LOUCURA LUNAR – AMOR TITÂNICO
Um encontro entre a patologia e a poesia
Rafael López-Pedraza
Este texto faz parte do livro Ansiedade Cultural
de Rafael López-Pedraza. Agradecemos a Paulus Editora
pela permissão de reproduzirmos este capítulo aqui na Rubedo.
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Neste escrito refiro-me a dois elementos de grande importância psicológica na terapia atual. O primeiro é sobre a psicologia virginal, refletida na estranha relação entre a figura mitológica de Endímion e a Lua1, mito que atraiu muitos poetas e escritores2.
Endímion se apresenta como enamorado da Lua, enamoramento que assinala uma psicologia complexa, cujo espectro roça ora a criatividade poética ora severa patologia; com ele Endímion reveste-se de uma relação especial, às vezes peculiar, com a virgindade. Mas a Lua aparece como Selene, ou seja, a Lua em seus aspectos titânicos. E é precisamente o titânico o segundo material a que me refiro aqui. É interessante levar isso em conta, pois como se verá, ao longo destes ensaios faço várias referências a aspectos muito estranhos da natureza humana, aspectos que atribuo à psicologia dos Titãs.
Comecemos por compartilhar algumas impressões sobre o titanismo e indicar sua importância para os estudos da psicologia dos arquétipos, já que representa para mim um aspecto muito importante e ainda não plenamente explorado da natureza humana. Para tal propósito tomarei algumas idéias que apresentei em meus seminários sobre o titânico.
Parece que nunca houve um culto aos Titãs. Os tempos titânicos podem ser visualizados como um período de transição entre o homem primitivo e o homem culto, civilizado. Um período durante o qual não existiam nem o ritual, nem o culto do homem primitivo, nem a imaginação antropomórfica bem definida do homem altamente culto e religioso. Como todos temos complexos primitivos dentro de nós, que foram bem estudados pela psicologia junguiana, todos também devemos ter, implicitamente, um nível titânico na psique: os complexos titânicos, ainda que não tenham sido tão bem estudados.
Uma psicologia
mais diferenciada desse nível titânico
ainda aguarda o seu estudo.
Existem personalidades nas quais o titânico parece ser predominante e, acredito, existem comportamentos estranhos e patologias que só podem ser avaliados em termos de titanismo, algo a que me referirei com mais detalhes no que se sucede. Estou convencido de que a psicologia do titânico é sumamente importante, em particular se aceitarmos que esse ingrediente se encontra em todos nós.
Antes de tudo, seja-me permitido clarificar um pouco o campo mitológico em que reside a figura que iremos enfocar. Mas, a fim de limpar o terreno para obter uma idéia mais clara do titânico, será necessário observar o que não é titânico. Os Titãs pertencem ao tempo mitológico de Crono, época da primeira e segunda geração de deuses. Foi o tempo anterior à guerra de Zeus contra seus progenitores titânicos, que originou uma nova ordem, um novo ritual, uma nova religião, uma nova cultura e uma nova civilização.
A era de Zeus provocou uma diferenciação de imagens, o que Nilsson chama de antropomorfismo grego em mitologia e história. Nilsson e outros estudiosos modernos concordam que a configuração deste antropomorfismo demorou aproximadamente um milênio. Aqueles foram chamados séculos da Era das Trevas grega: séculos em que era tarefa dos bardos e menestréis – em outras palavras, dos poetas – cantar uma e outra vez as mesmas canções, repetir as heróicas sagas micênicas: a história mitologizada dos Heróis. E à medida que os poetas cantavam, teciam uma rede na qual, pouco a pouco, iam captando as imagens de uma mitologia divina.
Dentro dessa rede de narrativas repetitivas foram recolhendo os deuses e deusas como imagens antropomórficas viventes, criando, assim, uma imagem bem diferenciada e consistente de cada um deles, tal como expressa Nilsson:
Durante a Era das Trevas, entre a queda da cultura micênica e o período homérico – tempos em que deve ter-se desenvolvido especificamente o antropomorfismo grego -, podemos presumir que o antropomorfismo interior era a força vigente... Porque temos sido educados pelos gregos segundo um antropomorfismo consistente, e isso é algo especificamente grego3.
Hoje em dia, podemos ser educados uma vez mais pelos gregos. Temos recebido de sua mitologia a constante possibilidade de um Renascimento da psique. Sim, temos sido educados pelos gregos, mas para sermos precisos, eu acrescentaria, pelos poetas gregos. E considero essa educação como uma educação da alma, uma educação psíquica. E essa educação da alma através da poesia - do antropomorfismo poético-mitológico – é a fonte da qual o homem ocidental pode extrair inesgotavelmente aquilo com que se educar e recriar a alma4.
Hölderlin escreveu:
"Cheio de méritos, mas poeticamente,
o homem habita a terra"5.
Com essas palavras, o poeta nos diz que nossa educação hoje em dia contém o que o homem faz tanto por mérito como por intervenção poética. E para refletir sobre a imagem que irei elaborar, também necessitaremos tanto de mérito como de poesia.
