Autofidelidade
Bento Prado Junior e a filosofia vivida
por
DÉBORA CRISTINA MORATO PINTO
Bento Prado Junior nos deixou em 12 de janeiro de 2007, tendo dedicado grande parte da sua vida à filosofia. Leia-se filosofia, aqui, como a reflexão constante e fina sobre temas e conceitos caros à história da filosofia em sua interface com as ciências humanas. De uma forma muito especial, o campo em que se movia ao refletir é mais fielmente circunscrito pela convergência entre a filosofia e a literatura.
Sua meditação filosófica
foi sempre aberta, complexa
e de uma riqueza inestimável.
Sua conversa filosófica, invariavelmente estabelecida ao redor de uma mesa e permeada de poesia, humor e performances artísticas, era fascinante e divertida, cativando inúmeros alunos, colegas, amigos, adversários, leigos e especialistas. Mais que isso, Bento tinha uma enorme capacidade de nos surpreender, de revelar em cada canto das obras filosóficas dimensões insuspeitadas, relações originais e recriações implícitas de conceitos dispostos no tempo lógico.
Tive a oportunidade de conviver com ele a partir de três perspectivas distintas – como leitora de sua obra canônica Presença e campo transcendental; como aluna em cursos e nas avaliações de meu mestrado e meu doutorado, ambos sobre Bergson; como colega de departamento por cinco anos. Em cada uma dessas situações, tive o prazer de contar com sua generosidade, sua elegância e sua inteligência excepcional. Ressalto aqui algumas lições dessa convivência.
Ao freqüentar um curso por ele ministrado no início dos anos 1990, tomei contato com o crescente interesse de Bento – que nadara até então nas águas da fenomenologia francesa e do bergsonismo, tendo passado significativamente por Rousseau e pela psicanálise –, por um pensamento que fincava pé na lógica: o tema do curso era “Bergson e Wittgenstein”. E naquelas aulas aprendia-se como superar oposições artificialmente construídas pelo saber institucionalizado, pautadas por dissensões políticas e mesmo geográficas. Logo se descobria a fragilidade da alternativa “filosofia da linguagem X filosofia da consciência”, denunciada pela ironia leve e pelo sorriso de quem olhava a má posição de um problema filosófico do alto de uma sabedoria que lhe permitia, inclusive, ter compreensão com a ingenuidade alheia.
Ali também tomei contato com suas reflexões sobre um tema que ele não abandonou até o fim, a ipseidade e suas formas de expressão. Enfim, levei daquele curso para o horizonte de meu trajeto a fértil lição de que, afinal de contas, o mundo da vida e o mundo da linguagem são o mesmo. Além disso, pude usufruir de um meio acadêmico ímpar, delineado pela relação entre o mestre e os alunos e marcado pelo respeito, pelo diálogo e pela fidelidade às próprias intenções intelectuais e pessoais.
Na verdade, o que ele nos dizia nas entrelinhas era isso: abraçar a filosofia só vale a pena se você puder ser fiel a si próprio. E isso a despeito do que ocorre a partir da incorporação do ideal de profissionalização aos moldes do capitalismo americano pela universidade brasileira, incluindo a valorização quantitativa, senão massificação, da produção acadêmica e o incentivo à competitividade excessiva. Ser fiel aos próprios desejos podia parecer velharia numa época tão pragmática, uma relíquia existencialista datada…
Mas essa era a preciosidade adquirida, enfrentar o desafio contra a própria corrente e o espírito do tempo: assim como a gravata borboleta, os ternos com os quais ia dar aulas no calor de São Carlos, o chapéu e a bengala, marcas da sua elegância extemporânea.
A fidelidade a si mesmo se expressava na sua figura e nas suas palavras.
A leitura de Presença e campo transcendental impulsionou o percurso de quase todos os pesquisadores brasileiros sobre Bergson. Aqui, levávamos vantagem: a única obra de interpretação do filósofo francês até então comparável ao livro de Bento talvez fosse o Bergsonismo de Deleuze.
Sua principal contribuição consistiu em revelar aspectos essenciais, mas até então negligenciados pela literatura corrente sobre o pensamento de Bergson, através da exposição detalhada e sagaz do vínculo intrínseco entre crítica do negativo e ontologia da presença. Ao tomar essa ligação como fio condutor de sua leitura, posicionou-se contra uma interpretação realista estrita da noção de duração e desautorizou as polêmicas superficiais sobre o espiritualismo de Bergson.
Através de uma escrita segura e muito elegante, que faz jus a um filósofo a quem foi concedido o Nobel de literatura, Bento nos conduz a percorrer as três obras bergsonianas capitais a partir do estudo das ilusões da razão denunciadas no último capítulo de A evolução criadora. Ao tomar como alicerce dessa leitura a noção de campo transcendental, estabelece uma análise de enorme relevância para a recuperação do sentido mais essencial da filosofia de Bergson, assim como para bem determinar sua inserção no debate contemporâneo, que se explicita no espaço de convergência e confronto com a tradição fenomenológica.
Se, em larga medida, o livro deu a tônica do contexto filosófico em que o estudo de Bergson se moveria no Brasil, marcado pela ênfase na análise dos “aspectos transcendentais” da filosofia da duração, sua publicação na França inverteu o sentido mais comum do diálogo franco-brasileiro: imediatamente após sua tradução, passou a ser obrigatória e sistematicamente citado em artigos e debates franceses em torno de Matéria e Memória e das relações entre a intuição bergsoniana e a fenomenologia. Lamentem-se apenas os longos intervalos entre sua redação (1964), sua publicação no Brasil (1989) e sua posterior tradução e publicação na França (2002), esta última em conseqüência de um acaso biográfico que permitiu a um renomado fenomenólogo poder compreender o alcance e o rigor das análises de Bento, bem como a sua admirável escrita – Renaud Barbaras, o tradutor do livro para o francês, falava perfeitamente a nossa língua e era freqüente consumidor da boa literatura brasileira.
A história de Presença
e campo transcendental, aliás, ilustra,
por si só, as agruras de escrever
sobre filosofia em português,
língua marginal no debate acadêmico mundial.
A defesa da fidelidade a si e da liberdade era praticada nas orientações de teses e nas deliberações dos procedimentos e regras institucionais; a profundidade de sua reflexão era compartilhada através da docência que fascinava os alunos e atraía ouvintes de todos os tipos; o convívio social e afetivo sempre em torno da filosofia funcionava como tempero e alento em meio às dificuldades da pesquisa e do exercício da reflexão no contexto da universidade brasileira.
Poder trabalhar com filosofia e ouvir Bento cantando ópera, imitando artistas de cinema, recitando a Divina Comédia de cor em italiano, emocionando-se com as canções de Chico Buarque, contando histórias deliciosas do passado e do presente, enfim, celebrando a vida e a arte, a poesia e a filosofia, foi um enorme privilégio. Por isso mesmo, sua morte ensina o que pode ser o peso de uma ausência e nos deixa a imensa responsabilidade de zelar por seu legado. [PINTO, Débora Cristina Morato. Bento Prado Junior e a filosofia vivida. Kriterion , Belo Horizonte, v. 48,
Kriterion: Revista de Filosofia
v.48, n.115, Belo Horizonte, 2007
v.48, n.115, Belo Horizonte, 2007
Fonte:
http://edsongil.wordpress.com/2008/11/06/autofidelidade/
Sejam feliozes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário