Bergson e algumas contribuições sobre o tempo
Zairo Carlos da Silva Pinheiro
- Centro de Estudos do Imaginário - UNIR (1)
Faremos adiante uma abordagem sobre as dimensões temporais (passado, presente e futuro) tendo como eixo o livro Matéria e Memória, de Henri Bergson ( 1990 ). Pois sua concepção de que existe um passado e que este forma nossas percepções do presente não é só contrária a uma idéia presentista (valorização de um presente em detrimento de categorias como passado e futuro) mas necessário como referência para compreensão de uma nova categoria que ele nomeia como presente imediato. O referencial de nossa discussão terá por eixo a idéia de "experiência passada", não obstante a sua tão criticada hipótese de que o passado se conserva em sua totalidade.
Bergson sempre foi sinônimo de polêmica e seus conceitos sobre memória, existência, matéria e outros se entrelaçam numa cadeia de significados e conclusões que intrigaram vários pensadores. Certamente dentre suas polêmicas o que mais provoca seus críticos é a possibilidade do passado de uma pessoa se "conservar na memória", influenciar o presente e criar possibilidades de futuro.
Para ele tais dimensões temporais são fundamentais. Uma pessoa só se reconhece no mundo, se tiver um experiência anterior.
Dentre as concepções teóricas que começaram a pensar a memória dentro de outro enfoque, não mais como "mesma imagem", mas esta já modificada, foi Ernst Cassirer (1997: 88): "No homem", comenta,não podemos descrever a lembrança como um simples retorno de um evento, como uma vaga imagem ou cópia de impressões anteriores. Não é simplesmente uma repetição, mas antes um renascimento do passado; implica um processo criativo e construtivo. Não basta recolher dados isolados da nossa experiência passada; devemos realmente re-colhê-las, organizá-las e sintetizá-las em um foco de pensamento. É esse tipo de lembrança que proporciona a forma característica da memória, e a distingue de todos os demais fenômenos na vida animal ou orgânica.
Nesse trecho, fica claro a postura tomada sobre o conceito de lembrança. Esta não seria uma "cópia", "repetição", mas processo "criativo", dinâmico que tem como princípio a construção de algo. E essa característica é o que diferenciaria o homem de qualquer outro animal. Mesmo neste modo de encarar a questão da memória, o filósofo apesar de não estar inclinado para o campo introspectivo que enveredou Bergson, não procurou negar a existência desse passado, e chega mesmo a apontar como fundamental a possibilidade do homem "re-colhê-lo" para daí tirar todos os frutos que possa ser alimentado o pensamento. O que importa para nós é essa crença que o passado é real, que ele não se extingue com o presente, este sendo muitas vezes não só influenciado, mas às vezes totalmente tomado por "distúrbios" psicológicos ocasionando as neuroses.
Sempre que Bergson explica qualquer conceito estes são identificados dentro de uma categoria temporal. Percebemos isso quando diferencia Lembrança de Percepção: "minha percepção presente não seria mais que um elo: este elo então comunica sua atualidade ao restante da cadeia." (p. 119-120). Com esta definição, o presente é reduzido a quase nada, sendo o fio que liga o mundo exterior ao mundo da experiência. A diferença feita serviu para Bergson perceber que a tentativa de desvendar o mundo externo não passa de "ilusão", este sendo inapreensível pois só se mostra em parcialidade; pelo contrário, nossa vida psicológica interior é maior, onde se encontra toda a nossa totalidade, sendo por isso inapreensiva para nós. Mas se o passado existe, por que não aparece ?
Por que não toma o lugar do presente? " É verdade", diz, que a possuímos apenas como um resumo, e que nossas antigas percepções, consideradas como individualidades distintas, nos dão a impressão, ou de terem desaparecido totalmente, ou de só reaparecerem ao sabor de seu capricho. Mas essa aparência de destruição completa ou de ressurreição caprichosa deve-se simplesmente ao fato de a consciência atual aceitar a cada instante o útil e rejeitar momentaneamente o supérfluo (p. 120).
Ele se utiliza de uma analogia simples para defender a idéia de que o passado se encontra em nós sem que precisemos conhecê-lo: quando nos encontramos em um cômodo de uma casa, não percebemos os outros cômodos que existem ao redor, nem a esquina que está a alguns metros de nós, no entanto, estão lá sem precisar que eu as veja com os olhos para que existam. Dentro desse contexto do que vejo (existe) e do que não vejo (não existe) é que se encaixa sua idéia de Consciente e Inconsciente. O primeiro está para a percepção assim como o segundo está para a lembrança. As coisas do passado não ficam isoladas dessa percepção, pelo contrário, se comunicam a todo instante com o momento presente, ou melhor, só existe Percepção Presente porque a mesma serve de ponte as Experiências Passadas.
É nesse ponto que a teoria de Bergson se "aproxima" com a teoria de Jung (1990). Este sempre alertou que só com uma investigação do seu inconsciente o homem pode reaver seu conteúdo de totalidade. E o que seria esse inconsciente se não nossa "experiência passada"? E acreditar num inconsciente, em imagens, sonhos, visões que vêm a todo instante do fundo de nossa "alma" é, de uma maneira ou de outra, acreditar que temos um "experiência interior", pouco conhecida. Isto não significa que o presente seja apagado, pelo contrário, reconhecer que existe o passado não é negar o presente, mas é colocá-lo no seu devido lugar (dimensão necessária para que nossa experiência anterior sobreviva). Bergson tem disso profunda clareza: é do presente, ou melhor, da Percepção Presente que parte o chamado para que a lembrança apareça. Questionado-se nesse ponto, comenta:
" Mas como o passado, que, por hipótese, cessou de ser, poderia por si mesmo conserva-se? Não existe aí uma contradição real? - Respondemos que a questão é precisamente saber se o passado deixou de existir, ou se ele simplesmente deixou de ser útil" (p. 123).
Jung (1990) alerta para o fato que ao esquecer uma palavra que antes íamos dizer, esquecer as chaves da casa, não é esquecimento no sentido literal do termo, mas desatenção ou tomada parcial do consciente pelo inconsciente. Tais palavras "esquecidas" apenas perderam momentaneamente sua utilidade (mas não desapareceram completamente da experiência que passou).
Mas por que a tendência atual de se conceber que o presente existe e o passado não? Nos estudos realizados sobre mitologias não ocidentais (Eliade, 1998; Guénon, 1957; Campbell, 1990) encontramos uma segunda via de compreensão do tempo, principalmente quando se refere ao tempo presente. Não mais aquela onde passado, presente e futuro fossem perspectivas supremas, mas sim o "grande presente", o presente que engloba tudo, que abarca todas as categorias tradicionais do tempo.
Guénon, encontra essa idéia do Grande Tempo ao procurar correspondências entre a Grande Tríade extremo oriental (Céu, Terra e Homem) e o Tríplice Tempo (passado, presente e futuro), o Homem sendo identificado com o Presente. Este não passa nunca, pois o homem olha para si nesse momento indivisível. Acrescenta ainda, que o Passado é "necessidade", e o Futuro algo "livre", mas não deixando de existirem. Para explicar essa contradição onde o Presente nunca passa mesmo existindo Passado e futuro, comenta:
"É verdade que isso é ainda, na realidade, apenas uma questão de "perspectiva", e que, para um ser que está fora da condição temporal, não há mais passado, nem futuro, nem, por conseguinte, diferença alguma entre eles, aparecendo tudo em perfeita simultaneidade. Mas, é claro, falamos aqui do ponto de vista do ser que, estando dentro do tempo, acha-se necessariamente colocado, por isso mesmo, entre o passado e o futuro" (p. 134).
Campbell, contribui no mesmo sentido, quando analisando a yoga, aponta para o Tempo e o Espaço como fundamentais para se permanecer "lúcido" no mundo. Mas a yoga seria esta busca da eliminação de tal "conhecimento", onde a pessoa libertada de tal concepção veria todo o seu ser em totalidade, daí ele faz uma indagação: "Surge então o problema de trazer-nos de volta para que possamos agir segundo os dois conhecimentos" (p. 127). Ora, mesmo nessa perspectiva apontada por esse mitólogo, as dimensões temporais como passado e futuro são não só necessárias, mas úteis para a convivência no mundo.
Mas o que podemos tirar como conclusão dessas concepções acima com a teoria de Bergson de que o passado existe? Primeiro, observemos que nas mitologias apresentadas acima, o Presente sempre é o eixo do Tempo; ele é quem existe de fato. Passado e Futuro são conseqüências dele. Ou melhor, para o "transcendente" realmente é inconcebível existir passado, futuro ou qualquer tipo de espacialidade, pelo contrário, só pode existir o Eterno e Grande Presente. Mas surge uma indagação: como estando inseridos no Tempo podemos eliminar tais conhecimentos (tempo-espacial) que é uma conquista da consciência?
Como podemos afirmar que passado e futuro não existe se é neles que estamos inseridos totalmente? Não! Mil vezes não! Só podemos entrar no "Grande Presente" quando nos aliarmos ao "salvos", segundo Campbell e para isso temos que nos tornamos iogues, e mesmo assim teremos "necessidade" de retornar ao Tempo.
Com Eliade percebemos a função que isso representa, ou seja, só é possível ter passado, presente e futuro o que é humano, que está inserido num Tempo Profano. Ao contrário, o Grade Tempo Mítico não é mais que um Eterno Presente, mas um presente inconcebível ao homem que não se libertou da situação profana. Num livro intitulado Mito e Realidade, discorre perfeitamente sobre a importância do "tempo passado" e da "memória" para as tradições "primitivas" e indochinesas. Tanto aquelas quanto estas usaram técnicas que possibilitam "abolir" o tempo. Mas por que o homem quer abolir o tempo? Para não mais do que se "curar" ou "libertar", segundo ele. "Rememorizar" seria, então, o mesmo que "reviver" as coisas que se passou conosco ou com a "humanidade", diria Bergson.
Ainda nesse último livro citado, Eliade (1998: 82) diz que "o importante é rememorar mesmo os detalhes mais insignificantes da existência (atual ou anterior), pois é somente graças a essa recordação que se chega a "queimar" o passado, a dominá-lo, a impedir que ele intervenha no presente."
Não queremos dar a entender que estamos comparando tais teorias com as de Bergson, mas somente reter a importância dada por esses autores às concepções de passado, presente e futuro.
Não pretendemos também, substituir concepções "presentistas" por outras que apresentem passado e futuro em substituição, mas enfatizar que acreditar que vivemos num "eterno presente" e que categorias como passado e futuro não existem é simplesmente patético.
Viver nesse "eterno presente", ou num "presente largo", só seria possível se nos libertássemos do Tempo, ou melhor, se conseguíssemos realizar as técnicas indochinesas da destruição do nosso microcosmo temporal. E mesmo que isso seja possível terão que, mesmo contra a vontade, "regressar" no tempo místico, pois "chegando-se ao princípio do Tempos", comenta Eliade,atinge-se o Não-Tempo, o eterno presente que precedeu a experiência temporal, inaugurada pela primeira queda na existência humana. Em outros termos, a partir de um momento qualquer da existência temporal, pode-se chegar a exaurir essa duração ao percorrê-la em sentido contrário, e desembocar finalmente no Não-Tempo, na eternidade. Isso, porém, significa transcender a condição humana e recuperar o estado não-condicionado que precedeu a queda no Tempo e na roda das existências".
Se os Presentistas realizarem isto acima, renegaremos Passado e Futuro. Mas renegá-los não nos torna melhor ou pior, pois como diz Miranda (1994: 40),
"A divisão presente, passado e futuro é meramente didática, destinada a reduzir a termos compreensíveis uma realidade que, sob muitos aspectos, ainda nos escapa, mas que parece contínua e simultânea. O presente é apenas uma linha móvel que arbitrariamente imaginamos para separar em duas – passado e futuro – uma realidade indivisível e global".
Portanto, viver no Paraíso Bíblico, onde não existe passado e futuro, somente um "eterno presente", não é nada ruim, pena que não estamos vivendo nesse paraíso... menos ainda fora do Tempo.
BIBLIOGRAFIA
BERGSON, Henri. Matéria e memória. Martins Fontes, S. Paulo, 1990.
CAMPBELL, Joseph. As transformações do mito através do tempo. Cultrix, S. Paulo, 1990.
CASSIRER, ERNST. Ensaio sobre o Homem. Martins Fontes, São Paulo, 1997.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Perspectiva, S. Paulo, 1998.
GUÉNON, René. A grande tríade. Pensamento, S. Paulo, 1957.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1990.
MIRANDA, Hermínio C. A memória e o tempo. Lachâtre, Rio de Janeiro, 1994.
NOTAS
1) Historiador, Mestrando em Ciências Humanas, integrante do Centro de Estudos do Imaginário.
Labirinto -
Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário
Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário
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Fonte:
http://www.cei.unir.br/artigo12.html
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