Mas retornemos aos Titãs. Desafortunadamente é muito pouco o que sabemos sobre eles. A Titanomaquia e dois terços da trilogia de Ésquilo sobre Prometeu se perderam, mas, para os fins que aqui perseguimos, os estudiosos de mitologia deram-nos uma imagem adequada da antiga raça de deuses. Eis o que diz Kerényi sobre os Titãs:
Os relatos sobre Titãs são sobre deuses que pertencem a um passado tão remoto que conhecemos tão unicamente a partir de histórias de um tipo particular, e só exercendo uma função particular. O nome Titã, desde os tempos mais remotos, foi profundamente associado com a divindade do Sol, e parece ter sido originalmente o título supremo de seres que, com efeito, eram deuses celestiais, mas deuses muito antigos, ainda selvagens e não sujeitos a lei alguma.6
Kerényi nos dá um quadro geral da psicologia dos Titãs: não existem leis, nem ordem, nem limites. Em sua extraordinária obra sobre Prometeu, um Titã, Kerényi o definiu como "o arquétipo da existência humana"7. Ainda que Kerényi tivesse a precaução de dizer que desejava evitar a conotação filosófica de existencialismo em sua utilização da palavra "existência", foi sua concepção de Prometeu como arquétipo da existência humana, assim como nossas reflexões sobre titanismo através das obras de alguns mestres da literatura moderna, que deu luz às minhas percepções do titanismo tal como aparece em nossos tempos. Kerényi, como grande pioneiro que foi em estabelecer a conexão entre o excesso dos Titãs e a existência humana, estava indubitavelmente sob a dupla influência das investigações de Jung sobre os arquétipos e das idéias e literaturas inspiradas pelo existencialismo. Essas idéias, num homem que foi exilado de guerra, muito contribuíram para tornar possível seu Prometeu , um estudo de textos que apresenta a difícil psicologia dos Titãs e que proporcionou um ponto de partida para minhas próprias reflexões.8
Didaticamente podemos dizer que assim como os gregos pensavam nos tempos titânicos como um reino de tempos antigos e deuses celestiais quase selvagens, também na ontogênese do homem existem tempos titânicos. Provavelmente nossa adolescência contém grande quantidade de titanismo: excessos, falta de limites, leis, caos, barbarismos etc.; e podemos acrescentar a esse elemento titânico a viagem celestial do Puer, quando exibe seu próprio excesso, sua ausência de limites e sua destrutividade.9
Minhas reflexões sobre o titanismo surgiram de recordações de minha própria vida, do ter vivido em sociedades titânicas das quais se poderia dizer que, psicologicamente, estão inseridas entre o homem primitivo e o civilizado. Elas também surgiram da observação de como o excesso aparece em todos os lugares hoje em dia, mesmo nas sociedades mais diferenciadas, cujas tradições estão fundamentadas nas chamadas religiões superiores; um excesso que principalmente se mostra evidente no missionarismo que predomina em todas as facetas da vida.
A civilização ocidental está se tornando cada vez mais titânica. Mas minhas reflexões surgiram, acima de tudo, de minha prática como psicoterapeuta na experiência com pacientes cuja psicologia só tem sentido se se consegue detectar o elemento titãnico – aquilo que Jung e outros poderiam chamar simplesmente a sombra ou o inconsciente – e por ter podido apreciar como o elemento titãnico se detecta em discursos altamente "cultos" e articulados que, todavia, podem ser escutados como um jargão mimético-titãnico.
Para mim, "estar inconsciente" quer dizer estar inconsciente dos arquétipos, de suas formas e imagens, seja na história ou no decorrer de toda uma vida. Equiparar o titanismo com o inconsciente é um assunto bem diferente. Por exemplo, com esses pacientes, o lema que adotei para o meu trabalho: "a imagem, o que torna possível o impossível",10 simplesmente não funciona. Porque "tornar possível" significa "tornar consciente" uma imagem que foi "impossível", inconsciente; mas esses pacientes são incapazes de produzir uma imagem. Ou melhor, justamente quando se pensa que uma imagem está em processo, existe algo que surge do nada e destrói sua possibilidade.
Algumas vezes se pode observar que, quando se apresenta algo que poderíamos chamar de uma imagem, esta não é acompanhada de emoções ou sentimentos psíquicos. Então, dessa imagem não surge criatividade alguma; o que se toma por uma imagem que poderia mover a psique, para eles não é mais do que um estereótipo, um mimetismo.
Outra maneira de detectar o titanismo se encontra no que a psicologia junguiana tem chamado de "o intelectual". Existe um tratamento intelectual da imagem, um tratamento que pede lentes de aumento ao se intelectualizar um sonho. Aqui cabe perguntar se o método de amplificação só nutre esse intelectualismo.
Mas levemos um pouco mais longe o elemento titãnico. A visão que tem Kerényi dos Titãs, a de que representam uma função particular, é talvez o que estou tentando atingir em relação a esse elemento titãnico que todos temos. Todavia, enfrentamos aqui uma dificuldade: uma função aponta para algo específico, enquanto o titanismo nos aparece como desordenado e selvagem.
Anteriormente mencionei os deuses e deusas bem definidos com suas imagens consistentes; em outras palavras, os arquétipos. Citemos Nilsson novamente: "O antropomorfismo tem, por conseguinte, uma limitação característica".11 Por ser assim, resulta difícil ver os Titãs (cuja característica principal é o excesso) como arquétipos, isto é, com uma limitação própria e inerente; e resulta mais difícil vê-los como imagens arquetípicas. Além disso, Nilsson diz:
"Os Titãs são abstrações
ou nomes vazios cujo significado não podemos julgar".12
Portanto, chamar os Titãs de arquétipos,
ou representantes de uma função particular,
Kerényi escreveu seu Prometeu em 1946
O Titã - Prometeu de Radeir
o.s.t. 180x140 - 2010
Desce nas areias
põe-se a semear vidas
- O Titã Prometeu.
ade
Mais que mito
reza na alma humana
- o berço, origem celeste.
ade.
Todavia, na poesia e na iconografia, os Titãs são personificados, representados como formas, o que, talvez, nos permita ampliar nossa visão do antropomorfismo limítrofe (boderline).
Pessoalmente prefiro visualizá-los como figuras mitológicas que representam mimetismo e excesso, já que não estão contidos dentro das configurações arquetípicas. Para se ter uma idéia desse mimetismo, desse jargão e desse excesso, é preciso ter um preparo no estudo dos arquétipos o mais completo possível. Só tendo um conhecimento das formas arquetípicas bem definidas, como pano de fundo, poderemos ter idéia da natureza daquilo que, por definição, carece de forma na natureza humana..
Kerényi escreveu seu Prometeu em 1946, justamente após a Segunda Guerra Mundial, quando, segundo parece, o homem começou a se dar conta de certos aspectos de si mesmo até então desconhecidos, como se a guerra o tivesse feito refletir sobre partes alienadas de si mesmo. A própria literatura, desde O estrangeiro de Camus, publicado durante a guerra (1942), até A laranja mecânica de Anthony Burgess (1962), nos confirma essa impressão.14
Relaciono o que Camus e Burgess expressaram em seus romances, em termos de mitologia e psicologia, com o aspecto titânico que estamos procurando no homem: nem leis, nem ordem, nem limites; só excesso. Uma vez mais, a literatura nos abriu as portas para uma exploração (que nós, em psicologia, só estamos começando) daqueles aspectos no homem em que espreita o Titã. Mas, seguindo novamente Kerényi, devemos aceitar que na vida humana o titânico se expressa em excessos, em desmedidas. Neste sentido, o titânico poderia ser, se não um arquétipo, pelo menos uma função particular da natureza humana.
Retornemos à afirmação de Nilsson sobre os Titãs a quem, como já dissemos, ele qualifica de "abstrações ou nomes vazios cujo significado não podemos julgar".15 O pensamento cuidadoso sobre esta afirmativa oferece outro ponto de reflexão que nos ajuda a atingir uma visão mais ampla do titanismo. Todos somos habitados por essas abstrações, esses nomes vazios; somos inundados em nossa vida cotidiana por palavras vazias – nosso blá-blá-blá cotidiano -, para não mencionar nossa psicoterapia, na qual, se não conseguimos nos dar conta de nosso próprio titanismo, podemos cair num jargão vazio, ainda que utilizemos as mais belas palavras.
Nossa psicoterapia sempre corre o risco de converter-se em nomes vazios, em jargão titânico. Existem áreas em nossas psiques, ou em nossas vidas, em que não temos reflexão porque não há imagens e, por isso, não temos sentimentos para avaliar. Tendo em mente esses dois elementos básicos do titanismo – sua vacuidade por um lado, seu excesso por outro - , podemos começar a avaliar o excesso através da nossa história, da nossa vida, da nossa prática.
Nosso desafio consiste em levar a reflexão para o que não tem limites, o que não é arquetípico; para o que, paradoxalmente, não pode ser refletido porque não há imagem, mas pode ser detectado através de sua própria retórica titânica.16
Bem, a afirmação de Nilsson de que os Titãs são "abstrações" ou "nomes vazios" nos permite orientar nossa investigação para outra direção, a de nossas chamadas lacunae: aquilo que não podemos conhecer ou apreender em nós mesmos, essas abstrações vazias, esse nada, os buracos negros que nos fascinam hoje em dia. Esses não são arquétipos, mas buracos. Se conseguimos conceber ambos, a vacuidade e o excesso, nos encontraremos em melhor posição para perceber o titânico. De fato o excesso poderia surgir da vacuidade, das lacunae.
Essa discussão sobre os Titãs deveria, assim espero, ajudar-nos na psicologia arquetípica a adquirir uma idéia básica do campo que eles oferecem ao estudo. Depois de tudo, seria uma lástima que nossos estudos dos arquétipos se contentassem com a mera descrição dos perfis característicos de Artemis, Afrodite, Ares etc.
O elemento mais importante dos Titãs
– o excesso, que, até onde vejo surge da vacuidade
– conduz, entre outras coisas, à patologia
ou a "comportamento estranho":
excesso do qual a história e todos nós
estamos repletos.
Tenho me apoiado com bastante insistência em Kerényi e Nilsson. Pelo que sei, Kerényi foi o primeiro a tratar do titanismo com profundidade, ainda que a contribuição de Nilsson acrescente muito em nossas percepções. Na psicologia junguiana, na qual me baseio, assim como no estudo dos arquétipos, existe muito poucas referências aos Titãs. O pouco que existe vem de conexões órfico-platônicas entre os Titãs e o mal na natureza humana. Como assinala Dodds, "em suas Leis Platão menciona pessoas 'que ostentam a antiga natureza titânica' e os impulsos que não são 'nem de homem nem de Deus'":17 vale dizer, em termos junguianos, é o mal em nossa sombra que não logramos integrar e então precisamos rejeitar. Por certo a psicologia junguiana não tem na literatura moderna e na imagética de nosso tempo um meio de reflexão dessa parte da natureza comumente chamada "existência", que igualo ao titanismo.
Voltando a Camus e Burgess: desde as primeiras linhas de "O estrangeiro encontramos um quadro extraordinário de vacuidade (lacunae, ou vazio, se se prefere). O estrangeiro recebe um telegrama anunciando a morte de sua mãe, mas ele não demonstra nenhuma reação arquetípica – não existe aflição nem sentimento de perda, por exemplo – diante de tal acontecimento. Então o excesso aparece neste personagem quando dá cinco tiros em um árabe. A primeira bala matou, as outras quatro foram excessivas. Arquetipicamente falando, pode-se ficar dominado pelo pânico e disparar uma bala a partir de uma reação instintiva primitiva, como defesa pessoal, mas quando são cinco, existe excesso.
O homicídio do árabe nos ajuda a distinguir entre uma situação arquetipicamente demarcada e uma situação que não tem nada de arquetípico. A causa do infortúnio do estrangeiro é atribuída por ele mesmo ao Sol – um dos deuses celestiais dos Titãs. Esse tipo de projeção de culpa do estrangeiro para algo tão absurdo como o Sol pertence amplamente ao titanismo. De alguns de meus pacientes tive de escutar as mais estranhas e muitas vezes ridículas projeções de culpa para tudo, exceto para eles mesmos, o que, para mim, surge na natureza titânica.18
No final do livro, durante uma conversa entre o estrangeiro e um sacerdote, Camus mostra com grande maestria a incapacidade para imaginar do estrangeiro a impossibilidade de que surja uma imagem nele. O sacerdote diz que os presos antes de morrer usualmente vêem a imagem divina na parede de pedra de suas celas; mas o estrangeiro respondeu que tentou ver o rosto de sua noiva, Maria, sem conseguir, e isso nos dá uma base para dizer que Maria, sua noiva, não existe nele como uma imagem interior.
A laranja mecânica, ampliando o tema do titânico implícito no romance de Camus, expressa o total excesso em todas as áreas da existência: golpes, assassínios, violações etc. Burgess nos dá um quadro de uma sociedade que vive em excessos titânicos: "selvagem e não submetida a leis", como disse Kerényi dos Titãs. A religião se converteu em simples mimese que o jovem Titã utiliza para o seu próprio interesse.19 Na visão que nos dá Burgess, todas as instituições da sociedade estão baseadas no mesmo excesso titânico. E a psiquiatria, como redentora, com sua tecnologia prometéica, seu zelo missionário, trata de resolver o enigma titânico em benefício do pobre Titã, da sociedade e da humanidade como um todo: Prometeu, um Titã mais sofisticado, aparece de muitas formas, porém a mais próxima de nosso tema é sua aparição como redentor na figura de um psiquiatra tecnocrata tratando de salvar o Titã.20
A psique não aprende do excesso titânico. Nesse sentido, devemos estabelecer uma clara distinção entre o sofrimento, a humilhação, a dor, as feridas da psique – a partir do que se dá a aprendizagem psíquica, o conhecimento e a formação da alma – e o sofrimento repetitivo dos Titãs: esse tédio cotidiano nauseante do nível existencial de vida; mas ainda que a psique não aprenda com isso, deve tê-lo em conta, deve ser o mais possível consciente de sua existência.
Certamente, a personalidade titânica é o maior desafio para a alma. Muitas das modernas psicoterapias tratam de resolver os conflitos da alma em termos de adaptação da vida e "fazê-la" – uma psicoterapia titânica. Se bem que para o paciente cujo elemento titânico seja mais que mero ingrediente, cuja personalidade dominante seja titânica, a única psicoterapia possível talvez seja movê-lo ao êxito, forçá-lo a "fazê-lo".21 Mas aqui vai grande diferença entre uma consciência que enfraqueceria a alma e fazê-la.
Além dos aspectos exteriores do que tem sido chamado de "existência humana" externa, o titanismo também pode manifestar-se internamente, quando o excesso é interior, e assim vai dar na patologia. Encontramos essa forma de titanismo operando na história de Endímion e sua amante lunar, a deusa lua Selene. Segundo a Teogonia de Hesíodo (na tradução de Kerényi):
A titânida Téia pariu,de seu marido Hipérion, a Hélio, o Sol, a Selene, a Lua, e a Eos, a Aurora.22
Não ficam, pois , muitas dúvidas de que a Lua, como Selene, foi uma titânida. É então, dentro desses difíceis campos mitológicos e psicológicos que viemos discutindo, que chegamos agora à história de Selene e seu amor pelo pastor Endímion.
Dizia-se que quando Selene desaparecia por detrás das montanhas de Latmos, na Ásia Menor, ela estava visitando Endímion, seu amante, que dormia em uma caverna nessa região. Endímion (que em todos os seus retratos aparece como jovem formoso, um pastor ou um caçador) recebeu o dom do sono eterno (sem dúvida, na história original, da mesma deusa, a Lua) de modo que ela pudesse sempre encontrá-lo e beijá-lo em sua caverna.23
Quero que mantenhamos esse quadro de Selene descendo na caverna para fazer amor com Endímion cada vez que ela deseja, mas mantendo essa imagem tal como é. O que me interessa é ler a imagem, não sintetizar ou ampliar os seus componentes – como seria ver a Lua como mãe, a caverna como útero etc.24
Então, segundo o que nos diz Kerényi, "Endímion significa 'alguém que se encontra no interior', envolvido por sua amada como um traje comum".25
Podemos agora começar a imaginar o que Endímion, "o que se encontra no interior", pode significar. No nível mais óbvio, é bastante comum que se diga de alguém: "Ah, sim! Fulano é muito boa pessoa, mas toda a sua energia está em seu interior"; ou: "Parece que fulano tem muito por dentro, mas não consegue pôr para fora".
Todos temos ouvido esse tipo de comentário sobre algum amigo ou sobre algum estudante, por exemplo. E estou certo de que todos podemos recordar algum momento em nossa vida em que fosse o que fosse que tivéssemos, era só por dentro. E como tivemos de esperar para que se convertesse em algo mais, à medida que nossa vida ia se desenvolvendo!
Além do significado do nome que nos traduz Kerényi, existe outro nível a partir do qual podemos refletir sobre Endímion e sua imagem vivendo na caverna com a Lua, Selene, como amante. Por isso, o amor de Endímion pela Lua – que, apesar de ser uma titânida, é uma virgem – o mantém intocável para qualquer outro deus ou deusa, isto é, para outras possibilidades de vida; ele permanece leal a seu amor pela Lua como Selene.
Poderíamos dizer que Endímion é um precursor de Hipólito, outra figura mitológica que amou somente Ártemis: Ártemis se assemelha muito simbolicamente à Lua, mas já como uma imagem consistente e bem definida. Endímion está envolvido por sua amada como um traje comum, o que equivaleria a dizer que ele se mantém virgem. De mais a mais, acredito podermos ligar excesso interior, tal como aparece na história de Endímion e da titânida Selene, com um tipo peculiar de patologia, contrastando com os titãs, cujo excesso é externo.
A imaginação do poeta Licofron foi estimulada a criar uma variante da história de amor de Endímion. No relato de Licofron, o "deus Hipnos, o deus alado do sono, se enamorou de Endímion. Deu ao jovem a capacidade de dormir com os olhos abertos".26 Esse relato enriquece enormemente as complexidades de Endímion. Todos nós, creio, em determinados momentos e muito mais freqüentemente do que pensamos, dormimos na vida com olhos abertos; trata-se de um estado lunar particular de excesso interior. E todos podemos recordar aquele enorme período de nossa juventude, quando dormíamos com os olhos abertos, esse estar "na lua" que desperta a nós mesmos tanto quanto a quem nos rodeia.
Ainda hoje em dia, quando queremos ouvir com atenção uma conferência interessante, por exemplo, o deus do sono aparece e nos faz dormir um pouco. Eu mesmo chego a dar uns cochilos de olhos abertos de olhos abertos, às vezes, durante os momentos mais interessantes de minha atividade! Às vezes sucede que a realidade que temos na nossa frente é tão abrumadora e nos golpeia de tal maneira que, diante de tal acontecimento, ficamos dormindo com os olhos abertos. Há uma retirada para nosso interior que parece nos proteger da demasiada realidade que existe diante de nós
"O ser humano
não suporta demasiada realidade",
disse Eliot.
Apolônio, outro poeta alexandrino, relata segundo Kerényi que o sono eterno de Endímion foi "um presente de Zeus, que lhe permitiu escolher a sua própria maneira de morrer: assim Endímion escolheu o sono eterno em lugar da morte".27 Nesse ponto, podemos começar a apreciar como esses três relatos podem nos proporcionar uma percepção da natureza interior dos níveis psicológicos aos quais estamos aludindo. Nas complexidades que rodeiam Endímion encontramos, além da Lua, as figuras de Hipnos, Zeus e da Morte.
Dos três relatos, talvez o de Apolônio seja o mais rico e o que proporcione uma visão psicológica mais profunda, posto que Apolônio descreve em Endímion uma condição patológica grave. Na versão de Apolônio temos um elemento muito profundo: Zeus, o pai eterno, intervém e, com a presença da morte, converte a história de Endímion em "assunto sério". É como se a imaginação de Apolônio nos mostrasse Zeus jogando fatalmente com um mortal, como gostam de fazer os deuses. Zeus dá a Endímion o privilégio de escolher o modo de sua morte. Este tema da escolha da própria morte obcecou alguns poetas – em particular alguns românticos, poetas feridos pelos excessos.
Pensar em escolher a própria maneira de morrer pode-se entender como uma inflação titânico-romântica , unida à fuga da constante reflexão que a morte leva ao longo da vida: o valor da vida que provém da reflexão sobre a morte.
Aqui confrontamos diretamente a patologia de Endímion, posto que podemos começar a imaginar o mitologema de Endímion em termos de uma enfermidade grave. Ao fazer Endímion escolher o sono perpétuo em lugar da morte, Apolônio está diagnosticando, por assim dizer, a condição de alguém que transformou "a reflexão de morte" numa loucura particular, condição semelhante àquela que observou e diagnosticou o psiquiatra alemão Karl Kahlbaum no século XIX. Em 1874 Kahlbaum cunhou a palavra catatonia para descrever:
um estado no qual o paciente senta, silencioso ou mudo por completo, imóvel, sem que nada o faça mudar sua posição, com um aspecto de estar absorto na contemplação de um objeto, com os olhos fixos em um ponto distante e sem volição aparente, sem reação aparente diante das impressões sensoriais, e algumas vezes com uma flexibilidade cérea completa, como na catalepsia.28
Por acaso não se poderia visualizar essa descrição do quadro de Endímion que jaz em sua caverna, dormindo seu sono perpétuo com os olhos abertos, à espera dos beijos da Lua, a titânida Selene, como uma esquizofrenia?
Esse estado que Kahlbaum descreveu mediante o método empírico (por mérito) já havia sido descrito por poetas clássicos, os mitógrafos da antigüidade, com a mesma precisão requerida pelo diagnóstico psiquiátrico, usando a beleza da poesia compilada em imagens, isto é, mediante a educação da alma.
Não consigo imaginar que poetas como Licofron ou Apolônio não tenham experimentado em seus próprios corpos algo deste estado lunático, concebendo-o como o amor do jovem pastor Endímion com a Lua, a titânida Selene. Claro está que todo esse dormir na caverna com Selene, esse "estar na lua", provavelmente faz parte da atividade poética. Sobre esses poetas da antigüidade poderíamos dizer que tiveram uma inspiração corporal lunática. Foram capazes de encontrar a si mesmos desde dentro. E é justamente o resgate desse aspecto corporal, o aspecto psicofísico, que constitui o objetivo deste ensaio.
Na bibliografia dos mitos gregos na poesia inglesa, de Helen Law, aparece a recriação poética do mito de Endímion na obra de quarenta e dois poetas, até 1955; é que para o homem ocidental a poesia é seu corpo psíquico, equivalente ao inconsciente, um corpo psíquico que foi rechaçado e reprimido por dois milênios de ascese espiritual cristã. Na poesia do século XX – sem me referir a re-criações poéticas de Endímion -, Endímion tem aparecido nas formas mais variadas: nas atitudes, nas explorações e nas visões poéticas de alguns poetas contemporâneos. André Breton, o grande pontífice do surrealismo, escreveu em 1928:
Agora evoco Robert Desnos na época que aqueles de nós que a conheceram chamam de a época dos sonhos. Ele "dorme", mas escreve e fala. É noite, no estúdio de minha casa em cima do cabaré do Céu. Fora, alguém grita: "Entremos, entremos no Gato Preto!" E Desnos segue vendo o que eu não vejo, o que só vejo à medida que ele me mostra.29
Como se sabe, os surrealistas, que floresceram durante o período léntre deux guerres, estavam vivamente interessados sobre magia, e sua literatura foi impregnada dessas noções. Mas. Acima de tudo, sentiam-se atraídos pelo "automatismo psíquico" de Janet. No primeiro dos vários manifesto" surrealistas, Breton equiparou o surrealismo com o automatismo psíquico, e o definiu como "puro automatismo psíquico mediante o qual se propõe a expressão, seja verbal ou de outra maneira, do real funcionamento do pensamento", ou como "o ditado do pensamento ausente de qualquer controle exercido, acima de toda preocupação estética ou moral".30
Alguns deles desenvolveram uma técnica de escrita automática a partir das descobertas de Janet, e pensavam que estavam escrevendo poesia muito profunda ao captar mensagens profundas provenientes do subconsciente. Eu me pergunto, no entanto, se esses surrealistas sabiam que, nesses momentos, não muito longe de Paris, havia outras figuras relevantes de nosso século que trabalhavam na teoria dos complexos, a teoria mais profunda e de maior alcance da psicologia moderna: os complexos, esses pedaços de histórias, que funcionam dentro de nós e às vezes "automaticamente". Podemos dizer, no mínimo, que a descoberta de Janet foi precursora da mais séria teoria dos complexos.
Além de seu tratamento da poesia através da escrita automática, os surrealistas escreveram muito sobre os "encontros fortuitos". A frase de Lautréamont,
"tão bonito quanto
o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação
entre uma máquina de costura
converteu-se num dos pilares do movimento surrealista. Mas, ao mesmo tempo em que fascinavam com o "encontro fortuito", havia outros homens do século, também não muito longe de Paris, que se aprofundaram nas noções sobre a teoria da sincronicidade que Richard Wilhelm trouxe da China e que passou a ser uma das maiores contribuições ao pensamento do Ocidente.
Voltemos agora à recordação de Breton de um encontro noturno com Desnos. A cena está registrada numa fotografia de Desnos deitado em um sofá num quarto de Montparnasse, dizendo a Breton o que está vendo e criando poeticamente. Não posso resistir à tentação de vincular Desnos com a imagem de Endímion, deitado comodamente sob os raios da Lua. Quase podemos ver Desnos deslizar-se psicofisicamente no mitologema de Endímion enamorado da Lua – e obviamente enamorado da poesia.
Desnos, a quem Breton considerou "aquele entre nós que está mais perto da verdade surrealista",32 faz poesia mediante a livre associação a partir das porções mais autônomas de seus complexos, mantendo-se virgem – encerrado com sua amada como se em um traje comum – e intocado por quaisquer outros complexos que não o virginal. Nesse preciso momento, alguém lá embaixo na rua gritava: "Entremos no Gato Preto!", e Breton integra esse grito à sua reunião com Desnos como um "encontro fortuito" ou, se preferir, como um encontro que aponta para a sincronicidade no tempo.
Antônio Machado, grande poeta espanhol, morreu na França apenas um mês e meio depois de terminar a Guerra Civil Espanhola, e apenas dois dias depois da morte de sua mãe. Uma das últimas imagens que temos dele em vida mostra-o sentado em um carro levando sua mãe apoiada sobre seus joelhos, enquanto cruzam a fronteira da França. Segundo um amigo meu que foi um de seus discípulos, Machado costumava caminhar de maneira peculiar que chamava atenção. Dava a impressão de que tinha algum problema com os movimentos de seu corpo, já que caminhava de maneira que se poderia descrever (seguindo a Kahlbaum) como catatônica. Sua experiência vívida da catatonia era evidente em seus passos arrastados.
Em seu livro Juan de Mairena, introduziu "el paleto perfecto": um desses camponeses de Castela, com a face enrugada e marcada pelo tempo, que vestem uma boina negra, uma simples camisa, colete, calça de veludo e alpargatas, e que até agora pode ver nas antigas aldeias passando horas inteiras sentados em um banco, com olhos fixos em nada. Com extraordinária graça e humor, Machado nos dá sua imagens deles:
El paleto perfecto es el que nunca se asombra:
ni aun de su propia estupidez.
[O rústico perfeito é o que nunca se assombra:
nem da sua própria estupidez.]33
Com a justaposição das palavras perfecto e paleto, podemos ouvir, com um leve eco de ascese mística castelhana, a via da perfeição. Estará Machado insinuando que o caminho desta ascese, o caminho da perfeição, dá-se através do corpo, que a meta é o nosso religare com as partes de nós mesmos que têm a ver com o corpo inerte? Por acaso, estará Machado apontando para outra sorte de via regia? Sendo assim Machado se encontra na mesma trilha de Jung quando nos diz, em sua interpretação da Kundalini Yoga, que ascese como movimento psicológico no homem ocidental "não é ascendente, como mostram as noções da Kundalini Yoga e a tradição cristã, mas que é para baixo, através do corpo".34
Se uma das tarefas da poesia é a de refletir a partir da morte (reflexão e morte se assimilam arquetipicamente), podemos então imaginar que para Machado era importante explorar imagens que, como pudemos ver com Endímion , têm uma conexão particular com a morte. A imagem de Machado sobre el paleto perfecto, nunca assombrado, simplesmente sentado ali, contemplando algo com o olhar fixo, e sem sequer se dar conta de que é um paleto, é uma espécie de garantia de que se pode conseguir poeticamente uma percepção interior daquela parte de nós que nega a morte; a parte titânica que prefere escolher o sono perpétuo com os olhos abertos.
Temos de recordar que o Titã Prometeu não quis refletir a partir da morte; quis liberar os homens do pensar sobre a morte:
"Eu fiz com que os homens
já não previssem sua morte",
proclama na tragédia de Ésquilo.
"Eu plantei firmemente em seus corações
( Mas nós humanos
de tanto rasgar nossas carnes
- tornamo-nos imortais. ade.)
Se juntamos ao paleto perfecto de Machado a figura mitológica de Endímion é porque estamos em terra firme, já que Machado foi o poeta em cuja poesia a morte sempre esteve presente. Pertenceu à tradição de poetas que ensinaram esse tema tão difícil que é a morte. E escreve ele sobre o tema da morte enquanto "assunto sério":
Um golpe de ataúde em terra
É algo perfeitamente sério.36
Por último, uma linha de outro poeta. Escutemos como o complexo de Endímion se torna presente em um momento fortuito na caverna de uma cidade moderna, no homem de hoje em dia:
Ou como, quando um trem subterrâneo,
no túnel, se detém demasiado entre duas estações.
E a conversa se anima e cai lentamente no silêncio
E por detrás da cada rosto vês que o vazio mental se aprofunda
Deixando só o crescente terror de não ter nada em que pensar.37
Final do Primeiro Ato
Do libreto para Ópera
TAURÁGUIAS
Página 17
( CALÍOPE e as MUSAS afastam-se do SONHADOR, dispersam-se dançando livres,depois em roda evoluem um delicado bailado para enfim formarem um arco e entoarem em várias vozes,o resumo do que antes cantaram; )
TODAS EM CORO
Fantasia,tecida nas virtudes
festa misteriosa,celebração da beleza
seu destino é seguir...
Solitário,é seu destino
galgar hoje e sempre
em busca de si.
Humano, enigma musical
seu destino é seguir...
ser seu próprio desbravador
compositor, regente
É seu destino ser vitorioso,
descobrir seu veio precioso,
a fonte, a nascente
que jorra em canto plangente
e induz ao sonhar,ser,caminhar.
Amar,doce e livremente amar!
Acorda...acorda !
Desperta e vive aqui ou algures
o que mais belo sonhar!
- Raios amarelos invadem o palco agitando as MUSAS ,ligeiras à
se esconderem . Saem. SONHADOR espreguiça e acorda sem ver que elas lhe
jogam beijinhos.Senta-se.
SONHADOR
Não, não estou sonhando...
Não vou perguntar
nem aos meus botões...
Esta delícia me basta.
É... nada deve ser acrescentado a quem já é feliz !
SONHADOR abaixa a cabeça até os joelhos,prendendo as pernas com os braços. Fecha os olhos enquanto uma ventania espalha flores amarelas e brancas pelo palco. Naquele pequeno turbilhão de flores , SONHADOR simula rolar enroscado sob a chuva de miúdos confetes prateados.
.18 - Muitas luzes movimentam a cena.Exagera-se agora a intensidade da luz, obrigando-o a tapar os olhos por longo tempo.Do foco maior sai o geniozinho FAÍSCA, vestido de prateados pingentes que lhe cobrem inclusive o rosto. Lépido,FAÍSCA movimenta-se meio desgovernado,esbarrando no SONHADOR , paralisado diante do excesso de luzes.
FAÍSCA
Não tenha medo
sou só uma faísca...
Sou uma faísca,uma fagulha
do corpo do meu pai.
Meu pai...ah,meu pai...
Ele tem muitos nomes,
mas é também aquele que não tem nome.
SONHADOR
Ã?...fá...fá...
FAÍSCA
Meu pai tem muitas moradas
Esta é a mais singela.
É só um recanto de pouso
uma passagem dos viajantes...
Vem,segue-me.
Vem...vem... Vou lhe mostrar uma nova via
para a Cidade da Luz -
o altar do Livro Mágico
que mostra e transforma os desejos
na mais pura realidade. Vem !!!
Sou seu guia neste degrau da luz,confia.
Aqui estou para levá-lo a tudo que for capaz de sonhar
Aqui e agora a Inteligência lhe mostra
antes que possa piscar,
seja o belo ou o terrível...
SONHADOR
Terrível?
Pode haver neste lugar maravilhoso
algo que seja terrível?
.19
FAÍSCA
Há,infelizmente
crueldades titânicas...
SONHADOR
Titãs... ouvi deles falar,
de sua força e coragem...
FAÍSCA
De sua inteligência ,já ouviu?
SONHADOR
Oh,sim,do melhor dos Titãs...
do criador e protetor dos homens,
de Prometeu!
FAÍSCA
Ora,ora,
o jovem bem sabe escolher!
É de Prometeu a página mais rica do Livro,
- a mais bela e a mais terrível!
SONHADOR
Deixa,esquece,quero também esquecer.
FAÍSCA
Agora é tarde.
O Livro Mágico já se abriu
exato na página do seu desejo.
( Um fortíssimo relâmpago,junto a um longo e tenebroso trovão arrebata e paralisa o SONHADOR ao ver PROMETEU acorrentado em um rochedo que encostava nas nuvens )
SONHADOR
Meu Deus, que horror !
