quarta-feira, 6 de março de 2013

SIGNIFICAÇÃO DA VIDA E LIBERDADE: CIÊNCIA E METAFÍSICA EM BERGSON, ao som de MOZART e Rubinstein : Concerto 17, 20, 21, 23 & 24.wmv

Rubinstein Mozart Concerto 17, 20, 21, 23 & 24.wmv


Significação da Vida e Liberdade: 
Ciência e Metafísica na Filosofia de Bergson
SILENE TORRES MARQUES


Resumo
: Nosso objetivo é mostrar como, para Bergson, a investigação do problema da significação da vida envolve a colaboração entre ciência biológica e metafísica. Para ele, o estudo da vida é, antes de tudo, uma investigação sobre o homem. Isto é, a compreensão do homem passa pela abordagem dos dados fornecidos pela biologia. Ora, esses dados revelam que essa compreensão é atingida ao se considerar a constituição da inteligência humana, faculdade com função e campo de aplicação determinado: ela assegura a perfeita inserção do corpo em seu meio, preside a representação das coisas exteriores e pensa a matéria; isto é, possui um caráter essencialmente prático. Para além dessa compreensão da inteligência, o estudo da vida permite saber “sobre quais pontos, em quais direções, por quais necessidades nosso pensamento é limitado”. A partir daí, a tentativa de ultrapassar essa limitação vai caracterizar o esforço da própria inteligência em ultrapassar os quadros de seu conhecimento natural. Testar essa capacidade da inteligência é procurar explicar não apenas o nascimento de outra faculdade humana, mas, sobretudo, indicar um território privilegiado a partir do qual a metafísica pode ser reinstaurada.

Palavras-chave: Vida. Inteligência. Liberdade.

1. No período entre a publicação de Matière et mémoire (1896) e L’Évolution créatrice (1907) o pensamento de Bergson1 abre-se sobre diversas
1 As referências às obras de Bergson são extraídas de: OEUVRES. 

 No entanto, em 1901, na célebre conferência sobre Le parallélisme psycho-physique et la métaphysique positive2, ele define o sentido que dará às suas pesquisas. Para ele, sua segunda obra, ao ter localizado o desvio (l’écart) entre o fato de consciência e as condições físicas nas quais ele se desenvolve, ao ter mostrado neste fato “algo de parcialmente livre, de parcialmente indeterminado”, revelou-lhe “a possibilidade de determinar empiricamente, progressivamente, o que chamou ‘significação da vida’, ou seja, o sentido verdadeiro da distinção entre alma e corpo, assim como a razão pela qual unem-se e colaboram-se entre si” (Mél.478).

Bergson extrai, deste modo, um novo problema de Matière et mémoire, o da significação da vida, cuja determinação surge como o aprofundamento necessário de suas conclusões anteriores. Conclusões que mostravam a atividade espiritual independente da atividade cerebral (corporal), mas ao mesmo tempo li-mitada por ela, uma vez que o corpo orienta-se sempre para ação, a “lei funda-mental da vida”; era preciso então compreender o sentido da “relação do homem, ser pensante, ao homem, ser vivo” (Ibid.), saber porque a vida espiritual está associada à vida corporal que a limita. 

A meditação sobre a vida 
torna-se então a promessa de encontro 
da própria significação do dualismo de Matiére et mémoire.

Qual é esta “significação da vida”?
 “Se desejaria uma fórmula. (...) Mas como eu formularia desde agora uma conclusão definitiva, se o método que proponho exige que se vá progressivamente às idéias pelo longo e duro caminho dos fatos?” (Mél. 485). 

Se ele é um método “feito de correções, de retoques, de complicações graduais”, e funda assim uma filosofia suscetível de progressão? O que é possível afirmar, é que o “exercício normal da atividade humana se definirá cada vez melhor pelo aprofundamento da própria vida”3. 

Pois o filósofo,a referência ou citação referir-se à primeira (o que acontecerá na maioria das vezes), sua notação conterá apenas o número da página correspondente à edição do Centenário. Quando se referir à segunda, virá, por exemplo, da seguinte forma: (Mél. 478).
 
 Esta afirmação de cunho geral, também feita em 1901, vai definir o objeto comum às duas últimas obras de Bergson, isto é, a compreensão da atividade humana normal a partir da compreensão da significação da vida questionando-se sobre a significação da vida, pode então compreender cada vez melhor o “gênero especial de limitação que a vida traz ao nosso pensamento” (Mél.478). E, sabendo “sobre quais pontos, em quais direções, por quais necessidades nosso pensamento é limitado, nos guiaria no esforço todo particular que devemos fazer para nos liberarmos desta limitação” (Mél.464). A partir daí, uma metafísica positiva poderia então ser definitivamente fundada, uma vez que a direção e o esforço necessários para esta liberação teriam sido indicados pela “determinação cada vez mais precisa da relação da consciência com suas condições materiais” (Ibid.).

Isto não quer dizer que assim sairíamos da experiência, e que a liberdade, realidade de ordem “metafísica”, seria encontrada num mundo transcendente ao mundo dos fenômenos. A metafísica proposta por Bergson é positiva, quer dizer, fundada na experiência e susceptível de um progresso real4. Qual é esta experiência? Para ele, ela somente pode ser aquela que nos revelam as ciências surgidas no século XIX, “ciências biológicas, psicológicas, sociológicas”, que “observam e experimentam sem a intenção de chegar sempre a uma fórmula matemática” (Mél.474). 

A aliança entre metafísica e matemática, que se constata nos cartesianos, correspondia a “um aprofundamento completo da experiência deles. Mas nossa experiência é muito mais vasta. Ela se ampliou ao ponto que tivemos de renunciar, há pouco mais de um século, à esperança de uma matemática universal” (Ibid.). Continuar a obra dos cartesianos, segundo Bergson é fazer o que eles fariam no momento histórico-científico em que vivemos: é admitir a complexidade e a flexibilidade das novas ciências, cujos dados são dificilmente redutíveis ao mecanicismo matemático, e sobre ela constituir uma nova metafísica. Da aliança entre metafísica e matemática resultou a forma rígida.

4 Neste aspecto, esta comunicação torna-se um verdadeiro manifesto filosófico, que juntamente com outro, L’introduction à la métaphysique, cumpre um papel fundamental na história do pensamento de Bergson. Este segundo texto, publicado em 1903, completa o primeiro ao expor as condições desta metafísica, isto é, ao definir seu método fundando-a sobre um conhecimento intuitivo e transcendente ao pensamento discursivo e conceitual. 

A terceira obra de Bergson vai justificar este método na medida em que buscará realizar este projeto metafísico das realidades metafísicas e a “relatividade” da experiência em relação a um abso-luto que a transcendia. Da aliança entre a metafísica e as novas ciências, ao con-trário, o contato com uma experiência mais vasta nos daria acesso a diferentes planos de experiência5, a partir dos quais será sempre necessário um esforço de “dilatação intelectual” para atingirmos planos mais profundos; e deste modo, os conceitos encontrados serão modelados e remodelados sobre cada fato novo, cada problema encontrado. 

É assim que a nova metafísica tornar-se-á uma “teoria saturada de experiência” (Mél.501). Quanto ao “resultado definitivo” deste esforço, “onde ele conduzirá, sou incapaz de prevê-lo. Limito-me a exprimir em termos vagos o que não posso perceber senão vagamente” (Mél.490). O que é certo, é que a liberdade será uma realidade interior à “vida ‘fenomenal’”, embora limitada por ela (Mél.494). Mas ela não seria uma experiência relativa, isto é, que nos “deixaria fora da ‘coisa em si’, ou seja, da realidade”.

 A limitação de nosso conhecimento implica naturalmente o conhecimento de uma parte do real, mas neste real estamos e permanecemos. “Cabe a nós”, “sem abandonar o terreno dos fatos”, completar este conhecimento (Ibid.).

2. A biologia vai ser o caminho para a reinstauração da possi-bilidade da metafísica. É o que nos mostra o terceiro livro de Bergson, seis anos mais tarde. L’Évolution créatrice, ao consagrar-se inteiramente ao problema da vida é, sobretudo, um estudo do homem, suas ações e faculdades. Ele é o resultado de seu esforço para inserir o “problema humano” na vida, ou, mais precisamente, para determinar as relações entre a evolução da vida e a história da humanidade.

 A referência a Kant é evidente, justamente porque Bergson proclama o rompimento com a idéia de uma ciência una da natureza, idéia que, segundo ele, Kant aceita da filosofia tradicional: “... ele aceitou sem discussão a idéia de uma ciência una, capaz de abarcar com a mesma força todas as partes do dado e de coordená-las em um sistema que apresenta em todas as partes uma igual solidez” (358). Por isso sua filosofia considera uma única experiência, uma única espécie de causalidade no mundo, a liberdade devendo ser buscada fora desta experiência. Ao contrário, não havendo uma única ciência, mas ciências da natureza, não há apenas um determinismo científico, mas “determinismos científicos diversamente rigorosos” e, conseqüentemente, planos de experiências diferentes entre a vida e a existência humana.

 Como já citamos, Bergson acredita que o “exercício normal da atividade humana” pode ser melhor definido com o apro-fundamento da própria vida. Ora, isto significa que é a biologia que deve fornecer os dados fundamentais para a compreensão da ação humana, e mesmo do próprio sentido do homem no conjunto da natureza. “No labirinto dos atos, estados e faculdades do espírito”, é ela o “guia” indispensável, capaz de revelar os fundamentos e limites do conhecimento e da ação humanos: atrás do ato do espírito, ela mostra-nos uma função; atrás da faculdade inteligente, uma significação vital (1294). Assim, se em Bergson a antropologia necessariamente se inscreve numa teoria da vida, essa teoria (biológica), ao atuar como fonte de conhecimento da ação e dos limites do pensamento humanos, não é senão o guia na constituição de uma teoria do conhecimento.

A teoria evolutiva indica, desde o início do livro, o modo como se constituiu uma certa faculdade humana. “A história da evolução da vida, por mais incompleta que ainda seja, deixa-nos já entrever como a inteligência constituiu-se por um progresso ininterrupto, ao longo de uma linha que ascende da série dos Vertebrados até o homem. Ela nos mostra, na faculdade de compreender, um anexo da faculdade de agir, uma adaptação (...) da consciência dos seres vivos às condições de existência que lhe são impostas” (489). Isto é, nossa inteligência é fruto da evolução e constituiu-se adquirindo uma determinada significação; ora, explicitar sua função é ao mesmo tempo especificar sua destinação e seu campo de aplicação: 


“Daí deveria resultar essa conseqüência 
de que nossa inteligência, no sentido estreito da palavra,
 é destinada a assegurar a inserção perfeita de nosso corpo
 em seu meio, a representar-se a relação das coisas exteriores entre elas, enfim a pensar a matéria” (489)

Assim, a inteligência é direcionada para a ação útil. Criada pela vida, suas potencialidades estão ligadas à satisfação das necessidades humanas; seu vínculo essencial com a matéria dando-nos a chave para compreender seu universo conceitual e lógico, criado à imagem dos sólidos. Nesse sentido, a inteligência possui um campo de ação limitado6.
6 O que não significa que a inteligência não possa conhecer absolutamente a realidade sobre a qual atua. Para Bergson, ela é capaz de conhecer a “realidade em si” da matéria. 

Sob este aspecto, L’Évolution créatrice vem esclarecer, no nível dos funda-mentos, o caráter utilitário que o Essai e Matière et mémoire conferiam ao nosso conhecimento e à nossa ação. Agora não serão mais a projeção da duração interna no espaço, nem a “atenção à vida” ou os mecanismos corporais que fornecerão uma explicação sobre este caráter, mas a própria estrutura mental da espécie humana. Ora, se esta estrutura está ligada à ação humana sobre a matéria e torna possível a inserção do corpo (que preside as escolhas úteis) em seu meio, como então explicar no homem, a partir do aprofundamento da própria vida, a “faculdade de especulação” e sobretudo a ação livre interiorizada? Uma vez que os objetivos do Essai e de Matière et mémoire consistiam respectivamente em afir-mar a realidade da liberdade e da atividade independente do espírito como fatos?

Em L’Évolution créatrice, de acordo com sua função e destinação, a inteligência caracteriza-se sobretudo por sua inaptidão para compreender a essência da vida, a “significação profunda do movimento evolutivo”. Constituída no interior da evolução da vida “em circunstâncias determinadas, para agir sobre coisas determinadas, como abarcaria ela a vida, da qual é apenas uma emanação ou um aspecto?” (489-90). Como a parte (produto da vida) poderia compreender o todo (a própria vida)? Ou ainda, como poderia conhecer realidades diferentes da matéria?

 Para Bergson, o método genético, isto é, o estudo do movimento evolutivo desde suas origens, permite não apenas re-situar a inteligência na “evolução geral da vida”, como também remontar até a origem do homem, chegando “até a raiz da natureza e do espírito” (493). Este retorno à origem talvez nos fizesse ver que a “evolução que conduz ao homem não é a única”. 

“Sobre outras vias, divergentes, desenvolveram-se outras formas de consciência (...), que permaneceram como “uma nebulosidade vaga”, “em torno de nosso pensamento conceitual”: são essas “potências complementares do entendimento” que se esclarecerão e se distinguirão ao serem constatadas, em atividade, na evolução da vida. Seria preciso então reintegrá-las ao nosso pensamento conceitual, unindo-as à inteligência; assim, “não obteríamos desta vez uma inorganizada, mesmo que este conhecimento seja incompleto. A relatividade do conhecimento intelectual aparece quando este se aplica a realidades para as quais não foi criado.

Consciência co-extensiva à vida e capaz de, voltando-se bruscamente contra o impulso vital que sente atrás de si, obter-lhe uma visão integral, ainda que, sem dúvida, evanescente?” (492). Como este percurso deve ser feito pela própria inteligência, tudo vai depender de seu esforço para “alargar” e “ultrapassar” os “quadros do conhecimento” além de intensificar essas potências, essa outra coisa que a constitui e que vai assegurar-lhe a compreensão da vida. Explica-se então o tema fundamental que percorre toda a obra: a forte junção entre a teoria da vida e a teoria do conhecimento. Por um lado, a teoria da vida, mostrando a insuficiência do pensamento conceitual, ensina-nos algo sobre nós mesmos (nossa forma de conhecimento), por outro, a reflexão sobre nosso conhecimento nos conduz à origem da vida.

Vejamos então algumas questões sobre essa origem. Para Bergson, o movimento evolutivo é o de um impulso (elã) que se divide e dissocia em fragmentos, nos quais a mesma impulsão leva-os a dividir-se da mesma maneira em outros tantos fragmentos, que prosseguem dividindo-se ainda por um longo tempo. Mais precisamente, em sua origem a vida era uma multiplicidade que continha “um equilíbrio instável de tendências”, que num determinado momento se dissociam dando origem às formas singulares. A criação dessas formas exigiu apenas um obstáculo, a matéria.

 O processo da evolução vai descrever então os caminhos que a vida, em seu encontro com a matéria, foi obrigada a tomar. Lançada sobre a estrada do tempo e agindo sobre a matéria, ela evoluiu por dissociações e bifurcações constantes, e progressivamente foi revelando as tendências fundidas no elã original. O movimento vital é, portanto, um movimento que não existe sem a matéria, e seus resultados, divergentes, não são senão a expressão da vitória da vida em seu esforço para realizar-se como consciência e liberdade. Isto é, a história das espécies é a história da vida que persegue e realiza o esforço de inserir uma soma cada vez maior de indeterminação na matéria. O homem encontra-se no termo deste processo evolutivo, pois, dentre todas as outras linhas evolutivas, a humanidade foi a única na qual o Cad. Hist. Fil. Ci., obstáculo foi transposto7; isto é, apenas no homem a vida efetiva seu propósito e dá corpo à liberdade8.

Na verdade, instinto e inteligência foram as duas vias divergentes sobre as quais a evolução do reino animal se efetuou, culminando uma no inseto, e a outra no homem; “duas potências imanentes à vida e de início confundidas, que tiveram que dissociar-se crescendo” (608). Representam “dois métodos diferentes de ação sobre a matéria inerte”, duas soluções diferentes de um único problema, mas que se complementam; dessa diferença, a mais relevante é expressa na seguinte afirmação: “Há coisas que apenas a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si própria, ela não encontrará jamais. Essas coisas, o instinto apenas as encontraria; mas ele não as procurará jamais” (623).

Ora, tudo se passa como se a força imanente à vida, sendo limitada e não podendo realizar-se ao mesmo tempo em várias direções, tivesse a escolha entre duas maneiras de agir sobre a matéria bruta: a ação imediata, imanente a seu próprio movimento, cuja essência é utilizar e fabricar instrumentos orgânicos; ou a ação mediatizada, própria ao organismo que, não possuindo naturalmente o instrumento necessário à sua sobrevivência, fabrica e utiliza instrumentos artificiais, ou seja, inorgânicos – é nesse sentido que o homem poderia ser definido como homo faber. 

Instinto e inteligência separam-se,
 então deste modo, tornando-se antes de tudo 
dois modos de ação.

 No primeiro caso esta ação é perfeita mas invariável, pois sua modificação vai estar ligada à modificação da espécie; no homem, a invenção efetiva-se e também abre os horizontes da consciência: cada invenção (fabricação) liberta-o de certos automatismos, eleva-o acima de si mesmo e permite novas invenções; ele torna-se mestre da matéria; não apenas inventa um objeto novo, mas também se utiliza dele. Isto graças à superioridade de seu cérebro, que lhe permite a criação de um “número ilimitado de mecanismos motores”; à sua linguagem, que permite à consciência ter como objetos não exclusivamente objetos materiais; e à vida social que, conservando os esforços, “fixa assim um nível médio ao qual os indivíduos deverão elevar-se...” (720).

8 O homem continua o movimento vital, embora conserve pouca coisa das tendências antes confundidas no elã original: “Tudo se passa como se um ser indeciso e incerto, que poderíamos chamar, como quisermos, homem ou super-homem, tivesse tentado realizar-se e não tivesse conseguido senão abandonando no caminho uma parte de si mesmo” (721)segundo, ela é imperfeita mas variável, e isto porque o instrumento fabricado pela inteligência pode “adquirir uma forma qualquer, servir a qualquer uso, tirar o ser vivo de toda dificuldade nova que surge e conferir-lhe um número ilimitado de poderes” (614).

A inteligência é um produto da vida que desenvolveu-se tendo como apêndice a matéria inorgânica; “ela é a vida olhando para fora, exteriorizando-se em relação a si mesma”. Daí sua incompreensão natural da vida e do mundo organizado, do qual, aliás, ela nos oferece uma tradução em termos de inorgânico (632). Por outro lado, o instinto, também produto da vida, é voltado no sentido da vida: ele é “simpatia”, e se “esta simpatia pudesse estender seu objeto e também refletir sobre si mesma ela nos daria a chave das operações vitais” (645). 

Ora, como “não há inteligência onde não se descubra traços de instinto...”, haveria então um meio para que, capacitada para a reflexão9, ela encontrasse as “coisas” que por si mesma não encontraria: este seria a intensificação das potências instintivas adormecidas nela mesma e a ela complementares; ora, isto não seria senão inverter sua direção natural e buscar em si mesma as indicações para ultrapassar-se. Bergson insiste neste poder da inteligência, que pode ser outra, uma vez que é vida. Enfim, apelar às potências instintivas seria desenvolver nela a intuição, isto é, “o instinto tornado desinteressado, consciente de si mesmo, capaz de refletir sobre seu objeto e de o alargar indefinidamente” (645). Tal é então o esforço necessário para que a inteligência humana apreenda seus objetos do interior e se oriente na direção de um conhecimento indispensável à especulação e à consciência de si.

9 Capacidade que se encontra limitada na inteligência, mas que poderia surgir graças à contribuição da mobilidade das palavras. Pois esta mobilidade permite ao pensamento “circular” “não apenas de uma coisa percebida a uma outra coisa percebida, mas ainda da coisa percebida à lembrança desta coisa, da lembrança nítida a uma imagem mais vaga, de uma imagem vaga, mas ainda representada, à representação do ato pelo qual se tem a representação dela, isto é, à idéia. Assim vai abrir-se aos olhos da inteligência, voltada para o exterior, todo um mundo interior, o espetáculo de suas próprias operações” (630).

