MÍSTICA E NEGATIVIDADE: SOBRE
BERGSON E S. JOÃO DA CRUZ
BERGSON E S. JOÃO DA CRUZ
Trata-se de esboçar, a partir de algumas sugestões de J. Baruzi,
uma tentativa de investigação do estatuto do conteúdo aporético
e da negatividade na filosofia de Bergson a partir da análise da
experiência mística em João da Cruz e seus possíveis pontos de encontro
com a reflexão bergsoniana. Por outro lado, não pretendemos elaborar
uma análise comparativa exaustiva, nem mesmo ressaltar
paralelismos epistemológicos entre ambos os autores.
Jean Baruzi procurou estender as especulações bergsonianas sobre as
relações entre a mística e a metafísica, reelaborando-as na investigação
de um caso concreto: o de São João da Cruz. Sob a perspectiva do
"artista metafísico", que associa o olhar estético às exigências da
meta física, o místico espanhol será uma espécie de caso limite. Em
suas poesias associa o conteúdo estético, a glosa e a absorção da poesia
do século XVI espanhol à expressão de sua experiência mística. Nesse
contexto, João da Cruz elabora um itinerário da experiência mística, no
dizer de Baruzil, uma reflexão sobre suas condições de possibilidade.
Nessa experiência há um olhar de todo aspecto do mundo ou do espírito
que não cristaliza estaticamente o universo conceitual da criação
nem da especulação filosófica2.
Ambos estão em união na duração na
qual está mergulhado o pensamento e sua própria gênese, sendo impossível
objetivá-los em um determinismo que, em si, torna-se insuficiente.
Baruzi nota que a categoria da criação, em toda a sua
abrangência, elabora a conjunção entre arte, ciência e filosofia, porém
não de um modo hegeliano, enquanto expressões de um Absoluto
continuamente retomado em momentos históricos que permitem a
Allfhebllng e a demarcação dos planos da consciência na História.
Esta duração bergsoniana será conceituada juntamente com o conteúdo
aporético da filosofia que não permite a positividade dada como
pontuação no presente histórico3•
qual está mergulhado o pensamento e sua própria gênese, sendo impossível
objetivá-los em um determinismo que, em si, torna-se insuficiente.
Baruzi nota que a categoria da criação, em toda a sua
abrangência, elabora a conjunção entre arte, ciência e filosofia, porém
não de um modo hegeliano, enquanto expressões de um Absoluto
continuamente retomado em momentos históricos que permitem a
Allfhebllng e a demarcação dos planos da consciência na História.
Esta duração bergsoniana será conceituada juntamente com o conteúdo
aporético da filosofia que não permite a positividade dada como
pontuação no presente histórico3•
Na Introdução a Opensamento e o Movente, Bergson afirma: "A inteligência
retém apenas uma série de posições: um ponto primeiramente
atingido, depois outro. Objeta-se ao entendimento que entre
esses pontos se passa qualquer coisa? Ele intercala novas posições, e
assim indefinidamente. Ele desvia o olhar da transição. Se insistimos,
ele faz com que a mobilidade, apertada em intervalos cada vez menores
à medida que aumenta o número de posições consideradas, recue,
fuja, desapareça no infinitamente pequeno".
Deste modo, a inteligência
dirige-se sempre a imobilidades, a pontos fixos, escapando-lhe o
dinamismo da vida enquanto duração, ou seja, temos uma percepção
da mobilidade em sua essência, donde vemos que ela é confundida
com a duração, cuja continuidade é indivisível, de modo que a mobilidade
é o movimento de uma consciência cujo ser-para-si se aproxima cada vez mais de
seu ser-em-si. A duração é o movimento em que o próprio ser-em-si da consciência
se amplifica.
dirige-se sempre a imobilidades, a pontos fixos, escapando-lhe o
dinamismo da vida enquanto duração, ou seja, temos uma percepção
da mobilidade em sua essência, donde vemos que ela é confundida
com a duração, cuja continuidade é indivisível, de modo que a mobilidade
é o movimento de uma consciência cujo ser-para-si se aproxima cada vez mais de
seu ser-em-si. A duração é o movimento em que o próprio ser-em-si da consciência
se amplifica.
A necessidade do processo dialético está na distância que existe entre
a certeza e a verdade - e essa distância supõe a verdade como dada na condição de
pressuposto. É a identidade entre a consciência de si e a consciência do objeto que
é pensada de maneira diferente pelos dois fJ.1ósofos. Para Hegel, a totalização, que
culmina na identidade entre o Mesmo e o Outro, consciência de si e consciência do
objeto, é precedida pela própria totalidade: a verdade precede a certeza e o Ser
precede a consciência explícita. Para Bergson, é o próprio ser que se constitui
paralelamente à gênese da consciência. E é por isso que a consciência co-extensiva
à vida, que reinterioriza o próprio Ser em sua interioridade, é diversa do Logos que
ilumina o Ser no momento do Saber absoluto" (PRADOJÚNIOR [1989], 193).
a certeza e a verdade - e essa distância supõe a verdade como dada na condição de
pressuposto. É a identidade entre a consciência de si e a consciência do objeto que
é pensada de maneira diferente pelos dois fJ.1ósofos. Para Hegel, a totalização, que
culmina na identidade entre o Mesmo e o Outro, consciência de si e consciência do
objeto, é precedida pela própria totalidade: a verdade precede a certeza e o Ser
precede a consciência explícita. Para Bergson, é o próprio ser que se constitui
paralelamente à gênese da consciência. E é por isso que a consciência co-extensiva
à vida, que reinterioriza o próprio Ser em sua interioridade, é diversa do Logos que
ilumina o Ser no momento do Saber absoluto" (PRADOJÚNIOR [1989], 193).
Para Bento Prado, a constituição do real será formulada, em Bergson, no plano da
evolução criadora, que abre a dimensão essencial da duração no momento em que
o Ser é dado em sua totalidade não pela supressão do Desejo, mas pela abertura
constante da consciência na direção do devir. lidade é apreedida como unidade.
evolução criadora, que abre a dimensão essencial da duração no momento em que
o Ser é dado em sua totalidade não pela supressão do Desejo, mas pela abertura
constante da consciência na direção do devir. lidade é apreedida como unidade.
"Para se chegar", continua Bergson,
"a ver no movimento uma série de posições basta um passo; a duração
do movimento se decomporá então em 'momentos' correspondentes a
cada uma das posições. Mas os momentos do tempo e as posições do
móvel são apenas instantâneos tomados por nosso entendimento na
continuidade do tempo e da duração" 4. Nesse ponto, a confluência
com a apreensão mística do todo e do Uno, que se reverte sempre em
expressão inacabada, pode ser pensada, apesar do caráter de polêmica
epistemológica impresso nas palavras de Bergson. Além disso, o conteúdo
aporético da filosofia bergsoniana denota a inesgotabilidade da
apreensão do real, análoga àquilo que João da Cruz expressa em suas
obras, a partir do jogo entre positividade e negatividade, essencial da
experiência mística e do caráter apofático da teologias.
"a ver no movimento uma série de posições basta um passo; a duração
do movimento se decomporá então em 'momentos' correspondentes a
cada uma das posições. Mas os momentos do tempo e as posições do
móvel são apenas instantâneos tomados por nosso entendimento na
continuidade do tempo e da duração" 4. Nesse ponto, a confluência
com a apreensão mística do todo e do Uno, que se reverte sempre em
expressão inacabada, pode ser pensada, apesar do caráter de polêmica
epistemológica impresso nas palavras de Bergson. Além disso, o conteúdo
aporético da filosofia bergsoniana denota a inesgotabilidade da
apreensão do real, análoga àquilo que João da Cruz expressa em suas
obras, a partir do jogo entre positividade e negatividade, essencial da
experiência mística e do caráter apofático da teologias.
Desde a crítica ao psicologismo positivo dos D,saj, Bergson faz notar
a quebra existente entre o fato analisado no quadro da separação entre
natureza, duração e espaço e a união entre estas que um pensamento
que não padece de tal separação efetua. Baruzi observa que a testemunha
da vida mística, longe de se opor do exterior à natureza, mimetiza
seu furor e sua passividade, forjando o lugar onde o gênio se faz
natureza criadora6. Dessa perspectiva, o momento propriamente estético
transmuta-se em momento místico?, dada a polissemia de representações
exteriores, em si não matizadas pela consciência imanente
ou por qualquer categoria tomada como "transcendente".
João da Cruz reitera com insistência a necessidade de desapego das
imagens sensíveis, das representações, das categorias lógicas, das visões
e "iluminações" no itinerário místico.
A teologia mística sempre advertiu para o perigo que o apego à imagem ou à representação
oferece no direcionamento para Deus, tido como transcendência absoluta,
pala além de todas as "transcendências" representativas. Grande
parte da tradição da mística cristã estará ancorada na ênfase da
negatividade no direcionamento das apreensões da inteligência com
,A respeito da apreensão do Uno que poderíamos ver na ftlosofla de Bergson.
oferece no direcionamento para Deus, tido como transcendência absoluta,
pala além de todas as "transcendências" representativas. Grande
parte da tradição da mística cristã estará ancorada na ênfase da
negatividade no direcionamento das apreensões da inteligência com
,A respeito da apreensão do Uno que poderíamos ver na ftlosofla de Bergson.
Em Bergson, opção pela interioridade não diz respeito apenas à intuição da duração
interna, ou temporalidade da consciência, mas se estende à totalidade do real visto
a partir de sua essência, tendo portanto uma sign.ificação ontológica. Eis porque a
definição de intuição como conhecimento interno não se opõe a uma outra possibilidade
de conhecimento, que na Introdução à Mela!Jsica é descrito como 'ponto de
vi8ta', relativo e simbólico L. SILVA(1994), 302, grifo nosso; vide ainda sobre a presença de elementos românt.icos no pensament.o de Bergson).
Trataremos mais abaixo da relaçâo entre a lógica e a simbólica, permeadas pelarelação ao Absolutos. Isso conduz a uma outra espécie de inteligência e
de expressão. Estas transmutam a negatividade em positividade livre da
esquematização dogmática de determinados parâmetros do comportamento
moral e ascético-místico, Por outro lado, este tipo de expressão
fundamenta o que poderíamos chamar de uma poética do inexprimível,
que balança num pêndulo de sentido e da negação da sua determinação,
Nesse sentido, vale dizer que a vi'iio mY,'ifica, pela qual o universo é
como que revertido em unidade e transparência ao olhar do
contemplativo, não se enquadra em qualquer tipo de categorização.
O Absoluto não é pretensamente atingido
como uma congregação de todos os elementos do cosmo
e de todas as limitadas manifestações humanas,
mas há uma espécie de imanência e de jogo dialético
entre o olhar do contemplativo e a continuidade da experiência mística
com relação ao universo.
Conforme algumas direções centrais das teses de Bamzi, a fenomenologia
da experiência mística leva a uma criteriologia do conhecimento que,
sem cessar, busca um certo parâmetro que lhe permita afirmar que há
um itinerário a ser cumprido, Entretanto, indo um pouco além do que
diria Bamzi, que usa o conceito de lógica da mística", diríamos que a
necessidade de certificação da condu talOa ser tomada é dada por paradoxo.
(lU seja, é na necessidade mesma de libertar-se do criado, isto é,
do objeto e da sua objetivação, que são estabelecidas, no caso de João da Cruz, as instanciações negativas do nada e da noite como fundamento
necL'Ssário para o positivo. Bamzi nota que a experiência mística é sempre
transcendente ao fenômeno, qualquer que seja ele, e não há certeza
do divino, ainda que, quando envolto no numinoso, o indivíduo tome
determinadas formas de representaçãoll,
Com efeito, a duração bergsoniana é marcada pela constante virada de posição do sujeito
cognoscente com relação aos objetos no mundo dos fenômenos.
8 Quando Moisés sobe à montanha, comenta o Pseudo-Dionísio, não encontra a
Deus: "C .. ) Contempla não o illl'ú,/l'el, mas o lugar onde ele mora.
cognoscente com relação aos objetos no mundo dos fenômenos.
8 Quando Moisés sobe à montanha, comenta o Pseudo-Dionísio, não encontra a
Deus: "C .. ) Contempla não o illl'ú,/l'el, mas o lugar onde ele mora.
lsto significa creio eu, que as coisas mais santas sào apenas meios pelos quais
podemos conhecer a presl'nç'a daquele que tudo transcende. Por meio delas. entretanto,
se manifesta sua inimagimil'el presenÇ'a,ao andar sobre as alturas daqueles
santos lugares onde pelo menos a mente pode elevar-se. Então, quando libertado o
esplrito e despojado de tudo quanto vê e é lista, penetra (Moisés) nas misteriosas
trel'as do mio-saber. AJi, renunciando a tudo que a mente possa conceber, abismado
tot.a/lUenteno que nào percebe nem compreende, abandona-se por completo naquele
que está aM!l1de todo ser" (Teologia Mistica, 1, BAC, 1990, 373). 9 Cf BARUZI (] 985 l, GO.
10 A própria noção sanjuanista de b'ubida do Monte estabelece a idéia de itinerário,
desde o primeiro esboço desenhado até a poesia comentada. Porém, pelo próprio
fato de ser poesia cujo conteúdo é essencialmcnte paradoxal cstabelece a dialética,
por vezes insólita da condut.a e da experiência exprimida.
11 "Ün peut dirc, en eITet., que saint Jean de Ia Croix nous apporte les éléments
d'une {Titique de J'El:périelJ('emystique. gt cettc expérience, telle qu'il Ia dessinc,
implique une négation de tout ce qui apparaj(, Toute phénolIllfnalité est repoussé.
L'gxpéricncc mystique ne pcut êtrc expérience d'un objet, au sens réaliste du moI.
Daí a negatividade fundamental que a Introdução à Metafísica estabelece.
Diz Bergson: "Não existem coisas feitas, mas somente coisas que
se fazem, não estados que se mantém, mas tão somente estados que
mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo. A
consciência que temos de nossa própria pessoa, em seu contínuo escoamento,
nos introduz no interior de uma realidade segundo o modelo
da qual devemos nos representar as outras. Toda realidade é,. pois,
tendência, se conviermos em chamar tendência uma mudança de direção
em estado nascenté'12.
Obviamente, a longa citação não quer justificar um paralelismo epistemológico entre Bergson e João da Cruz, que por sua vez jamais preocupou-se com tais questões, porém, o que
se quer ressaltar é o caráter que a negatividade toma em ambos. Sem
dúvida, isto nos leva a um questionar sobre o papel do negativo na
reflexão filosófica de Bergson. Tomando a realidade como tendência,
temos a superação do universo predicativo tradicional no modus
philosophandi
se quer ressaltar é o caráter que a negatividade toma em ambos. Sem
dúvida, isto nos leva a um questionar sobre o papel do negativo na
reflexão filosófica de Bergson. Tomando a realidade como tendência,
temos a superação do universo predicativo tradicional no modus
philosophandi
Desde Kant, a antinomia tomou um caráter de crítica que estabelece
uma quebra com a clássica filosofia da consciência e funda a razão em
seus limites. Contudo, o questionar cético é superado em nome do
estabelecimento de um esquema representacional que se estagna no
próprio movimento da razão pura14.
Apesar de reconhecer a validade
de certas intuições kantianas, Bergson mostra como o filósofo permanece
preso à conceituação dualista no plano epistemológico, bem como
ao estabelecimento das formas a priori da sensibilidade na apreensão
do tempo e do espaço, nos quais são dados os objetos. Embora exista
em Kant uma quebra com o sistema inferencial na intuição das formas
e uma reelaboração da apercepção15 em termos desta intuição direta,
não há a dessubstanciação de certas categorias que, consideradas no
devir ficam orientadas à ratio proposicional unilateral.
13 Sem dúvida, na problemática da apreensão da reaJjdade e da elevação da vjda
como categoria básica da filosofia, Bergson não escapará de inúmeras críticas.
de certas intuições kantianas, Bergson mostra como o filósofo permanece
preso à conceituação dualista no plano epistemológico, bem como
ao estabelecimento das formas a priori da sensibilidade na apreensão
do tempo e do espaço, nos quais são dados os objetos. Embora exista
em Kant uma quebra com o sistema inferencial na intuição das formas
e uma reelaboração da apercepção15 em termos desta intuição direta,
não há a dessubstanciação de certas categorias que, consideradas no
devir ficam orientadas à ratio proposicional unilateral.
13 Sem dúvida, na problemática da apreensão da reaJjdade e da elevação da vjda
como categoria básica da filosofia, Bergson não escapará de inúmeras críticas.
Poderíamos objetar a estas que a vjda será compreendida como duraçâO e, já nos
Essaj, temos a constituição dos dados úlledjatos da consdênda, ou seja, por si
mesmos não podem ser dados como instanciações categórias, posto que são imediatos,
mutáveis. Entretanto, a substanciação da categoria da duração que é como
um constructo dado a priorj faz-nos voltar a atenção para o caráter problemático
da reflexão bergsoniana. A vida seria, neste sentido, a sua categoria básica. Isso
parece não acontecer com a mística, que é livre do universo conceitual, não fosse
o Aboluto ao qual se direciona o indivíduo em vias de transformação e que crê
atingir aquilo que Baruzi chamou de estado teofáUco .
Quando pensamos em termos de negatividade e de crítica ao método
filosófico tradicional, há uma dimensão dada ao Ser que supera o mero
ser pensado, e a consciência deixará, por conseqüência, de ser um foco
unívoco e intrínseco da verdade. Como observa Bento Prado, ela "deixa
de repousar sobre si mesma" 16. Em João da Cruz encontraríamos algo
próximo a este tipo de posição com relação à negatividade quando pensamos
no simbolismo da noite, central em toda sua obra. Para que possamos
discuti-Io brevemente, trataremos de descrever as linhas centrais
do itinerário espiritual esboçado pelo místico ibérico.
João da Cruz parte do comentário de suas próprias poesias para expressar
o conjunto de atitudes que o homem17 deve tomar diante do
mundo e de Deus, tendo em consciência sua destinação fundamental,
qual seja, a união com Deus, tanto quanto possível na vida terrena, o
que se caracteriza essencialmente como experiênda 18.
Para que haja tal união o homem deve desapegar-se do quanto lhe seja
impedimento e que se interponha entre sua verdadeira essência e
Deusl9. Daí a necessidade de purificação que é noite para a alma,
16 PRADOJÚNIOR(1989), 203. Porém, Bento faz notar que afirmar a experiência como
constitutiva, gerando uma volta ao real como critério, leva a pensarmos na questão
própria gênese da consciência, o que torna-se problemático.
1'7 O pressuposto do que poderíamos chamar de uma antropologia teológica é fundamental
na compreensão do místico. Quando pensamos no homem, pensamos no
criado e finito, perdido na dispersão do sensível, e sempre em busca da
transcendência, seja na modalidade em que se queira direcioná-Ia. Com efeito,
enquanto criatura que é imagem e semelhança do criador, o homem possui uma
gama infinita de potencialidades que o realizam e o plenificam na medida em que
ele se purifica do que é fragmentação, direcionando-se para o divino. Este transforma
a visão da criatura e a eleva em sua máxima perspectiva de realização e de
plenitude. cr a este respeito Antrop010gía de San Juan de 1a Cruz.
18 "Para haber de declarar e dar a entender esta noche oscura por Ia cual pasa el
alma para llegar a Ia divina luz de Ia unión perfecta deI amor de Dios, cual se
puede en esta vida, era menester otra mayor luz de ciencia y experiencia que Ia
mía; porque son tantas y tan profundas Ias tinieblas y trabajos, así espirituales
como temporales, por que ordinariamente suelen pasar Ias dichosas almas para
poder llegar a este alto estado de perfección, que ni basta ciencia humana para 10
saber entender, ni experiencia para 10 saber decir; porque sólo el que por ello pasa
sabrá sentir, mas no decir"posto que ela vê-se privada de sua luz. Na tradição aristotélico-tomista, o conhecimento é aquilo que passa pelos sentidos, portanto, mergulha
na noite aquele que deles se priva. Tal privação não é mero abandono
das operações sensitivas, mas desapego constante do desejo do criado,
que João da Cruz chama de apetÍte, que tais operações veiculam20.
Passado este momento de purificação sensitiva, no qual a vontade
entra como agente fundamental, e por isso esta é a noite ativa, um
novo passo será o da superação dos apetites internos que, nos moldes
dos sete pecados capitais21, cercam a alma daquele que tem ou pensa
ter vida espiritual. Ou seja, a gula espiritual será a vontade de gozar
de bens espirituais indeterminadamente, gozar dos bens por eles
mesmos, colocando-os no lugar de Deus. Assim ocorre em todos os
pecados, sendo que o importante é notar a inversão feita pelo indivíduo
entre amar o criador ou as criaturas, pois dois contrários não
podem subsistir num mesmo sujeito.
Ora, amando as criaturas não passará da finitude da qual ele próprio padece.
Contudo, neste nível, a pessoa já está numa relação mais refinada com
aquilo que se qualifica essencialmente como alteridade total, sendo não
mais o livre esforço da vontade22 de que depende a alma, mas da purificação que o
próprio Deus vai nela realizando, transformando-a em si. Assim como
a Trindade gera-se na comunhão amorosa e transcendente ao tempo e
espaço, ela gera na alma amante o mesmo movimento, que aparece
como uma espécie de transubstanciação, sendo que esta permanece
como si mesma, mas se transforma23 por participação em outro. Isto
caracterizará o itinerário da noite passiva.
próprio Deus vai nela realizando, transformando-a em si. Assim como
a Trindade gera-se na comunhão amorosa e transcendente ao tempo e
espaço, ela gera na alma amante o mesmo movimento, que aparece
como uma espécie de transubstanciação, sendo que esta permanece
como si mesma, mas se transforma23 por participação em outro. Isto
caracterizará o itinerário da noite passiva.
As virtudes teologais interagem com as potências da alma (memória,
inteligência e vontade), de modo que há uma interpenetração e correspondência
entre elas que gera na interioridade, entre o jogo de atividade
e passividade, um processo que direciona o ser para Deus e o
livra de si mesmo, de suas cisões radicais, transformando-o progressivamente
em uno ou unificado. Contudo, isto não o deixa estático no
seu procedimento, mas dinamiza a interioridade em seu direcionamento
contínuo à meta sempre transformada conforme as diversas fases ou
situações "existenciais" em que está inserido. Aqui a religião dinâmica24
bergsoniana pode ser citada como chave para compreensão deste
tipo de experiência mística.
U "Ébranlée dans ses profondeurs par le courant qui l'entrainera, l'âme cesse de
tourner sur elle-même, échappant un instant à Ia loi qui veut que l'espece et
l'individu se conditionnent l'un l'autre, circulairement" (BERGSON [1969], 243).
r/;ssal; que les autres livres n'avaient jamais rejoint, et que semblait
rebelIe à toute construction éthique ne peut être en effet ni construit,
ni obtenu par un devoir-être. Mais rien ici n' est construit, et rien
n'émane du devoir-être. L'âme ollverten'a-t-elIe pas quelque chose de
ce moi profond? A sa maniere, elIe se libere de I'espace, 10rsqu'elIe
échappe à toute société et à toute formule" 25.
Nesta construção incomum da forma da mística, interessa-nos a relação
entre a virtude teologal da fé e a noite. Em seu simbolismd6, a
noite interpenetra-se com a fé no esquema da purificação a pouco
citado. A vontade é purifica da pela carÍtas, a memória pela esperança
e a inteligência pela fé. Ora, a fé é verdadeira noite escura para a
alma27, pois sendo conhecimento daquilo que não se vê, transporta o
indivíduo para a renúncia a qualquer imagem, representação, sentimento
e visão de Deus que ele possa ter. Em pura treva, a corrente
abissal na qual a alma é transportada, reverte-se em aquisição contínua
do não predicado e, no entanto, sempre simbolizad028.
De tal modo, a noite revela-se um símbolo não estático, mas eminentemente
dinâmico. Este dinamismo supõe a existência de dois pólos de
referência, entre os quais se desenvolve o processo: Deus como meta
final e tudo aquilo que, na criatura humana, é concorde com ele como
ponto de partida. "La tensión dialéctica existente entre ambos extremos
implica que, cuanto menos se adhiera aI primero, tanto más se
obtendrá deI segundo; y viceversa: Ia reciprocidad es absoluta.
Consecuentemente, el método de San Juan de Ia Cruz consistirá en Ia
total y progresiva aniquilación deI primer polo, deI que se seguirá
inmediata y correlativamente el logro deI segundo" 29.
A mística dinâmica, que pressupõe o agir constante e o reelaborar da
experiência, é dada em termos de vivência e de apreensão simbólica
28 Este seria um outro tema de abordagem nas relações entre Bergson e João da
Cruz, que aqui mencionamos apenas de passagem, isto é, a questão da constituição
ele uma hermenêutica sanjuanista e ela pluralielade metafórica bergsoniana.
Neste sentido, o que Bergson entende por conteúdo
metafísico da mística estabelece um paralelismo entre o universo
categórico peculiar à filosofia e o universo das alegorias místicas.
Note-se que a exegese judaico-cristã vem, desde Fílon, apresentando o
horizonte de inesgotabilidade predicativa em cada alegoria, símbolo e
palavra da Escritura, o que em João da Cruz toma uma densidade
peculiar dada sua forma de expressão da experiência pela poesia. O
universo alegórico sofre uma sucessão de referências mútuas de acordo
com o conteúdo teológico que o místico quer expressar. Ao mesmo
tempo, permanece a tensão explícita com o negativo expresso na busca
dinâmica do Absoluto que se revela e se oculta.
metafísico da mística estabelece um paralelismo entre o universo
categórico peculiar à filosofia e o universo das alegorias místicas.
Note-se que a exegese judaico-cristã vem, desde Fílon, apresentando o
horizonte de inesgotabilidade predicativa em cada alegoria, símbolo e
palavra da Escritura, o que em João da Cruz toma uma densidade
peculiar dada sua forma de expressão da experiência pela poesia. O
universo alegórico sofre uma sucessão de referências mútuas de acordo
com o conteúdo teológico que o místico quer expressar. Ao mesmo
tempo, permanece a tensão explícita com o negativo expresso na busca
dinâmica do Absoluto que se revela e se oculta.
Podemos aqui observar a presença, central na filosofia bergsoniana,
de um retorno radical a uma intuição originária, que institui uma
gama de metáforas que formam o núcleo conceitual propriamente
filosófico. Este não é posto a partir de uma fonte reflexiva que não
opera um recorte do ser, mas a partir do próprio devir.
Aqui, a negatividade torna-se fundamental para a reflexão que reelabora
uma ontologia a partir deste núcleo intuitivo. A nojte31 bergsoniana
será a saída da filosofia da reflexão e o olhar em torno da experiência
mística como forma da expressão da realidade, embora
Bergson ainda permaneça preso a um certo "estatuto positivo" que
não lhe permitiu livrar-se totalmente do constTucto filosófico no
âmbito da polêmica com a psicologia do início do século. Mas o
horizonte aporético é uma constante que permanece aberta em sua
filosofia e que permite pensarmos o estatuto da negatividade a
partir da via inusitada da experiência mística. Aqui pontua-se o
que nos permitiu pensar o encontro, evidentemente não lógicoepistemológico,
entre Bergson e São João da Cruz.
uma ontologia a partir deste núcleo intuitivo. A nojte31 bergsoniana
será a saída da filosofia da reflexão e o olhar em torno da experiência
mística como forma da expressão da realidade, embora
Bergson ainda permaneça preso a um certo "estatuto positivo" que
não lhe permitiu livrar-se totalmente do constTucto filosófico no
âmbito da polêmica com a psicologia do início do século. Mas o
horizonte aporético é uma constante que permanece aberta em sua
filosofia e que permite pensarmos o estatuto da negatividade a
partir da via inusitada da experiência mística. Aqui pontua-se o
que nos permitiu pensar o encontro, evidentemente não lógicoepistemológico,
entre Bergson e São João da Cruz.
30 "O problema da simbolização como característica da apreensão inteligente do
mundo constitui a base necessária para pensar a relação entre método filosófico e
imagem. Sendo o pressuposto do conhecimento analítico a divisão calcada no espaço
e que possibilita decomposição e recomposição conceituais. a questão do mét.odo
filosófico como possibilidade do conheciment.o nào simbólico nos envia à procura de
procedimentos cogllitivos que tendam a eliminar a mediação do conceito e proporcionar
um conheciment.o direto" (F. LEOPOLDDOE SILVA, op. dt., 95).
31).
BERGSON, H. Les deux sources de Ia Moral et de Ia ReJjgion. Paris:
PUE 1969.
____ o O Pensamento e o Movente. ("Os Pensadores"), São Paulo:
Abril, 1974.
____ o Introdução à MetafÍsica. ("Os Pensadores"), São Paulo: Abril,
BARUZI, Jean. Saint jean de Ia Croá et le probleme de Ia expérience
mysfique. Paris: Aubier, 1932.
____ o L'intelIigence mystique. Paris: Berg, 1985.
S. JOÃO DA CRUZ. Subida deI Monte Carmelo. Madrid: Alianza,
1996.
____ o Noche OSCUlâ. Madrid: Alianza, 1996.
PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e campo transcendental (con.5dênda
e negatÍvidade na filo.5olia de Bergson). São Paulo: EDUSP, 1989.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson intuição e discurso filosófico.
São Paulo: Loyola, 1994.
SALVADOR, Frederico Ruiz. Introducdón a San juan de Ia Cruz.
Madrid: BAC, 1982.
DUQUE, M. J. Mancho. EI sim bolo de Ia noche en Sanjuan de Ia Cruz
(Estudio LéxÍco-Semantico).
BANO, José Servera. En tomo a San juan de Ia Cruz. Madrid: Júcar,
1986.
VV.AA. Antropologia de Sanjuan de Ia Cruz. Madrid: Monte Carmelo,
1987.
Endereço do Autor:
Avenida José Maurino, 230
18540-000 Porto Feliz - SP
Belo Horizonte, v 27
Bergsonismo musical: o tempo em Bergson e a noção de forma ...
www.teses.usp.br/teses/.../EDUARDO_SOCHA.pdf
Pablo Picasso
Li-30. 離 - Sol
Fonte:
www.faje.edu.br/periodicos/index.php/.../article/.../118.
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