Não pode ser verdade...é cruel demais!
PROMETEU
Oh,meu jovem não fica triste,vem...
Aproxima-te.
SONHADOR
Posso...posso fazer alguma coisa...?
Deve haver algo que eu possa fazer para aliviá-lo...
.20
PROMETEU
Já o fez,homenzinho...
amando- me ...guardando-me no seu coração.
Não fica triste por me ver nesta desdita
Vendo-o “decidi não mais chorar meus males.” (Ésquilo)
Tua presença é como um prêmio.
Um prêmio que adoro receber.
Orgulha-me a causa deste castigo
agora que aqui o vejo.
Faria outra vez se necessário fosse .
SONHADOR
Há quanto tempo estás neste lugar acorrentado?
PROMETEU
Seu calendário nem o pode conceber
Milhares de milhares de sóis já me beijaram
Sem conta foram os átomos
que exalei nestes eões de penas.
SONHADOR
Tua beleza borbulha...
PROMETEU
Gosto de mim, inteiro, exatamente como sou.
Amo-me e é por isto que sei amar...
amar a quem quer que seja,
Amando é que suporto a dor desta prisão...
Contenta-me saber e ver os átomos que exalo,
o ar segura e prontamente enfim levá-los
a mover outro corpo nascente,
outro prisioneiro da liberdade,
porta-voz de mim, a transferir fiel
os sonhos e as idéias que engendrei
ao longo deste cativeiro
Bailando, na energia ondulante
lá se vão eles ofertando vida,
oferecendo o melhor de mim.
Nos rios, nos mares, na terra
ou na flor vou sempre cantando
e me dando com amor
21
Cada partícula de mim me retrata e me revela
e a cada inspiração o mundo em mim se abastece.
Sou um veio de vida e a vida me fortalece.
“ Não há embaixo ou em cima, grande ou pequeno,
nesta ou qualquer natureza” (Hermes)
que não seja gloriosamente igual. Tudo ,
absolutamente tudo é um grande corpo,
único,integrado, belamente projetado.
Não sobrevive quem ao participa
da continuação da vida.
Cada elemento existe
para compor o grande corpo sinfônico do Universo.
SONHADOR
O corpo dos homens...
O fogo...
PROMETEU
“ Os homens...Ah! Moldei-os.
Tornei-os racionais Dotados de inteligência
Amistosas foram minhas dádivas....
Não conheciam sinal seguro do inverno
Nem da primavera florida,
Nem do verão frutuoso...
Tudo faziam sem saber,
até que lhes ensinei
o orto dos astros
e seu obscuro poente.
Inventei para eles o número,
a ciência suprema,
a escrita que tudo recorda
arte-mãe de toda a cultura.” (Ésquilo)
SONHADOR
Mãe cultura
recorda o número , ciência suprema...
22
PROMETEU
“ Ninguém senão eu inventou
para os navegantes
os carros de asas de linho
que cruzam os mares”
SONHADOR
Carros flutuantes, antes
Cidades móveis no oceano,
ondulantes...amo...
PROMETEU
“ Quando alguém adoecia
não tinha medicamento algum,
definhavam carecidos de remédios
até que lhes ensinei
a composição dos específicos eficazes
que destroem as moléstias e devolvem o vigor”
SONHADOR
Meu Deus!...
PROMETEU
“ Descobri para eles os tesouros ocultos no seio da terra.
Bronze,ferro, prata e ouro
quem pode reclamar a descoberta antes de mim?
Posso contar tudo resumido:
todas as artes os mortais
devem a Prometeu” (Ésquilo)
EU !
SONHADOR
Oh, grandioso...
meu amo amoroso...
PROMETEU
Meu amado filho,meu tesouro!
Venha, querido
aproxima-te e veja.
Doravante, verás com tal precisão,
que das aventuras não saberás dizer
quais são vividas nos eões dos tempos
da primeira aurora,
ou de deslumbrantes , só as atinge agora!
Não te percas dividido
dividindo,catalogando
o ordinário que acontece.
Entrega-te inteiro, te oferece
Abra a cadeia que te prende o desfrutar.
Viva . Vive intensamente este momento
Ocasião igual talvez só se repita
quando o Sol recomeçar
o novo giro em outra era.
Vamos filho, solte as amarras,
não desperdices um micro-fragmento
de cada grandioso segundo
enquanto inteiro e atento vive.
Vem querido, te aproxima
aproxima-te mais e seja
aquele que levará para sempre
a glória de mergulhar infante,
num mar de luz triunfante.
Vem filho, vem depressa
beija-me esta lágrima de alegria,
a única que deixei sair...
Vem, meu encantado humano sonhador,
jóia prima de milenar espera
um sol ainda não nascido,
meu libertador!
-Explode junto com as luzes uma Música Triunfal.
SONHADOR sobe no rochedo e beija os olhos de PROMETEU todo iluminado. ( As correntes se rompem barulhentas) PROMETEU rodopia abraçando-se,para depois envolver e beijar longa amorosamente o SONHADOR.
Quase voando,em êxtase sai.Extremamente emocionado SONHADOR recosta-se no rochedo,onde estivera preso o seu amigo, e, ao beijar a pedra,vê num foco de luz azulada,um livro em cuja capa se lia:
“AO JOVEM SONHADOR”.
Chorando de alegria,aperta o livro ao peito,como se ali o quisesse introduzir. Emocionado,toca de novo a rocha , medita atento. Uma sonata linda encerra então..
Fim do
PRIMEIRO ATO .
- FECHA A CORTINA,
.24
De minha autoria (1980) o libreto para Ópera
TAURÁGUIAS
Li-Sol-30
Fonte:
www.rubedo.psc.br
http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/loucluna.html