quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A UTOPIA DO AUTOCONHECIMENTO, com Ricardo Goldenberg -85:43



 Discussões e Reflexões »
J.S.Bach -Cantata 147


REVISTA Conatus - FILOSOFIA DE SPINOZA 
- VOLUME 3 - NÚMERO 6 - DEZEMBRO 2009 59
DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS ENTRE ESPINOSA E BERGSON
RODRIGO TRAVITZKI *

A relação entre liberdade e necessidade é um tema recorrente nas leituras de
Espinosa. Alguns se contentam em classificá-lo como determinista, crítico
implacável do livre arbítrio. Um neurocientista texano escreveu, por exemplo, “Espinosa clamou que a única diferença entre um homem e uma pedra descendo rio abaixo era que o homem tem a ilusão de que escolheu fazê-lo” 1. O próprio filósofo afirmou “nunca, ao que eu saiba, conceberam, como nós aqui, a alma agindo segundo certas leis e como que um autômato espiritual”.2

Contudo, certas interpretações apontam que pode haver mais em Espinosa do que parece na superfície. Para Maria Luísa Ferreira, “o diálogo entre Ricoeur e Changeux em ‘Ce qui nous fait penser’ recorre muitas vezes a Espinosa como árbitro e fundamento das perspectivas sustentadas”.3

Mais do que um diálogo, trata-se de um debate em torno da questão do determinismo materialista na relação entre mente e corpo.

Dado que os dois autores estão em lados opostos, o fato de citarem Espinosa pode nos ilustrar a multiplicidade de interpretações da obra deste filósofo.

Deleuze, por exemplo, considera que, numa primeira leitura, a Ética parece algo retilíneo e uniforme, “como um rio que ora se alarga, ora se divide em mil braços; às vezes ganha velocidade, outras desacelera, mas sempre afirmando sua unidade radical”. Contudo, continua, “à medida que as emoções vão invadindo o leitor, ou graças a uma segunda leitura, essas duas impressões revelam-se errôneas.” 4

Deleuze enxerga três diferentes Éticas, que descreve de forma metafórica: “A Ética das definições, axiomas e postulados, demonstrações e corolários, é um livro-rio que desenvolve o seu curso. Mas a Ética dos escólios é um livro de fogo, subterrâneo. A Ética do Livro V é um livro aéreo, de luz, que procede por relâmpagos.”

Vejamos agora, com calma e mais de perto, outra interpretação da Ética, feita pelo filósofo francês Henri Bergson. Na verdade, segundo nossas pesquisas, há pelo menos duas interpretações diferentes formuladas pelo filósofo, cada qual em um momento da vida.

TRÊS PROBLEMAS, UMA SOLUÇÃO
No texto “Spinoza”,5 Bergson está na aparentemente fazendo uma síntese do que chama de espinosismo, fundamentando-se na Ética. Alternando entre uma abordagem mais didática e uma mais crítica, o autor parece estar, na verdade, preparando o terreno para fundamentar suas próprias idéias.

Bergson considera que, em termos  comparativos, a filosofia de Descartes teria como objetivo o “bem pensar”, enquanto a de Espinosa estaria voltada para o “bem agir”. O primeiro teria deixado três problemas de difícil solução, a saber:6

a) Descartes demonstra que Deus é possível, e desta possibilidade “passa à sua realidade sem justificar suficientemente a passagem”;

b) A distinção entre as duas substâncias, pensamento e extensão, é tão profunda 5 Proveniente de aulas de Filosofia ministradas por Bergson em Clermont-Ferrand, entre os anos de 1884 e 1886, e publicadas postumamente. (BERGSON, 1884).
6 (Idem, p. 28 e 29
).

que Descartes não consegue explicar como uma age sobre a outra, limitandose
a “constatar sua união”; c) É difícil entender a criação, por capricho divino, de um mundo onde tudo ocorre necessariamente, segundo as leis da mecânica. Além disto, “se Deus cria o mundo sem cessar, com tudo o que ele contém, ele também não cria nossas ações?

E como, a partir de então, compatibilizar a liberdade do homem com a criação contínua?”

Para o francês, estas são três graves dificuldades da filosofia de Descartes, que Espinosa teria contornado “por meio de uma concepção nova, uma concepção original: primeiramente, da relação entre real e possível; em segundo lugar, da relação de causa e efeito; em terceiro lugar, da relação do infinito ao finito. Essa concepção é essencialmente matemática, e o spinozismo não é inteligível para aquele que não acompanha com precisão a verdadeira natureza das proposições matemáticas e, em particular, da matemática cartesiana” 7.
A que concepção essencialmente matemática Bergson estaria se referindo?

Como
estes três problemas poderiam ser resolvidos numa única tacada? Ao que parece, tudo partiria da relação matemática entre definições e propriedades (ou teoremas) de figuras geométricas que Espinosa utiliza em diversos momentos de sua obra. Podemos dizer que esta concepção pode ser encontrada de forma prática na estrutura dedutiva de Ética8, e de maneira mais teórica no Tratado da Correção do Intelecto, quando o filósofo descreve os requisitos para se definir uma coisa criada: “requer-se um tal conceito ou definição da coisa que todas as suas propriedades (quando a coisa é vista isoladamente, mas não junto com outras) possam concluir-se dela”. 9

Assim, da definição de triângulo se deduz, necessariamente, certas propriedades, como a soma dos ângulos ser sempre igual a dois ângulos retos. Esta necessidade seria decorrência não apenas da definição, mas da própria natureza do espaço, da extensão enquanto atributo da substância divina.

[...] a mera natureza do círculo indica a razão
pela qual não existe um círculo quadrado, a
saber, por envolver contradição [...] Porém,
a razão pela qual um círculo ou um triângulo
existe ou não existe não resulta da natureza
que lhes é própria, mas da ordem da natureza
corpórea na sua totalidade (E1P11D2).

Para Bergson, este seria o centro do espinosismo, ou ao menos sua forma original de
solucionar os três grandes problemas deixados por Descartes. A saber:

a) a realidade de Deus poderia ser
demonstrada a partir de sua possibilidade,
da mesma forma que ocorre com os
objetos matemáticos. Se um triângulo é
possível, ele existe. Se um círculo
quadrado não é possível, ele não existe;

b) a união entre mente e corpo seria
semelhante à união entre teoremas
geométricos e equações algébricas, como
vemos no trecho logo abaixo;

c) a criação do mundo já não seria
produto de um capricho, mas de uma
relação necessária. Os atributos divinos
seriam decorrentes da natureza divina,
assim como as propriedades do triângulo
decorrem de sua definição.

Para entender melhor, vejamos mais de
perto a explicação dada por Bergson para o
paralelismo espinosano entre corpo e alma:

Suponhamos, para compreender a concepção spinozista das relações entre a alma e o corpo, a idéia do círculo se exprimindo, de um lado, por uma equação algébrica e, de outro, por uma definição geométrica; se desenvolvemos essa definição em teoremas que chamaremos A1, A2, A3, A4 e se desenvolvemos essa equação em equações que chamaremos a1, a2, a3, a4, os termos a3 e a4, por exemplo, representarão sob forma algébrica as mesmas coisas que os termos A3 e A4 representam sob forma geométrica, pela razão bastante simples de que as duas séries desenvolvem e exprimem em duas línguas diferentes a. mesma essência da circunferência. Entretanto, nem uma equação poderia influir sobre uma figura nem uma figura sobre uma equação, porque a forma e a quantidade são dois atributos diferentes no sentido spinozista da palavra.10

Esta parece ser uma forma bastante didática de explicar a fundamentação
matemática do chamado paralelismo, a relação não causal entre mente e corpo concebida por Espinosa.11 Uma maneira de resolver o problema do misterioso mecanismo de ação da alma sobre o corpo, cujo segredo Descartes supunha estar na pineal – hipótese hoje pouco aceita na neurociência.12

CRÍTICA BERGSONIANA AO ESPINOSISMO
Logo depois de explicar tal solução, destacando sua originalidade, Bergson introduz seu tema central, o tempo, preparando o terreno para sua crítica ao espinosismo:

“A correspondência dos Modos do Pensamento e da
Extensão se explica, portanto, por uma harmonia
preestabelecida e pelo mero efeito do desenvolvimento
necessário da essência da Substância”. 
Assim, o pensador francês considera, neste texto, um espinosismo  fundamentado na harmonia preestabelecida, uma forma radical de determinismo. Leibniz defende esta idéia de maneira explícita, clara e evidente,13 coisa que não encontramos em Espinosa. Esta leitura que Bergson faz está inserida num contexto maior, onde considera que

 “[...] o spinozismo consiste
essencialmente em conceber a existência no sentido
puramente matemático, em identificar assim a
realidade das coisas com a sua possibilidade e a
tratar a relação dinâmica de causa e efeito como uma
relação matemática do princípio à conseqüência.” 14
Como vimos, estas relações (realidade-possibilidade e causa-efeito) seriam, na leitura que Bergson faz de Espinosa, como a relação entre uma definição geométrica e seus teoremas. De fato, isto aparece na Ética: “[...] todas as coisas resultam do decreto eterno de Deus, com a mesma necessidade que, da essência do triângulo, resulta que os seus três ângulos sejam iguais a dois retos.” (E2P49S).

Lendo a frase solta, a filosofia de Espinosa parece levar a um imobilismo, a um mundo necessário e determinista onde pouco resta à consciência humana. Entretanto, ela faz parte de um contexto que remete justamente ao contrário disto. O filósofo estava falando da doutrina de que vontade e inteligência são a mesma coisa. E o trecho acima é usado para explicar como esta doutrina poderia nos ajudar a lidar de maneira equilibrada (ou adequada) em momentos de fracasso, ou mesmo de sucesso.

Vejamos o que vem antes da frase acima, para termos uma idéia mais adequada do todo:
[...] o conhecimento desta doutrina é útil para a prática da vida [...] enquanto ensina como devemos conduzir-nos perante as coisas da fortuna, isto é, que não estão em nosso poder; por outras palavras, perante as coisas que não resultam da nossa natureza, a saber, esperar e suportar com igual ânimo as duas faces da fortuna, uma vez que todas as coisas resultam do decreto eterno de Deus, com a mesma [...].15

Assim, talvez Espinosa estivesse de fato mais interessado numa filosofia do bem agir do que na descrição de um mundo determinista e imobilizante. Talvez parte desta confusão venha do uso recorrente do termo “eternidade”, que para o filósofo tem um significado difícil de entender, mas certamente diferente do uso comum, pois “[...] nem a eternidade pode ser definida pelo tempo, nem pode ter nenhuma relação com o tempo.” (E5P23S)

Entretanto, para Bergon, ao menos no texto “Spinoza”, o sistema fechado de causas não deixava margem para a criação, a novidade, pois a liberdade estaria reduzida a um tipo de necessidade.

[...] a liberdade, segundo Spinoza, é o estado de um ser que não sofre nenhuma limitação exterior a si mesmo, não recebe de fora as leis de seu desenvolvimento, mas se desenvolve em virtude de uma necessidade inerente à sua 10 (BERGSON, 1884).

11 “Nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa)” (E3P2).

 A liberdade spinozista é, portanto, o que chamaríamos de “necessidade interna”. [...] É assim que uma definição geométrica, se tomasse consciência de si mesma e de seu desenvolvimento em teoremas, seria livre nesse sentido em que o teorema é apenas a expressão de sua natureza e não depende de nenhuma outra causa.16

Assim, Deus seria como a essência eterna de um triângulo, enquanto a Natureza seria como o punhado de teoremas que decorrem necessária e instantaneamente do primeiro. Da mesma maneira, também a alma humana estaria sujeita a agir segundo um plano predeterminado e, portanto, sem liberdade alguma.

É curioso notar que, de tão retilíneo, este raciocínio poderia muito bem fazer parte do que Deleuze chamou de primeira Ética. Será que, com o tempo, Bergson mudaria sua opinião e atingiria outros níveis de interpretação da obra?

Voltaremos a isto mais tarde. No momento, parece-nos prudente esclarecer melhor o objetivo da filosofia bergsoniana. Afinal, como nos alerta Foucault, o conhecimento é uma estratégia de combate. Sendo assim, cabe-nos perguntar: contra o que Bergson lutava? Por que esta crítica a Espinosa?

OS ALVOS DE BERGSON

As questões filosóficas mudaram muito
nos quase três séculos que separam Espinosa de
Bergson. O polidor de lentes teceu um sistema
filosófico que ajudasse a lutar contra a
superstição, a crença na contingência e em idéias
falsas – num mundo de tradição religiosa, onde
a ciência estava começando a ganhar terreno.
Para o francês, contudo, o problema principal
seria a supremacia da racionalidade científica e
matemática sobre todas as outras atividades
humanas. Em especial a arte e a filosofia. Afinal,
o que se passou entre ambos?
Nada menos que o iluminismo, ou esclarecimento, em boa parte inspirado no pensador judeu. Além da revolução tecnológica, industrial e política, é claro. Assim, Bergson está, de certa forma, refletindo sobre alguns dos efeitos produzidos pelas idéias de Espinosa. Ele se preocupa com o determinismo, e sua luta é contra os “filósofos que acreditavam num encadeamento tão rigoroso dos fenômenos e dos eventos que os efeitos deveriam ser deduzidas das causas; estes imaginaram que o futuro está dado no presente, que ele é teoricamente visível, que, consequentemente, não trará nada de novo.”17

Aqui podemos ver um ponto central na metafísica de Bergson, que é a defesa da criatividade da Natureza. A indeterminação, mesmo num mundo regido pelas leis da mecânica. Para o francês, a liberdade seria um fato, um dado imediato da consciência,18 e o determinismo teria que se rearranjar em torno disto. Afinal, Bergson já incorpora a matemática do caos, que rompe a noção de que as equações podem sempre ser unidas de forma previsível – ou seja, terem uma única solução.19 

Também parece estar em sua filosofia algo proveniente da termodinâmica, que foi mais tarde traduzido como “a flecha do tempo”.20 Além disto, nos escritos mais tardios, o francês relaciona suas idéias com as mudanças trazidas pela física moderna, que liberam o conceito físico de tempo de certos pressupostos matemáticos, como o caráter absoluto e linear.

Para Bergson, o tempo produz mudanças na Natureza, pois permite a interpenetração das coisas (através da memória, cuja base é a própria causalidade). O espaço, pelo contrário, produz a separação dos corpos. Assim, a racionalidade científica, fundada no método cartesiano de decompor o complexo em simples – a análise – operaria sempre numa lógica “espacializadora”.

O que se pode observar, por exemplo, pelo simples fato de que representamos o tempo com uma linha, que é um objeto espacial. Na linha do tempo, os instantes se sucedem como os pontos de sucessivas medidas, absolutamente separados uns dos outros. Mas será que tempo e espaço são coisas da mesma natureza? O 16 (Ibidem).

17 Não há citação explícita a nenhum filósofo, mas nos parece que Espinosa estaria incluído neste bolo.(BERGSON, 1934, pg. 105). 18 Idéia presente no ensaio que leva este nome, “Essai sur les données inmédiates de la conscience” (1889). pensador francês coloca esta dúvida no centro da mesa, e se esforça em busca de respostas:

Ao longo de toda a história da filosofia, tempo e espaço são colocados juntos e tratados como coisa do mesmo gênero. Estuda-se então o espaço, determina-se sua natureza e função, depois transporta-se para o tempo as conclusões obtidas [...] Abandonemos esta representação intelectual do movimento, que o desenha com uma série de posições. Vamos direto a ele, consideremo-lo sem conceitos interpostos: nós o vemos simples e uno.21

Bergson sugere aqui, nos parece, que observemos o movimento em si mesmo, não enquanto efeito de outra coisa mais importante e absoluta. Sem mediações, direto no objeto. Ao invés de decompor o movimento em tempo e espaço, como fazem os físicos, Bergson parece propor que os filósofos não se sintam obrigados a seguir tal restrição, porque a filosofia seria uma maneira mais livre de lidar com conceitos do que a ciência. O problema central consistiria, talvez, nas limitações que o racionalismo e as recentes descobertas científicas estariam produzindo na filosofia, na medida em que a metafísica ia se assemelhando à ciência, com grandes e inabaláveis sistemas de conceitos autoreferenciados.22

Se a ciência opera de forma “separadora”, 
“espacializadora”, a mudança acaba escapando- lhe.

A ciência, diz Bergson, não consegue tratar da novidade, o que inclusive é natural, pois serve para prever as coisas. O problema seria confundir ciência com metafísica. Se a ciência concebe um mundo previsível, isto não quer dizer que ele seja essencialmente previsível. Quer dizer apenas que os cientistas estão sendo bem sucedidos em construir uma forma de prever certas coisas com precisão suficiente para resolver certos problemas e realizar determinadas ações. A física moderna, com suas medidas cada vez mais precisas, não conseguiu se ver livre da indeterminação. Mas, ao delimitar esta indeterminação (no princípio da incerteza, por exemplo), pôde se desenvolver e permitir a criação de muitas tecnologias novas.

A inteligência retém apenas uma série de posições: um ponto primeiramente atingido, depois outro, depois outro. [...] Ele desvia o olhar da transição. Se insistimos, ele faz com que a mobilidade, apertada em intervalos cada vez menores à medida que aumenta o número de posições consideradas, recue, fuja, desapareça no infinitamente pequeno. Nada de mais natural, se a inteligência é destinada sobretudo a preparar e aclarar nossas ações sobre as coisas.23

Para Bergson, os filósofos não obtiveram tanto sucesso quanto os cientistas na construção de um conhecimento coletivo, e um dos motivos seria a confusão entre ciência e filosofia, entre inteligência e intuição. As duas operariam em sentidos inversos: a grosso modo, a inteligência (e portanto a ciência) procede na ordem natural do pensamento, da dúvida para a certeza (que permite a ação eficaz), enquanto a filosofia seria justamente uma inversão nesta ordem, indo da certeza para a dúvida. Contudo, para o francês, a filosofia havia se tornado muito presa a certos conceitos e suas antinomias.

[...] esta metafísica, da mesma maneira que esta ciência, teceu ao redor de sua vida profunda um rico tecido de símbolos, esquecendo por vezes que, se a ciência necessita de símbolos em seu desenvolvimento analítico, a principal razão de ser da metafísica é uma ruptura com os símbolos.24

Entretanto, é importante destacar que Bergson não defende uma metafísica independente das descobertas científicas. Muito pelo contrário, vemos em sua obra muitos elementos provenientes das diversas ciências e da matemática. Para o francês, “o eclipse parcial da metafísica de meio século para cá tem sobretudo como causa a extraordinária dificuldade que o filósofo experimental atualmente tem para tomar contato com uma ciência que se tornou muito mais diversificada”.25

Podemos recortar, portanto, dois grandes problemas contra os quais Bergson luta na construção de sua filosofia. Um deles é a imobilização da Natureza produzida pela ciência, via inteligência, gerando no imaginário coletivo um universo determinista e preestabelecido, onde não seria possível a novidade, a criação livre. O segundo problema, relacionado a este, seria estabelecer uma clara separação entre ciência e filosofia, em relação a método, objetivo e forma. A fim de que a filosofia pudesse desenvolver-se em seu próprio caminho, tal qual fez a ciência.

O que mais tem faltado à filosofia é a precisão.
Os sistemas filosóficos não se ajustam à realidade em que vivemos. São demasiadamente vastos. [...] ver-se-á que se aplicaria facilmente a um mundo em que não houvesse plantas ou animais; ou mesmo homens; [...]

A explicação que devemos considerar satisfatória é a que adere ao seu objeto [...] ela convém somente àquele objeto; este se presta apenas àquela explicação. Isto pode ser dito da explicação científica. Ela comporta a precisão absoluta e uma evidência completa e crescente. Mas pode-se dizer o mesmo com relação às teorias filosóficas?26

A que sistemas demasiadamente vastos estaria se referindo? Dentre eles, pelo que vimos acima, talvez estivesse o de Espinosa. Mais ainda, nos parece que o espinosismo traçado por Bergson no texto “Spinoza” pode ser, no fundo, uma espécie de alvo emblemático, um modelo de determinismo matemático/racional a ser superado pela metafísica de sua época. Como
um grande adversário, uma espécie de macho alfa cuja derrota simbolizará o fracasso de todos os outros do bando. No trecho abaixo, por exemplo, encontramos um possível exemplo de mistura entre ciência e filosofia que o pensador francês teria enxergado no judeu: “[...] Spinoza apresentou nas três últimas partes da Ética uma psicologia que é, ao mesmo tempo, uma metafísica, em que ele trata dos estados da alma a partir da idéia da Substância e de seu desenvolvimento necessário.”27

Assim, segundo nossa análise, Espinosa pode ser considerado uma espécie de “alvo concreto” que simbolizaria dois importantes “alvos filosóficos” para Bergson: o determinismo racionalista e matemático (na negação do livrearbítrio28 e na afirmação da causalidade29) e a mistura entre ciência e filosofia (na forma, por exemplo, de uma metafísica geométrica, fundada na relação dedutiva e auto-referenciada entre conceitos).30 Um alvo cuidadosamente escolhido e lapidado no texto “Spinoza”, que oscila entre uma abordagem mais didática e críticas ao determinismo do método geométrico.

A DURAÇÃO BERGSONIANA
Contra o determinismo que surge em Descartes, e teria se tornado mais consistente em Espinosa, Bergson propõe repensarmos a idéia de tempo, desvinculando-a do significado proveniente da física newtoniana. Vemos aí, mais uma vez, o esforço do filósofo em delimitar melhor os terrenos da filosofia e da ciência, pois:

As dificuldades inerentes à metafísica, as
antinomias que ela engendra, as contradições
em que cai, a divisão em escolas antagonistas
[...] vêm de que pretendemos reconstituir a
realidade, que é tendência e conseqüentemente
mobilidade, com as percepções e os conceitos
que tem por função imobilizá-la.31
Assim, como vimos, o francês busca resgatar o “tempo real” no lugar do “tempo medida”, retomando uma perspectiva semelhante à de Heráclito. O tempo passa e produz mudanças, ele é a própria mudança. Prever o que acontecerá daqui a um minuto não é semelhante a prever os eventos com um mês de antecedência. A duração das coisas pode ser importante. Numa metáfora simplificadora:

Quando preparamos um copo de água açucarada, dizíamos, é forçoso esperar que o açúcar se dissolva. Esta necessidade de esperar é o fato significativo. Ela mostra que, se podemos determinar no universo sistemas para os quais o tempo é apenas uma abstração, uma relação, um número, o universo em si mesmo é bem outra coisa.32

Na duração é necessário esperar, pois durante o processo as coisas mudam, de forma análoga à necessidade de tempo para a elaboração em Freud.33 O tempo, em Bergson, não é o tempo da mecânica, mensurável, decomposto, previsível e bidirecional. Podemos dizer, talvez, que o tempo bergsoniano seja mais darwinista do que newtoniano,34 pois o filósofo se preocupa em refletir sobre um mundo que inclui a vida, e não uma natureza onde a vida acontece à revelia de todo resto.

Consciência e materialidade se apresentam, pois, como duas formas de existência radicalmente diferentes e mesmo antagonistas, que adotam um modus vivendi e se arranjam bem ou mal entre si. A matéria é necessidade, a consciência é liberdade; mas, por mais que elas se oponham uma à outra, a vida encontra um meio de reconciliá-las. É que a vida consiste  precisamente na liberdade inserindose na necessidade e utilizando-a em seu benefício.  Ela seria impossível se o determinismo ao qual a matéria obedece não pudesse relaxar seu rigor.35

Assim, a vida seria uma evidência de que o universo não é um mero mecanismo complexo regido pela necessidade. Os fenômenos vitais, portanto, apresentariam certa mistura de liberdade e necessidade. Mas como poderia o determinismo não ser tão determinista? Em primeiro lugar, uma solução filosófica seria dizer que na natureza surgem novas possibilidades a cada momento, criadas por processos com uma duração, com memória e capacidade de antecipação, onde passado e futuro se interpenetram no presente. A novidade é criada pelo processo, durante o processo. A idéia de que tudo preexiste na forma de potência seria um engodo.36

Simplificando: “[...] 
na duração, vista como uma evolução criadora, há criação perpétua de
possibilidade e não apenas de realidade. Muitos se
recusarão a admitir isto, porque pensarão sempre
que um evento não se realizaria se não tivesse
podido realizar-se.”37
Bergson então conclui que a palavra “‘possibilidade’ significa duas coisas totalmente diferentes e que, a maior parte do tempo, oscilamos de uma à outra, jogando involuntariamente com o sentido da palavra”. O que pode ser melhor compreendido tomando a criação artística como exemplo, mas cujo princípio estende-se ao universo como um todo.

Quando um músico compõe uma sinfonia,
sua obra era possível antes de ser real? Sim,
se entendermos por isto que não havia
obstáculos intransponíveis à sua realização.
Mas deste sentido negativo da palavra passamos, sem perceber, para um sentido positivo; admitimos que tudo o que se produz podia ser antecipadamente percebido por um espírito suficientemente informado, preexistindo assim, sob forma de idéia, à realização; concepção absurda no caso de uma obra de arte [...] Mas não poderíamos dizer o mesmo de um estado qualquer do universo, com todos os seres conscientes e viventes? Não é ele mais rico em novidade, em imprevisibilidade radical, que a sinfonia do maior mestre?38

Assim o pensador francês posiciona sua crítica ao determinismo, desmontando o conceito de possibilidade a partir de sua própria versão do conceito de duração. Uma versão difícil de ser apreendida, até porque, para Bergson, este tipo de idéia não pode ser completamente capturado pela linguagem. Em outras palavras:

“[...] nossa duração pode ser-nos apresentada
diretamente na intuição, que pode ser sugerida
indiretamente por imagens, mas que não poderá
– se tomarmos a palavra conceito em seu sentido
próprio – se encerrar numa representação
conceitual”. 39

Assim, mais uma vez o esforço de Bergson parece distanciar-se da obra de Espinosa, uma vez que este buscou elaborar um complexo sistema de conceitos auto-referenciados, como vemos na Ética. Em tal sistema, a duração não desempenha praticamente nenhum papel,40 sendo apenas uma contingência, algo sobre o qual não se tem controle nem conhecimento adequado.

Numa primeira leitura, portanto, a filosofia
bergsoniana parece opor-se em todos os aspectos
à de Espinosa, seja na forma, no conteúdo ou nos
objetivos. Parece-nos, contudo, que esta é apenas
a superfície das coisas. Tentemos, portanto, um
esforço no sentido oposto.
POSSÍVEIS CONVERGÊNCIAS ENTRE BERGSON E ESPINOSA
Em primeiro lugar, podemos nos perguntar porque Bergson teria escolhido concentrar sua filosofia em torno do conceito de duração. Há várias respostas para esta pergunta. Uma delas seria que, contra todas as aparências, Bergson não teria se distanciado tanto assim de Espinosa. Afinal, se o francês buscava compreender um mundo criativo, onde movimentos evolutivos criam novidades imprevisíveis, ele precisaria encontrar algo de contingente num mundo de causas determinadas e necessárias.

No sistema espinosano, “[...] nada existe
de contingente; antes, tudo é determinado pela
necessidade da natureza divina a existir e a agir
de modo certo” (E1P29). Mas para esta regra
Espinosa abre uma pequena exceção, que é
justamente a duração, definida pelo filósofo
como a “continuação indefinida da existência”
(E2Def5) ou “ a existência enquanto é concebida
abstratamente e como uma certa espécie de
quantidade” (E2P45S). 
No primeiro livro da Ética esta idéia começa a ser forjada, com o princípio de que “a essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência” (E1P24). Aparentemente uma frase simples, mas que vai se desenvolvendo ao longo da obra. É no segundo livro da Ética que o filósofo abre a pequena brecha em seu sistema aparentemente determinista. Ele afirma que podemos conhecer muito pouco a respeito da duração de nosso corpo (E2P30), e em seguida amplia a idéia para todas as coisas singulares (E2P31).

A duração seria indefinida
porque “ela jamais pode ser determinada pela
própria natureza da coisa existente, nem também
pela causa eficiente, a qual, com efeito, põe
necessariamente a existência da coisa, mas não a
suprime” (E2Def5E).

Trata-se de um raciocínio tão simples quanto belo. Podemos conhecer a essência das coisas criadas através de suas causas próximas,41 mas pouco poderemos saber sobre a duração de cada coisa porque ela só deixa de existir devido à interação com outras coisas.

No terceiro livro, Espinosa propõe um encadeamento de ideias que explica melhor a contingência da duração:

1) “nenhuma coisa pode ser destruída, a não ser por uma causa exterior” (E3P4);

2) “as coisas são de natureza contrária, isto é, não podem coexistir no mesmo sujeito, na medida em que uma pode destruir a outra” (E3P5);

3) “toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser” (E3P6);

4) “o esforço pelo qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa” (E3P7);

E por fim, chegamos à ideia:
5) “o esforço pelo qual cada coisa tende a perseverar no seu ser não envolve tempo finito, mas um tempo indefinido” (E3P8);

Assim, dentro de um sistema cujo principal objetivo é expurgar qualquer forma de contingência,42 Espinosa parece ter deixado para a duração um lugar secundário, mas muito bem 40 A duração, por exemplo, nada teria em comum com a perfeição:

 “Por perfeição em geral entenderei, como disse,
a realidade, isto é, a essência de uma coisa qualquer,
enquanto ela existe e age de uma determinada maneira,
sem qualquer referência à sua duração.” (E4Intr)41.

Que seria o quarto modo de percepção, pelo qual “a coisa é percebida por sua essência unicamente [coisa incriada] ou por sua causa próxima [coisa criada]” (TCI, 19). É importante destacar que “só o quarto modo compreende a essência adequada da coisa e sem perigo de errar; por isso é que devemos usá-lo ao máximo.” (TCI, 29).42

 “chamo contingente às coisas singulares, enquanto,
considerando nós somente a sua essência, nada encontramos
que ponha necessariamente a sua existência, ou que
necessariamente a exclua” (E4Def3).

. O de única coisa contingente, indeterminada.43 Isto porque o tempo de existência de cada coisa singular não depende de sua essência, mas sim da interação entre muitas coisas singulares se esforçando em perseverar no seu ser.

Nossa hipótese é de que Bergson, ao colocar o conceito de duração no centro de sua filosofia (que visava defender uma natureza imprevisível e criativa), não estivesse se distanciando de Espinosa. Muito pelo contrário, estaria se baseando nele, quem sabe até levandoo às últimas consequências (embora em outra época, com outra linguagem e outros problemas), como ele próprio teria feito com Descartes.

Bergson teria desenvolvido um aspecto pouco importante para o filósofo (e sua época),  abrindo uma brecha deixada pelo primeiro. 

A brecha do determinismo espinosano seria a duração indeterminada,  que só poderíamos conhecer pela imaginação, mas não pela a razão.44  Poderia ser também, portanto, uma brecha no racionalismo.

Parece pouco, mas o próprio Espinosa já apontava o longo alcance deste princípio. Veja por exemplo o trecho abaixo, que deve ser pouco conhecido pelos que classificam o filósofo como determinista:

Todas as coisas particulares são contingentes
e corruptíveis. Na verdade, não podemos ter
qualquer conhecimento adequado da sua
duração [...] e é precisamente isso que
devemos entender por contingência das coisas
 [...] à parte disso, nada existe de contingente. (E2P31C).
Não queremos dizer, com isto, que a duração seria a única brecha no aparente determinismo espinosano. Até porque o sistema desenvolvido pelo filósofo não é claro e evidente como pode parecer àquele que lê apenas as proposições de Ética. Poderíamos também, por exemplo, considerar o homem como uma coisa indeterminada, dependendo da leitura que fizermos do axioma I do segundo livro.45

Um contra-argumento a esta hipótese de que o espinosismo não é determinista seria dizer que, embora nós não possamos ter um conhecimento adequado da duração das coisas, Deus poderia, em seu intelecto infinito, ter esta idéia já de antemão.

Este raciocínio, contudo, é bastante controverso, pois desloca uma propriedade do intelecto humano para um suposto intelecto divino, como se não houvessem mudanças qualitativas radicais nesta transposição.

Como se a eternidade fosse apenas uma duração infinitamente longa. Mas, pelo contrário, a eternidade, a existência eterna, “não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem fim” (E1Def8E). Embora Espinosa trace diversos paralelos entre o homem e Deus, ele também diferencia o intelecto, que seria um modo de pensar, do pensamento absoluto.46

Como poderíamos conciliar o princípio de
causalidade absoluta com a liberdade? 

Como a
natureza poderia ser, ao mesmo tempo,
necessária e indeterminada? 
Nos parece que Espinosa não está tão preocupado na previsibilidade matemática do futuro, mas sim com a inteligibilidade do presente. O suposto determinismo espinosano se fundamenta em dois princípios: 1) tudo tem uma causa47 e 2) tudo tem uma consequência.48 Isto não quer dizer que o futuro está predeterminado, mas sim que podemos compreender a natureza se observarmos as coisas com atenção, de diversas maneiras, e se refletirmos sobre elas – ou seja, se superarmos o primeiro gênero de conhecimento49, origem de toda falsidade. 

A contingência da duração poderia ser até, especulamos, uma resposta de Espinosa a Leibnz e sua teoria da harmonia preestabelecida.50 Afinal, dado um sistema 43 Ao menos de forma explícita.complexo, se não conhecemos adequadamente a duração de cada elemento, nossa previsão de seu futuro será necessariamente inadequada.

A questão da complexidade aparece
muitas vezes, de forma sutil, na obra de Espinosa.
O polêmico quinto livro da Ética, por exemplo, parte apenas de dois axiomas, um dos quais estabelecendo que “se, no mesmo sujeito, são excitadas duas ações contrárias, deverá necessariamente produzir-se, em ambas ou numa só, uma mudança, até deixarem de ser contrárias”.

Talvez possamos enxergar, nesta passagem, um indício da mudança, da novidade que Bergson tanto procurava, e considerava inexistente no espinosismo. Ao menos na época do texto “Spinoza”.

Na ocasião, uma das críticas mais importantes do francês seria a matematização (e consequente imobilização) da realidade que estaria implícita em certas passagens, principalmente quando Espinosa utiliza objetos e relações matemáticas para justificar (ou exemplificar) certas idéias metafísicas.51 

Contudo, se observarmos com atenção,
 veremos que este procedimento também é adotado por Bergson 
em diversos momentos.
 Voltando à questão de “relaxar o rigor determinista”, o francês não se limitou a repensar o conceito de “possibilidade”, como explicamos acima. Ele precisou também de uma justificativa matemática, que na época de Espinosa ainda não tinha sido elaborada formalmente. Trata-se do chamado “caos”, ou melhor, da teoria matemática desenvolvida a partir da indeterminação intrínseca a certos sistemas mecânicos compostos por três ou mais corpos. Este é conhecido como “problema dos três corpos” 52 – e não deixa de ser curioso o fato de que Espinosa definiu três tipos de componentes para o corpo humano.53

Veja, então, como Bergson tece sua justificativa, numa linguagem literária porém de conteúdo essencialmente matemático. Como o determinismo relaxaria seu rigor?

[...] suponhamos que em certos momentos,
sobre certos pontos, a matéria ofereça uma
certa elasticidade: aí se instalará a
consciência. Ela aí se instalará fazendo-se
extremamente pequena; depois, uma vez
neste lugar, ela se dilatará, ela se expandirá
e acabará por obter tudo, porque ela dispõe
de tempo e porque a mais ligeira quantidade
de indeterminação, acrescentando-se
indefinidamente a si mesma, resultará em
tanta liberdade quanto se queira. 54
Uma explicação poderosa, talvez pela mistura entre forma e função que descrevemos acima. Traduzindo numa linguagem contemporânea, alguns sistemas complexos têm evolução extremamente sensível a variações nas condições iniciais, o que costuma ser traduzido como “o bater de asas de uma borboleta na Amazônia pode produzir um furação na Califórnia”.

 Uma pequena indeterminação no início (seja na medida, seja na coisa – eis a questão) vai se acumulando e, com o tempo, pode produzir efeitos imprevisíveis a priori. Com isto observamos que, assim como Espinosa, Bergson também se remete a conceitos matemáticos para justificar (ou exemplificar) idéias centrais de sua filosofia. Não da mesma forma, nem com a mesma frequência ou objetivo. 

O francês não busca fazer nada “à maneira dos geômetras”, 
mas nem por isso deixa de explicar várias idéias importantes
 valendo-se de conceitos matemáticos.
Em que medida Espinosa estaria buscando a mesma finalidade? 

Uma ética geométrica também não seria uma forma de se misturar liberdade com necessidade? Será que, no fundo, a busca dos dois filósofos não teria algo em comum? Afinal, como escreveu Bergson um bom tempo depois: Um filósofo digno deste nome sempre disse uma única coisa: ou melhor, procurou, muito mais, dizê-la do que a disse realmente. [...] O filósofo poderia ter vindo vários séculos antes; defrontar-se-ia com uma outra filosofia e uma outra ciência; ter-se-ia posto outros problemas; ter-se-ia exprimido de outra forma; nem um capítulo, talvez, dos livros que teria escrito seria idêntico ao que efetivamente escrever;e, entretanto, ele teria dito a mesma coisa.55

No final do quinto livro da Ética, encontramos um trecho que poderia servir de “resposta” à principal crítica feita por Bergson no texto “Spinoza”, a saber, de que a demonstração geométrica seria a única forma de identificar um conhecimento adequado. [...] nós sentimos e experimentamos que somos eternos. Com efeito, a alma não sente menos aquelas coisas que ela concebe, ao compreender, do que aquelas que tem na memória. Efetivamente, os olhos da alma, com os quais ela vê e observa, são as pró

Esta passagem parece valorizar uma espécie de demonstração fenomenológica dos fatos, tal qual Bergson fez em relação à liberdade humana.56 Enfim, talvez a intuição (que o francês considera exercer papel central na filosofia) também tenha seu lugar em Espinosa, acomodando-se de alguma forma sutil com a razão e os outros modos de pensar.

Nos parece, em suma, que os dois pensadores,  embora tenham construído filosofias diferentes em praticamente todos os aspectos, talvez tivessem mais em comum do que aparenta na superfície. Ambos lutavam contra grandes nfontes de certeza de sua época (primeiro as superstições religiosas, depois o racionalismo científico), exercendo com maestria a atividade filosófica de duvidar daquilo que parece certo.

Levantamos aqui a hipótese de que a duração bergsoniana teria origem no sistema de Espinosa onde, nos parece, a duração contingente coexiste com a causalidade universal. Também vimos que tal contingência é um forte argumento contra a tese de que o espinosismo seja determinista, embora o debate permaneça em aberto.

Para terminar, podemos propor 
uma espécie de demonstração da convergência entre Bergson e Espinosa. Isto porque, em nosso processo de pesquisa, tínhamos inicialmente apenas o texto “Spinoza” (1884/86) como ponte entre os dois pensadores. Mas com o tempo, ndurante o processo, tal qual uma duração criativa, fomos descobrindo outras passagens em que o pensador francês se refere ao judeu.

Encontramos, assim, o excerto abaixo, de 1911, que parece ir no sentido inverso de boa parte do que havia no outro texto, apontando na mesma direção da análise aqui elaborada. De que há mais convergência entre os dois pensadores do que parece na superfície, onde a divergência é evidente. Escreve Bergson quase trinta anos depois do texto “Spinoza”, onde tecia suas críticas ao determinismo:

Deixarei de lado Espinosa; ele nos levaria muito longe. E entretanto não sei de nada mais instrutivo do que o contraste entre a forma e o fundo de um livro como a Ética; de um lado essas coisas enormes que se chamam Substância, Atributo e Modo, e o formidável aparato de teoremas com o encadeamento de definições, corolários e escólios, e esta complicação da maquinaria, este poder esmagador, que fazem com que o principiante, em presença da Ética, seja possuído por uma admiração e um terror análogos ao que experimentaria diante de um couraçado do tipo Dreadnought; de outro, algo de sutil, de muito leve e de quase volátil, que foge quando nos aproximamos, mas que não podemos olhar, mesmo de longe, nem nos tornarmos incapazes de fixar-nos a todo o restante, seja o que for, mesmo ao que passa por capital, mesmo à distinção entre Substância e o Atributo, mesmo à dualidade entre o Pensamento e a Extensão. 

É, por sob a pesada massa de conceitos
aparentados ao cartesianismo e ao aristotelismo, 
a intuição que foi a de Espinosa, intuição que nenhuma fórmula, 
por mais simples que seja, será suficientemente simples para exprimir.
Digamos, para nos contentar com uma aproximação, que é o sentimento de uma coincidência entre o ato pelo qual nosso espírito conhece perfeitamente a verdade e a operação pela qual Deus a engendra [...]57

Podemos terminar tecendo uma pequena narrativa
– nada mais que especulativa – para resumir um pouco das ideias 
que surgiram durante este texto.


Vejamos então. Bergson teria iniciado sua leitura de Espinosa mais aterrorizado do que admirado, o que explicaria as críticas encontradas no texto de 1884/86. Mas então, encontrando uma brecha no determinismo espinosano, teria escolhido a duração como centro de sua teoria, radicalmente nova e ainda assim enraizada na tradição filosófica e científica.

Depois de muitas releituras, (como disse Deleuze)58 o pensador francês teria penetrado mais a fundo na obra de Espinosa, encontrando elementos sutis porém significativos.
Assim, o que Bergson antes considerava
uma forma emblemática de determinismo,
passou a ser visto, no mínimo, como uma
admirável intuição – que seria, a grosso modo,
o sentimento de que o processo pelo qual o
espírito entende uma verdade é o mesmo pelo
qual Deus cria esta verdade.


30 Como vemos na Ética. Embora Deleuze considere que
a ética transcenda esta estrutura dedutiva (DELEUZE,

 34 “O movimento evolutivo seria coisa simples, e logo
poderíamos determinar sua direção, se a vida descrevesse
uma trajetória única, comparável à parábola de uma granada
lançada por um canhão.” (BERGSON, 1907, p. 155-156).

44 “Se nós pudéssemos ter um conhecimento adequado da
duração das coisas, e pudéssemos determinar, pela Razão,
os seus tempos de existência, [...] Mas nós não podemos ter
senão um conhecimento muito inadequado da duração das
coisas [...] e só determinamos pela imaginação os tempos
de existência das coisas” (E4P57S).

45 “Da ordem da natureza tanto pode resultar que este ou
aquele homem exista, como que não exista” (E2AX1)
46 “Por intelecto [...] não entendermos o pensamento
absoluto, mas somente um certo modo do pensar, que difere
de outros, a saber, a apetição, o amor, etc”
 

A utopia do autoconhecimento,

 com

 Ricardo Goldenberg


“Conhece-te a ti mesmo” 
era a inscrição da porta do oráculo de Delfos, 
na antiga Grécia. Este conselho do oráculo grego
 ganhou novo sentido com a psicanálise. 

Freud encontrou pistas importantes para a investigação de quem somos. Neste programa, o psicanalista Ricardo Goldenberg mostra como a psicanálise pode ajudar a responder a pergunta ‘Quem sou eu’?

Para Goldenberg, a psicanálise deve apostar na nossa capacidade de responder a esta pergunta e de criar sentidos para a nossa vida.

Evento do módulo 
Os fantasmas da perfeição.
 Li-Sol-30
 
 Fonte:
Café Filosófico - CPFL Cultura
 http://www.discussoesereflexoes.com.br/2010/11/08/a-utopia-do-autoconhecimento-com-ricardo-goldenberg/#.UBnDvjtaebo.blogger
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário