem de outrem. [12]
O esforço da conversão da inteligência está logrado exatamente no desvio de sua natureza utilitária, os artistas possuem este alargamento naturalmente, revelam no mundo aquilo cuja natureza é própria do real, ou seja, própria da duração. O esforço criador é tido em todas as suas acepções como um ímpeto de fazer com que a inteligência salte de si mesma rumo à intuição reveladora que acompanha o movimento inesgotável do Ser, ela se propaga incansavelmente na duração, finalmente: o esforço que alarga a inteligência analítica faz coincidir meu eu ao objeto em questão. Quanto mais se acentua nossa preocupação em viver, mais longe nos encontramos deste esforço iluminador que nos brinda com a realidade visceral, transbordante de movimento.
Doravante, o pensar em filosofia deve ser criação, porque a intuição simples e original implica nisso, leva-nos imediatamente a uma emoção criadora análoga a da arte em geral. Tal emoção “incita a inteligência a empreender e a vontade a perseverar” [13], ela faz parte do esforço criador. Ela dará o impulso necessário para que o Ser advenha, sendo assim, ela é força originária também presente na Duração; diz respeito ao espírito, a nosso eu mais profundo. Vemos que a inteligência deixada a si mesma nada poderia criar, ela apenas representa o que já existe, só criamos alguma coisa quando somos tomados por essa emoção, deste modo, ela engendra tudo o que é novo [14]. Quando nos deixamos guiar amparados apenas pela inteligência, laboramos a frio e tudo o que fazemos é ordenar ideias entre si que não trazem à tona nada de novo. Agora, quando somos tomados pela emoção criadora, onde a intuição já está vivificada, “parece que os materiais fornecidos pela inteligência entram previamente em fusão, e que se solidificam em seguida de novo em ideias agora nutridas pelo próprio espírito” [15]. É preciso ressaltar, tantas vezes quanto for necessário, que a criação não é obra da inteligência, todavia, a segunda não erradica esta última, alarga-a em direção ao movimento incessante da Vida.
A arte afasta os símbolos, trabalha naturalmente com a intuição, mas, nem por isso o artista não realiza um tremendo esforço para passar à materialidade aquilo que foi por ele intuído. O artista é aquele cuja consciência e os sentidos são menos aderentes à vida, “a natureza esqueceu de vincular sua faculdade de perceber à sua faculdade de agir” [16], percebem as coisas que nos rodeiam por prazer puro. Privilegiados pela natureza, os artistas (poetas, pintores, músicas, romancistas), percebem o mundo tomados pela franja da duração que existe na inteligência, e que faz com que ela se alargue e se desdobre em intuição que apreende de uma só vez o nó que comporta a multiplicidade, a fusão, a novidade e o movimento.
O papel da filosofia e do filósofo não seria, por conseguinte, o de desvelar o real em todo seu teor de mudança e movimento? O fazer-se da filosofia, entendida enquanto discurso desinteressado também não se iguala, em grande medida ao papel da arte? Bergson foi feliz quando escreveu: “vejo na evolução da vida em nosso planeta a matéria sendo atravessada pela consciência criadora, um esforço para liberar à força de engenhosidade e de invenção, algo que permanece aprisionado no animal e que se liberta definitivamente no homem” [17], é papel do artista atravessar e moldar a matéria, fazendo dela uma nova forma que traz junto de si todos os traços da duração, mas também deve-se reservar ao filósofo esse trabalho de atravessá-la, afinal as palavras também são cinzeladas e ganham cada vez mais força quanto maior for a emoção criadora – principio de toda vida – e menor o interesse utilitário. O filósofo será também criador caso saiba alargar seu pensamento e torná-lo intuitivo, quanto mais ele estiver perto disso, mais próximo ele estará da experiência criadora e tanto mais sua obra intensificará a ação dos outros homens [18]. Sobre o papel da filosofia tendo como seu horizonte o fazer-se da arte, nosso filósofo dirá:
Pois bem, aquilo que a natureza faz de longe em longe, por distração, para alguns privilegiados, será que a filosofia, em semelhante matéria, não poderia tentar fazê-lo, num outro sentido e de outro modo, para todo mundo? O papel da filosofia porventura não seria, aqui, o de nos levar a uma percepção mais completa da realidade graças a certo deslocamento de nossa atenção? Tratar-se-ia de afastar essa atenção do lado praticamente interessante do universo e de voltá-la para aquilo que praticamente, de nada serve. Essa conversão da atenção seria a própria filosofia. [19]
Vimos que com a intuição enquanto método, o pensamento se afasta de seus grilhões analíticos, simbólicos e pragmáticos para coincidir por simpatia e esforço com a própria duração, mas é, sobretudo na arte, que este movimento criador dá-se intensamente, logo, é no fazer artístico que a duração revela-se, desvelando para os outros homens o real, esta parte profunda do eu. O pensamento filosófico mirando a arte, deve revelar o real fazendo uso da percepção, abrindo caminho para a emoção criadora que se desvela em imagens dinâmicas e flexíveis que permitem exprimir a mudança e o movimento.
Em O Riso, o filósofo francês enfatiza o olhar disperso que faz com que o pensamento seja invadido por aquilo que da as costas. Aqui, Bergson retorna novamente ao tema da desatenção em detrimento ao domínio prático da vida, onde a inteligência se configura como um impulso cuja urgência remete à sobrevivência imediata. Para ele “viver é só aceitar dos objetos a impressão útil e responder-lhes com reações apropriadas: as outras impressões devem esbater-se ou chegar-nos confusamente” [20]. Isso porque no domínio da materialidade pura, nossos sentimentos e consciência só nos dão uma simplificação prática da realidade, excluindo e apagando o inútil acerca das coisas, por fim, resta-nos dizer: excluindo a singularidade de cada coisa; nossa consciência classifica os objetos tendo em vista o proveito que deles podemos tirar e usufruir, mas isso até aqui já não é novo.
Caso pudéssemos trazer alguma coisa de essencial desta obra para a problematização do que havíamos proposto desde o inicio, é no que tange a literatura enquanto similar a filosofia, outra vez Bergson:
A individualidade das coisas e dos seres escapa-nos sempre que não nos é materialmente útil, distingui-la. (...) Enfim, para dizer tudo, nós não vemos as coisas em si: limitamo-nos, a maior parte das vezes, a ler etiquetas nelas colocadas. Essa tendência, derivada da necessidade, mais se acentuou ainda sob a influência da linguagem. Porque as palavras (à excepção dos nomes próprios) designam gêneros. A palavra que apenas marca a função mais comum e o aspecto banal das coisas insinua-se entre elas e nós ocultando-lhe a forma aos nossos olhos se esta forma não escondesse já atrás das necessidades que criaram a própria palavra. [21]
Caso fixemos o olhar apenas neste excerto, subitamente parece-nos acabado toda a filosofia que usa as palavras para compreender o ser. Não nos precipitando, encontramos outro fragmento para que possamos ter alguma coisa aonde nos escorar:
Debaixo das mil ações nascentes que exteriormente definem um sentimento, atrás da palavra banal e social que exprime e encobre um estado de alma individual, o que eles (os artistas) irão procurar é o estado de alma simples e puro. (...) Outros irão mais longe ainda. Destas alegrias e tristezas que em rigor se podem traduzir em palavras, tomarão qualquer coisa que já nada tem de comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem do que os seus sentimentos íntimos, sendo a lei viva, variável para cada pessoa, da sua depressão e da sua exaltação, das suas penas e das suas esperanças. (...) Assim, quer seja pintura, escultura, poesia ou música, a arte não tem outro objeto senão o de afastar os símbolos praticamente úteis, as generalizações convencionalmente e socialmente aceitas, tudo aquilo, enfim, que nos mascara a realidade para nos pôr em contato com a realidade em si. [22]
Reforça-se à margem da duração, a proeza iminente do artista em fazer da sua obra um traço único e singular do ser, que expulsa os símbolos dando vazão para aquilo que no cotidiano passa por debaixo de nossos olhos. Ora, não seria também o filósofo atento detentor, em alguma medida, do modus operandi da arte? Como? Guiado por uma intuição original que caracteriza-se como esforço para subverter a inteligência, ele usaria imagens lingüísticas para expressar-se sobre seu sentimento mais profundo acerca da Vida que é movimento incansável. À luz do texto de Rita Paiva, uma vez mais servimo-nos dele: “Instalando-se na flexibilidade da linguagem, o romancista e o poeta logram ao desnorteamento dos símbolos lingüísticos, os quais, originalmente conectam-se à operacionalidade da vida” [23], dito de maneira outra, o escritor toma como prioridade a flexibilidade das palavras, distorcendo seus significados utilitários, instaurando as imagens que nascem por meio de um esforço criador: as palavras se descolam de seu fundo de imobilidade para plainarem sob o movimento.
Doravante, o discurso mais apropriado ao pensamento filosófico é aquele que se aproxima da linguagem artística contra os conceitos estáticos da linguagem instrumental. O saber da filosofia dá-se através da palavra, que como já viemos demarcado ao longo de nosso trajeto, é fruto da inteligência e de suas lógicas matemáticas.
Retornamos neste momento ao ponto de partida de nossa indagação que abria o texto, qual seja: como é possível exprimir a experiência da duração fazendo uso dos signos simbólicos? Será que estamos melhor amparados pelo pensamento bergsoniano? Arrisquemo-nos.
O tema da linguagem será aqui trabalhado tendo como horizonte de discussão a obra: A evolução criadora, doravante EC, na qual o autor fará considerações preciosas acerca do tema já esboçado algumas linhas acima. No capítulo II intitulado As direções divergentes da evolução da vida, o animo do texto é o de problematizar a evolução da vida tendo como principio norteador o instinto de um lado e a inteligência do outro, contudo, não nos ateremos verticalmente nesta discussão, mas nos dirigiremos apenas as partes onde as considerações sobre a linguagem são tecidas.
Diremos, conduzidos pela EC, que a inteligência tem por função fabricar e empregar instrumentos inorganizados e estabelecer relações entre os diversos objetos que nos cercam. Ela (a inteligência) é o conhecimento de uma forma e justamente pela forma ser vazia é que podemos preenchê-la com conteúdos que não são exclusivamente úteis. Lemos:
Ali onde a atividade está orientada para a fabricação, portanto, o conhecimento versa necessariamente sobre relações. Mas esse conhecimento perfeitamente formal da inteligência tem uma vantagem incalculável sobre o conhecimento material do instinto. Uma forma, justamente porque é vazia, pode à vontade ser preenchida sucessivamente por um número indefinido de coisas, mesmo por aquelas que de nada servem. De modo que um conhecimento formal não se limita ao que é útil praticamente, ainda que seja em vista da utilidade prática que faça sua aparição no mundo. Um ser inteligente traz consigo os meios necessários para superar-se a si mesmo. [24]
Este fragmento é muito valioso para a compreensão ampla de uma linguagem que não aponte apenas o utilitarismo e a universalidade das experiências humanas, porque se a inteligência se ocupa de formas, ela também pode preenchê-las com tudo aquilo que não esteja no âmbito da vida pratica, parece-nos que a linguagem quando tomada por uma inteligência galvanizada pela duração não se reportaria estática as coisas, mas móvel e fluida por meio das imagens escritas ou imagens literárias.
Forjada para fazer comunicar nossas urgências, a palavra organiza a sociedade. Ela é o meio pela qual a consciência se relaciona com sua natureza própria; sua finalidade é a de objetivar e petrificar o real para que nele possamos agir, todavia, notemos:
Com efeito, a palavra, feita para ir de uma coisa a outra, é essencialmente deslocável e livre. Poderá portanto estender-se não apenas de uma coisa percebida, mas ainda da coisa percebida à lembrança dessa coisa, da lembrança precisa a uma imagem mais fugidia, de uma imagem fugidia, mas no entanto ainda representada, à representação do ato pelo qual é representada, isto é, à idéia. Abrir-se-á assim aos olhos da inteligência, que olhava para fora, todo um mundo interior, o espetáculo de suas próprias operações. (...) A partir do dia em que a inteligência, refletindo sobre suas manobras, percebe-se a si mesma como criadora de ideias, como faculdade de representação em geral, não há objeto do qual não queria ter a ideia, mesmo que este não tenha relação direta com a ação prática. [25]
Se a inteligência versa sobre as formas que por definição são vazias, ela pode preenchê-las, como dizíamos, de qualquer coisa, mesmo que esta coisa seja inútil. Ora, tida como produto da inteligência humana, a linguagem volta-se para aquilo que a inteligência precisa obter. Embora ela tenha sido forjada para exercer certa ação no mundo, por ser móvel, por caminha de uma coisa para a outra, pode ir em direção daquilo que é a principio inútil para a inteligência. Se este fragmento esboça uma possível flexibilidade da palavra quando insuflada pela duração, ele também aponta para as fantasmagorias do pensamento que colocam problemas alheios à ordem do real.
Há uma versatilidade dos símbolos, tudo se torna objeto de reflexão e pode ser expresso, mas dominada pela lógica severa da inteligência, a linguagem acompanha tais tendências imobilizadoras. A saída deste paradoxo, nós já o enunciamos outrora, repetimo-lo: a linguagem comum deve aproximar-se da linguagem literária a qual consiste em um esforço criador de imagens verbais[26]. Tanto a prosa quanto a poesia, expressam a singularidade fluida da palavra que entra em contato com a duração e a descreve sem imobilizá-la.
Para os leitores atentos de Bergson, o problema de uma linguagem que traduza a experiência da duração é de suma importância pois, coloca em jogo toda obra filosófica tecida através das palavras. Vimos, que a inteligência pode alargar-se por meio de um esforço criador, fazendo emanar uma intuição que opera por meio de imagens dinâmicas que apreendem o movimento sem torná-lo estável, o projeto de Bergson é colocado também por Paola Scarpelli:
Nous rappelos ici brièvement que le thème du langage est central dans l’oeuvre de Bergson et qu’il traverse toute as production philosophique, mais surtout dans cette perspective critique et problématique, suivant laquelle la fonction du langage est en premier lieu une fonction conservatrice, transformant ce qui est nouveau en ce que est déjà connu afin que la société puisse l’utiliser de manière adéquate. Le langage ne peut énoncer ou traduire que ce qui est spatial, as nature ne lui permet d’indiquer et de définir que des choses. [27]
Assim sendo, o problema que orbita em torno da linguagem é crucial para que possamos entender um pouco mais acerca da duração, da intuição, do movimento,enfim é intrínseca para compreensão da filosofia bergsoniana como um todo. No entanto, quando a linguagem é, por assim dizer, revestida por uma intuição inebriada pela duração, ela se torna flexível e caminha contra sua função, ela opera através de imagens literárias que dançam entre si porque acompanham o movimento pertinente ao Ser. Assim, devemos pensar uma linguagem que se forme à partir da realidade e não seu contrário, Scarpelli outra vez:
La direction la plus juste est celle qui part de la pensée pour arriver à la parole et non pas celle qui va de la présence d’um mot à une définition de la pensée qui lui convient. L’alternative bergsonienne à la nature statique du langage est à chercher dans un usage différent du langage lui-même: ce n’est pas la réalité qui doit se déformer pour rentrer dans des catégories, mais la parole qui doit se former à partir de la réalité saisie par l’intuition. [28]
A reflexão de Bergson acerca da obra artística que coincide com o Ser, parece indicar um caminho para o pensamento filosófico que almeje tal conhecimento desinteressado. Vimos que é a partir de uma intuição enquanto método, o caminho para sobrepujar a inteligência, não obstante, intuição não significa aqui e alhures, qualquer tipo de comodidade diante do mundo, pelo contrário, a intuição se realiza via esforço, vontade e dor. O esforço criador presente na literatura evoca imagens que falam intimamente e de forma singular acerca da natureza do eu, o discurso filosófico rodeado pelas imagens mergulharia fundo no real, explicitaria a própria vida que o olhar sempre atento da inteligência parece desviar. Assim sendo “ao fazer da metáfora e das imagens a sua linguagem privilegiada, a filosofia adquire uma tônica literária e instaura uma proximidade muito mais inquietante e profunda com a literatura do que com aqueles saberes para os quais o conceito consiste no instrumento privilegiado, como é o caso do conhecimento científico” [29].
O fazer-se da arte abre caminho para um horizonte do Ser, onde a filosofia pode apreender à sua maneira discursiva, para tanto, ela não deve permanecer aprisionada aos grilhões dos conceitos forjados pela inteligência analítica Resta dizer: o papel mesmo de qualquer pensamento que busque uma compreensão radical e sincera da Vida, deve acompanhá-la em seu incessante movimento cujos efeitos nos rodeiam; basta um olhar desinteressado para fazer tombar a morbidez das coisas.
LER TAMBEM:Subjetividade e Imagem. A literatura como horizonte da filosofia em Henri Bergson,
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Henri Bergson: algumas aproximações sobre a arte e a filosofia: a arte como espelho do pensamento filosófico
“(...) quanto mais estamos preocupado em viver, tanto menos estamos inclinados a contemplar, e que as necessidades da ação tendem a limitar o campo da visão.”