3. O interessante a ressaltar é o modo como Bergson soluciona este problema, bem como a coerência de seu método e de suas hipóteses anteriores. A questão inicial era: como o homem poderia compreender sua origem e o próprio modo de ação da vida? Para nosso filósofo, é preciso ir ao homem concreto e estudar a oposição entre instinto e inteligência, a qual corresponde nele (em cada um de nós) à forma “mais acabada” da oposição entre matéria e vida existente no princípio da evolução.

Interiormente vivemos uma duplicidade de movimentos: o de interiorização, e o de exteriorização; o primeiro caracteriza o esforço para atingir nossa consciência interior como criação, e opõe-se ao segundo precisamente por este caracterizar o simples uso da inteligência em ações úteis e fabricadoras.
“Para que nossa consciência coincidisse com alguma coisa de seu princípio seria necessário que ela se destacasse do já feito e se ligasse ao fazendo-se” (696). Dito de outro modo, é necessário voltarmos a mergulhar na pura duração, – “o que temos de mais independente do exterior e de menos penetrado de intelectualidade” – esforçando-nos para apreendê-la em sua atividade criadora.10

 “É preciso que, por uma contração violenta de nossa personalidade sobre si mesma, concentremos nosso passado que se furta, para impulsioná-lo, compacto e indiviso, em um presente que ele criará nele introduzindo-se” (664). Isto é, os momentos de apreensão de nós mesmos são momentos onde nossa vontade é tensionada ao limite, o ato verdadeiramente livre resumindo precisamente esses momentos11; no entanto, a ação livre é rara, pois mesmo nesses momentos “não nos temos jamais por inteiro”, quer dizer, são raros os momentos em que agimos.

10 Pois, como afirma Bergson em seu manifesto filosófico de 1903: “Há pelo menos uma realidade que todos apreendemos do interior, por intuição e não por simples análise. É nossa própria pessoa em seu fluir através do tempo” (1396). Bergson restitui assim, o privilégio da apreensão da realidade interior, território inicial da metafísica.

11“Quanto mais tomamos consciência de nosso progresso na duração pura, melhor sentimos as diversas partes de nosso ser entrarem umas nas outras, e nossa personalidade inteira concentrar-se em um ponto, ou melhor, em uma ponta, que se insere no futuro penetrando-o incessantemente. Nisto consistem a vida e a ação livres” (666) por interiorização e que vivenciamos nossa unidade interior12.


 E, como afirma desde o Essai, “a coincidência de nosso eu consigo mesmo admite graus” (665). Na verdade, isto ocorre porque agimos o mais comum das vezes por exteriorização – participamos da intelectualidade – momento em que nossa vontade se distende e nossa inteligência apressa-se em explicar e reconstituir retrospectivamente o novo estado – a nova forma que acabamos de nos dar – com elementos já conhecidos. Em nós, experimentamos a relação de oposição e complementaridade entre essas duas ações, podendo passar de uma a outra por via de inversão.

Em si mesmo, através do retorno a si (como esforço realizado para ultrapassar a dualidade que vive), o homem encontraria o princípio da dualidade de toda realidade: este é revelado pelo duplo movimento interno à sua consciência. Bergson refere-se aos movimentos originais como a duas ações ou “processos de direção oposta”: de um lado a “espiritualidade”, movimento vital de tensão criadora – ação que se faz; de outro a “materialidade”, movimento de extensão e de queda que interrompe o primeiro – ação que se desfaz. Nesses termos, a vida aparece como uma ação que se faz (gesto criador) através da que se desfaz – a face oposta do mesmo gesto (705-706). E vemos então a ontologia bergsoniana revelar seu fundamento: no começo era a ação.
Mas o importante neste momento é que a experiência da liberdade serve de modelo para pensar o princípio de ação da vida, e isto precisamente porque ela supõe esta tensão, esta interiorização inicial, que não é senão “um ato simples do espírito” (698). Ato de conversão, esforço interior que devemos tentar prolongar para encontrar a unidade da vida assim como encontramos a nossa13.

12 “Na ação livre, quando contraímos todo nosso ser para lançá-lo à frente, temos a consciência mais ou menos clara dos motivos e dos móveis, e mesmo a rigor, do devir pelo qual eles organizam-se em ato; mas o puro querer, a corrente que atravessa esta matéria comunicando-lhe a vida, é coisa que mal sentimos, que, quando muito, tocamos de passagem” ( 697).

13 Nesse sentido, nada mais verdadeiro sobre a filosofia de Bergson do que a afirmação de Albert Thibaudet:

 “Filosofar é explicar o mundo 
pela realidade tal como a encontramos em nós”. 
O ato verdadeiramente livre – criação de si mesmo – acrescenta algo novo ao que em nós já existia, ele cria novos estados de consciência que não se explicam pelos que os precedem; do mesmo modo a criação de formas vivas pela vida: a ação da vida, inserindo liberdade na matéria dá origem a “formas imprevistas”, “formas capazes de prolongarem-se a si próprias em movimentos imprevistos” (706).

A experiência do ato livre é preciosa sobretudo porque nos revela os limites do esforço em direção à unidade e à totalidade; mais precisamente, ele nos mostra que a intuição14, “faculdade de ver” imanente à faculdade de agir e oriunda da tensão interior, é “fugidia e incompleta”. Ver “não mais apenas com os olhos da inteligência”, mas “com o espírito” (707); visão “vacilante e fraca”, mas que devassa a “obscuridade da noite em que nos deixa a inteligência”, quando está em jogo nossa personalidade, nossa liberdade, o lugar que ocupamos no conjunto da natureza, nossa origem (722). Isto é, conhecimento “incompleto”, mas não exterior ou relativo” (664). 

Para Bergson, a filosofia deve então apoderar-se “dessas intuições evanescentes”, sustentá-las depois dilatá-las e ligá-las entre si, num trabalho progressivo que mostraria pouco a pouco ao filósofo que a “intuição é o próprio espírito e, num certo sentido, a própria vida” (Ibid.).

Mas, se assim a filosofia “nos introduz na vida espiritual”, ao mesmo tempo “ela nos mostra a relação da vida do espírito com a do corpo” (722). E uma filosofia da intuição fracassará se ela “não se decide a ver a vida do corpo lá onde ela realmente está, no caminho que conduz à vida do espírito”; a animalidade no caminho que conduz à humanidade; a atividade cerebral no caminho que conduz à vida consciente; a inteligência no caminho que conduz à liberdade (722-723). Ora, se a vida consiste no esforço tentado pela consciência

14 Há uma correlação fundamental entre intuição e liberdade. A intuição é um ato livre, uma decisão metafísica: “Para que nossa consciência coincidisse com alguma coisa de seu princípio, (...). Seria necessário que, revirando-se e curvando-se sobre si mesma a faculdade de ver se identificasse com o ato de querer” (696). Nesse sentido, se a filosofia é ultrapassagem e transcendência do homem ela inicia-se como um ato voluntário de torsão que nos instala no elã de vida que existe em nós.

Para fazer da matéria um instrumento de liberdade, podemos dizer que o corpo presta determinados serviços ao espírito: corpo é matéria e a matéria resiste, provoca o esforço a partir do qual atingimos a intuição15. Será esta a significação da vida? Isto é, o corpo como base, meio e condição para o surgimento da vida espiritual? A inteligência como fundadora da liberdade?

Vemos assim como o espiritualismo de Bergson se especifica16. A vida é portadora do espírito, e em si mesma comporta “uma imensidade de virtuali-dade”17, mas é o contato com a matéria que decide a dissociação dessas virtuali-dades em indivíduos.


 “A matéria divide efetivamente 
o que não era senão virtual-mente múltiplo, 
e, nesse sentido, a individuação é em parte obra da matéria, 
em parte o efeito do que a vida traz nela” (714). 

Em contato com a matéria a vida é comparável a um elã18, potência criadora cujo impulso inicial era “dirigido essencialmente na direção dos atos livres” (711). Este elã é exigência de criação, e, como tal, apodera-se da matéria com o intuito de nela introduzir o máximo possível de indeterminação e liberdade (708); seu poder de escolha e invenção é precisamente o que define suas manifestações19. Somos frutos da união entre

15 Como dizíamos no início, era a compreensão do sentido da “relação do homem, ser pensante, ao homem, ser vivo” (Mél.478) que estava em jogo. Por que o espírito está associado ao corpo que o limita? O estudo da vida era a promessa de uma resposta a esta pergunta.
16 E mais uma vez ele ultrapassa o dualismo fácil que, desde Matière et mémoire é denominado “dualismo vulgar”: pensamento que opõe dogmaticamente as duas substâncias, matéria ou espírito, seja no homem ou na natureza. 

“As dificuldades do dualismo vulgar não surgem do fato de que os dois termos se distinguem, mas do fato de que não se vê como um dos dois se insere no outro” (356).

17A vida é análoga à consciência, e, como ela, comporta uma multiplicidade de elementos que se interpenetram e que podem explicitar-se; mais precisamente, Bergson quer dizer que ela é tendência: ora, “a essência de uma tendência é desenvolver-se em forma de feixe, criando, pelo único fato de seu crescimento, direções divergentes...” (579).

18 “E é preciso compará-la a um elã, pois não há imagem, tomada emprestada ao mun-do físico que dela possa dar a idéia mais aproximativa. Mas não é senão uma idéia” (713).
19 Na conferência de 1911 sobre A Consciência e a vida Bergson dirá: “(...) com a vida apa-rece o movimento imprevisível e livre. O ser vivo escolhe ou tende a escolher.

essas duas tendências opostas e, nesse sentido, se por um lado este elã “lançado sobre a matéria” nunca é apreendido senão em luta com ela, por outro, sua própria natureza é encontrada por intermédio de nossa experiência interior.

Quanto ao homem inteligente, após compreender o princípio de evolução da vida ele descobre o fundamento da dualidade de si mesmo e de suas ações: ele está na vida. Fazendo parte da espécie como ser inteligente, ele realiza ações pra-ticas, tal como a vida que age sobre a matéria; porém, ele pode também ser um in-divíduo criador: por intermédio de suas ações livres20 ele pode dar continuidade à criação, essência da vida. São essas ações que vão revelar o sentido metafísico da vida.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3,
 v. 13, n. 1, p. 81-94, jan.-jun. 2003.
Ciência e Metafísica na Filosofia da Bergson 93
 
Abstract: Our intent is showing how, to Bergson, the investigation about the problem of the meaning of life involves the collaboration between the biological science and metaphysics. To him, the life study is, first, an investigation about the man. It is, the comprehension of man must consider the brought data from the biology. This data showing that this comprehension is found when is considering the constitution of human intelligence, faculty with a function and champ of application determined: it permits the perfect insertion of body in his environment, presides the representations of exteriors things, and thinks the matter; i.e. it has a character essentially practical. Moreover, the reflection on life permits knows “over which points, in what directions, for what needs our knowledge is limited”. Then, the try to exceeding this limitation will define the tug of intelligence to exceeding the forms of its natural knowledge. Try this capacity of intelligence is not only try to explain the origin of other human faculty, but, principally, show a privileged territory where the metaphysics can be reinstaured.
Referências Bibliográficas
BERGSON, H. Oeuvres. Édition du Centenaire, textes annotés par André Robinet, introduction de Henri Gouhier. Paris: PUF, 1970.
————. Mélanges. Textes publiés et annotés par André Robinet. Paris: PUF, 1972.
THIBAUDET, A. Le Bergsonisme. Paris: Éditions Nouvelle Revue Française, tome I, 1923.
criar. Em um mundo onde todo o resto é determinado, uma zona de indeterminação o envolve” (824).
20 Bergson cita ainda o exemplo da obra de arte e o do movimento espontâneo (698). Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 13, n. 1, p. 81-94, jan.-jun. 2003.

Rubinstein Mozart Concerto 17, 20, 21, 23 & 24.wmv

17 II -- 0:12:23 , III -- 0:24:06 , 20 I -- 0:32:06 ,
 II - 0:45:57 , III -- 0:55:03 , 21 I -- 1:02:57 , II -- 1:17:40 ,
 III - 1:24:17 , 23 I - 1:31:06 , II - 1:42:34 , 23 III --  
1:49:56 , 24 I -- 1:58:00 , II -- 2:12:45 , III -- 2:21:09

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