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LIVRO V
ORFEU
Os Mistérios de Dionísio
Como elas se agitam no imenso Universo, como
rodopiam e se buscam, as almas inumeráveis que brotam
da grande alma do Mundo! Elas caem de planeta em
planeta e choram no abismo a pátria esquecida... São
tuas lágrimas, Dionísio... Oh! grande Espírito. Oh!
divino Libertador! recolhe tuas filhas em teu seio de luz.
Fragmento órfico.
Eurídice! Luz divina! – exclama Orfeu moribundo.
Eurídice! gemem, partindo-se, as sete cordas de sua
Lira. E sua cabeça que rola, levada para sempre pelo
rio dos tempos, clama ainda: Eurídice! Eurídice!
Lenda de Orfeu.
177
ORFEU
Os Mistérios de Dionísio
I
A GRÉCIA PRÉ-HISTÓRICA. AS BACANTES.
APARIÇÃO DE ORFEU
Nos santuários de Apolo, possuidores da tradição órfica, uma
festa misteriosa era celebrada no equinócio da primavera. Era o
momento em que os narcisos refloresciam junto da fonte de Castália. Os
trípodes e as liras do templo vibravam por si mesmos e supunha-se que
o Deus invisível voltava ao país dos hiperbóreos, em seu carro puxado
por cisnes. Então, a grande sacerdotisa, em suas vestes de Musa,
coroada de louros, a fronte cingida por faixinhas sagradas, cantava
somente para os iniciados o nascimento de Orfeu, filho de Apolo e de
uma sacerdotisa do Deus. Ela invocava a alma de Orfeu, pai dos
místicos, salvador melodioso dos homens; Orfeu soberano, imortal e
três vezes coroado, nos infernos, na terra e no céu; e que vagava
trazendo, uma estrela na fronte, entre os astros e os Deuses.
O canto místico da sacerdotisa de Delfos fazia alusão a um dos
numerosos segredos guardados pelos sacerdotes de Apolo e ignorados
pela massa. Orfeu foi o gênio animador da Grécia sagrada, o vivificador
de sua alma divina. Sua lira de sete cordas abrange o Universo. Cada
uma delas corresponde a uma modalidade da alma humana, contém a lei
de uma ciência e de uma arte. Perdemos a chave de sua plena harmonia,
mas as diversas tonalidades não deixaram de vibrar em nossos ouvidos.
O impulso teúrgico e dionisíaco que Orfeu soube comunicar à Grécia foi transmitido por ela a toda a Europa. Nosso tempo não acredita mais na beleza da vida. Se, apesar de tudo, ainda conserva uma profunda recordação, uma secreta e invencível esperança, deve-o àquele sublime Inspirado. Saudemos nele o grande iniciador da Grécia, o Ancestral da Poesia e da Música, concebidas como reveladoras da Verdade eterna.(pag.178)
Mas, antes de reconstituir a história de Orfeu, a partir da própria essência da tradição dos santuários, mostremos o que era a Grécia, no momento de sua aparição.
Estava-se no tempo de Moisés, cinco séculos antes de Homero,treze séculos antes de Cristo. A Índia, naufragada em seu Kali-Yuga, atravessava a idade das trevas e não oferecia mais do que a sombra de seu antigo esplendor. A Assíria, que, pela tirania da Babilônia, havia desencadeado sobre o mundo o flagelo da anarquia, continuava a espezinhar a Ásia. O Egito, muito grande pela ciência de seus sacerdotes e por seus faraós, reagia com todas as forças a essa decomposição universal; mas sua ação se limitava ao Eufrates e ao Mediterrâneo. Israel estabelecia no deserto o princípio do Deus másculo e da unidade divina por meio da voz tonitruante de Moisés; mas a Terra ainda não ouvira seus ecos.
A Grécia
estava profundamente dividida
pela religião e pela política.
A península montanhosa, que estende seus finos recortes no Mediterrâneo, rodeada por guirlandas de ilhas, era habitada, há milênios, por um ramo da raça branca, vizinho dos guetos, dos citas e dos celtas primitivos. Essa raça sofrera misturas e influências de todas as civilizações anteriores. Colônias da Índia, do Egito, da Fenícia haviam emigrado para suas margens, povoando seus promontórios e vales com raças, divindades e costumes múltiplos. Frotas passavam, velas desdobradas, sob as pernas do colosso de Rodes, assentado sobre os dois diques do porto. O mar das Cíclades, onde, nos dias claros, o navegador sempre vê alguma ilha ou algum rio surgir no horizonte, era sulcado pelas proas vermelhas dos fenícios e pelas proas negras dos piratas da Lídia. Transportavam em suas naus côncavas todas as riquezas da Ásia e da África: marfim, louças pintadas, tecidos da Síria, vasos de ouro, púrpura e pérolas – e muitas vezes mulheres roubadas de uma costa selvagem.(pag.179)
Devido aos cruzamentos das raças, tinha-se moldado um idioma harmonioso e fácil, mistura do celta primitivo, do zens, do sânscrito e do fenício. Essa língua, que descrevia a majestade do Oceano no nome de Poseidon e a serenidade do céu no de Uranos, imitava todas as vozes da natureza, desde o gorjeio dos pássaros até o tinir das espadas e o estrondo da tempestade. Era multicor como seu mar de um azul intenso, de tons mutáveis, mas multissoante como as vagas que murmuram em seus golfos ou estrondam sobre os inúmeros recifes – poluphlosboio Thalassa, como diz Homero.
Com os mercadores ou piratas vinham muitas vezes sacerdotes,
que os dirigiam e comandavam como mestres. Eles escondiam no barco,
como uma preciosidade, uma imagem em madeira de uma divindade
qualquer. A imagem era grosseiramente esculpida, sem dúvida, e os
marujos de então tinham. por ela o mesmo fetichismo que muitos de
nossos marinheiros têm por sua madona. Mas esses sacerdotes não eram
inferiores no conhecimento de certas ciências, e a divindade que eles
carregavam, de seu templo ao país estrangeiro, representava para eles
uma concepção da natureza, um conjunto de leis, uma organização civil
e religiosa, pois, naquele tempo, toda a vida intelectual provinha dos
santuários.
Adorava-se Juno em Argos;
Artêmis na Arcádia; em Pafos e Corinto,
a Astarté fenícia tornara-se Afrodite,
nascida da espuma das ondas.
Vários iniciadores apareceram na Ática. Uma colônia egípcia
tinha trazido a Elêusis o culto de Ísis, sob a forma de Deméter (Ceres),
mãe dos Deuses. Erecteu estabelecera, entre o monte Himeto e o
Pentélico, o culto de uma deusa virgem, filha do céu azul, amiga da
oliveira e da sabedoria. Durante as invasões, ao primeiro sinal de
alarme, a população se refugiava na Acrópole e se comprimia em torno
da deusa como em torno de uma vitória viva.
Acima das divindades locais reinavam alguns deuses masculinos e
cosmogônicos. Mas, relegados às altas montanhas, eclipsados pelo
cortejo brilhante das divindades femininas, tinham pouca influência. O
Deus solar, o Apolo délfico (1) já existia, mas só desempenhava um
papel secundário. Havia sacerdotes de Zeus, o Altíssimo, ao pé dos
cumes nevados de Ida, nas alturas da Arcádia e sob os carvalhos de
Dodone. Contudo, o povo preferia, ao Deus misterioso e universal, as
deusas que representavam a natureza em suas potencialidades, sedutoras
ou terríveis.(pag.180)
Os rios subterrâneos da Arcádia, as cavernas das montanhas que descem até as entranhas da terra, as erupções vulcânicas nas ilhas do mar Egeu cedo levaram os gregos ao culto das forças misteriosas da terra. Assim, em suas alturas como em suas profundezas, a natureza era pressentida, temida e venerada. Todavia, como todas aquelas divindades não tinham nem centro social, nem síntese religiosa, guerreavam-se aferradamente. Os templos inimigos, as cidades rivais, os povos divididos pelo rito, pela ambição dos sacerdotes e dos reis, odiavam-se, invejavam-se e combatiam-se em lutas sangrentas.
Contudo, atrás da Grécia, havia a Trácia selvagem e rude. Para o
Norte, fileiras de montanhas cobertas de carvalhos gigantes e coroadas
de rochedos, sucediam-se em cumes ondulosos, desenrolavam-se em
círculos enormes ou emaranhavam-se em maciços nodosos. Os ventos
do setentrião sulcavam seus flancos ramalhados e um céu às vezes
tempestuoso varria seus picos. Pastores dos vales e guerreiros das
planícies pertenciam àquela forte raça branca, à grande reserva dos
dórios da Grécia. Raça varonil por excelência, que se distingue na
beleza pela intensidade dos traços, a decisão do caráter e, na fealdade,
pelo apavorante e o grandioso que se encontra na máscara das Medusas
e das antigas Górgonas.
Como todos os povos antigos que receberam sua organização dos
Mistérios, como o Egito, Israel e Etrúria, a Grécia teve sua geografia
sagrada, onde cada região era o símbolo de uma região puramente
intelectual e supraterrestre do espírito. Por que a Trácia (2) teria sido
sempre considerada pelos gregos como o país santo por excelência, o
país da luz e a verdadeira pátria das Musas? É que naquelas altas
montanhas erguiam-se os mais velhos santuários de Cronos, de Zeus e
de Urano. De lá tinham descido, em ritmos eumólpicos, a Poesia, as
Leis e as Artes Sacras. Os fabulosos poetas da Trácia são uma prova
disso. Os nomes Tâmris, Lino, Anfião talvez correspondam a
personagens reais; mas personificam antes de tudo, conforme a
linguagem dos templos, gêneros de poesia. Cada um deles consagra a
vitória de uma teologia sobre a outra.(pag.181)
Nos templos daquela época, só se escrevia a história alegoricamente. O indivíduo não era nada, a doutrina e a obra, tudo. Tâmris, que cantou a guerra dos Titãs, cego pelas Musas, prenuncia a derrota da poesia cosmogônica por meio de versos novos. Lino, que introduziu na Grécia os cantos melancólicos da Ásia e foi morto por Hércules, revestiu a invasão da Trácia de uma poesia
lacrimosa, chorosa e voluptuosa, que o espírito viril dos dóricos do
Norte logo repeliu. Significa ao mesmo tempo a vitória de um culto
lunar sobre um culto solar. Ao contrário, Anfião, que, segundo a lenda
alegórica, movia as pedras com seus cantos e construía templos ao som
de sua lira, representa a força plástica que a doutrina solar e a poesia
dórica ortodoxa exerceram sobre as artes e sobre toda a civilização
helênica (3)
É outra a luz que irradia Orfeu! Ele brilha através das eras com o
raio pessoal de um gênio criador, cuja alma vibra de amor em suas
varonis profundezas pelo Eterno-Feminino – e, em suas últimas
profundezas também, responde-lhe aquele Eterno-Feminino que vive e
palpita sob uma tríplice forma: na Natureza, na Humanidade e no Céu.
A adoração dos santuários, a tradição dos iniciados, o grito dos poetas, a
voz dos filósofos – e, mais do que todo o resto, sua obra, a Grécia
orgânica – são testemunhas de sua realidade viva!
Naqueles tempos, a Trácia era atormentada por uma luta tremenda
e constante. Os cultos solares e os lunares disputavam a supremacia. A
guerra entre os adoradores do Sol e da Lua, não era, como se poderia
acreditar, a disputa fútil de duas superstições. Esses dois cultos
representavam duas teologias, duas cosmogonias, duas religiões e duas
organizações sociais absolutamente opostas. Os cultos uranianos e
solares tinham seus templos nas colinas e nas montanhas, sacerdotes
masculinos e leis severas.
Os cultos lunares
reinavam nas florestas, nos vales profundos
e tinham mulheres por sacerdotisas, ritos voluptuosos,
prática desregrada das artes ocultas
e o gosto da excitação orgiástica.
Havia uma guerra de morte entre os sacerdotes do Sol e as sacerdotisas
da Lua. Luta entre sexos, luta antiga, inevitável, manifesta ou oculta,
mas eterna, entre o princípio masculino e o princípio feminino, entre o
homem e a mulher, que preenche a história com suas alternativas e na
qual se consubstancia o segredo dos mundos. Assim como a fusão
perfeita do masculino e do feminino constitui a própria essência e o
mistério da divindade, assim também o equilíbrio desses dois princípios
pode sozinho produzir as grandes civilizações.(pag.182)
Por toda parte, na Trácia como na Grécia, os deuses masculinos,
cosmogônicos e solares tinham sido relegados para as altas montanhas,
nas regiões desertas. O povo preferia o cortejo inquietante das
divindades femininas que evocavam as paixões perigosas e as forças
cegas da natureza. Esses cultos atribuíam à divindade suprema o sexo
feminino.
Daí começavam já a resultar assustadores abusos. Entre os trácios,
as sacerdotisas da Lua ou da tríplice Hécate tinham conquistado a
supremacia apropriando-se do velho culto a Baco e imprimindo-lhe um
caráter sangrento e temível. Em sinal de sua vitória, elas adotaram o
nome de bacantes, marcando assim o seu império, o reinado soberano
da mulher e seu domínio sobre o homem. Ao mesmo tempo mágicas,
sedutoras e sacrificadoras sangrentas de vítimas humanas, tinham seus
santuários em vales selvagens e afastados. Por que sombrio encanto, por
que ardente curiosidade homens e mulheres eram atraídos para aquelas
solidões de vegetação luxuriante e grandiosa?
Formas nuas... danças lascivas
no recesso de um bosque... risos, um enorme grito...
e cem bacantes investiam contra o estrangeiro
para derrubá-lo.
Este devia jurar-lhe submissão e submeter-se a seus ritos ou perecer. As bacantes domesticavam panteras e leões, que exibiam em suas festas. À noite, com serpentes enroladas nos braços, elas se prostravam diante da
tríplice Hécate; depois, em círculos frenéticos, evocavam Baco
subterrâneo, de duplo sexo e com face de touro (4). Mas, infeliz do
estrangeiro, infeliz do sacerdote de Júpiter ou de Apolo que viesse
espreitá-las. Era feito em pedaços.
As bacantes primitivas foram, então, as druidisas da Grécia.
Muitos chefes trácios permaneceram fiéis aos velhos cultos masculinos.
Porém, as bacantes tinham insinuado a alguns de seus reis que unissem
os costumes bárbaros ao luxo e aos refinamentos da Ásia. Seduziramnos
pela volúpia e os dominaram pelo terror. (pag.183)
Assim os Deuses dividiram a Trácia em dois campos inimigos. E os sacerdotes de Júpiter e de Apolo, em seus cumes desertos, perseguidos pelo raio, tornavam-se impotentes contra Hécate, que ocupava os vales ardentes e, de suas profundezas, começava a ameaçar os altares dos filhos da luz.
Naquela época, aparecera na Trácia um jovem de raça real e de
uma sedução maravilhosa. Diziam que era filho de uma sacerdotisa de
Apolo.
Sua voz melodiosa possuía um encanto estranho. Ele falava nos
Deuses com um ritmo novo e parecia inspirado. Sua cabeleira loira,
orgulho dos dóricos, caía em ondas douradas pelas espáduas, e a música
que vazava de seus lábios emprestava-lhe aos cantos da boca um
contorno suave e triste. Os olhos, de um azul profundo, irradiavam força, doçura e magia. Os trácios, invejosos, fugiam a esse olhar. As mulheres, porém, versadas na arte dos encantos, diziam que aqueles olhos misturavam em seu filtro azul as flechas do Sol às carícias da Lua.
As próprias bacantes, curiosas de sua beleza, giravam freqüentemente em tomo dele como panteras amorosas, vaidosas de sua pele malhada, e sorriam com as suas palavras incompreensíveis.
Subitamente, aquele jovem, que chamavam de o filho de Apolo,
desapareceu. Diziam que tinha morrido e descido aos infernos. No
entanto, ele tinha fugido secretamente para a Samotrácia, depois para o
Egito, onde solicitara asilo aos sacerdotes de Mênfis. Tendo atravessado
os Mistérios, depois de vinte anos ele voltou com um nome iniciático,
que havia conquistado com suas provas e recebido de seus mestres,
como sinal de sua missão. Chamava-se agora Orfeu ou Arfa (5), que
significa aquele que cura pela luz.
O mais velho santuário de Júpiter erguia-se, então, sobre o monte
Kaukaión. Outrora, seus hierofantes tinham sido grandes pontífices. Do
alto daquela montanha, ao abrigo de qualquer ataque, eles tinham
reinado sobre toda a Trácia. Mas, desde que as divindades da planície
ganharam prestígio, seus adeptos estavam reduzidos a um pequeno
número, e seu templo quase abandonado. Os sacerdotes do monte
Kaukaión acolheram o iniciado do Egito como um salvador. (pag.184)
Por sua ciência e por seu entusiasmo,
Orfeu arrebatou a maior parte dos trácios,
transformou completamente o culto a Baco
e dominou as bacantes.
Sua influência logo penetrou em todos os santuários da Grécia. Foi ele quem
consagrou a realeza de Zeus na Trácia, a de Apolo em Delfos, onde
lançou as bases do tribunal dos Anfictiões, que se tornou a unidade
social da Grécia. Enfim, mediante a criação dos Mistérios, ele moldou a
alma religiosa de sua pátria. Pois, no ápice da iniciação, ele fundiu a
religião de Zeus com a de Dionísio em um pensamento universal. Os
iniciados recebiam, através de seus ensinamentos, a pura luz das
verdades sublimes. Essa mesma luz chegava ao povo mais atenuada,
mas não menos benéfica, sob o véu da poesia e das festas encantadoras.
Foi assim que Orfeu
se tornou pontífice da Trácia,
grande sacerdote do Zeus Olímpico e,
para os iniciados, o revelador do Dionísio celeste.
(1). Segundo a tradição dos trácios, a poesia tinha sido inventada por
Olen. Ora, este nome quer dizer em fenício o Ser universal. Apolo tem a
mesma raiz. Ap Olen ou Ap Wholen significa Pai universal. Primitivamente
adorava-se em Delfos o Ser universal sob o nome de Olen. O culto de Apolo
foi introduzido por um sacerdote inovador, sob a influência da doutrina do
verbo solar que percorria, então, os santuários da Índia e do Egito. Esse
reformador identificou o Pai universal com sua dupla manifestação: a luz
hiperfísica e o sol visível. Mas essa reforma de maneira nenhuma saiu das
profundezas do santuário.
Foi Orfeu
quem deu nova força ao verbo solar de Apolo,
reanimando-o e eletrizando-o por meio dos mistérios de Dionísio.
(Ver Fabre d'Olivet, Les vers dorés de Pythagore.)
(2). Trakia, segundo Fabre d'Oivet, deriva do fenício Rakhiwa: o espaço
etéreo ou o firmamento. O certo é que, para os poetas e os iniciados da
Grécia, como Píndaro, Ésquilo ou Platão, o nome Trácia tinha um sentido
simbólico e significava: o país da pura doutrina e da poesia sagrada que dele
procede. O termo tinha, pois, para eles um sentido filosófico e histórico.
Filosoficamente, designava uma região intelectual, o conjunto das doutrinas e
das tradições que fazem o mundo proceder de uma inteligência divina.(pag.185)
Historicamente, o nome lembrava o país e a raça onde a doutrina e a poesia
dóricas, aquele vigoroso rebento do antigo espírito ariano, primeiro haviam
brotado, para reflorescer em seguida na Grécia, através do santuário de Apolo.
– O uso desse gênero de simbolismo é provado pela história posterior. Em
Delfos, havia uma classe de sacerdotes trácios. Eram os guardiões da alta
doutrina. O tribunal dos Anfictiões era antigamente defendido por uma
guarda trácia, isto é, por uma guarda de guerreiros iniciados. A tirania de
Esparta suprimiu essa falange incorruptível e a substituiu pelos mercenários
de força bruta. Mais tarde, o verbo traciar foi aplicado ironicamente aos
devotos das antigas doutrinas.
