segunda-feira, 13 de agosto de 2012

LIBERDADE E NECESSIDADE NA ONTOLOGIA DE ESPINOSA ao som da Sinfonia N.10 de GUSTAV MAHLER - 1:14:30


Eliahu Inbal, conductor
Royal Concertgebouw Orchestra
30 June 2011

00:00, 1st mov. 24:00, - 2nd mov. 36:15, 3rd mov.
41:12, 4th mov. - 52:31, 5th mov.
Liberdade e necessidade
na ontologia de Espinosa

Marilena de Souza Chauí*

 * Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo. 
Professora titular da Universidade de São Paulo. 
Tem experiência na área de Filosofia, 
com ênfase em História da Filosofia,

Resumo
Este ensaio distingue entre a construção escolástica da metafísica e a ontologia espinosana a partir da distinção entre o possível e o necessário
e da crítica de Espinosa à distinção entre a potência e o poder Deus.
Palavras-chave: Metafísica escolástica. Ontologia de Espinosa. Potência
de Deus. Poder de Deus.


1 A experiência vivida: a imagem necessária da contingência

A filosofia de Espinosa é uma ética da liberdade e da felicidade.

Por isso mesmo, o ponto de partida dessa filosofia é uma interrogação
sobre as causas da servidão e da infelicidade humanas. Essa interrogação
possui uma peculiaridade sublinhada muitas vezes pelo próprio
Espinosa: não nos cabe condenar, vituperar, lamentar ou desprezar os
homens por sua condição servil e infeliz, pois não nos cabe dizer que
eles nela se encontram por culpa própria ou por um vício inerente à
natureza humana. Ao contrário, cabe à filosofia indagar sobre as causas naturais e necessárias dessa condição e procurar o caminho pelo
qual os homens, por si mesmos, exercerão sua liberdade e serão felizes.
atuando principalmente nos seguintes temas: imanência, liberdade, necessidade, servidão, beatitude e paixão.


Em outras palavras, a filosofia espinosana recusa as imagens de pecado
original e de vício inerente à natureza humana. Ao fazê-lo, rejeita
e critica a noção de livre arbítrio ou de vontade livre: os homens são
servos e infelizes, mas não por uma escolha voluntária livre nem por
uma degeneração de sua natureza.

Para entender a servidão e a infelicidade humanas, é preciso
examinar as causas que produzem esses dois efeitos. A primeira e
principal causa deve ser encontrada na diferença estabelecida por Espinosa
entre a ordem necessária da Natureza e a ordem comum da
Natureza: na ordem necessária todos os seres e acontecimentos estão
articulados e interligados de maneira necessária e nossas ações estão
inseridas nessa ordem e são determinadas por ela. Em contrapartida,
a ordem comum da Natureza corresponde à nossa experiência imediata
das coisas e dos acontecimentos na qual tudo parece suceder
por encontros fortuitos, casuais e imprevisíveis. Assim, embora a realidade
seja constituída por uma ordem intrinsecamente necessária,
nossa experiência não a percebe como tal e se realiza numa ordem
imaginária em que prevalece a contingência de tudo o que é e de tudo
o que acontece. 

Ora, o que resulta necessariamente para nós e em nós
da vivência mergulhada no contingente? Os efeitos dessa experiência,
que é natural, constituem as causas da servidão e da infelicidade, quais
sejam: duas paixões naturais — o medo e a esperança –, uma ilusão natural
— a crença na liberdade da vontade –, e um preconceito natural
– a crença na finalidade das coisas e dos acontecimentos, de maneira
que o sentimento da contingência busca corrigir-se com a suposição
de que a ausência de necessidade causal das coisas e dos acontecimentos
possa ser racionalizada atribuindo-lhes fins. Em outras palavras,
num polo, situa-se a vontade livre como causa contingente de efeitos
contingentes e, noutro pólo, situa-se a correção imaginária da contingência
pela crença na racionalidade dos fins escolhidos pela vontade
ou pela crença numa necessidade por finalidade.

Examinemos brevemente esses efeitos da experiência vivida na
ordem comum da Natureza.

1.1 Medo e esperança
Se os homens pudessem ter o domínio de todas as circunstâncias
de suas vidas, diz Espinosa, não se sentiriam à mercê dos caprichos
da fortuna, isto é, do acaso ou da sorte, ou seja, não tomariam a
ordem comum dos encontros fortuitos entre as coisas como se fosse a
ordem da própria realidade. Como, todavia, não possuem esse conhecimento
e não possuem o domínio das circunstâncias de suas vidas,
são habitados naturalmente por duas paixões, o medo e a esperança.

Têm medo que males lhes aconteçam e que bens não lhes aconteçam,
assim como têm esperança de que bens lhes aconteçam e de que males
não lhes aconteçam. Como, além disso, como desejam coisas que não
lhes parecem depender de si mesmos, mas depender inteiramente da
fortuna ou do acaso, e como desejam ter a posse exclusiva dessas coisas
afastando delas todos os outros e, enfim, como reconhecem que
tais coisas são efêmeras, seu medo e sua esperança não acabam nunca,
pois assim como coisas boas lhes vieram sem que soubessem como
nem por que, também podem desaparecer sem que saibam as razões
desse desaparecimento; e assim como coisas más lhes vieram sem que
soubessem como nem por que, também podem desaparecer sem que
saibam os motivos de sua desaparição.

 Para tentar compreender a origem da contingência dos bens e dos males imaginam, então, que coisas boas e coisas más lhes acontecem por vontade de entes superiores e poderosos nos quais passam a crer e a adorar e aos quais passam a dirigir pedidos, súplicas e preces. Por medo e esperança, nascidos da impotência para dominar as circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos e alimentam a superstição por meio da religião como crença em seres transcendentes ao mundo, que o governam
segundo decretos humanamente incompreensíveis.

1.2 Ilusão da vontade livre
Os homens, escreve Espinosa, são conscientes de seus apetites e
de seus desejos, mas ignoram as causas do apetecer e do desejar. Essa
ignorância os leva a forjar uma causa imaginária para seus apetites e
desejos: a vontade. Por outro lado, como observam que muitas vezes
podem contrariar um apetite ou um desejo, imaginam que a vontade
é esse poder que domina os impulsos e, por lhes parecer assim poderosa,
imaginam que a vontade seja livre, isto é, que pode querer ou
deixar de querer as coisas por um poder de escolha que lhe é próprio.

Julgam por isso que podemos distinguir as nossas ações em dois tipos:
aquelas que se curvam ao apetite e ao desejo e aquelas que são guiadas
pelo livre poder da vontade. Chamam as primeiras de vício e as segundas
de virtude; atribuem o vício à fraqueza da vontade, enquanto
a virtude é atribuída à força da vontade. Em ambos os casos, porém,
atribuem à vontade o poder tanto para o vício como para a virtude
e, dessa maneira, não se dão conta de que atribuem a uma mesma
e única causa tanto a servidão e a infelicidade como a liberdade e a
felicidade. 

Além disso, em decorrência da superstição, são levados a
imaginar os entes superiores e poderosos como dotados de vontade
livre incomensurável à humana porque onipotente. Essas vontades
sobrehumanas tanto podem ser imaginadas como forças caprichosas
– como é o caso de Tykhé e de Fortuna, entre gregos e romanos –,
quanto como forças racionais ou calculadoras que distribuem males
e bens sob a forma de recompensas e castigos para as ações humanas,
pois, por serem dotados de livre vontade, os humanos são responsáveis
por suas ações e merecem retribuição por suas faltas e virtudes.

Dessa maneira, a imagem da fortuna como poder contingente
e caprichoso é deslocada para a imagem de um deus onipotente cuja
providência distribui bens e males segundo o merecimento de cada
homem e toda vez que alguém parece não merecer a recompensa nem
o castigo recebidos, imagina-se que tal aconteça em decorrência de
desígnios e finalidades divinos, desconhecidos pelos humanos.

1.3 Preconceito finalista
Ao atribuir os acontecimentos do mundo à vontade divina e os
acontecimentos humanos à vontade humana, os homens imaginam
que é superior e melhor aquilo que é feito por vontade e é inferior
e pior aquilo que acontece segundo uma necessidade natural implacável.

Com isso, são levados a distinguir entre o que é por vontade
e o que é por necessidade, isto é, o que acontece por escolha e o que
acontece sem escolha. Ora, o que acontece por vontade ou por escolha
aparece sempre como algo que, embora contingente, é feito em vista
de um fim, enquanto tudo o que é feito sem escolha ou por necessidade
aparece como desprovido de fim. Com isso, os homens imaginam
uma nova distinção, qual seja, entre finalidade e necessidade. A ação
voluntária livre é dita uma ação por finalidade enquanto a ação necessária
é dita coagida e sem finalidade.

Olhando a Natureza, os humanos se sentem parte dela e diferentes
dela, pois, embora percebam que nela tudo parece acontecer
por necessidade ou segundo leis naturais necessárias, todavia julgam
que, nos humanos, algumas coisas acontecem por necessidade e outras
por escolha da vontade e, portanto, por liberdade e por finalidade.

Essa diferença imaginária conduz a uma consequência de enorme
importância. De fato, se a divindade é onipotente é porque é dotada
de vontade todo-poderosa e livre e, portanto, a divindade age por
liberdade e por finalidade e não por necessidade. Aliás, como na experiência
cotidiana tudo o que segue leis necessárias lhes aparece como
uma imposição que limita suas vontades, os humanos imaginam que
se a divindade agir segundo a necessidade estará sendo limitada em
seu poder e por isso julgam que a excelência e grandeza da divindade
exigem que ela sempre aja por escolha voluntária e por finalidade,
jamais por necessidade.

 Como os humanos não reconhecem nessa
imagem da divindade uma construção que eles mesmos fabricaram,
tendem a considerar, em primeiro lugar, que os fins da vontade divina
são incompreensíveis para os homens — com isso alimentam o medo
e a esperança supersticiosos — e, em segundo, tendem a imaginar que
tudo o que é e tudo o que acontece poderia ser diferente, se a vontade
divina assim o quisesse. 

Com isso, introduzem na ação divina aquilo
mesmo que deu origem à superstição, isto é, o sentimento de que tudo
o que é e tudo o que acontece é contingente. Dessa maneira, projetando
na Natureza e em Deus a imagem que tem si mesmos e projetando
na Natureza e em Deus a imagem da finalidade, os homens chegam
exatamente ao ponto de onde partiram, qual seja, à experiência da
contingência universal. Acreditam, então, que o mundo foi criado por
um ato contingente da vontade divina e que a ordem natural pode ser
mudada por outros atos contingentes da vontade divina.

Medo e esperança, vontade livre e finalismo introduzem na experiência
cotidiana as distinções entre necessário, possível e contingente,
de um lado, e entre por natureza e por vontade, de outro. É necessário
o que não pode ser diferente do que é; é possível o que pode
acontecer de outra maneira; é contingente o que pode ser de outra
maneira. É necessário o que é por natureza: é possível e contingente
o que é por vontade. Por ser a ação que se realiza sobre o possível e
sobre o contingente é que a vontade é dita livre, de sorte a liberdade se
torna o poder voluntário para agir sobre aquilo que é possível ou contingente.

Donde a oposição imaginária que se estabelece entre o que
é necessário, ou o que não está em nosso poder, e o que é livre, ou o
que está em nosso poder. É essa oposição que levará, ao fim e ao cabo,
à idéia de que o homem é culpado pela servidão e pela infelicidade e
que sua libertação e felicidade não dependem apenas dele mesmo, mas
também da vontade divina de libertá-lo e dar-lhe felicidade.

Assentando-se sobre a experiência imediata e suas distinções, a
filosofia as prossegue e elabora uma teoria da causalidade com que
visa separar liberdade e necessidade. Na tradição filosófica, diz-se que
é por natureza o que acontece por necessidade e, ao contrário, que é
por vontade o que acontece por liberdade. Identificando o natural e
o necessário, de um lado, e o voluntário e o livre, de outro, a tradição
afirma que Deus, sendo onipotente e onisciente, não pode agir
por necessidade, mas somente por liberdade e, portanto, somente
por vontade. Dessa maneira, a causalidade é pensada segundo uma
bifurcação em que a causalidade eficiente responde pelo necessário
enquanto a causalidade final responde pelo voluntário ou pelo livre.

A necessidade natural é explicada como operação da causa eficiente,
enquanto a liberdade divina e humana é explicada como operação
da causa final. Por isso mesmo a ação voluntária é tida como ação
inteligente enquanto a operação natural ou necessária é tida como
automatismo cego e bruto.

A filosofia de Espinosa é a desconstrução do imaginário da
superstição, da vontade livre e da finalidade. Por isso mesmo é uma
filosofia da desconstrução do imaginário da contingência e a elaboração
de uma ontologia do necessário. O pilar dessa ontologia é, justamente,
o ser e a ideia de Deus como ser absolutamente infinito que é
causa de si e causa eficiente imanente e necessária de todas as coisas,
as quais são modos ou expressões determinadas da essência e potência
necessárias de Deus.

1.4 Imaginar e inteligir
Para entendermos como e por que a filosofia de Espinosa pode
realizar a desconstrução da metafísica e da teologia da contingência
e desenvolver uma ontologia do necessário precisamos, antes de mais
nada, examinar, de maneira muito breve, como essa filosofia considera
o conhecimento. Para isso, partiremos da distinção fundamental
que Espinosa estabelece entre imaginar e inteligir e da definição da
mente humana como ideia de seu corpo e idéia de si mesma.

Corpo e mente não são substâncias e sim modos ou expressões
finitas determinadas de dois atributos da substância única absolutamente
infinita que é Deus (este é constituídos por infinitos atributos
infinitos em seu gênero, dos quais conhecemos dois, a extensão – de
que os corpos são expressões finitas – e o pensamento – de que as mentes
ou idéias são expressões finitas). Por serem modificações finitas de
uma única substância absolutamente infinita, não há relação causal
entre corpo e mente, e sim simultaneidade dos acontecimentos corporais
e psíquicos. Ou, como demonstra Espinosa, a ordem e conexão
das afecções no corpo é a mesma que a ordem e conexão das idéias
e dos afetos na mente. Esta é por isso definida como consciência das
afecções corporais e como consciência de si mesma como consciência
da vida corporal.

 Em outras palavras, o que no corpo é uma afecção,
na mente é uma ideia dessa afecção e pode tornar-se uma idéia dessa
idéia, isto é, uma reflexão.

Imaginar é conhecer as imagens das coisas e,
 por meio delas, conhecer uma imagem de nós mesmos.

 A imagem é um efeito da ação
de causas externas sobre nosso corpo: coisas luminosas produzem em
nós imagens visuais, coisas sonoras, imagens auditivas, a textura das
coisas nos oferece imagens tácteis, sabor e cheiro são imagens de coisas
em nosso paladar e nosso olfato. Assim, a imagem não nos oferece
a própria coisa tal como é em si mesma e sim a maneira como ela nos
afeta ou o efeito que ela produz em nós; e nossas imagens das coisas
variam com o estado geral de nosso corpo bem como segundo as partes
de nosso corpo afetadas pelas coisas exteriores, de tal maneira que,
afetando diferentes partes de nosso corpo, uma mesma coisa pode
produzir imagens diferentes e, ao contrário, coisas diferentes, afetando
as mesmas partes de nosso corpo, podem produzir uma mesma
imagem. Na mente, as imagens das coisas e a imagem de nosso corpo
são ideias imaginativas. 

Por isso, demonstra Espinosa, na imaginação
não conhecemos as coisas exteriores tais como são e sim tais como
afetam nosso corpo e não conhecemos nosso corpo tal como é em si
mesmo e sim tal como o sentimos afetado pelas coisas exteriores.
No corpo, a relação com a coisa exterior é sempre direta e imediata,
mas as imagens exteriores e interiores vão sendo gravadas em
nosso corpo e acumuladas por ele e a mente opera associando essas
imagens. 

Assim, na mente, a imaginação
 (ou o conhecimento por imagens, isto é, a percepção), 
operando com os efeitos das coisas sobre nós 
e de nós sobre elas, associa e generaliza as imagens 
formando outras, novas, que são efeitos de efeitos.
 A cada nova associação e generalização mental, aumenta a distância entre a experiência corporal e sua idéia, aumentando a distância entre a coisa externa e a imagem, pois a imaginação tende a operar com as próprias imagens como
substitutos das coisas. Ora, se a imagem corporal já não nos oferecia
a própria realidade da qual era imagem, mas nos dava um estado de
nosso corpo, as associações de imagens são ainda mais incapazes de
apresentar a própria realidade, isto é, as ideias imaginativas são incapazes
de apreender a realidade do nosso corpo e a do mundo exterior.

Esse distanciamento entre a experiência corporal e o mundo, de um
lado, e, de outro, as operações mentais imaginativas com imagens
das imagens constitui um campo cognitivo e prático que forma o
imaginário como efeito necessário da própria imaginação, cuja marca
é o desconhecimento das causas que a produziram, levando-a a forjar
causas imaginárias para as próprias imagens.
Eis por que as ideias imaginativas são definidas por Espinosa
como ideias inadequadas, pois:

 1) desconhecem sua própria causa;

 2) desconhecem as causas das coisas imaginadas (nosso corpo e as coisas
exteriores); 

3) distanciam-se da experiência corporal e se tornam generalizações cada vez mais abstratas;

 4) são um conhecimento parcial, mutilado e confuso do corpo, da mente e das coisas; 

5) tendem a oferecer
explicações da experiência e da realidade invertendo a ordem causal real
numa ordem imaginária na qual os efeitos são tomados como causas
e estas como efeitos; 

e 6) por desconhecerem as causas produtoras dos
efeitos e inverterem a ordem causal real, propõem uma causalidade imaginária, isto é, a explicação por meio de causas finais. A ideia inadequada
ou imaginativa é uma opinião na qual depositamos nossa confiança
enquanto nenhuma outra imagem a puser em dúvida.

O intelecto, ao contrário, conhece por meio de ideias verdadeiras
ou o que Espinosa designa de ideias adequadas: trata-se do conhecimento
de alguma coisa pelo conhecimento das causas eficientes
necessárias que a fazem ser o que ela é e tal como ela é. Uma ideia
verdadeira é adequada não porque haja correspondência entre ela e a
coisa conhecida (a antiga noção de adequação entre intelecto e coisa),
mas por que é o conhecimento de sua gênese necessária e da gênese
necessária de seu ideado. É por ser verdadeira que a ideia adequada
corresponde ao seu ideado e não contrário (isto é, não é a correspondência
ao ideado que a faz verdadeira).

Em suma, a intelecção
conhece a gênese necessária de uma coisa e de uma ideia, conhecendo
a maneira como são necessariamente produzidas e os efeitos que necessariamente decorrem delas. Por isso mesmo, o intelecto não opera
com generalizações abstratas, mas conhece, diz Espinosa, “a essência
íntima da coisa” e, por conseguinte, não opera com abstrações ou universais,
mas conhece essências singulares e as relações necessárias que
cada uma delas mantém com outras de que depende e com aquelas
que dependem dela.

Espinosa distingue no intelecto duas maneiras de conhecer: a
razão e a intuição intelectual. 

A razão conhece adequadamente as noções
comuns, isto é, as leis necessárias ou as relações necessárias entre
um todo e suas partes, bem como as relações necessárias entre as partes
de um mesmo todo; ou seja, a razão conhece propriedades gerais,
leis e relações entre seres e entre acontecimentos. A intuição intelectual
alcança as ideias adequadas, isto é, as ideias das coisas enquanto
essências singulares, conhecendo sua natureza íntima por conhecer
suas causas e seus efeitos necessários, assim como suas relações internas
necessárias com outras e com a realidade inteira. Ao contrário da
opinião, a ideia adequada é uma certeza intelectual que nos faz saber
que sabemos.

Nas ideias inadequadas ou imaginativas, somos passivos: as
imagens se formam em nós em decorrência da ação das coisas exteriores
sobre nós. Nossa atividade se reduz a associar imagens que nos
parecem semelhantes e a separar as que nos parecem diferentes, para
com elas formarmos ideias imaginativas gerais ou universais sobre a
realidade e sobre nós próprios. 

As ideias imaginativas ou inadequadas
não são falsas em si mesmas,
 pois correspondem ao modo como realmente
as coisas exteriores nos afetam: são parciais e confusas
 porque se formam em nós sem que conheçamos 
as causas verdadeiras que as produziram. 

Assim, o erro é simplesmente ignorância. 
E o falso, ausência do verdadeiro.

 É falso que o sol seja menor do que a terra,
 mas é verdade que é dessa maneira que o percebemos, 
isto é, que o temos em imagem.

Quando o astrônomo ensinar-me a verdadeira dimensão
do sol e da terra, não deixarei de continuar percebendo imagens que
dizem o contrário, mas, agora, saberei que são simplesmente imagens,
nada me dizendo sobre a natureza verdadeira do sol e da terra, mas
me dizendo muito sobre a natureza real de meu corpo e da visão. A
imagem exprime a maneira como nosso corpo é afetado pelas coisas
externas e a maneira como as afeta. Como tal, a imagem é sempre
verdadeira. Só será falsa quando a tomarmos por uma ideia de nosso
intelecto, pois este não conhece segundo as afecções corporais, mas
segundo sua força interna para pensar. Em outras palavras, a imagem
é verdadeira enquanto imagem e enquanto idéia imaginativa que exprime afecções corporais, mas é falsa enquanto pretensão ao conhecimento
da essência das coisas e de nosso corpo.

Nas ideias adequadas ou intelectuais, somos plenamente ativos:
nosso intelecto, por uma força que lhe é própria, opera espontaneamente
a partir de si mesmo e conhece por si mesmo as causas e efeitos
das ideias, a gênese necessária delas, os nexos que formam com outras
em conexões e ordens internas e necessárias. Na razão, as ideias adequadas
nos oferecem sistemas de relações (as propriedades universais
e as leis universais que ordenam e articulam a realidade); na intuição
intelectual, as ideias adequadas são o conhecimento de essências singulares
de coisas singulares, conhecimento de sua gênese necessária
e de suas relações necessárias com outras e com a ordem inteira da
realidade. Agora, conhecemos a essência de nosso corpo, a da nossa
mente e as das coisas exteriores, assim como conhecemos a ordem e
conexão concretas e necessárias em nosso corpo e em nossa mente, e
entre nossa essência singular e todas as outras.

Quando digo, por exemplo, que um círculo é uma figura na qual
todos os pontos são equidistantes do centro, minha afirmação oferece
apenas a imagem do círculo, isto é, tal como o vejo ao perceber,
em minha experiência cotidiana, a existência de objetos circulares. Se,
porém, eu disser que um círculo é a figura geométrica produzida pelo
movimento de um semi-eixo ao redor de um centro fixo, terei a ideia
do círculo, pois, agora, conheço a causa geradora dessa figura que a faz
ser necessariamente o que ela é e como ela é. Não o percebo apenas,
mas o concebo intelectualmente tal como é em sua essência verdadeira.

Ao conhecê-lo desta maneira, poderei conhecer (deduzir) todas as
propriedades que lhe pertencem necessariamente, todos os efeitos que
necessariamente decorrem de sua essência e todas as relações necessárias
que mantém com as essências dos demais entes matemáticos.

Por que o intelecto é capaz desse conhecimento? Porque nossa
mente é um efeito finito determinado ou um modo finito determinado
de um atributo de Deus, o pensamento. O atributo pensamento é
uma potência absolutamente infinita de auto-produção e de produção
imanente de efeitos necessários: é uma causa eficiente imanente que
produz o intelecto infinito como ordem universal ou lógica universal
de conexões necessárias entre ideias, e que também produz intelectos
finitos que o exprimem de maneira certa e determinada. Como mens,
somos partes finitas de um intelecto infinito e expressões finitas de
um atributo pensante absolutamente infinito, ou seja, somos potências
pensantes ou causas eficientes de nossas ideias. Por isso mesmo
somos uma força interna espontânea de conhecimento das causas e essências
de todas coisas. 

Quando liberado das imagens, nosso intelecto
é capaz de conhecimento verdadeiro porque, por sua própria essência,
é uma força inata de pensamento ou potência pensante. E nada demonstra
melhor a existência e as qualidades dessa potência pensante
do que a existência da matemática, que depende exclusivamente de
nossa potência para pensar e que conhece plenamente seus objetos
porque os constrói intelectualmente de acordo com as causas internas
necessárias que os definem tais como são.

Ao escrever a Ética em ordem geométrica, Espinosa visa mostrar
que a potência intelectual humana é capaz de passar da imagem de Deus
(nascida do medo e da esperança e construída com os materiais da superstição) ao conhecimento da ideia adequada de Deus, isto é, ao conhecimento intelectual da essência, existência e potência necessárias do ser
absolutamente infinito. Como o filósofo escreveu em uma de suas cartas,
cremos numa imagem de Deus, mas conhecemos a ideia de Deus.

2 Da imagem à idéia de Deus: a ontologia do necessário

2.1 A imagem de Deus
A tradição teológica e metafísica ergueu-se sobre uma imagem
de Deus, forjando teorias a partir das ideias inadequadas ou imaginativas.

Com elas, forjou a divindade como pessoa (isto é, dotada
de vontade onipotente e intelecto onisciente), transcendente (isto é,
separada do mundo), eterna (imaginando a eternidade como um tempo
sem começo e sem fim), criadora de todas as coisas a partir do
nada (confundindo a potência de Deus e a operação dos artífices e
artesãos), legisladora e monarca do universo (tomando a necessidade
natural como se fosse decretos da vontade divina) e que pode, à maneira
de um príncipe que governa segundo seu bel-prazer, suspender
as leis naturais por atos extraordinários de sua vontade (os milagres),
juiz do homens, que os pune ou os recompensa porque os criou à sua
imagem e semelhança, portanto, dotados de livre-arbítrio, e destinatários
preferenciais de toda a obra da criação.

Essa imagem antropomórfica e antropocêntrica (mesmo quando
extremamente elaborada e sofisticada pelas teologias) faz de Deus
um super-homem que cria e governa todos os seres de acordo com os
desígnios ocultos de sua vontade a qual opera segundo fins inalcançáveis
por nosso entendimento. Incompreensível, Deus se apresenta
com qualidades humanas superlativas, isto é, perfeitissimo ou perfeitamente
bom, justo e misericordioso, mas também colérico, amoroso,
vingador. Ininteligível, oferece-se por meio de imagens da Natureza
imaginada como artefato divino ou criatura harmoniosa, bela, boa,
destinada a suprir todas as necessidades e carências humanas.

Identificando liberdade e escolha voluntária, de um lado, e, de
outro, imaginando os objetos da escolha como contingentes, a tradição
teológico-metafísica afirma que o mundo existe porque Deus assim o
quis ou porque sua vontade assim decidiu e escolheu, e poderia não
existir ou ser diferente do que é, se Deus assim houvesse escolhido.

Se o mundo é contingente, porque fruto de uma decisão contingente
de Deus, então as leis da Natureza e as verdades (como as da
matemática) são, em si mesmas, contingentes, só se tornando necessárias
por um decreto de Deus, que as conserva imutáveis. Assim, a
necessidade identifica-se com o ato divino de decretar leis, ou seja, a
necessidade nada mais é senão a autoridade de Deus que decide contingentemente que, enquanto assim o desejar, 2 e 2 serão 4, a soma
dos ângulos internos de um triângulo será igual a dois ângulos retos,
os corpos pesados cairão, os astros girarão elipticamente nos céus,
etc. Por sua Providência, Deus pode fazer com que tais coisas sejam
sempre da mesma maneira — necessárias para nós, mas contingentes
em si mesmas –, como também pode manifestar a onipotência de sua
liberdade fazendo-as sofrer alterações, como no caso dos milagres.

Compreende-se, então, porque tradicionalmente liberdade e
necessidade foram consideradas opostas e contrárias, pois a primeira
é imaginada como escolha contingente de alternativas também
contingentes e a segunda, como decreto de uma autoridade absoluta.

Donde o mito do pecado original, quando o primeiro homem
teria usado a liberdade (o poder de escolha) para desobedecer aos
mandamentos ou leis de Deus. Com esse mito, ergue-se a imagem
da liberdade humana como um poder para escolher o mal, porta
aberta para nossa perdição. A um Deus monarca absoluto por força
de sua liberdade, corresponde um homem decaído e desobediente
por culpa de sua liberdade.

Não por acaso teólogos e metafísicos viram-se enredados em
dificuldades insolúveis: se Deus é onisciente, então sabe eternamente
que o homem pecará e não é possível compreender que o puna
por aquilo que, de antemão, sabe que ele fará (estamos diante das
infindáveis disputas sobre os futuros contingentes). 

Se Deus é onipotente
e infinitamente bom, e o criador único de todas as essências
e existências, como explicar a existência do mal, isto é, como uma
causa infinitamente boa pode dar origem à sua negação? Se Deus possui
infinita liberdade para escolher o melhor, porque, entre todos os
mundos possíveis, escolheu este? Se Deus não cessa de intervir sobre o
mundo (como atestam os milagres), porque deixa que os bons sofram
e os maus sejam felizes? Se Deus é plenitude infinita, que necessidade
teria de criar um mundo finito e imperfeito? Se Deus é puro espírito
e se uma causa só pode produzir um efeito de mesma natureza que
ela, como explicar a origem da matéria? Se conhecer coisas materiais
é ter sensação, se ter sensação é ter um corpo, então Deus não pode
conhecer coisas materiais; mas como afirmar que há limites para o
conhecimento divino? 

Se Deus, como puro espirito, só pode conhecer
essências imateriais, então só conhece universais e, neste caso, não
nos conhece enquanto individualidades e singularidades, mas como
conciliar esse intelecto puro e o Deus da religião, legislador e juiz de
nosso atos? A tradição acostumou-se a considerar que quanto mais
contraditória e mais incompreensível a imagem de Deus, mais prova
Liberdade e necessidade na ontologia de Espinosa se teria da majestade divina; acostumou-se também a dar uma única resposta a todas aquelas perguntas: “tal é a vontade de Deus”. Resposta que, escreve Espinosa, faz de Deus o asilo de toda nossa ignorância, depois de havê-lo transformado num abismo de irracionalidade.

A imagem de Deus, demonstra Espinosa, não é senão a projeção
antropomórfica e antropocêntrica de uma imagem do homem, confundindo
propriedades humanas imaginárias com a essência divina.

Porque os homens se imaginam dotados de vontade livre ou livre-arbítrio
(imaginando que ser livre é poder escolher entre coisas ou situações
contrárias e agir segundo fins escolhidos pela vontade), porque
imaginam que o verdadeiro poder é aquele que se separa dos que a ele
estão submetidos, dominando-os do alto e de fora, porque imaginam
a Natureza agindo segundo fins e para servi-los, os homens imaginam
Deus como arquiteto que constrói o mundo e como príncipe que o
governa. Se, portanto, quisermos alcançar o conhecimento verdadeiro
da essência e da potência divinas, precisamos ultrapassar esse imaginário
e chegar à ideia adequada de Deus. Será preciso demonstrar que
Deus não é um intelecto nem uma vontade, que não age por finalidade
e que nele liberdade e necessidade são um só e o mesmo.

2.2 A ideia de Deus: a ontologia do necessário
A ontologia do necessário parte de dois conceitos muito precisos:
o de substância e o da causa. Substância é o ser que existe em si
e por si mesmo, que pode ser concebido em si e por si mesmo e sem
o qual nada existe nem pode ser concebido. A inovação espinosana
consiste em dois pontos: em primeiro lugar, a substância não é a categoria
aristotélica da oúsia, um suporte ou um sujeito de acidentes
ou de predicados, mas a existência necessária de uma essência necessária;
em segundo, consequentemente, contra a tradição aristotélica e
cartesiana, para Espinosa a substância não é concebida por meio dos
acidentes ou dos predicados e sim por si mesma. Pela primeira vez, na
história da filosofia, a substância deixa de ser o fundo incognoscível
ao qual acedemos por via da predicação.

Essa transformação sem precedentes, pois rompe com a tradição
da lógica e da ontologia predicativas platônico-aristotélica, decorre
do novo sentido dado ao conceito de causa. Rompendo não só
com a teoria tradicional das quatro causas e com o enorme sistema
escolástico de distinções que especificava essas causas, para Espinosa
toda causa é eficiente e apenas eficiente. Isso significa que, excluindo
a causa final, por ser imaginária, Espinosa absorve na causa eficiente
as causas formal e material. Ou seja, uma causa responde simultaneamente
pela necessidade da essência, da existência e da ação ou
operação de alguma coisa.

Ora, na medida em que uma substância é o que é em si e é concebido
por si, toda substância é causa de si mesma (causa de sua essência,
de sua existência, de sua potência e da inteligibilidade delas). Em
outras palavras, uma substância é autoposição absoluta do ser. Isto
significa que uma substância não pode ser criada, pois se o for, deixa
de ser substância. Donde as definições espinosanas da substância e da
causa de si1 instituírem como o primeiro axioma da Ética que: 

“tudo o que é, ou é em si ou é em outro”.

 Ser em outro é ser um modo2 desse outro ou uma afecção desse outro ou uma expressão determinada desse outro. Ora, se a substância é em si é porque ela é causa de si e, portanto, um modo, sendo em outro, não pode ser causa de si e não pode ser substância. Ou seja, assim como uma substância não pode ser criada, um modo não pode ser em si nem ser concebido por si,
mas deve ser causado por outro. Donde a demonstração de que um
modo é um efeito determinado produzido pela substância, ou seja,
um efeito determinado da substância.

Sendo autoposição absoluta no ser, uma substância é absolutamente
infinita e eterna, pois Espinosa define o infinito como identidade da essência e da existência e define o eterno como aquilo cuja existência segue necessariamente apenas da própria essência da coisa eterna. Infinita e eterna, uma substância não pode, portanto, ser produzida por outra, pois esta outra ou a limitaria e ela deixaria de ser infinita e eterna e, portanto, deixaria de ser substância, ou essa outra seria de mesma natureza que ela e não haveria como nem porque falar em duas substâncias de mesma natureza, já teriam a mesma essência e a mesma existência. Causa de si, infinita e eterna, a substância só pode ser única. Há, pois, uma única substância no universo e essa substância é Deus.3 

Tudo o mais são modos de Deus 
ou expressões determinadas da essência, 
existência e potência de Deus.
 1 Essas definições encontram-se na abertura da Ética, na Parte I. A primeira definição da obra é a da causa de si, ou a causa sui:

 “Por causa de si
 entendo isso cuja essência envolve existência,
 ou seja, isso cuja natureza não pode ser
 concebida senão existente”
 (E I, def.1). 
A definição da substância é a terceira das definições:

 “Por substância
 entendo isso que é em si
e é concebido por si” (E I, def.3).

2 A quinta definição da Parte I da Ética enuncia:

“Por modo entendo as afecções da substância,
 isto é, o que é em outra coisa
pela qual também é concebido”
 (E I,def.5)

 
Causa de si inteligível em si e por si mesma, a essência da substância
absolutamente infinita é constituída por infinitos atributos
infinitos em seu gênero, isto é, por infinitas ordens infinitas de realidade.

Por esse motivo, a essência da substância absolutamente infinita
é absolutamente complexa e internamente diferenciada em infinitas
ordens infinitas de realidade. Em outras palavras, a substância não é
simples e sim complexa, embora não seja nem possa ser composta,
pois não é formada pela justaposição de diferentes ordens de realidade
e sim é internamente constituída por elas. Em suma, Deus não é
um espírito simples e sim a complexidade absolutamente infinita da
estrutura diferenciada e da ação diferenciada da realidade inteira.

Ao ser causa de si, pondo-se a si mesma absolutamente no ser,
a substância põe sua potência causal absoluta. Isto significa que “no
mesmo sentido em que Deus é dito causa de si, deve ser dito causa
de todas coisas”. Ou seja, a ação da causa de si é, simultaneamente, a
ação de uma causa eficiente que produz as essências e existências de
todas coisas. Ora, uma causa de si é absolutamente incondicionada
e, portanto, livre. É livre, escreve Espinosa, aquilo que existe e age
apenas pela necessidade interna de sua essência sem ser determinado
por nada exterior4. 

A liberdade, portanto, não se opõe à necessidade

3 A sexta definição da Parte I da Ética define o ser absolutamente infinito ou Deus: “Por Deus entendo o ser absolutamente infinito, isto é, a substância constituída por infinitos atributos infinitos em seu gênero, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita” (E I,def.6)

4 A Parte I da Ética assim define o livre:

 “Diz-se livre o que existe pela só necessidade de sua na
e sim a exprime: é livre o que existe e age apenas pela necessidade de
sua própria essência e, portanto, não somente sem ser determinado
por uma outra causa eficiente, mas também sem ser determinado por
fins ou por causas finais. Tudo o que é e existe, exprime a ação livre
da essência e potência do ser absolutamente infinito, isto é, exprime o
que segue necessariamente dessa essência e dessa potência.

Uma vez que há uma única substância, e que nela o ser e o agir
são expressões necessárias de sua própria natureza (pois é livre), nela a
potência de existir e de agir é idêntica à sua essência e, por conseguinte,
todos os seus modos são efeitos determinados de sua potência e essência.

Assim, os modos finitos ou as coisas singulares finitas derivam suas
essências, existências e potências da ação livre necessária do absoluto. Eis
porque Deus é causa eficiente, primeira, livre ou necessária e imanente
de todas coisas. Isso significa que as coisas singulares seguem necessariamente da essência e potência do absoluto como suas modificações ou expressões determinadas. 

Assim, a produção das coisas por Deus possui três características principais: em primeiro lugar, essa produção é livre porque segue necessariamente da natureza de Deus; em segundo, todas as coisas singulares são necessárias não por sua essência (somente Deus é necessário pela essência), mas pela causa, isto é, pela potência de Deus; em terceiro, porque são imanentes à potência de Deus, todas coisas são também potências necessárias de produção de efeitos e, portanto, tudo na realidade é necessário e nada há de contingente na realidade: há o ser necessário pela essência (o ser absoluto) e há os seres necessários pela causa (as modificações do absoluto). Deus é necessário porque é livre e causa de si; as coisas são necessárias porque seguem da natureza necessária de Deus; e as operações e ações das coisas singulares são necessárias porque seguem da potência singular de cada uma delas como expressão da potência absoluta de Deus.

Ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência,
Deus faz existir todas coisas singulares que o exprimem porque são
efeitos de sua potência infinita. Se, pois, no mesmo ato pelo qual
tureza e por si só é determinado a agir; diz-se necessário, ou mais propriamente coagido, o que é determinado por outra coisa a existir e a operar de uma certa e determinada maneira” (E I,def.7).

Liberdade e necessidade na ontologia de Espinosa
Deus é causa de si é também causa de todas coisas, conclui-se que não
houve nem poderia haver criação do mundo a partir do nada por um
ato contingente da vontade divina. O mundo é eterno e infinito porque
exprime a causalidade eterna e infinita de Deus, mesmo que nele
as coisas singulares existam temporalmente, surgindo e desaparecendo
sem cessar, ou melhor, passando incessantemente de uma forma a
outra. 

Assim, Deus é absolutamente eterno e infinito por sua essência
enquanto o mundo é eterno e infinito pela causa necessária infinita.
Vimos que Espinosa demonstra que há duas maneiras de ser e
de existir: a da substância e seus atributos (existência em si concebida
por si) e a dos efeitos da substância (existência em outro concebida
por outro). A esta segunda maneira de existir, como dissemos, Espinosa
dá o nome de modos da substância. Os modos ou modificações são
efeitos necessários produzidos pela potência dos atributos divinos.
Deus é constituído por infinitos atributos infinitos, isto é, por infinitas
ordens diferenciadas de realidades ou por estruturas diferenciadas
cujas potências produzem modificações imanentes, isto é, modos infinitos
e modos finitos. 

À substância e seus atributos, enquanto atividade
infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o nome de
Natureza Naturante. À totalidade dos modos produzidos pelos atributos,
designa com o nome de Natureza Naturada. Por sua potência
absoluta infinitamente, a Natureza Naturante é imanente à Natureza
Naturada; por sua essência, que exprime a essência dos atributos, a
Natureza Naturada é imanente à Natureza Naturante.

Espinosa demonstra que Deus é causa eficiente não transitiva
e sim imanente da essência e existência de todas coisas. O que é a
imanência? Não é a identidade entre a essência de Deus e as das coisas
singulares, pois, se assim fosse, tudo seria substância (como supõem
os que imaginam que a filosofia espinosana é um monismo) e tudo
seria Deus (como supõem os que imaginam que a filosofia espinosana
é um panteísmo). A imanência se refere à causalidade divina e à
expressividade dos modos.

Do lado da substância, a imanência é a da causa eficiente, isto é,
da potência absolutamente necessária e livre de Deus ou de seus atributos. Do lado dos modos, a imanência é a maneira como as leis da
Natureza (ou os modos infinitos) e as coisas singulares (ou os modos
finitos) exprimem as essências de seus respectivos atributos. Deus, demonstra Espinosa, não é causa transitiva de todas coisas ou de todos
os seus modos, mas é causa eficiente imanente de seus modos. Uma
causa eficiente transitiva é aquela que existe antes e depois do efeito
porque existe separada dele; ela e ele são dois entes independentes,
porque a dependência do efeito termina quando termina a ação causal.
É essa ideia que conduz à imagem da criação do mundo e à da
pluralidade de substâncias criadas pela substância incriada.

 Ao contrário,
uma causa eficiente imanente é aquela que não se separa do efeito,
mas se exprime nele e ele a exprime de maneira certa e determinada.
A causa eficiente imanente faz com que a totalidade constituída pela
Natureza Naturante e pela Natureza Naturada seja a unidade eterna e
infinita da causa e de seus efeitos necessários e determinados, unidade
cujo nome é Deus. Donde a célebre expressão espinosana: Deus sive
Natura, Deus, ou seja, Natureza.

Dos infinitos atributos infinitos da substância absoluta, conhecemos
dois: o pensamento infinito e a extensão infinita. Desses dois
atributos, conhecemos dois modos infinitos imediatos: o modo infinito
imediato do pensamento ou o intelecto infinito de Deus; o
modo infinito imediato da extensão ou o movimento e o repouso.

Como se observa, o intelecto não é um atributo de Deus, mas uma
modificação infinita de um atributo divino. Observe-se também que
a vontade não aparece sequer como modificação infinita do pensamento,
pois Espinosa recusa qualquer realidade à vontade como uma
faculdade livre distinta do intelecto. Esses modos infinitos imediatos
são o fundamento das leis naturais, isto é, do modo infinito mediato
que Espinosa chama de “a fisionomia do universo inteiro”.

Os atributos, porém, não produzem apenas a estrutura universal
(modos infinitos imediatos) e as leis universais (modo infinito
mediato) das coisas, mas também produzem as coisas singulares ou
modos finitos. Os modos finitos do pensamento são as ideias; e os
modos finitos da extensão são os corpos. 

O homem é um modo finito do pensamento e da extensão, isto é, é constituído por uma mente e Liberdade e necessidade na ontologia de Espinosa por um corpo, e a mente humana, como vimos, é ideia do corpo e
ideia de si mesma ou ideia da ideia. Somos, portanto, uma parte finita
do ser absolutamente infinito e somos livres e felizes quando sabemos
que tomamos parte na atividade infinita do ser absolutamente infinito
que se exprime em nós e que nós exprimimos. Não há contingência
no universo, pois, do ponto de vista da substância, ela é o ser absolutamente
necessário que age livremente porque age segundo a necessidade
de sua essência; do ponto de vista dos modos, a necessidade é a de
sua causa absoluta e da ordem necessária de causas finitas produzidas
pelos atributos divinos.

A Ética demole o edifício teológico-metafísico que se alicerçava
na transcendência de Deus ao mundo, isto é, na imagem de um ser supremo
separado do mundo, criando-o voluntária e contingentemente a
partir do nada e segundo fins incompreensíveis para os humanos. 

Deus
é, doravante, a força absoluta imanente 
ao universo que o exprime.
Na Parte I da Ética, intitulada “De Deus”, Espinosa constrói
geometricamente a gênese da ideia adequada de Deus, liberando-a da
superstição e da imaginação ao demonstrar que:

1. tudo o que é, é em si (é substância) ou é em outro (é modo);

2.
tudo o que é em si é concebido por si mesmo (é inteligível em
si e por si mesmo) e o que é em outro deve ser concebido por outro (a
inteligibilidade do mundo e dos seres humanos decorre da inteligibilidade
da essência e potência de Deus), de sorte que tudo o que existe
pode ser conhecido adequadamente por nós porque Deus pode ser
conhecido perfeitamente por nós, uma vez que somos expressões finitas
do atributo pensamento, compartilhando sua essência e potência;

3. é da natureza da substância ser causa de si e da essência, existência
e potência de todas coisas, ser constituída por infinitos atributos
infinitos, ser absolutamente infinita, única e eterna;

4. Deus é a substância única, eterna, livre, absolutamente complexa
ou absolutamente infinita;

5. Deus é causa livre, necessária e imanente de todas coisas. Livre:
porque age apenas segundo a necessidade interna de sua essência. Necessária: porque sua potência é idêntica à sua essência. Imanente: porque
não se separa de seus efeitos, mas neles se exprime e eles o exprimem;

6. a essência de Deus é constituída por atributos, e intelecto e
vontade não são atributos da essência absoluta. Em outras palavras,
Deus não age por vontade e entendimento, nem orientado por fins:
vontade e entendimento não são atributos de sua essência, mas o intelecto
é um modos infinito de um de seus atributos (o Pensamento)
e vontade e intelecto não se distinguem; e a finalidade é apenas uma
projeção imaginária da ação humana em Deus, projeção que, aliás,
não corresponde sequer à própria causa das ações humanas, pois os
homens também não agem movidos por fins. Deus é uma causa eficiente
que age segundo a necessidade interna e espontânea de sua essência,
jamais uma causa final e jamais movido por causas finais, pois
isto suporia a existência de algo fora dele que o incitaria a agir, mas
nada existe fora de Deus (pois há uma única substância absolutamente
infinita) e nada pode incitá-lo ou coagi-lo a agir, uma vez que sua
ação não é senão a manifestação necessária de sua essência, ou seja, a
potência e a essência de Deus são idênticas;

7. sendo o Pensamento um atributo de Deus, tudo quanto existe
– Deus, seus atributos e seus modos –, isto é, a Natureza Naturante e a
Natureza Naturada são plenamente inteligíveis, não havendo no universo
mistérios, milagres, forças ocultas, nem fins incompreensíveis;
8. sendo a Extensão um atributo de Deus, todos os corpos, todas
as proporções de movimento e de repouso que dão origem aos corpos
e às suas ações, determinando-lhes a forma e as relações recíprocas que
mantêm uns com os outros, fazem parte da natureza divina;

9. tudo o que existe é duplamente determinado quanto à existência
e à essência, isto é, os modos finitos são determinados a existir
e a ser pela atividade necessária dos atributos divinos e pela ordem e
conexão necessárias de causas e efeitos na Natureza Naturada, de sorte
que tudo o que existe é necessário e não há contingência no universo;

10. necessidade e liberdade não são ideias opostas, mas concordantes
e complementares, pois a liberdade não é senão a manifestação

Liberdade e necessidade na ontologia de Espinosa
espontânea e necessária da força ou potência interna da essência da
substância (no caso de Deus) e da potência interna da essência dos
modos finitos (no caso dos humanos). Dizemos que um ser é livre
quando, pela necessidade interna de sua essência e de sua potência,
nele se identificam sua maneira de ser e de agir. 

A liberdade não é, pois, escolha voluntária nem ausência de causa (ou uma ação sem causa), e a necessidade não é mandamento, lei ou decreto externos que forçariam um ser a existir e agir de maneira contrária à sua essência.

Abstract
In this essay attention is given to the diference between Scholastic
Metaphisics and Spinoza’s Ontology of Necessity. Such a difference
is based on Spinoza’s critique of the traditiona distinction between
God’s potentia and God’s potestas.
Keywords: Scholastic Metaphisics. Spinoza’s Ontology. God’s potentia.
God’s potestas.

 Marilena de Souza Chauí*
* Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
Professora titular da Universidade de São Paulo.
 Tem experiência na área de Filosofia,
com ênfase em História da Filosofia,

 | Revista Omnia Lumina | São Paulo | v. 1 n. 1 | p. 45 - 67 | Jan./Jun. 2010 |
www.revistaomnialumina.org.br
Marilena de Souza Chauí

     Fonte:
     www.revistaomnialumina.org.br
    Enviado por em 08/11/2011
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