Marco Antonio Barroso[1]
Louis-Henri Bergson (1859-1941) é considerado uma das maiores figuras da filosofia entre os fins do século XIX e a primeira metade do século XX. Fez parte de um seleto grupo de pensadores que iniciaram a transição entre a filosofia moderna e a contemporânea, como os filósofos alemães F. Nietzsche (1844-1900), E. Husserl (1859-1929) e W. Dilthey (1883-1911), o americano W. James (1842-1930), ou o francês G. Bachelard (1884-1962). Foi provavelmente o maior filósofo espiritualista francês. Durante algum tempo, sua obra ficou um tanto quanto esquecida nos meios acadêmicos, todavia, em fins do último século, algumas figuras, antes sumidas do cenário filosófico, começaram a ser retomadas e, entre elas, encontra-se o citado filósofo[2].
Como afirma Pondé, em introdução ao livro A intuição e a mística do agir religioso, “Bergson participou da ‘virada’ fenomenológica no início do século XX, e é, de certa forma, um Husserl à la française. Seu chamado a um retorno aos ‘dados imediatos da consciência’ é na realidade uma atitude filosófica crítica. No entendimento de Bergson, a experiência pura da consciência não oferece o mesmo conteúdo que a elaboração inteligente nos dá”[3].
Sobre a origem do pensamento de Bergson, podemos afirmar que ela se encontra enraizada em duas fontes. Uma seria a de seus mestres acadêmicos, e que podemos flagrar na obra do próprio autor, em suas dedicatórias, notas e textos biográficos. A outra fonte vem de sua origem etnológica, em suas raízes judaicas[4]. Mesmo no final de sua vida, atraído pela mística cristã, podemos capturar em Bergson suas raízes judaicas.
O cristianismo, pensado por Bergson,
é o desenvolvimento do judaísmo.
Cristo é um continuador da obra dos profetas de Israel. Segundo Léon Foucks[5], um estudo mais aprofundado da filosofia bergsoniana levaria à descoberta de analogias profundas entre o pensamento judaico e a obra do autor francês. Suas concepções seriam muito mais próximas à tradição israelita do que à cristã. Para Bergson, o místico completo é aquele pelo qual Deus ama a humanidade[6]. Um Deus universal, que é puro amor, é o que pretende Bergson, assim como o Deus universal do judaísmo, completado pelos ensinamentos do profeta Jesus.
Trata-se de uma concepção muito próxima ao pensamento do pensador semita Leão Hebreu (+ 1460-?), Jehuda Abravanel, que, em sua obra Diálogos de Amor, tem uma concepção unificadora do universo, animada pelo princípio do amor[7]. Ou ainda Baruch Spinoza, que, em seu panteísmo, unifica a totalidade do mundo na idéia de Deus. E, embora contrário ao pensamento imobilista de Spinoza, Bergson preserva a unidade do universo em sua concepção de Deus. A divindade seria um centro do qual jorraria a vida, um centro de contínua mobilidade e liberdade. Assim é Deus definido para Bergson[8].
Pela parte do ensino de seus mestres, podemos captar, na obra do próprio autor, as grandes influências que lhe forneceram a forma para revestir sua intuição criadora. Não podemos esquecer que Bergson é herdeiro de uma geração que sofreu o impacto, direta ou indiretamente, da revolução francesa. Ou, conforme Melónio[9], do “período de críticas à filosofia das luzes”. E pode-se dizer, também, que é tributário do período de crítica ao positivismo materialista, legatário do pensamento iluminista. Nesta reação encontramos, num primeiro momento, a filosofia que seria o pensamento “oficial” do novo Estado francês, o ecletismo espiritualista de Victor Cousin.
Em um segundo momento, há o movimento espiritualista propriamente dito. E é neste último que Bergson irá beber suas influências. Em sua obra Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson inicia com uma homenagem a Jules Lachelier (1834-1919), então inspetor-geral da instrução pública. Lachelier e Émile Boutrox (1845-1921) “fazem do estudo da obra de Kant uma obrigação em seus cursos, malgrado o peso exercido pelos positivistas”[10].
O primeiro tenta fundar a filosofia espiritualista em uma metafísica, usando do pensamento kantiano para corrigir os erros encontrados por ele no ecletismo de Cousin. Apesar de sua pouca originalidade, pode-se afirmar que é em Lachelier que o espiritualismo se separa do ecletismo e ganha corpo próprio. De Boutrox, Bergson herda a idéia de que a vida humana é irredutível à vida puramente orgânica. “A consciência de si, a reflexão sobre os próprios modos de ser, a personalidade não podem ser reduzidas a nenhum outro elemento.”[11] Mas é em O Pensamento e o movente que encontramos, descritas pelo próprio autor, suas fontes. Na citada obra, o pensador francês transcreve uma homenagem àquele que o antecedeu na Académie des sciences morales et politiques, Jean-Gaspard-Félix Laché Ravaisson[12] (1813-1900).
Em suas duas principais obras, Ensaio sobre a metafísica de Aristóteles e Do Hábito, Bergson tira inspiração para aquele que, mais tarde, se constituiria em seu método filosófico, ou seja, o intuicionismo. Para nosso autor, Ravaisson sugere uma filosofia de introspecção que propiciaria ao filósofo que a praticasse um estado de coincidência com a realidade em si mesma, além da aparência exterior que as coisas a seu redor ensejariam.
A nova visão se nos apresentaria “como um dom gratuito, como um grande ato de liberdade e de amor”[13]. Das formas mais elementares existentes às mais complexas, ela descobriria uma ordem, uma aspiração que ligaria o inferior ao superior. Esta filosofia se coloca em oposição a uma filosofia de cunho meramente analítico e materialista, que, na decomposição dos elementos, chega apenas a partes mortas do que na verdade é, um complexo vivo e mutável.
Assim, entre o iluminismo herdado pelo positivismo e o espiritualismo ecletista, aparece a mediação bergsoniana, realizando uma “superação simbiótica” entre os dois extremos. “Do positivismo à metafísica”, essa seria a trajetória sugerida por Juan M. Navarro e Tomas C. Martinez em seu livro História da Filosofia[14].
Devemos entender o procedimento investigativo bergsoniano como a tentativa de abordagem sistemática da relação entre o conhecimento científico e o metafísico. É na sistematização dessas idéias que surge a obra bergsoniana. Em Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1888), o autor desenvolve sua idéia de duração como tempo qualitativo. Em 1896 vem a público Matéria e Memória. Aí temos a revelação do estado de duração como vida em seu sentido ontológico. Nessa obra, o tempo (durée) é compreendido como memória. Em A evolução criadora (1907), temos
o élan vital, que percorre a evolução,
desembocando uma de suas correntes no homem
– cosmologia, epistemologia e metafísica
se tocam na busca pelo élan vital.
E, em 1932, Bergson toca finalmente, de forma explícita, o problema que esteve implícito em toda a sua filosofia, o da religião.
Afirmamos isto, pois em resposta à acusação de ateu, proferida pelo Pe. Tonquédec, ele diz, se defendendo, que as considerações expostas em seu “Essai sur les données immédiates apresentam o fato da liberdade; as de Matière et mémoire fazem tocar com a mão a realidade do espírito; as de L’evolution créatice apresentam a criação como um fato: de tudo isso brota a idéia de um Deus criador e livre, gerador ao mesmo tempo da matéria e da vida, cujo esforço de criação prossegue, da parte da vida, como a evolução da espécie e com a constituição das personalidades humanas.”[15]
Com essa afirmação do autor, precisamos, então, enxergar toda a filosofia bergsoniana como um pensamento não ateu, desenvolvido em torno de uma idéia dinâmica da divindade e da própria espiritualidade humana e, a nosso ver, fundamentada em sua metafísica do tempo. Ao ensejo desta colocação, podemos entender a filosofia de Bergson como um projeto que tem o cume em sua obra As duas fontes da moral e da religião.
Trata-se de um trabalho em que o autor desenvolve suas idéias de filosofia social, moral e da religião. Isto porque é sobre sua conceituação de religião que o pensador apóia suas idéias de filosofia social e moral. É este mais além que almejamos pôr às claras em nossa proposta de pesquisa. Buscar as raízes de possibilidade do fenômeno religioso no pensamento de Bergson, e suas conseqüências. Mas esta busca só seria possível, a nossos olhos, usando a duração como instrumento de leitura de toda filosofia bergsoniana.
Ao ensejo de alcançar o objetivo esperado teríamos, pois, que, primeiramente, definir o que o filósofo francês entende por duração. Dedicamo-nos, então, ao estudo dessa idéia na filosofia bergsoniana. Ao longo do período em que pesquisamos o conceito de duração, na obra bergsoniana, mais clara se tornava a necessidade de que, também, deveríamos entender o método do qual o nosso filósofo faz uso em sua investigação sobre o tempo. Concluída nossa pesquisa sobre o conceito de duração, partimos para o entendimento da intuição, ou do método intuitivo bergsoniano, dito de outra forma.
Para um melhor arranjo metodológico e para melhor fluência da leitura da pesquisa, decidimos inverter a apresentação dos dois conceitos referidos acima no primeiro capítulo de nossa dissertação. Em primeiro lugar, expusemos o método bergsoniano: a intuição. Com seu método, Bergson propõe uma nova epistemologia, na qual a realidade deve ser abarcada num todo indiviso e móvel.
Intuir é captar a realidade
em um “golpe de vista”,
antes mesmo de sua racionalização.
Para nosso autor, a filosofia não deveria encaixar o mundo em conceitos previamente construídos, mas sim criá-los, um a um, após a observação da vida. Só pela intuição poderíamos captar, de forma supra-intelectual, o verdadeiro movimento da vida, ou seja, a duração. Como já exposto anteriormente[16],
Bergson considera que a idéia de duração
está na base de toda a sua construção filosófica.
A duração é a própria constatação da passagem do tempo, mas de uma passagem que deixa suas marcas, trazendo mudanças que, embora radicais, parecem imperceptíveis. E cada instante é um instante inteiramente novo, uma vez que entendemos o tempo como duração. Isto porque, a cada momento da vida, todo um passado de experiências já vivenciadas vem se reunir, não permitindo, assim, que um mesmo fato nunca se repita da mesma forma. Logo a vida se torna para aquele que a observa perpétua criação e liberdade.
Terminada a primeira etapa de nossa pesquisa tínhamos a necessidade de criar uma ponte conceitual que nos possibilitasse chegar à sua outra margem, a religião como entendida por Bergson. Nesta segunda etapa, que expusemos no segundo capítulo, a duração assumiria outra denominação, todavia mantendo as mesmas características.
Élan vital é
como Henri Bergson conceitua a duração
em seu livro A evolução criadora.
Nesse livro, o filósofo francês, usando de seu método, transfere a pesquisa em torna da duração para o mundo exterior a nosso eu. O élan vital é o próprio impulso criador que perpassa a natureza, dando forma e vida à matéria amorfa. Nesta obra bergsoniana, já podemos encontrar algo de sua filosofia da religião, pois, como afirma o autor, é da própria criação, de um Deus criador e livre que fala seu livro.
Nesse capítulo de nosso trabalho, apresentamos as bases epistemológicas do pensamento bergsoniano, tal qual a revisão que o espiritualismo bergsoniano propõe para o positivismo e a ligação de nosso autor com a ciência de sua época.
Sua busca por um parâmetro de pesquisa baseado no que o autor denomina de “biologia em sentido mais compreensivo”[17]; a concepção bergsoniana da gênese da matéria e da inteligência; a ação criadora do élan vital, da forma de vida mais rudimentar ao ser humano. E por último, a relação entre a filosofia bergsoniana e o pensamento de Plotino, em que fica evidente a aproximação do élan vital, de Bergson, ao conceito do Uno plotiniano.
Restava então à última parte de nossa pesquisa identificar a duração no pensamento bergsoniano sobre a religião. Como frisa Frédéric Worms[18], a filosofia bergsoniana se constrói sobre o paradoxo tempo (duração) vs. espaço. E na filosofia religião proposta pelo nosso autor, esse paradoxo não poderia estar ausente. No livro As duas fontes da moral e da religião, encontramos o paradoxo do aberto e do fechado, do dinâmico e do estático.
A uma religião dinâmica encontramos vinculada uma sociedade aberta; a uma religião estática encontramos ligada uma sociedade fechada. Essa divisão feita por Henri Bergson não pode, de fato, ser considerada nova, pois já a encontramos cerca de um século antes no pensamento de outro filósofo francês, Benjamin Constant de Rebecque[19]. O que podemos dizer que há de novo no pensamento bergsoniano é o lastro que este cria entre a religião do sentimento, dinâmica, e a vida. Direcionamos então nossos estudos sobre aquela forma de religião que, para Bergson, se identifica com a duração e a vida, a religião dinâmica.
Para compreendermos a religião no pensamento bergsoniano, é necessário que primeiramente entendamos a mística, ou o que o autor francês caracteriza de verdadeiro misticismo. Assume o misticismo o papel da intuição, podemos mesmo qualificá-lo como a intuição em seu máximo grau. Esta intuição é o móvel da ação humana, nos mais variados campos, é o que nosso autor denomina de emoção criadora. Essa seria a faculdade que realmente nos leva ao conhecimento, no campo das ciências; que nos possibilita a experiência estética, no campo da arte; e que gera o herói, no campo da moral.
No entender do autor francês, os verdadeiros místicos são aqueles homens e mulheres de ação que, sentindo a ação criadora da vida (de Deus), tornam-se também parte dessa ação.
A religião dinâmica é, para Bergson, aquela que deriva da atitude dos grandes místicos que transmutam o élan vital em amor e fazem com que a humanidade evolua. Assim como em
A evolução criadora,
o élan vital impulsionava
a evolução das formas de vida.
Em As duas fontes da moral e da religião, encontramos o mesmo impulso movendo as formas de organização da humanidade.
A religião dinâmica é, no entendimento bergsoniano, o móvel da mais pura forma de moral, a moral aberta. O verdadeiro místico proporciona, com sua ação, que aqueles que o cercam sejam tocados em sua mais íntimas fímbrias pela vontade de agir no bem. É uma moral supra-intelectual, a mesma que movia os primeiros mártires cristãos que, a caminho da morte, entoavam canções.
Se entendermos o termo religião, em sua etimologia, por religare, ou seja, aquele ato que religa o homem à sua origem, a Deus, poderemos entender toda a obra bergsoniana como uma filosofia religiosa. Isto porque, como pudemos ler, o autor nos incita ao ato de introspecção, que, em etapas, nos religa ao élan criador; à vida, que é o ato criador contínuo do Ser supremo; ao amor divino, que é na verdade o próprio Deus.
Situando o homem na natureza, Bergson procura indicar-nos, com sua filosofia, que podemos ir mais além do que pensamos ser capazes. Podemos dizer que o que o pensador francês buscou com suas obras foi uma filosofia da bem-aventurança. Onde procurávamos um filósofo da religião, achamos um místico da vida.
Podemos entender ainda o pensamento bergsoniano sobre a religião como uma fenomenologia, certamente não em seu sentido restrito, mas em uma acepção mais aberta. Encontramos em Bergson aquele desejo de conhecer a natureza do fenômeno religioso e sua essência, própria do fenomenólogo da religião[20].
Analisando as chamadas grandes religiões, ou mesmo a filosofia clássica, o autor francês encontrou aquela que seria a estrutura básica, no seu entender, do fenômeno religioso: o misticismo, que é a característica que assume o élan da vida em seu mais alto grau nos domínios humanos. Dota Bergson, assim, a própria vida com o dom da sacralidade. Uma vez sendo a vida em sua totalidade “sagrada”, nosso autor pode excluir essa categoria de seu vocabulário, pois tudo é criação da vida, se não é sua própria manifestação. Falar da vida é já falar do sagrado.
// ter, 21 abr, 09 // 3 Comentários
Resumo da dissertação com o mesmo nome
Fonte:
Notas de Rodapé
http://www.notasderodape.com.br/index.php/filosofia/vida-e-criao-a-religio-em-bergson.html
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