(3). Estrabão afirma positivamente que a poesia antiga era a língua da
alegoria. Dinis de Halicarnasso confirma-o e confessa que os mistérios da
natureza e as mais sublimes concepções da moral foram encobertos por um
véu. Não é, pois, por metáfora que a antiga poesia se chamou a língua dos
Deuses. Esse sentido secreto e mágico, que faz sua força e seu encanto; está
contido em seu próprio nome. A maior parte dos lingüistas considera a
palavra poesia derivada do verbo grego poíeien, fazer, criar. Etimologia
simples e muito natural na aparência, mas um pouco em desacordo com a
língua sagrada dos templos, de onde saiu a poesia primitiva. É mais lógico
admitir com Fabre d'Olivet que poièsis vem do fenício phohe (boca, voz,
linguagem, discurso) e de ish (Ser superior, ser princípio, em sentido figurado:
Deus). O etrusco Aes ou Aesar, o gálico Aes, o escandinavo Ase, o copta Os
(Senhor), o egípcio Osíris têm a mesma raiz.
(4). O Baco com face de touro se encontra no XXIX hino órfico. É uma
lembrança do antigo culto que, de maneira nenhuma, pertence à pura tradição
de Orfeu. Este depurou completamente e transfigurou o Baco popular em
Dionísio celeste, símbolo do espírito divino que evolui através de todos os
reinos da natureza.
Coisa curiosa, encontramos o Baco infernal das bacantes no Satã com
face de touro, que as bruxas da Idade Média evocavam e adoravam em seus
sabás noturnos É o famoso Bafomé, do qual a Igreja acusou os Templários de
serem sectários, para desacreditá-los.
(5). Palavra fenícia composta de aur, luz, e de rofae cura.(pag.186)
II
O TEMPLO DE JÚPTER
Nas proximidades das fontes do Ebro, eleva-se o monte Kaukaión.
Espessas florestas de carvalhos servem-lhe de proteção. Coroa-o um
círculo de rochedos e de pedras ciclópicas. Há milênios este lugar é uma
montanha santa. Os pelasgos, os celtas, os citas e os getos, caçando-se
uns aos outros, alternadamente foram ali adorar Deuses diferentes. Mas
não é sempre o mesmo Deus que o homem procura quando sobe tão
alto? Se não, por que construiria, tão penosamente, uma morada na
região dos raios e dos ventos?
Um templo de Júpiter eleva-se agora no centro do recinto sagrado,
maciço, inabordável como uma fortaleza. À entrada, um peristilo de
quatro colunas dóricas destaca seus fustes enormes sobre um pórtico
sombrio.
No zênite, o céu está sereno; mas a tempestade estruge ainda
sobre as montanhas da Trácia, que desdobram ao longe seus vales e seus
cumes, negro oceano crispado pela tempestade e sulcado de luz.
É a hora do sacrifício. Os sacerdotes de Kaukaión só praticam o
sacrifício do fogo. Descem os degraus do templo e acendem a oferenda
de madeira aromática como um archote do santuário. No fim, o
pontífice sai do templo. Vestido de linho branco como os demais,
coroado de mirtas e de cipreste, ele empunha um cetro de ébano com
cabeça de marfim e uma cinta de ouro, onde cintilam cristais sombrios,
símbolo de uma realeza misteriosa. É Orfeu.
Conduz pela mão um discípulo, filho de Delfos, que, pálido,
trêmulo e maravilhado, aguarda as palavras do grande Inspirado com o
estremecimento dos mistérios. Orfeu compreende isto e, para
tranqüilizar o místico eleito de seu coração, abraça-o ternamente. Seus
olhos sorriem, mas de repente chamejam. E enquanto a seus pés os
sacerdotes giram em torno do altar e cantam o hino do fogo, Orfeu,
solenemente, diz ao místico bem-amado palavras de iniciação que caem
no fundo de seu coração como um licor divino.(pag.187)
Eis as aladas palavras de Orfeu ao jovem discípulo:
- Recolhe-te bem no fundo de ti mesmo, para te elevares ao
Princípio das coisas, à grande Tríade que reluz no Éter imaculado.
Consome teu corpo pelo fogo de teu pensamento; desliga-te da matéria
como a chama se desliga da madeira que ela devora. Então teu espírito
se projetará até o puro éter das Causas eternas, como a águia ao trono de
Júpiter.
“Vou revelar-te o segredo dos mundos, a alma da natureza, a
essência de Deus. Escuta primeiro o grande arcano. Um único ser reina
no céu profundo e no abismo da terra, Zeus trovejante, Zeus etéreo. Ele
é o conselho profundo, o ódio poderoso e o amor delicioso. Ele reina
nas profundezas da terra e nas alturas do céu estrelado: sopro das coisas,
fogo indômito, macho e fêmea, um Rei, um Poder, um Deus, um grande
Mestre.
“Júpiter é o esposo e a esposa divina, Homem e Mulher, Pai e
Mãe. De seu matrimônio sagrado, de suas núpcias eternas saem
incessantemente o Fogo e a Água, a Terra e o Éter, a Noite e o Dia, os
Altivos Titãs, os Deuses imutáveis e a flutuante semente dos homens.
Os amores do Ceú e da Terra
não eram conhesidos pelos profanos.
Os mistérios do Esposo e da Esposa só são revelados aos homens
divinos. Mas eu quero declarar a verdade. Ainda há pouco, o trovão
abalava estes rochedos; o raio caía como um fogo vivo, uma chama
rolante; e os ecos das montanhas bramiam de alegria. Tu, no entanto,
tremias, sem saberes de onde vem este fogo nem onde ele bate. É o fogo
masculino, semente de Zeus, o fogo criador. Ele sai do coração e do
cérebro de Júpiter; move-se em todos os seres. Quando cai o raio, ele
brota de sua mão direita. Mas, nós, seus sacerdotes, nós conhecemos sua
essência; nós evitamos e algumas vezes dirigimos as suas flechas.
“E agora, contempla o firmamento, vê o círculo brilhante de
constelações, sobre o qual se estende o leve manto da Via Láctea, poeira
de sóis e de mundos. Vê flamejar o Orion, cintilar os Gêmeos e
resplandecer a Lira. É o corpo da Esposa divina que volteia numa
vertigem harmoniosa aos cantos do Esposo. Olha com os olhos do
espírito e verás sua cabeça invertida, seus braços estendidos, e
levantarás seu véu semeado de estrelas.(pag.188)
“Júpiter é o Esposo e a Esposa divina.
Eis o primeiro mistério.
“Agora, porém, filho de Delfos, prepara-te para a segunda
iniciação. Estremece, chora, goza, adora! Porque teu espírito vai
mergulhar na zona ardente onde o grande Demiurgo faz a mistura da
alma e do mundo na taça da vida. Bebendo nessa taça inebriante, todos
os seres esquecem a divina morada e descem para o doloroso abismo
das gerações.
“Zeus é o grande Demiurgo.
Dionísio é seu filho, seu Verbo manifesto.
Dionísio, espírito radioso, inteligência viva,
resplandecia nas moradas de seu pai,
no palácio do Éter imutável.
Um dia em que, debruçado, contemplava os abismos do céu através das constelações, viu refletida no azul profundo sua própria imagem que fugia,
estendendo-lhe os braços. Apaixonado por esse belo fantasma,
enamorado de seu duplo, precipitou-se para tomá-lo nos braços. Mas a
imagem fugia, fugia sempre. Afinal, ele se viu num vale sombrio e
perfumado, gozando as brisas voluptuosas que acariciavam seu corpo.
Numa gruta, percebeu Perséfone. Maia, a bela tecelã, tecia um véu onde
se viam ondular as imagens de todos os seres. Diante da virgem divina
ele se deteve, mudo de admiração. Nesse momento, os altivos Titãs e as
livres Titânidas perceberam-no. Os primeiros, ciumentos de sua beleza,
as outras, tomadas de um amor louco, atiraram-se sobre ele como
elementos furiosos e o fizeram em pedaços. Depois, tendo distribuído
seus membros, colocaram-nos para ferver na água e enterraram seu
coração. Júpiter fulminou os Titãs e Minerva transportou para o Éter o
coração de Dionísio, que, ali, se transformou num sol ardente. E, da
fumaça do corpo de Dionísio, saíram as almas dos homens que sobem
para o céu.
Quando as pálidas sombras tiverem se reunido ao coração
Quando as pálidas sombras tiverem se reunido ao coração
flamejante do Deus, elas se acenderão como chamas, e Dionísio
ressuscitará inteiro, mais vivo do que nunca, nas alturas do Empíreo.
“Eis o mistério da morte de Dionísio.
Agora, escuta o da sua ressurreição.
Os homens
são a carne e o sangue de Dionísio;
os homens infelizes são membros esparsos que se buscam,
contorcendo-se no crime e no ódio, na dor e no amor,
através de milhares de existências.
(pag.189)
O calor ígneo da Terra, o abismo das forças inferiores os leva sempre em
frente para a voragem e os dilacera cada vez mais. Mas, nós, os
iniciados, nós que sabemos o que está no alto e o que está embaixo, nós
somos os salvadores das almas, os Hermes dos homens. Como amantes,
nós os atraímos para nós, assim como nós mesmos somos atraídos pelos
Deuses. Assim, por meio de celestes encarnações, reconstituímos o
corpo vivo da divindade. Fazemos chorar o céu e rejubilar a terra; e,
como jóias preciosas, trazemos em nossos corações as lágrimas de todos
os seres para transformá-las em sorrisos. Deus morre em nós. Em nós
ele renasce”.
Assim falou Orfeu. O discípulo de Delfos ajoelhou-se diante do
mestre, com os braços erguidos, o gesto dos suplicantes. E o pontífice
de Júpiter estendeu a mão sobre sua cabeça, pronunciando estas
palavras de consagração:
“Que Zeus inefável
e Dionísio três vezes revelador, nos infernos,
na terra e no céu, sejam propícios à tua juventude
e que derramem em teu coração a ciência dos Deuses”.
Então, o iniciado, deixando o peristilo do templo, foi lançar o
styrax no fogo do altar e invocou três vezes Zeus tonitruante. Os
sacerdotes giravam em círculo em torno dele, cantando um hino. O
pontífice-rei ficara pensativo sob o pórtico, com o braço apoiado numa
estela. O discípulo voltou a ele, dizendo:
– Melodioso Orfeu , filho amado dos Imortais e doce médico das
almas, desde o dia em que te escutei entoar os hinos dos Deuses, na
festa de Apolo délfico, arrebataste meu coração e eu te segui por toda a
parte. Teus cantos são como um vinho que embriaga, teus
ensinamentos, como uma bebida amarga que reergue o corpo abatido e
difunde em seus membros uma força nova.
E fala Orfeu, que parecia responder mais a vozes interiores do que
a seu discípulo:
– Áspero é o caminho que daqui de baixo leva aos Deuses. Uma
senda florida, uma rampa escarpada e depois rochedos perseguidos pelo
raio, cercados pelo espaço imenso – eis o destino do Vidente e do
Profeta na Terra. Meu filho, permanece nas veredas floridas da planície
e não busques o além.(pag.190)
Respondeu-lhe o jovem iniciado:
– Minha sede aumenta à medida que a sacias. Tu me tens
instruído sobre a essência dos Deuses. Mas, dize-me, grande mestre dos
mistérios, inspirado no divino Eros, poderei eu vê-los um dia?
Falou o pontífice de Júpiter:
- Sim, com os olhos do espírito e não com os do corpo. Ora, tu
não sabes enxergar ainda a não ser com estes. É preciso um longo
trabalho ou grandes dores para se abrirem os olhos interiores.
– Tu somente sabes abri-los, Orfeu! Contigo, o que poderei
temer?
– Queres? Escuta, então! Na Tessália, no vale encantado de
Tempe, ergue-se um templo místico, fechado para os profanos. É lá que
Dionísio se manifesta para os místicos e para os videntes. Convido-te
para sua festa, que se realizará dentro de um ano. E, mergulhando-te
num sono mágico, abrir-te-ei os olhos para o mundo divino. Que até lá
tua vida seja casta e branca tua alma. Pois, deves sabê-lo, a luz dos
Deuses apavora os fracos e mata os profanadores. Mas, vem à minha
morada, que eu te darei o livro necessário para tua preparação.
O mestre voltou para o interior do templo com o discípulo délfico
e o conduziu até a grande cela que estava reservada para ele. Lá,
queimava uma lâmpada egípcia sempre acesa, suspensa por um gênio
alado, forjado em metal. Lá, estavam encerrados, nos cofres de cedro
odorífero, numerosos rolos de papiro cobertos de hieróglifos e de
caracteres fenícios, assim como os livros escritos em idioma grego por
Orfeu e que continham sua ciência mágica e sua doutrina sagrada (1).
O mestre e o discípulo conversaram na cela durante uma parte da
noite.
(1). Entre os numerosos livros perdidos que os escritores órficos da
Grécia atribuíam a Orfeu havia as Argonáuticas, que tratavam da grande obra
hermética; a Demetreida, um poema sobre a mãe dos Deuses, ao qual
correspondia uma Cosmogonia, os cantos sagrados de Baco ou Espírito puro,
que tinham por complemento uma Teologia; sem falar de outras obras como O
véu e a trama das almas, a arte dos mistérios e dos ritos; o livro das mutações, química e alquimia; As coribantes ou os mistérios terrestres e os tremores de terra; a anemoscopia, ciência da atmosfera; uma botânica natural e mágica, etc.(pag.192)
III
FESTA DIONISÍACA NO VALE DE TEMPE (1)
Era na Tessália, no fresco vale de Tempe. A noite santa,
consagrada por Orfeu aos mistérios de Dionísio, tinha chegado.
Conduzido por um dos servidores do templo, o discípulo de Delfos
caminhava por uma estreita e profunda garganta, rodeada de rochedos a
pique. Só se ouvia na noite sombria o murmúrio do rio que corria entre
suas margens cobertas de relva.
Afinal, por trás de uma montanha, mostrou-se a lua cheia. Seu
disco amarelo saiu da cabeleira negra dos rochedos. Sua luz sutil e
magnética deslizou para as profundezas. E, de repente, o vale
encantador apareceu através de uma claridade elísia. Num instante, ele
se descobriu inteiro com seus fundos relvados, seus bosques de freixos e
de choupos, suas fontes cristalinas, suas grutas ocultas por heras
pendentes, e seu rio sinuoso enlaçando ilhas arborizadas ou rolando sob
lençóis entrelaçados. Um louro vapor, um sono voluptuoso envolviam
as plantas. Suspiros de ninfas pareciam fazer palpitar o espelho das
fontes, e tênues sons de flauta escapavam dos caniços imóveis. Sobre
todas as coisas pairava o silencioso sortilégio de Diana.
O discípulo de Delfos caminhava como em um sonho. Detinha-se,
às vezes, para respirar um delicioso odor de madressilva e de loureiro
amargo. Mas a claridade mágica durou um instante. A Lua foi coberta
por uma nuvem. Tudo se tornou negro; os rochedos retomaram suas
formas ameaçadoras; e luzes errantes brilharam de todos os lados sob a
espessura das árvores, à margem do rio e nas profundezas do vale.
Disse o velho guia do templo:
– São os místicos que se põem a caminhar. Cada cortejo tem seu
guia carregando um facho. Vamos segui-los.
Os viajantes encontravam coros saindo dos bosques e que se
punham a caminho. Viram passar primeiro os místicos do jovem Baco,
adolescentes vestidos de longas túnicas de linho fino e coroados de hera. Carregavam taças de madeira cinzelada, símbolos da taça da vida.(pag.193)
Depois vieram os jovens altivos e vigorosos. Chamavam-se os místicos
de Hércules lutador; túnicas curtas, pernas nuas, uma pele de leão
atravessando as espáduas e os rins, coroas de oliveira sobre a cabeça.
Depois vieram os inspirados, os místicos de Baco dilacerado, a pele
listrada da pantera em torno do corpo, pequenas faixas cor púrpura nos
cabelos e o tirso na mão.
Ao passarem junto de uma caverna, viram prostrados em terra os
místicos de Aidoneu e de Eros subterrâneo. Eram homens chorando
parentes e amigos mortos, que cantavam em voz baixa: “Aidoneu!
Aidoneu! devolve-nos aqueles que nos tomaste ou deixa-nos descer até
teu reino”.
O vento engolfava-se na caverna e parecia se prolongar sob a terra
com os risos e os soluços fúnebres. De repente, um místico voltou-se
para o discípulo de Delfos e lhe disse:
– Tu atravessaste o limiar de Aidoneu e não verás mais a luz dos
vivos.
Um outro roçou por ele ao passar e segredou-lhe no ouvido estas
palavras:
– Sombra, tu serás a presa da sombra! Tu que vens da Noite,
retorna ao Erebo!
E fugiu, correndo.
O discípulo de Delfos ficou gelado de pavor e cochichou para seu
guia: “O que quer isto dizer?”
O servidor do templo pareceu não ter ouvido nada e disse
somente:
– É preciso passar a ponte. Ninguém evita o fim.
Atravessaram uma ponte de madeira sobre o Peneu e o neófito
perguntou:
– De onde vêm estas vozes soluçantes e esta melopéia triste?
Quem são estas sombras brancas que caminham em longas filas sob os
choupos?
– São mulheres que vão se iniciar nos mistérios de Dionísio.
– Sabes os seus nomes? (pag.194)
– Aqui ninguém sabe o nome de ninguém e cada um esquece o
seu, pois, assim como na entrada do recinto sagrado os místicos deixam
suas vestes sujas para se banharem no rio e depois vestirem roupas de
puro linho, assim também cada um deixa seu nome para tomar outro.
Durante sete dias e sete noites, passam por uma transformação e para
outra vida. Olha toda essa procissão de mulheres. Elas não estão
agrupadas segundo suas famílias e suas pátrias, mas de acordo com os
Deuses que as inspiram.
Viram desfilar jovens coroadas de narcisos, com túnicas azuladas,
as quais; o guia chamava as ninfas companheiras de Perséfone. Elas
traziam, castamente enlaçados em seus braços, cofres, urnas, vasos
votivos. Depois vinham, em túnicas vermelhas, as amantes místicas, as
esposas ardentes, as adoradoras de Afrodite. Penetraram num bosque
escuro, de onde vinha o som de apelos violentos misturados a lânguidos
soluços, que se acalmaram pouco a pouco. Depois, um coro apaixonado
elevou-se do sombrio bosque de mirtas, e subiu aos céus em lentas
palpitações: “Eros, tu nos feriste! Afrodite, tu quebraste os nossos
membros! Cobrimos nosso seio com a pele do filhote de cervo, mas
trazemos no peito a púrpura sangrenta de nossas feridas. Nosso coração
é um braseiro devorador. Outras morrem de pobreza; mas é o amor que
nos consome.
Devora-nos, Eros! Eros!
Ou liberta-nos, Dionísio!
Dionísio!”
Outra procissão avançou. Estas mulheres estavam completamente
vestidas de lã negra, com longos véus arrastando no chão, e todas
estavam desoladas por algum grande luto. O guia as chamou de as
desoladas de Perséfone. Neste local existia um grande mausoléu de
mármore recoberto de hera.
Elas se ajoelharam em volta, desataram seus cabelos e soltaram
altos gritos. À estrofe do desejo elas responderam com a estrofe da dor,
clamando: “Perséfone, tu estás morta, arrebatada por Aidoneu; desceste
ao império dos mortos. Mas, nós, que choramos o bem-amado, nós
somos como que mortas-vivas. Que o dia não renasça. Que a terra que
te cobre, oh! grande deusa, nos dê o sono eterno, e que nossa sombra
erre enlaçada à sombra querida! Atende-nos, Perséfone! Perséfone!”(pag.195)
Diante dessas cenas estranhas, sob o delírio contagioso dessas
dores profundas, o discípulo de Delfos sentiu-se invadido por mil
sensações contraditórias e torturantes. Não era mais ele mesmo; os
desejos, os pensamentos, as agonias de todos aqueles seres tinham-se
tornado seus desejos e suas agonias. Sua alma se fragmentava para
passar por mil corpos. Uma angústia mortal o penetrava, Não sabia mais
se era homem ou sombra.
Então, um iniciado de elevada estatura, que passava por lá,
deteve-se e disse: “Paz às sombras atormentadas! Mulheres sofredoras,
aspirai à luz de Dionísio. Orfeu vos espera!” Todas o cercaram em
silêncio, desfolhando diante dele suas coroas de asfódelos. E, com o seu
tirso, ele mostrou-lhes o caminho. As mulheres foram beber numa
fonte, em taças de madeira. As procissões se reorganizaram e o cortejo
prosseguiu. As jovens iam à frente entoando um canto fúnebre com este
refrão:
“Agitai as papoulas!
Bebei a água do Lete! Dai-nos a flor desejada;
e que para nossas irmãs o narciso refloresça!
Perséfone! Perséfone!”
O discípulo caminhou muito tempo ainda com o guia. Atravessou
campinas onde crescia o asfódelo; andou sob a sombra dos choupos que
murmuravam tristemente. Ouviu cantos lúgubres que deslizavam no ar e
que ele não sabia de onde vinham. Viu, suspensas nas árvores, máscaras
horríveis e figuras de cera como se fossem crianças enfaixadas. Aqui e
lá, barcas atravessavam o rio, com pessoas silenciosas como se
estivessem mortas. Afinal, alargou-se o vale, o céu tornou-se claro no
alto das montanhas e a aurora surgiu. Ao longe, percebiam-se as
gargantas sombrias do Ossa, sulcadas por abismos, onde se amontoam
rochas desmoronadas. Mais perto, no meio de um círculo de montanhas,
brilhava numa colina arborizada o templo de Dionísio.
Já o sol dourava os altos cumes. À medida que se aproximavam
do templo, eles viram chegar de todas as partes cortejos de místicos,
procissões de mulheres, grupos de iniciados. Esta multidão, grave na
aparência, mas interiormente agitada por uma expectativa tumultuosa,
se encontrou ao pé da colina e iniciou o acesso ao santuário. Todos se
saudavam como amigos, agitando os ramos e os tirsos. O guia
desaparecera. (pag.196) E o discípulo de Delfos se viu, não soube como, em um
grupo de iniciados de cabelos brilhantes, entrelaçados de coroas e de
faixas de diversas cores. Ele jamais os vira e, no entanto, sentia
reconhecê-los por uma lembrança cheia de felicidade. Eles também
pareciam esperá-lo, pois saudavam-no como a um irmão e o felicitavam
por sua feliz chegada. Arrastado por seu grupo e como que transportado
por asas, ele subiu até os mais altos degraus do templo, quando um raio
de luz ofuscou-o. Era o sol levante que lançava sua primeira claridade
no vale e inundava com seus raios brilhantes aquele povo de místicos e
iniciados reunidos na escadaria do templo e em toda a colina.
Logo um coro entoou o peã, hino em honra de Apolo. As portas
do templo se abriram sozinhas e, seguido por Hermes e pelo portador da
tocha, apareceu o profeta, o hierofante, Orfeu. O discípulo de Delfos
reconheceu-o com um estremecimento de alegria. Vestido de púrpura,
sua lira de marfim e ouro à mão, Orfeu irradiava uma juventude eterna.
Ele disse:
- Saúdo a vós todos que viestes para renascer depois dos
sofrimentos da terra, e que renasceis neste momento. Vinde beber a luz
do templo, vós que saís da noite, místicos, mulheres, iniciados. Vinde
regozijar-vos, vós que sofrestes; vinde repousar, vós que haveis lutado.
O sol que eu evoco sobre vossas cabeças, e que vai brilhar em vossas
almas, não é o sol dos mortais; é a pura luz de Dionísio, o grande sol
dos iniciados. Por vossos sofrimentos passados, pelo esforço que vos
conduz, vós vencereis, e se acreditais nas palavras divinas já sois
vencedores. Depois do longo circuito das existências tenebrosas, saireis,
enfim, do círculo doloroso das gerações, e todos vós vos vereis como
um só corpo, como uma só alma na luz de Dionísio.
“A centelha divina que nos guia na Terra está em nós! Torna-se
chama do templo, estrela do céu. Assim cresce a luz da verdade! Escutai
vibrar a Lira de sete cordas, a Lira do Deus... Ela move os mundos.
Escutai bem! Que esse som vos atravesse... e as profundezas dos céus se
abrirão!
“Socorro dos fracos, consolo dos sofredores, esperança de todos!
Mas desgraça dos maus, dos profanos! Eles serão confundidos. Porque
no êxtase dos Mistérios, cada um vê até o fundo da alma do outro. Ali
os maus são feridos pelo terror, os profanos pela morte.(pag.197)
“E agora que Dionísio luziu sobre vós, eu invoco o Eros celeste e
todo-poderoso. Que ele esteja convosco nos amores, nas aflições e nas
alegrias. Amai, porque tudo ama, os Demônios do abismo e os Deuses
do Éter. Amai, porém, a luz e não as trevas. Lembrai-vos do fim durante
a viagem.
Quando as almas voltam para a luz,
elas trazem, como manchas horrendas
sobre o seu corpo sideral, todas as faltas de sua vida...
E, para apagá-las, é preciso que elas expiem e que retornem à
terra. . . Mas os puros, os fortes vão para o sol de Dionísio.
“E, agora, entoai o Evoé!”
– Evoé! – gritaram os arautos aos quatro cantos do templo. Evoé!
– os címbalos retiniram. Evoé! – respondeu a assembléia entusiasmada,
agrupada nos degraus do santuário. E o grito de Dionísio, o apelo
sagrado ao renascimento, à vida, reboou no vale, repetido por mil
peitos, enviado ao longe por todos os ecos das montanhas. E os pastores
das gargantas selvagens do Ossa, com seus rebanhos pelas florestas,
sentiram-se suspensos às nuvens e responderam: Evoé (2)
(1). Pausânias conta que, todos os anos, uma teoria seguia de Delfos
para o vale de Tempe, para ali colher o loureiro sagrado. Este costume
significativo lembrava aos discípulos de Apolo que eles estavam ligados à
iniciação órfica e que a primeira inspiração de Orfeu era o tronco antigo e
vigoroso, do qual o templo de Delfos sempre colhia os ramos amarelos e
vivos.
Esta fusão entre a tradição apolínea e a tradição órfica indica-se ainda
de outra maneira, na história dos templos. Efetivamente, a célebre disputa
entre Apolo e Baco pelo tripé do templo não tem outro sentido. Baco, diz a
lenda, cedeu o tripé ao irmão e se retirou para o Parnaso. Isto quer dizer que
Dionísio e a iniciação órfica ficaram sendo o privilégio dos iniciados,
enquanto que Apolo fazia seus oráculos para o mundo exterior.
(pag.198)(2). O grito Evoé, que se pronuncia na realidade: Hê, Vo, Hé, era o grito
sagrado de todos os iniciados do Egito, da Judéia, da Fenícia, da Ásia Menor e
da Grécia. As quatro sílabas sagradas, pronunciadas como a seguir: Iod-Hê,
Vo, Hé, representavam Deus na sua fusão eterna com a Natureza. Elas
abrangiam a totalidade do Ser, o Universo vivo. Iod (Osíris) significava a
divindade propriamente dita, o intelecto criador, o Eterno-Masculino que está
em tudo, por toda parte e acima de tudo.
Hê-Vo-Hé representava o Eterno-Feminino,
Eva, Ísis, a Natureza, sob todas as formas visíveis e invisíveis,
fecundada por ele.
A mais alta iniciação, a das ciências teogônicas e das artes teúrgicas,
correspondia à sílaba Jod. Uma outra ordem de ciências correspondia a cada
uma das letras de Eva.
Como Moisés, Orfeu reservou as ciências que correspondem à sílaba
Jod (Iove, Zeus, Júpiter) e a idéia da unidade de Deus para os iniciados do
primeiro grau, buscando mesmo com isso interessar o povo pela poesia, pelas
artes e seus símbolos vivos. Por isto o grito Evoé era abertamente proclamado
nas festas de Dionísio, onde se admitiam, além dos iniciados, os simples
aspirantes aos mistérios.
Nisso consistia toda a diferença entre a obra de Moisés e a de Orfeu.
Todos os dois partem da iniciação egípcia e possuem a mesma verdade, mas
aplicam-se em sentido oposto. Moisés, asperamente, ciumentamente, glorifica
o Pai, o Deus masculino. Confia sua guarda a um sacerdócio fechado e
submete o povo a uma disciplina implacável, sem revelação. Orfeu,
divinamente apaixonado pelo Eterno-Feminino, pela Natureza, glorifica-a em
nome de Deus, que a penetra e que ele quer fazer brotar na humanidade
divina. Eis por que o grito Evoé tornou-se o grito sagrado por excelência em
todos os mistérios da Grécia.(pag.199)
IV
EVOCAÇÃO
A festa findara como um sonho: anoitecera. As danças, os cantos
e as preces tinham desaparecido numa bruma rósea. Orfeu e seu
discípulo desceram por uma galeria subterrânea para a cripta sagrada,
que se prolongava no coração da montanha e à qual somente o
hierofante tinha acesso. Lá o inspirado dos Deuses se entregava a suas
meditações solitárias ou prosseguia, com seus adeptos, as elevadas
obras da magia e da teurgia.
Ao seu redor, estendia-se um espaço imenso e cavernoso. Dois
archotes fixados no chão vagamente iluminavam as muralhas fendidas e
as profundezas tenebrosas. A alguns passos, uma fenda negra se
escancarava no solo; um vapor quente saía dali, e este abismo parecia
descer às entranhas da terra. Um pequeno altar onde queimava um fogo
de loureiro seco e uma esfinge de pórfíro vigiavam suas bordas. Mais
distante, a uma altura incomensurável, a caverna recebia a claridade do
céu estrelado por uma fenda oblíqua. Esse pálido raio de luz azulada
parecia o olho do firmamento mergulhando naquele abismo.
Então, Orfeu disse ao discípulo:
– “Tu bebeste nas fontes da luz santa. Entraste como o coração
puro no seio dos mistérios. Chegou a hora solene de fazer-te penetrar
nas fontes da vida e da luz. Aqueles que não ergueram o véu espesso
que encobre aos olhos dos homens as maravilhas invisíveis, não se
tornam filhos dos Deuses.
“Escuta, pois, as verdades que é preciso calar à multidão e que
fazem a força dos santuários:
“Deus é uno e sempre semelhante a Ele mesmo. Ele reina em toda
a parte. Mas os Deuses são inúmeros e diversos, porque a divindade é
eterna e infinita. Os maiores são as almas dos astros. Sóis, Estrelas,
Terras e Luas, cada astro tem o seu, e todos são resultantes do fogo
celeste de Zeus e da luz primitiva. Semiconscientes, inacessíveis,
imutáveis, eles regem o grande conjunto de seus movimentos regulares.
(pag.200)
Ora, cada astro que gira arrasta, em sua esfera etérea, falanges de
semideuses ou almas resplandecentes, que outrora foram homens, e que,
após terem descido a escala dos reinos, gloriosamente tornaram a subir
os ciclos, para saírem, finalmente, do círculo das gerações. É por meio
desses divinos espíritos que Deus respira, age, aparece. Que digo eu?
Eles são o sopro de sua alma viva, os raios de sua consciência eterna.
Comandam os exércitos dos espíritos inferiores que atuam nos
elementos. Dirigem os mundos.
De longe, de perto, eles nos cercam e, embora de essência imortal, revestem-se de formas sempre variáveis, conforme os povos, os tempos e as regiões. O ímpio que os nega, temeos. O homem piedoso adora-os sem conhecê-los. O iniciado os conhece, atrai e vê. Se lutei para encontrá-los, se desafiei a morte, se, como se diz, desci aos infernos, foi para dominar os demônios do abismo, para chamar os Deuses do alto sobre a minha Grécia amada, para que o Céu profundo se case com a Terra e que a Terra encantada escute as vozes divinas. A beleza celeste se encarnará no corpo das mulheres, o fogo de Zeus circulará no sangue dos heróis. E muito antes de subirem aos
astros, os filhos dos Deuses resplandecerão como os Imortais.
“Sabes o que é a Lira de Orfeu?
O som dos templos inspirados.
Tem os Deuses como cordas.
À sua música, a Grécia se afinará como uma lira
e o próprio mármore cantará em cadências brilhantes,
em celestes harmonias.
“Agora evocarei meus Deuses,
para que eles te apareçam vivos e te mostrem,
numa visão profética, o místico himeneu que preparo
para o mundo e que os iniciados verão.
“Deita-te ao abrigo desta rocha. Nada temas.
Um sono mágico fechará tuas pálpebras
Mas, em seguida, uma luz deliciosa,
uma felicidade desconhecida inundará
teus sentidos e todo o teu ser”.
O discípulo já se encolhera no nicho cavado em forma de leito na
rocha. Orfeu pôs algumas gotas de perfume no fogo do altar. Depois,
tomou seu cetro de ébano, cuja cabeça era de cristal flamejante,
colocou-se junto da esfinge e, clamando com uma voz profunda,
começou a invocação: (pag.201)
“Cibele! Cibele! Grande mãe,
ouve-me! Luz original, chama ágil,etérea
e sempre saltitante através dos espaços,
que encerras os ecos e as imagens de todas as coisas!
Invoco os teus corcéis fulgurantes de luz.
Oh! alma universal, criadora dos abismos, semeadora de sóis, que
arrastas pelo Éter teu manto estrelado! Luz sutil, oculta, invisível aos
olhos da carne! Grande mãe dos Mundos e dos Deuses, tu, que encerras
os tipos eternos! Antiga Cibele, a mim! a mim! Por meu cetro mágico,
por meu pacto com as Potências, pela alma de Eurídice!. . .
Eu te evoco, Esposa multiforme,
dócil e vibrante sob o fogo do Macho eterno.
Do mais alto dos espaços, do mais profundo dos abismos,
de todas as partes vem, aflui, enche esta caverna
com teus eflúvios.
Cerca o filho dos Mistérios
com uma muralha de diamante e faz que ele veja
em teu seio profundo os Espíritos do Abismo,
da Terra e dos Céus."
A estas palavras, um trovão subterrâneo abalou as profundezas do
abismo e toda a montanha tremeu. Um suor frio gelou o corpo do
discípulo. Ele via Orfeu através de uma fumaça que aumentava. Por um
instante tentou lutar contra a força terrível que o abatia. Mas seu cérebro
ficou submerso, sua vontade anulada. Sentiu as angústias de um
afogado que tem os pulmões entupidos de água e cuja horrível
convulsão termina nas trevas da inconsciência.
Quando recuperou a consciência, a noite reinava ao seu redor;
uma noite atravessada por uma semiclaridade rasteira, amarelada,
lodosa. Olhou por muito tempo sem nada ver. De quando em quando,
sentia sua pele roçada como que por morcegos invisíveis. Afinal,
vagamente, pareceu-lhe ver mexerem-se nas trevas formas monstruosas
de centauros, hidras e górgonas. Mas a primeira coisa que percebeu,
distintamente, foi uma grande figura de mulher, sentada num trono. Ela
estava envolta num longo véu de pregas fúnebres, semeado de estrelas
pálidas, e trazia uma coroa de papoulas. Seus grandes olhos, abertos,
velavam imóveis. Massas de sombras humanas moviam-se à sua volta,
como pássaros cansados, e segredavam à meia-voz:
– “Rainha dos mortos,
alma da terra. Perséfone!
Nós somos filhas do céu.
Por que estamos exiladas no sombrio reino?
Oh! ceifeira do céu,
por que colheste nossas almas,
que outrora voavam felizes na luz,
entre suas irmãs, nos campos do Éter?”
(pag.202)Perséfone respondeu:
– “Eu colhi o narciso, entrei no leito nupcial. Bebi a morte com a
vida. Como vós, eu também gemi nas trevas”.
Gemendo, perguntaram as almas:
- “Quando seremos libertadas?”
- “Quando vier o meu esposo celeste, o divino libertador!”
Então apareceram mulheres terríveis. Seus olhos estavam
injetados de sangue e suas cabeças coroadas de plantas venenosas. Em
torno dos braços, dos flancos seminus torciam-se serpentes que elas
manejavam como chicotes: “Almas, espectros, larvas! – diziam elas
com sua voz sibilante – não acrediteis na insensata rainha dos mortos.
Nós somos as sacerdotisas da vida tenebrosa, servas dos elementos e
dos monstros cá de baixo, bacantes da terra, Fúrias no Tártaro.
Nós somos vossas rainhas eternas, oh! almas infortunadas. Não saireis do
círculo maldito das gerações, pois a ele vos faremos voltar com nossos
chicotes. Torcei-vos para sempre entre os anéis sibilantes de nossas
serpentes, nos laços do desejo, do ódio e do remorso” E, desgrenhadas,
elas se precipitaram sobre o rebanho das almas desvairadas, que se
puseram a rodopiar nos ares como um turbilhão de folhas secas, sob os
golpes do chicote, soltando altos gemidos.
Diante desta visão, Perséfone empalideceu. Não parecia mais do
que um fantasma lunar. Ela murmurou:
“Oh, céu... A luz... os Deuses...
Um sonho!. . Sono, sono eterno!”
Sua coroa de papoulas murchou; seus olhos se fecharam de
angústia. A rainha dos mortos caiu em letargia no trono... e depois tudo
desapareceu nas trevas.
A visão mudou. O discípulo de Delfos se viu num vale esplêndido
e verdejante com o monte Olimpo ao fundo. Diante de um antro negro,
adormecia sobre um leito de flores a bela Perséfone. Uma coroa de
narcisos substituía, em seus cabelos, a coroa de papoulas fúnebres e a
aurora de uma vida que renascia derramava em suas faces um colorido
ambrosiano. Suas tranças escuras caíam sobre as espáduas de magnífica
brancura, e as rosas de seu seio, docemente agitado, pareciam chamar os
beijos dos ventos.(pag.203)
Ninfas dançavam numa campina.
Pequenas nuvens brancas viajavam no firmamento.
Uma lira ressoava num templo...
Em sua voz de ouro, em seus ritmos sagrados, o discípulo ouviu a
música íntima das coisas. Pois das folhas, das ondas, das cavernas saía
uma melodia incorpórea e terna. E as vozes longínquas das mulheres
iniciadas, que guiavam seus coros nas montanhas, chegavam a seus
ouvidos em cadências partidas. Umas, desvairadas, apelavam para
Deus; outras acreditavam percebê-lo, caindo na borda das florestas meio
mortas de fadiga.
Finalmente, o firmamento se abriu no zênite, para gerar de seu
seio uma nuvem brilhante. Como um pássaro que paira um instante e
depois se precipita sobre a terra, o Deus que sustenta o tirso desceu e
veio pousar diante de Perséfone. Ele era radioso, com os cabelos
desfeitos. E em seus olhos rolava o delírio sagrado dos mundos por
nascer. Por muito tempo ele a cobriu com o olhar, depois estendeu seu
tirso sobre ela. O tirso roçou-lhe o seio, e ela se pôs a sorrir. Ele tocoulhe
a fronte, ela abriu os olhos, ergueu-se lentamente e contemplou seu
esposo. Aqueles olhos, ainda cheios do sono do Erebo, começaram
brilhar como duas estrelas. E o Deus perguntou:
– Reconheces-me?
Exclamou Perséfone:
– Oh! Dionísio, Espírito divino, Verbo de Júpiter, Luz celeste que
resplandece sob a forma de homem! Cada vez que tu me despertas,
acredito viver pela primeira vez; os mundos renascem em minha
lembrança; o passado, o futuro tornam-se o imortal presente; e eu sinto
em meu coração irradiar o Universo!
Ao mesmo tempo, acima das montanhas, numa orla de nuvens
prateadas, apareceram os Deuses curiosos, inclinados na direção da
terra.
Embaixo, grupos de homens, de mulheres e de crianças, que
saíram dos pequenos vales e das cavernas contemplavam os Imortais
num arrebatamento celeste. Hinos ardentes subiam dos templos com as
ondas de incenso. Entre a Terra e o Céu, preparava-se um daqueles
matrimônios que fazem as mães conceberem heróis e Deuses.(pag.204)
Já um colorido rosa tinha-se derramado sobre toda a paisagem. Já a rainha dos mortos, voltando a ser a divina ceifadora, subia rumo aos céus,
transportada pelos braços do esposo. Uma nuvem púrpura os envolveu e
os lábios de Dionísio pousaram na boca de Perséfone. . . Então, um
imenso grito de amor partiu do Céu e da Terra, como se o arrepio
sagrado dos Deuses, passando sobre a grande lira, quisesse dilacerar
todas as cordas e debulhar os sons a todos os ventos. Ao mesmo tempo,
emanou do par divino uma fulguração, um furacão de luz estonteante...
E tudo desapareceu.
Por um momento, o discípulo de Orfeu sentiu-se como que
tragado pela fonte de todas as vidas, submerso no sol do Ser. E,
mergulhando em seu braseiro incandescente, dele irrompeu com suas
asas celestes. Como um relâmpago, atravessou os mundos, para atingir
em seus limites o sono estático do Infinito.
Quando recobrou seus sentidos corporais, estava mergulhado na
noite escura. Somente uma lira luminosa brilhava nas trevas profundas.
Ela fugia, fugia e se transformou numa estrela. Só então o discípulo
percebeu que estava na cripta das evocações e que aquele ponto
luminoso era a fenda distante da caverna aberta para o firmamento.
Uma grande sombra se mantinha de pé junto dele. Reconheceu
Orfeu, por seus longos cachos e pelo cristal flamejante de seu cetro.
Perguntou-lhe o hierofante:
- Filho de Delfos, de onde vens?
- Mestre dos iniciados, celeste encantador, maravilhoso Orfeu,
tive um sonho divino. Seria isto um encanto da magia, um dom dos
Deuses? O que aconteceu? Transformou-se o mundo? Onde estou
agora?
- Conquistaste a coroa da iniciação e viveste o meu sonho: a
Grécia imortal! Mas devemos sair daqui. Para que tudo se cumpra, é
preciso que eu morra e que tu vivas. (pag.205)
V
A MORTE DE ORFEU
As florestas de carvalhos rugiam chicoteadas pela tempestade, nos
flancos do monte Kaukaión. Os raios ribombavam em golpes
redobrados sobre as rochas nuas e faziam tremer em suas bases o
templo de Júpiter. Os sacerdotes de Zeus estavam reunidos numa cripta
abobadada do santuário. Em seus assentos de bronze, formavam
semicírculo. Orfeu conservava-se de pé no meio deles, como um
acusado. Estava mais pálido do que de costume, mas uma chama
profunda emanava de seus olhos calmos.
O mais velho dos sacerdotes elevou a voz grave como a de um
juiz:
– Orfeu, tu, que dizem ser filho de Apolo, a quem nomeamos
pontífice e rei, entregando o cetro místico dos filhos de Deus, reinas
sobre a Trácia por meio da arte sacerdotal e real. Reergueste neste país
os templos de Júpiter e de Apolo, e fizeste reluzir na noite os mistérios,
o sol divino de Dionísio. Mas, por acaso sabes o que nos ameaça? Tu,
que conheces os segredos terríveis; tu, que mais de uma vez nos
predisseste o futuro e que, de longe, falaste a teus discípulos,
aparecendo-lhes em sonho, tu ignoras o que se passa ao redor de ti.
Em tua ausência, as Bacantes selvagens, as sacerdotisas malditas reuniram se no vale de Hécate. Conduzidas por Aglaonice, a mágica de Tessália,
persuadiram os chefes das margens do Ebro a restabelecerem o culto da
sombria Hécate e ameaçam destruir os templos dos Deuses masculinos
e todos os altares do Altíssimo. Excitados por suas bocas ardentes,
guiados por suas tochas incendiárias, mil guerreiros trácios estão
acampados ao pé daquela montanha, e amanhã assaltarão o templo,
instigados pelo sopro das mulheres vestidas com peles de panteras,
ávidas do sangue dos machos. Aglaonice, a grande sacerdotisa da
Hécate tenebrosa, os conduz; é a mais terrível das mágicas, implacável e
obstinada como uma Fúria. Deves conhecê-la! O que dizes?(pag.206)
Falou Orfeu:
- Eu já sabia de tudo, e tudo devia acontecer.
- Então, por que nada fizeste para nos defender? Aglaonice jurou
degolar-nos sobre nossos altares, diante do Céu vivo, que adoramos.
Mas, o que acontecerá com este templo, seus tesouros, tua ciência e o
próprio Zeus, se tu o abandonas?
Orfeu replicou com doçura:
- Não estou convosco?
O ancião respondeu:
– Vieste, mas muito tarde. Aglaonice conduz as Bacantes e as
Bacantes conduzem os trácios. Tu os repelirás com o raio de Júpiter e
com as flechas de Apolo? Por que não convocaste neste recinto os
chefes trácios, fiéis a Zeus, para esmagarem a revolta?
– Não com armas, mas com a palavra é que se defendem os
Deuses. Não são os chefes que devem ser abatidos, mas as Bacantes. Eu
irei. Sozinho. Ficai tranqüilos. Nenhum profano transporá este recinto.
Amanhã terminará o reinado das sacerdotisas sangüinárias. E sabei-o
bem, vós que tremeis diante da horda de Hécate, os Deuses celestes e
solares vencerão. A ti, ancião, que duvidavas de mim, deixo-te o cetro
do pontífice e a coroa de hierofante.
O velho, apavorado, perguntou:
- O que vais fazer?
- Vou reunir-me aos Deuses... A vós todos, adeus!
Orfeu saiu, deixando os sacerdotes mudos em seus assentos. No
templo, encontrou o discípulo de Delfos e, tomando-lhe a mão com
energia, falou:
- Vou ao campo dos trácios. Segue-me.
Eles marchavam sob os carvalhos.
A tempestade estava longe.
Entre as ramagens espessas, brilhavam as estrelas.
Orfeu falava:
- Chegou para mim a hora suprema. Outros me compreenderam,
mas tu, tu me amaste! Eros é o mais antigo dos Deuses, dizem os
iniciados; ele tem a chave de todos os seres. Também eu te fiz penetrar
no fundo dos Mistérios. . . Os Deuses falaram contigo, tu os viste!...(pag.207)
Agora, longe dos homens, sozinho consigo mesmo, na hora de sua
morte, Orfeu deve deixar ao discípulo amado a palavra de seu destino, a
imortal herança, a pura chama de sua alma.
O discípulo de Delfos disse:
– Mestre, eu te escuto e te obedeço!
- Continuemos a caminhar por esta vereda que desce. O tempo
urge. Quero surpreender meus inimigos. Enquanto me segues, escuta e
grava minhas palavras em tua memória, mas conserva-as como um
segredo.
– Elas se imprimem com letras de fogo em meu coração. Os
séculos jamais as apagarão.
– Sabes, agora, que a alma é filha do céu. Contemplaste tua
origem e teu fim e começas a te recordares. Quando ela desce na carne,
continua, embora, fracamente, a receber o influxo do alto. E é através de
nossas mães que esse sopro poderoso chega até nós. O leite de seu seio
nutre nosso corpo. Mas é de sua alma que se nutre nosso ser angustiado
pela sufocante prisão do corpo. Minha mãe era sacerdotisa de Apolo,
minhas primeiras lembranças são as de um bosque sagrado, de um
templo solene, de uma mulher carregando-me em seus braços,
envolvendo-me com a suave cabeleira como uma cálida roupa.
Os objetos terrestres, as fisionomias humanas me invadiram com um terror
medonho. Mas logo minha mãe me apertava nos braços e eu encontrava
seu olhar, que me inundava de uma divina lembrança do Céu. Porém,
esse raio de luz morreu no cinzento sombrio da Terra. Um dia, minha
mãe desapareceu. Morrera. Privado de seu olhar, de suas carícias, fiquei
assustado com minha solidão. Tendo visto correr o sangue de um
sacrifício, fui acometido de horror pelo templo e desci para os vales
tenebrosos.
“As Bacantes abalaram minha juventude. Desde então, Aglaonice
reinava sobre aquelas mulheres voluptuosas e ferozes. Homens e
mulheres, todo o mundo a temia. Essa Tessaliana exercia sobre todos os
que dela se aproximavam uma atração fatal. Por meio das artes da
infernal Hécate, ela atraía as jovens para o seu vale mal-assombrado e
as instruía em seu culto. Todavia, ela vira Eurídice e ficara apaixonada
por essa virgem com um desejo perverso, um amor desenfreado,maléfico.
(pag.208)
Ela queria arrebatar a jovem para o culto das Bacantes, dominá-la, entragá aos gênios infernais, depois de ter fenecido sua juventude. Ela já a tinha envolvido com suas promessas sedutoras, com seus sortilégios noturnos.
“Eu mesmo, atraído por um pressentimento desconhecido para o
vale de Hécate, caminhava um dia entre os arbustos de uma campina
cheia de plantas venenosas. Mas, de todos os lados reinava o horror dos
bosques sombrios freqüentados pelas Bacantes. Perfumes exalavam ali
por baforadas, como o quente hálito do desejo. Foi então que vi
Eurídice. Ela caminhava lentamente, sem me ver, na direção de um
antro, como que fascinada por um alvo invisível, Às vezes, um riso
ligeiro saía do bosque das Bacantes, às vezes, um suspiro estranho.
Eurídice detinha-se trêmula, indecisa, e depois recomeçava sua
caminhada, como que atraída por um poder mágico. Seus cachos de
ouro tremulavam sobre as espáduas alvas, seus olhos de narciso
nadavam na embriaguez, enquanto ela caminhava para a boca do
inferno. Mas eu tinha visto o céu adormecido em seu olhar. −Eurídice!
− gritei, tomando-lhe a mão. − Aonde vais? − Como que despertada de
um sonho, ela soltou um grito de horror e de libertação, depois caiu
sobre meu peito. Foi neste momento que o divino Eros nos dominou e,
por um olhar, Eurídice-Orfeu foram esposos para sempre.
“Então, Eurídice, que me tinha enlaçado em seu desespero,
mostrou-me a gruta com um gesto de pavor. Dela me aproximei e ali vi
uma mulher sentada. Era Aglaonice. Junto dela, uma pequena estátua de
Hécate em cera, pintada de vermelho, branco e preto, segurando um
chicote. Ela murmurava palavras encantadas, fazendo girar a rodinha
mágica, e seus olhos, fixos no vazio, pareciam devorar a presa. Eu
quebrei a rodinha, esmigalhei a estátua de Hécate a meus pés e, ferindo
a mágica com o olhar, gritei:
– Por Júpiter, proíbo-te de pensares em Eurídice, sob pena de
morte! Pois fica sabendo, os filhos de Apolo não têm medo de ti.
“Aglaonice, aturdida, retorceu-se como uma serpente ante meu
gesto, e desapareceu em sua caverna lançando-me um olhar de ódio
mortal. (pag.209)
“Levei Eurídice para as proximidades de meu templo. As virgens
do Ebro, coroadas de jacinto, cantaram ao redor de nós: Himeneu!
Himeneu! E conheci a felicidade.
“A Lua só mudara três vezes
quando uma Bacante, compelida pela Tessaliana,
apresentou a Eurídice uma taça de vinho que lhe daria,
dizia ela, a ciência dos filtros e das ervas mágicas.
Eurídice, curiosa, bebeu-a e caiu fulminada.
A taça continha um veneno mortal!
“Quando vi a pira consumir Eurídice;
quando vi o túmulo tragar suas cinzas;
quando a última lembrança de sua forma viva desapareceu,
gritei: “Onde está sua alma?”
Parti desesperado. Errei por toda a Grécia.
Supliquei sua evocação aos sacerdotes da Samotrácia. Busquei-a nas
entranhas da terra, no cabo Tênaro. Mas foi tudo em vão. Finalmente,
cheguei ao antro de Trofônio. Lá, alguns sacerdotes conduzem os
visitantes temerários por uma fenda, até os lagos de fogo que borbulham
no interior da Terra, e os fazem ver o que lá se passa.
No caminho, sempre andando, entra-se em êxtase, e a segunda visão se apresenta. Mal se respira, a voz sai estrangulada e só se pode falar por meio de sinais. Uns recuam no meio do caminho, outros persistem e morrem
sufocados; a maioria dos que saem vivos ficam loucos. Depois de ter
visto o que nenhuma boca deve repetir, regressei à gruta e caí numa
profunda letargia. Durante aquele sono de morte, apareceu-me Eurídice.
Ela flutuava em um nimbo, pálida como um raio de luz lunar, e me
disse:
“Por mim enfrentaste o inferno
e me procuraste entre os mortos.
Eis-me aqui, atendo a teu apelo.
Eu não habito o seio da Terra, mas a região de Erebo,
o cone de sombra entre a Terra e a Lua.
Eu turbilhono neste limbo chorando como tu.
Se queres me libertar, salva a Grécia, dando-lhe a luz.
Então eu, reencontrando minhas asas, subirei para os astros,
e tu me verás na luz dos Deuses. Até lá, é preciso que eu fique
vagando na esfera confusa e dolorosa. . .”
Três vezes quis abraçá-la; três vezes ela dissipou-se em meus braços, como sombra. Ouvi apenas uma espécie de som de uma corda que se dilacera. Depois, uma voz fraca como um sopro, triste como um beijo de adeus, murmurou: Orfeu!...
“Aquela voz me despertou. Este nome pronunciado por uma alma
transformara meu ser. Senti passar por mim o estremecimento sagrado
de um imenso desejo e o poder de um amor sobre-humano.(pag.210) Eurídice,
viva, proporcionou-me a embriaguez da felicidade. Eurídice, morta, me
fez encontrar a Verdade.
Foi por amor
que me cobri com este hábito de linho,
devotando-me à grande iniciação e à vida ascética;
foi por amor que penetrei na magia e busquei a ciência divina;
foi por amor que atravessei as cavernas da Samotrácia,
os poços das Pirâmides e as tumbas do Egito.
Eu rebusquei a morte para ali encontrar a vida.
E, para além da vida,
vi os limbos, n as almas, as esferas transparentes,
o Éter dos Deuses.
A terra me abriu seus abismos,
o céu, seus templos reluzentes.
Os sacerdotes de Ísis e de Osíris revelaram-me seus segredos. Eles só
possuíam aqueles Deuses; eu tinha Eros! Por ele falei, cantei, venci. Por
ele soletrei o verbo de Hermes e o verbo de Zoroastro; por ele
pronunciei o verbo de Júpiter e o de Apolo!
preciso que eu desça ainda uma vez aos infernos, para subir de novo aos
céus. Escuta, filho querido de minha palavra: levarás minha doutrina ao
templo de Delfos e minha lei ao tribunal dos Anfictiões. Dionísio é o
sol dos iniciados; Apolo será a luz da Grécia; os Anfictiões, os
guardiões da justiça.”
O hierofante e seu discípulo tinham alcançado o fundo do vale.
Diante deles, uma clareira, grandes maciços de bosques sombrios,
tendas e homens deitados por terra. Ao fundo da floresta, fogueiras
agonizantes, tochas vacilantes. Orfeu caminhava tranqüilamente em
meio aos trácios, adormecidos e fatigados após uma orgia noturna. Uma
sentinela, que velava ainda, perguntou-lhe o nome. E Orfeu respondeu:
- Eu sou um mensageiro de Júpiter.
Chama os teus chefes.
“Um sacerdote do templo!. . .
Sou ! ”
Sou ! ”
Este grito da sentinela ecoou como um sinal de alarme em todo o acampamento. Armam-se, chamam-se, as espadas brilham, os chefes acorrem espantados e cercam o pontífice.
– Quem és tu? O que vens fazer aqui?
– Eu sou um enviado do templo. Vós todos, reis, chefes,
guerreiros da Trácia, renunciai à luta contra os filhos da luz e
reconhecei a divindade de Júpiter e de Apolo. Os Deuses do alto vos
falam por minha boca. Venho como amigo, se me escutardes; como
juiz, se recusardes a me ouvir.(pag.211)
– Fala! – disseram os chefes.
De pé, sob um grande olmo, Orfeu falou. Falou dos benefícios dos
Deuses, da magia da luz celeste, da vida pura que ele levava lá no alto,
com seus irmãos iniciados, sob o olhar do grande Urano e que ele queria
transmitir a todos os homens.
Prometeu
apaziguar as discórdias,
curar as doenças, ensinar a semear as sementes
que produzem os mais belos frutos da terra,
e as mais preciosas ainda, aquelas que produzem os
frutos divinos da vida: a alegria, o amor, a beleza.
Enquanto ele falava, sua voz grave e doce vibrava como as cordas
de uma lira e penetrava cada vez mais no coração dos trácios
comovidos. Do fundo dos bosques, as Bacantes, curiosas, carregando
suas tochas, tinham vindo também, atraídas pelo som de uma voz
humana. Vestidas apenas com peles de panteras, elas vieram exibir seus
seios morenos e seus flancos soberbos. Ao clarão dos archotes noturnos,
seus olhos brilhavam de luxúria e de crueldade. Mas, pouco a pouco, a
voz de Orfeu as serenou e elas se agruparam em torno dele, sentando-se
a seus pés como feras domadas. Umas, tomadas de remorso, baixavam o
olhar sombrio; outras escutavam encantadas. E os trácios comovidos,
murmuravam entre si:
“É um Deus quem fala,
é o próprio Apolo quem fascina as bacantes!”
No entanto, do fundo dos bosques, Aglaonice espreitava. A
grande sacerdotisa de Hécate, vendo os trácios imóveis e as Bacantes
arrastadas por uma magia mais forte do que a sua, anteviu a vitória do
céu sobre o inferno e seu poder maldito desmoronar-se nas trevas de
onde saíra, ante a palavra do divino sedutor. Ela rugiu e, atirando-se
diante de Orfeu com um esforço violento, disse:
– Um Deus, dizeis vós? E eu vos digo que é Orfeu, um homem
como vós, um mágico que vos engana, um tirano que se apropria de
uma coroa. Um Deus, dizeis vós? O filho de Apolo? Ele? O sacerdote?
O pontífice orgulhoso? Atacai-o! Se ele é Deus, que se defenda... e se
eu minto, que me despedacem! (pag.212)
Aglaonice estava acompanhada por alguns chefes excitados por
seus malefícios e inflamados por seu ódio. Eles arrojaram-se sobre o
hierofante.
Orfeu soltou um grito
e caiu ferido por suas espadas.
Estendeu a mão para seu discípulo e disse:
- Eu morro, mas os Deuses estão vivos!
Depois expirou. Inclinada sobre seu cadáver, a mágica de
Tessália, cujo semblante se assemelhava agora ao de Tisifona,
espreitava com alegria selvagem o último sopro do profeta e se
apressava em arrancar um oráculo de sua vítima. Mas, qual não foi o
espanto da tessaliana ao ver aquela cabeça cadavérica se reanimar ao
clarão flutuante da tocha, um pálido rubor espalhar-se na fisionomia do
morto, seus olhos se reabrirem, muito grandes, e um olhar profundo,
doce e terrível se fixar nela... enquanto que uma voz estranha – a voz de
Orfeu – escapava ainda uma vez daqueles lábios trêmulos para
pronunciar distintamente estas quatro sílabas melodiosas e vingadoras:
– Eurídice!
Diante daquele olhar e daquela voz, a sacerdotisa apavorada
recuou, gritando: – “Ele não está morto! Eles vão me perseguir para
sempre! Orfeu. . . Eurídice!” Bradando assim, Aglaonice desapareceu
como que chicoteada por cem Fúrias. As Bacantes, desvairadas, e os
trácios, compreendendo o horror de seu crime, desapareceram na noite,
com gritos de angústia.
O discípulo ficou só junto ao corpo do mestre. E quando um raio
sinistro de Hécate veio iluminar o linho ensangüentado e a face pálida
do grande iniciador, pareceu-lhe que o vale, as montanhas e as florestas
profundas gemiam como uma grande lira.
O corpo de Orfeu foi queimado pelos sacerdotes, e suas cinzas
transportadas para um longínquo santuário de Apolo, onde foram
veneradas como as de um Deus. Nenhum dos rebeldes ousou subir ao
templo de Kaukaión. A tradição de Orfeu, sua ciência e seus mistérios
ali se perpetuaram e se difundiram por todos os templos de Júpiter e
Apolo.
Os poetas gregos diziam que Apolo ficara enciumado de Orfeu,
porque este era invocado mais freqüentemente do que ele. A verdade é
que enquanto os poetas cantavam Apolo, os grandes iniciados
invocavam a alma de Orfeu, salvador e adivinho.(pag.213)
Mais tarde, os trácios, convertidos à religião de Orfeu, contavam
que ele descera aos infernos para lá procurar a alma da esposa, e que as
mas que sua cabeça, lançada no Erebo e levada por suas ondas
tempestuosas, chamava ainda: Eurídice!
Assim os trácios cantaram como um profeta aquele que eles
haviam matado como um criminoso e que os havia convertido por meio
de sua morte. Assim o verbo órfico se infiltrou misteriosamente nas
veias da Hélade, pelas vias secretas dos santuários e da iniciação.
Os deuses responderam à sua voz,
como no templo um coro de iniciados
Se afina aos sons de uma lira invisível
– e a alma de Orfeu tornou-se
a alma da Grécia.
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http://www.entreirmaos.net/wp-content/uploads/2011/10/
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Fonte:
http://www.entreirmaos.net/wp-content/uploads/2011/10/Os-Grandes-Iniciados-Edouard-Schure.pdf
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