Henri Bergson
É certo, para os leitores atentos de Bergson, que a experiência da Duração está aquém daquelas propiciadas pela lógica da inteligência, que por definição, atem-se ao utilitarismo. Apreender o inefável, ou seja, a própria Vida, é intuir o movimento, o jorro incessante das novidades onde ser e tempo se embrenham, é, afinal, coincidir com a própria duração. Destarte, diante desta realidade em si mesma, a qual se apresenta para além da vida pragmática, como podemos, fazendo uso da linguagem que é um instrumento forjado pela lógica utilitária, comunicar nossa experiência profunda do Ser?
Nesta toada, pretendemos realizar uma inflexão das várias obras do filósofo francês, para que possamos entender o modo pelo qual ele concebe a linguagem para falar de uma filosofia que é filosofia da duração. O problema esboçado não pode ser ignorado tendo em vista o projeto bergsoniano [1]. Nossa tarefa será árdua, pois, se Bergson trata daquilo que não pode ser explicado pelo discurso formal, como, ainda assim, ele pode explicitá-lo através de suas obras? Tarcísio Jorge Santos Pinto indica o problema:
A filosofia de Bergson visa conhecer a duração dos seres em sua realidade absoluta, mutável e dinâmica, realidade esta que é apreendida através da intuição e não pode ser representada adequadamente através dos conceitos simbólicos tradicionais – estáticos e exatos – formulados pela inteligência analítica. Estes símbolos apenas efetivam a tradução do ser em função daquilo que é considerado como comum a ele e a toda uma classe de outros seres e que por convenção é tomado como sendo universal. (...) como representar adequadamente então tal experiência intuitiva? (...) para Bergson a linguagem é “um produto da inteligência concebida como faculdade instrumental”. Ou seja, em si mesma a linguagem originalmente não foi feita para representar a fluidez da duração captada através da intuição. [2]
Caso queiramos entender a amplitude do problema que agora nos aparece como paradoxal, devemos explanar algumas trajetórias que compõem o itinerário filosófico de Bergson. Façamos ainda um último aviso: no desenrolar-se desta caminhada, com que espanto esbarraremos na questão da arte como espelho para o fazer-se da filosofia? Acostumados aos ditames da inteligência que assevera o utilitarismo, como não nos espantar com tal fatura bergsoniana?
Primeiro, apresentemos a intuição em detrimento da inteligência, para logo em seguida tornar viável a explicação acerca do esforço criador que faz uso de imagens cujo movimento é similar ao da duração. Depois, caminhemos na direção da arte como exemplo à filosofia, para que assim possamos estudar o estatuto da linguagem.
A metafísica bergsoniana pretende atingir o absoluto, mergulhar no real, diferente das ontologias da tradição filosófica que apenas rodeavam a coisa sem jamais coincidirem com ela. Lemos:
(...) os filósofos, a despeito de suas aparentes divergências, concordam em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que se dêem voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela. A primeira depende do ponto de vista no qual nos colocamos e dos símbolos pelos quais nos exprimimos. A segunda não remete a nenhum ponto de vista e não se apóia em nenhum símbolo. Do primeiro conhecimento diremos que se detém no relativo; do segundo, ali onde ele é possível, que atinge o absoluto.
O método filosófico de nosso autor em comento, sem sombra de dúvidas, é o segundo, onde a coisa em questão é o próprio movimento caracterizado pela Duração. Para ele, a herança filosófica grega, cuja tradição remonta a Zenão, concebia o movimento através de um conjunto de segmentos percebidos por meio da percepção sensível, dava ao Ser a imobilidade em detrimento à mobilidade. O imutável (eterno) detinha para si todas as superioridades, era a própria nervura do real: “A metafísica nasceu, com efeito, dos argumentos de Zenão de Eléia relativos à mudança e ao movimento. Foi Zenão, ao chamar a atenção para o absurdo daquilo que ele chamava de movimento e de mudança, quem levou os filósofos – Platão em primeiro lugar – a procurar a realidade coerente e verdadeira naquilo que não muda” [3].
Em Bergson, o real é alheio as regras da inteligência analítica - forjada pela natureza para que pudéssemos sobreviver -, sendo assim, apreender tal mobilidade incessante e criadora, torna-se tarefa difícil na medida em que fomos criados tendo em vista nossa urgente sobrevivência no mundo. Se o conhecimento que procuramos é estranho ao pragmatismo, devemos dilatar nosso pensamento para aquém de nossas necessidades mundanas; neste sentido, a filosofia compactua com o fazer-se da arte, ambas são conhecimentos desinteressados da Vida, miram certa singularidade. Com isso, anunciamos que o método de tal filosofia será a intuição, diferente dos símbolos e dos pontos de vista que nos situam fora da coisa. A intuição será uma simpatia“pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único, e, por conseguinte, de inexprimível” [4]. Esta intuição será uma visão da totalidade enquanto interioridade, ato simples, consciência imediata da temporalidade interna que habita meu eu mais profundo, será a visão do espírito sobre o espírito. Tida como método rigoroso, ela deve expandir nossa inteligência, insuflá-la pela Duração; a intuição deve reverter a marcha habitual de nosso pensamento voltado para o domínio da vida prática. Quando somos tomados pela experiência intima do Tempo: incessante e gerador de novidades contínuas, só o fazemos porque a intuição torna a inteligência lúcida, mantêm-na em alerta contra sua vocação intrínseca de matematizar e simbolizar o real que nos cerca. Galvanizados pela intuição, não operamos mais pela justaposição, separação, recorte e imobilidade que são as marcas acentuadas do pensamento, mas somos levados a apreender a totalidade do Ser em sua singularidade mais intima e profunda, Rita Paiva assevera:
A intuição mobiliza a inteligência na direção daquilo que, para ela, é inalcançável. Ela nos desvela o espírito, a mudança em seu movimento genuíno e criador (...). Essa experiência, que poderíamos qualificar reveladora, transfigura completamente o pensar filosófico, o qual, em vez de visar o alcance de um todo a partir de suas partes justapostas, instala-se num ponto único onde os sentidos últimos do real podem ser apreendidos de uma só vez em toda a sua simplicidade. (...) Um método que pretenda coincidir com o fluxo contínuo da duração deve trazer em sua própria constituição a espontaneidade e a imprevisibilidade, tal qual seu objeto. [5]
Ainda sobre a intuição enquanto método, Deleuze:
A intuição não é a própria duração. A intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós. Sem a intuição como método, a duração permaneceria como simples experiência psicológica. Inversamente, sem a coincidência com a duração, a intuição não seria capaz de realizar o programa correspondente às regras precedentes: a determinação dos verdadeiros problemas ou das verdadeiras diferenças de natureza... [6]
O método intuitivo alarga a inteligência, coloca os verdadeiros problemas, faz com que esta salte do domínio da materialidade ao domínio do Ser, em outras palavras, alargamos os conceitos os tornando flexíveis, somos levados do plano dos símbolos utilitários para o plano dos conceitos imagéticos; a metafísica tem por objetivo a consolidação e criação de representações móveis e fluidas, sempre prontas a se moldarem pelas formas escorregadias da intuição. Todavia, a imagem também não seria capaz de restituir tal experiência em seu todo, “pois o desenrolamento de nossa duração se assemelha por certos lados à unidade de um movimento que progride, por outros a uma multiplicidade de estados que se esparramam” [7], assim, metáfora alguma daria contando da multiplicidade em constante movimento da Duração. Todavia, se as imagens sacrificam um lado desta experiência, os conceitos forjados pela inteligência muito mais, visto sua tendência a fixar, justapor e fragmentar. De acordo com nossa leitura, Bergson concede à imagem[8] o fato de ela nos deixar no concreto porque há nela uma falta de representação que não irá jamais substituir a intuição da própria duração.
Não são gratuitas as imagens que colorem, tracejam e perpassam os textos do filósofo, são elas (as imagens) que se contrapõem aos conceitos universais da ciência e da filosofia cuja tradição é grega:
Escolhendo imagens tão disparatadas quanto possível, impedir-se-á uma qualquer dentre elas de usurpar o lugar da intuição que ela está encarregada de convocar, uma vez que seria então imediatamente expulsa por suas rivais. Fazendo com que todas exijam de nosso espírito, a despeito de suas diferenças de aspecto, a mesma espécie de atenção e, de certa forma, o mesmo grau de tensão, acostumaremos pouco a pouco a consciência a uma disposição inteiramente particular e bem determinada, precisamente aquela que a consciência precisará adotar para aparecer a si mesma sem véu. [9]
A intuição, através das imagens, deve coincidir com seu objeto, nos lançar ao campo do real por sugestão e não por representação; ela é uma série indefinida de atos, apreende a Duração em diferentes modos e graus [10]. Para passar da inteligência a intuição, deve-se realizar uma verdadeira conversão do espírito, um esforço originário e criador. É preciso transcender os conceitos para chegar ao contrário da inteligência. Delineia-se aqui o verdadeiro esforço criador e doloroso, contrario a qualquer tipo de relaxamento. Ajustemos as lentes acerca do esforço.
É n’O esforço intelectual, que Bergson sublinhará o salto da inteligência à intuição, porque se o caminho da filosofia presa o conhecimento do ser em todas as suas reverberações, ela deve romper necessariamente com o caminho simbólico da matéria. O esforço estará acompanhado da vontade criadora, será então esta decisão de torcer a inteligência sobre si mesma, de caminhar contra nossos hábitos voltados para as dimensões da vida utilitária.
O esforço intelectual não é esforço físico, ele engaja o corpo e o espírito criando o embate entre a matéria e a espiritualidade. Todavia, é através do esquema dinâmico (que se dá na duração) vivificado pelo esforço criador, que nos voltamos para as representações simples, apreendemos o todo da coisa, indo do centro às periferias, do espírito à matéria. Devemos ressaltar que tal esquema não é como uma sinopse, um resumo, mas um sentido vago onde os elementos condensados se interpenetram, apontando para o advir das imagens. O esforço criador deve trabalhar a matéria associado com a inteligência para que haja possibilidade de criação, o advir da novidade transpassada pela novidade. As imagens criadas são insufladas pela criação, que é própria à duração, vale por isso fazer notar que o esforço criador é a mais alta forma do esforço intelectual e está naturalmente presente na arte e no espírito do artista. O artista, por meio desse esforço criador, vislumbra o todo de sua obra, o nó que terá que desatar fazendo uso de sua inteligência alargada e atenta. Tais imagens, advindas por meio do esforço criador não são fixas, mas mudam, dançam entre si e faz com que a percepção se enriqueça de detalhes, assim “(...) inúmeras imagens diversificadas, convergindo em suas ondulações, viabilizariam a mobilização da consciência para o ponto preciso no qual se inscreve a intuição” [11].
O esforço criador, próprio da arte, é algo que rompe com a finalidade pragmática da inteligência, nos expressamos com imagens sem perder o movimento ininterrupto da duração, há uma conversão da atenção própria da arte e que na qual a filosofia deve espelhar-se e tomar como método. Em sua conferência A percepção da mudança, Bergson atenta para o fato de que o alargamento da consciência atravessada pelo esforço entraria a fundo no devir que nos constitui e que o artista detêm de tal privilégio, observemos:
(...) suponham que, ao invés de querermos nos elevar acima de nossa percepção das coisas, nela nos afundássemos para cavá-la e alargá-la. Suponham que nela inseríssemos nossa vontade e que essa vontade, dilatando-se, dilatasse nossa visão das coisas. Obteríamos desta vez uma filosofia na qual não se sacrificaria nada dos dados dos sentidos e da consciência: nenhuma qualidade, nenhum aspecto do real se substituiria ao resto sob pretexto de explicá-lo. (...) Dirão que esse alargamento é impossível. Como pedir aos olhos do corpo ou aos do espírito que vejam mais do que aquilo que vêem? A atenção pode tornar mais preciso, iluminar, intensificar: ela não faz surgir, no campo da percepção, aquilo que ali não se encontrava de início. Eis a objeção (...) Com efeito, há séculos que surgem homens cuja função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas. O que visa a arte, a não ser nos mostrar, na natureza e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não impressionavam explicitamente nossos sentidos e nossa consciência? O poeta e o romancista que exprimem um estado de alma decerto não a criam peça por peça; não os compreenderíamos caso não observássemos em nós, até certo ponto, aquilo que dizem de outrem. [12]
O esforço da conversão da inteligência está logrado exatamente no desvio de sua natureza utilitária, os artistas possuem este alargamento naturalmente, revelam no mundo aquilo cuja natureza é própria do real, ou seja, própria da duração. O esforço criador é tido em todas as suas acepções como um ímpeto de fazer com que a inteligência salte de si mesma rumo à intuição reveladora que acompanha o movimento inesgotável do Ser, ela se propaga incansavelmente na duração, finalmente: o esforço que alarga a inteligência analítica faz coincidir meu eu ao objeto em questão. Quanto mais se acentua nossa preocupação em viver, mais longe nos encontramos deste esforço iluminador que nos brinda com a realidade visceral, transbordante de movimento.
Doravante, o pensar em filosofia deve ser criação, porque a intuição simples e original implica nisso, leva-nos imediatamente a uma emoção criadora análoga a da arte em geral. Tal emoção “incita a inteligência a empreender e a vontade a perseverar” [13], ela faz parte do esforço criador. Ela dará o impulso necessário para que o Ser advenha, sendo assim, ela é força originária também presente na Duração; diz respeito ao espírito, a nosso eu mais profundo. Vemos que a inteligência deixada a si mesma nada poderia criar, ela apenas representa o que já existe, só criamos alguma coisa quando somos tomados por essa emoção, deste modo, ela engendra tudo o que é novo [14]. Quando nos deixamos guiar amparados apenas pela inteligência, laboramos a frio e tudo o que fazemos é ordenar ideias entre si que não trazem à tona nada de novo. Agora, quando somos tomados pela emoção criadora, onde a intuição já está vivificada, “parece que os materiais fornecidos pela inteligência entram previamente em fusão, e que se solidificam em seguida de novo em ideias agora nutridas pelo próprio espírito” [15]. É preciso ressaltar, tantas vezes quanto for necessário, que a criação não é obra da inteligência, todavia, a segunda não erradica esta última, alarga-a em direção ao movimento incessante da Vida.
A arte afasta os símbolos, trabalha naturalmente com a intuição, mas, nem por isso o artista não realiza um tremendo esforço para passar à materialidade aquilo que foi por ele intuído. O artista é aquele cuja consciência e os sentidos são menos aderentes à vida, “a natureza esqueceu de vincular sua faculdade de perceber à sua faculdade de agir” [16], percebem as coisas que nos rodeiam por prazer puro. Privilegiados pela natureza, os artistas (poetas, pintores, músicas, romancistas), percebem o mundo tomados pela franja da duração que existe na inteligência, e que faz com que ela se alargue e se desdobre em intuição que apreende de uma só vez o nó que comporta a multiplicidade, a fusão, a novidade e o movimento.
O papel da filosofia e do filósofo não seria, por conseguinte, o de desvelar o real em todo seu teor de mudança e movimento? O fazer-se da filosofia, entendida enquanto discurso desinteressado também não se iguala, em grande medida ao papel da arte? Bergson foi feliz quando escreveu: “vejo na evolução da vida em nosso planeta a matéria sendo atravessada pela consciência criadora, um esforço para liberar à força de engenhosidade e de invenção, algo que permanece aprisionado no animal e que se liberta definitivamente no homem” [17], é papel do artista atravessar e moldar a matéria, fazendo dela uma nova forma que traz junto de si todos os traços da duração, mas também deve-se reservar ao filósofo esse trabalho de atravessá-la, afinal as palavras também são cinzeladas e ganham cada vez mais força quanto maior for a emoção criadora – principio de toda vida – e menor o interesse utilitário. O filósofo será também criador caso saiba alargar seu pensamento e torná-lo intuitivo, quanto mais ele estiver perto disso, mais próximo ele estará da experiência criadora e tanto mais sua obra intensificará a ação dos outros homens [18]. Sobre o papel da filosofia tendo como seu horizonte o fazer-se da arte, nosso filósofo dirá:
Pois bem, aquilo que a natureza faz de longe em longe, por distração, para alguns privilegiados, será que a filosofia, em semelhante matéria, não poderia tentar fazê-lo, num outro sentido e de outro modo, para todo mundo? O papel da filosofia porventura não seria, aqui, o de nos levar a uma percepção mais completa da realidade graças a certo deslocamento de nossa atenção? Tratar-se-ia de afastar essa atenção do lado praticamente interessante do universo e de voltá-la para aquilo que praticamente, de nada serve. Essa conversão da atenção seria a própria filosofia. [19]
Vimos que com a intuição enquanto método, o pensamento se afasta de seus grilhões analíticos, simbólicos e pragmáticos para coincidir por simpatia e esforço com a própria duração, mas é, sobretudo na arte, que este movimento criador dá-se intensamente, logo, é no fazer artístico que a duração revela-se, desvelando para os outros homens o real, esta parte profunda do eu. O pensamento filosófico mirando a arte, deve revelar o real fazendo uso da percepção, abrindo caminho para a emoção criadora que se desvela em imagens dinâmicas e flexíveis que permitem exprimir a mudança e o movimento.
Em O Riso, o filósofo francês enfatiza o olhar disperso que faz com que o pensamento seja invadido por aquilo que da as costas. Aqui, Bergson retorna novamente ao tema da desatenção em detrimento ao domínio prático da vida, onde a inteligência se configura como um impulso cuja urgência remete à sobrevivência imediata. Para ele “viver é só aceitar dos objetos a impressão útil e responder-lhes com reações apropriadas: as outras impressões devem esbater-se ou chegar-nos confusamente” [20]. Isso porque no domínio da materialidade pura, nossos sentimentos e consciência só nos dão uma simplificação prática da realidade, excluindo e apagando o inútil acerca das coisas, por fim, resta-nos dizer: excluindo a singularidade de cada coisa; nossa consciência classifica os objetos tendo em vista o proveito que deles podemos tirar e usufruir, mas isso até aqui já não é novo.
Caso pudéssemos trazer alguma coisa de essencial desta obra para a problematização do que havíamos proposto desde o inicio, é no que tange a literatura enquanto similar a filosofia, outra vez Bergson:
A individualidade das coisas e dos seres escapa-nos sempre que não nos é materialmente útil, distingui-la. (...) Enfim, para dizer tudo, nós não vemos as coisas em si: limitamo-nos, a maior parte das vezes, a ler etiquetas nelas colocadas. Essa tendência, derivada da necessidade, mais se acentuou ainda sob a influência da linguagem. Porque as palavras (à excepção dos nomes próprios) designam gêneros. A palavra que apenas marca a função mais comum e o aspecto banal das coisas insinua-se entre elas e nós ocultando-lhe a forma aos nossos olhos se esta forma não escondesse já atrás das necessidades que criaram a própria palavra. [21]
Caso fixemos o olhar apenas neste excerto, subitamente parece-nos acabado toda a filosofia que usa as palavras para compreender o ser. Não nos precipitando, encontramos outro fragmento para que possamos ter alguma coisa aonde nos escorar:
Debaixo das mil ações nascentes que exteriormente definem um sentimento, atrás da palavra banal e social que exprime e encobre um estado de alma individual, o que eles (os artistas) irão procurar é o estado de alma simples e puro. (...) Outros irão mais longe ainda. Destas alegrias e tristezas que em rigor se podem traduzir em palavras, tomarão qualquer coisa que já nada tem de comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem do que os seus sentimentos íntimos, sendo a lei viva, variável para cada pessoa, da sua depressão e da sua exaltação, das suas penas e das suas esperanças. (...) Assim, quer seja pintura, escultura, poesia ou música, a arte não tem outro objeto senão o de afastar os símbolos praticamente úteis, as generalizações convencionalmente e socialmente aceitas, tudo aquilo, enfim, que nos mascara a realidade para nos pôr em contato com a realidade em si. [22]
Reforça-se à margem da duração, a proeza iminente do artista em fazer da sua obra um traço único e singular do ser, que expulsa os símbolos dando vazão para aquilo que no cotidiano passa por debaixo de nossos olhos. Ora, não seria também o filósofo atento detentor, em alguma medida, do modus operandi da arte? Como? Guiado por uma intuição original que caracteriza-se como esforço para subverter a inteligência, ele usaria imagens lingüísticas para expressar-se sobre seu sentimento mais profundo acerca da Vida que é movimento incansável. À luz do texto de Rita Paiva, uma vez mais servimo-nos dele: “Instalando-se na flexibilidade da linguagem, o romancista e o poeta logram ao desnorteamento dos símbolos lingüísticos, os quais, originalmente conectam-se à operacionalidade da vida” [23], dito de maneira outra, o escritor toma como prioridade a flexibilidade das palavras, distorcendo seus significados utilitários, instaurando as imagens que nascem por meio de um esforço criador: as palavras se descolam de seu fundo de imobilidade para plainarem sob o movimento.
Doravante, o discurso mais apropriado ao pensamento filosófico é aquele que se aproxima da linguagem artística contra os conceitos estáticos da linguagem instrumental. O saber da filosofia dá-se através da palavra, que como já viemos demarcado ao longo de nosso trajeto, é fruto da inteligência e de suas lógicas matemáticas.
Retornamos neste momento ao ponto de partida de nossa indagação que abria o texto, qual seja: como é possível exprimir a experiência da duração fazendo uso dos signos simbólicos? Será que estamos melhor amparados pelo pensamento bergsoniano? Arrisquemo-nos.
O tema da linguagem será aqui trabalhado tendo como horizonte de discussão a obra: A evolução criadora, doravante EC, na qual o autor fará considerações preciosas acerca do tema já esboçado algumas linhas acima. No capítulo II intitulado As direções divergentes da evolução da vida, o animo do texto é o de problematizar a evolução da vida tendo como principio norteador o instinto de um lado e a inteligência do outro, contudo, não nos ateremos verticalmente nesta discussão, mas nos dirigiremos apenas as partes onde as considerações sobre a linguagem são tecidas.
Diremos, conduzidos pela EC, que a inteligência tem por função fabricar e empregar instrumentos inorganizados e estabelecer relações entre os diversos objetos que nos cercam. Ela (a inteligência) é o conhecimento de uma forma e justamente pela forma ser vazia é que podemos preenchê-la com conteúdos que não são exclusivamente úteis. Lemos:
Ali onde a atividade está orientada para a fabricação, portanto, o conhecimento versa necessariamente sobre relações. Mas esse conhecimento perfeitamente formal da inteligência tem uma vantagem incalculável sobre o conhecimento material do instinto. Uma forma, justamente porque é vazia, pode à vontade ser preenchida sucessivamente por um número indefinido de coisas, mesmo por aquelas que de nada servem. De modo que um conhecimento formal não se limita ao que é útil praticamente, ainda que seja em vista da utilidade prática que faça sua aparição no mundo. Um ser inteligente traz consigo os meios necessários para superar-se a si mesmo. [24]
Este fragmento é muito valioso para a compreensão ampla de uma linguagem que não aponte apenas o utilitarismo e a universalidade das experiências humanas, porque se a inteligência se ocupa de formas, ela também pode preenchê-las com tudo aquilo que não esteja no âmbito da vida pratica, parece-nos que a linguagem quando tomada por uma inteligência galvanizada pela duração não se reportaria estática as coisas, mas móvel e fluida por meio das imagens escritas ou imagens literárias.
Forjada para fazer comunicar nossas urgências, a palavra organiza a sociedade. Ela é o meio pela qual a consciência se relaciona com sua natureza própria; sua finalidade é a de objetivar e petrificar o real para que nele possamos agir, todavia, notemos:
Com efeito, a palavra, feita para ir de uma coisa a outra, é essencialmente deslocável e livre. Poderá portanto estender-se não apenas de uma coisa percebida, mas ainda da coisa percebida à lembrança dessa coisa, da lembrança precisa a uma imagem mais fugidia, de uma imagem fugidia, mas no entanto ainda representada, à representação do ato pelo qual é representada, isto é, à idéia. Abrir-se-á assim aos olhos da inteligência, que olhava para fora, todo um mundo interior, o espetáculo de suas próprias operações. (...) A partir do dia em que a inteligência, refletindo sobre suas manobras, percebe-se a si mesma como criadora de ideias, como faculdade de representação em geral, não há objeto do qual não queria ter a ideia, mesmo que este não tenha relação direta com a ação prática. [25]
Se a inteligência versa sobre as formas que por definição são vazias, ela pode preenchê-las, como dizíamos, de qualquer coisa, mesmo que esta coisa seja inútil. Ora, tida como produto da inteligência humana, a linguagem volta-se para aquilo que a inteligência precisa obter. Embora ela tenha sido forjada para exercer certa ação no mundo, por ser móvel, por caminha de uma coisa para a outra, pode ir em direção daquilo que é a principio inútil para a inteligência. Se este fragmento esboça uma possível flexibilidade da palavra quando insuflada pela duração, ele também aponta para as fantasmagorias do pensamento que colocam problemas alheios à ordem do real.
Há uma versatilidade dos símbolos, tudo se torna objeto de reflexão e pode ser expresso, mas dominada pela lógica severa da inteligência, a linguagem acompanha tais tendências imobilizadoras. A saída deste paradoxo, nós já o enunciamos outrora, repetimo-lo: a linguagem comum deve aproximar-se da linguagem literária a qual consiste em um esforço criador de imagens verbais[26]. Tanto a prosa quanto a poesia, expressam a singularidade fluida da palavra que entra em contato com a duração e a descreve sem imobilizá-la.
Para os leitores atentos de Bergson, o problema de uma linguagem que traduza a experiência da duração é de suma importância pois, coloca em jogo toda obra filosófica tecida através das palavras. Vimos, que a inteligência pode alargar-se por meio de um esforço criador, fazendo emanar uma intuição que opera por meio de imagens dinâmicas que apreendem o movimento sem torná-lo estável, o projeto de Bergson é colocado também por Paola Scarpelli:
Nous rappelos ici brièvement que le thème du langage est central dans l’oeuvre de Bergson et qu’il traverse toute as production philosophique, mais surtout dans cette perspective critique et problématique, suivant laquelle la fonction du langage est en premier lieu une fonction conservatrice, transformant ce qui est nouveau en ce que est déjà connu afin que la société puisse l’utiliser de manière adéquate. Le langage ne peut énoncer ou traduire que ce qui est spatial, as nature ne lui permet d’indiquer et de définir que des choses. [27]
Assim sendo, o problema que orbita em torno da linguagem é crucial para que possamos entender um pouco mais acerca da duração, da intuição, do movimento,enfim é intrínseca para compreensão da filosofia bergsoniana como um todo. No entanto, quando a linguagem é, por assim dizer, revestida por uma intuição inebriada pela duração, ela se torna flexível e caminha contra sua função, ela opera através de imagens literárias que dançam entre si porque acompanham o movimento pertinente ao Ser. Assim, devemos pensar uma linguagem que se forme à partir da realidade e não seu contrário, Scarpelli outra vez:
La direction la plus juste est celle qui part de la pensée pour arriver à la parole et non pas celle qui va de la présence d’um mot à une définition de la pensée qui lui convient. L’alternative bergsonienne à la nature statique du langage est à chercher dans un usage différent du langage lui-même: ce n’est pas la réalité qui doit se déformer pour rentrer dans des catégories, mais la parole qui doit se former à partir de la réalité saisie par l’intuition. [28]
A reflexão de Bergson acerca da obra artística que coincide com o Ser, parece indicar um caminho para o pensamento filosófico que almeje tal conhecimento desinteressado. Vimos que é a partir de uma intuição enquanto método, o caminho para sobrepujar a inteligência, não obstante, intuição não significa aqui e alhures, qualquer tipo de comodidade diante do mundo, pelo contrário, a intuição se realiza via esforço, vontade e dor. O esforço criador presente na literatura evoca imagens que falam intimamente e de forma singular acerca da natureza do eu, o discurso filosófico rodeado pelas imagens mergulharia fundo no real, explicitaria a própria vida que o olhar sempre atento da inteligência parece desviar. Assim sendo “ao fazer da metáfora e das imagens a sua linguagem privilegiada, a filosofia adquire uma tônica literária e instaura uma proximidade muito mais inquietante e profunda com a literatura do que com aqueles saberes para os quais o conceito consiste no instrumento privilegiado, como é o caso do conhecimento científico” [29].
O fazer-se da arte abre caminho para um horizonte do Ser, onde a filosofia pode apreender à sua maneira discursiva, para tanto, ela não deve permanecer aprisionada aos grilhões dos conceitos forjados pela inteligência analítica Resta dizer: o papel mesmo de qualquer pensamento que busque uma compreensão radical e sincera da Vida, deve acompanhá-la em seu incessante movimento cujos efeitos nos rodeiam; basta um olhar desinteressado para fazer tombar a morbidez das coisas.
LER TAMBEM:Subjetividade e Imagem. A literatura como horizonte da filosofia em Henri Bergson,
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