sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A IMAGINAÇÃO EM BERGSON e Mozart Clarinet Quintet A major K 581 1:06:13




Mozart Clarinet Quintet A major K 581 Sabine Meyer & Hagen Quartet -1:06:13


Bergson

A IMAGINAÇÃO EM BERGSON

Bergson destaca em sua obra a participação da imaginação no procedimento pelo qual assimilamos o real através de um esquema estático e espacializado. Segundo ele, representamos espacialmente estados que são qualitativamente heterogêneos e intrinsecamente inseparáveis para nossa consciência. Essa operação se dá através do que ele nomeia de espacialização, ou seja, a imaginação num sentido mais estrito.

Em “A Evolução Criadora”, Bergson coloca a questão de como se poderia reproduzir o movimento natural e a variedade da vida. Em seguida, ele nos apresenta uma maneira simples e eficaz de fazê-lo. Obtenha uma série de fotografias de uma cena animada, projete estas imagens na tela através de um cinematógrafo, aparelho pelo qual estes instantâneos ganham movimento ao substituí-los rapidamente uns pelos outros. Dessa maneira, a mobilidade da cena é reconstituída pelo movimento que o aparelho dá a cada imagem, fazendo com que elas recuperem a sua animação. Sendo preciso que haja movimento em algum lugar, aqui o movimento está no aparelho cinematográfico. Eis o artifício do cinema, que coincide com aquele do nosso conhecimento. Ele abandona o movimento interior e natural das coisas, para recompô-lo de forma artificial, através de cortes instantâneos praticados no devir. Para Bergson, essa é a maneira como a inteligência geralmente procede, como se “uma espécie de cinematógrafo interior” tivesse sido acionado, assim é o “mecanismo de nosso conhecimento usual” (BERGSON, 2005, p. 95).

 Na mesma obra, encontramos a inteligência atuando na representação de um objeto através das vistas instantâneas que tomamos dele, representando-o através dos símbolos justapostos que formamos ao seccioná-lo. Isso considerado, Bergson observa que, contrariamente ao ponto de vista que sentenciava que “todas as operações da inteligência visavam a introduzir certa unidade na diversidade dos fenômenos” (Ibidem, p.165), há no trabalho da inteligência uma ação de dividir, mais do que de unificar.

A percepção, por sua vez, solidifica a continuidade do real em uma sucessão de imagens descontínuas, e, ao apresentar-nos o universo desse modo, ela faz um detalhamento do filme imagem por imagem (Ibidem, p.327). Essa deficiência da percepção prolonga-se no hábito da nossa inteligência de representar-nos o movimento como uma série de posições e a mudança como uma série de estados. O tempo, assim dividido e justaposto, suas partes se sucedem à maneira das imagens do cinema: “o filme pode passar dez, cem, mil vezes mais depressa sem que nada fosse modificado (...) seriam ainda as mesmas imagens” (BERGSON, 1979, p. 105).  

Quando no Ensaio, a história dos personagens Paul e Pierre serve para ilustrar os dois modos distintos pelos quais é possível assimilar os estados de consciência de outrem, novamente Bergson enfatiza formas diferentes de assimilação da vida consciente. Podemos assimilar os estados de consciência de outra pessoa experimentando-os por nós próprios, ou seja, de maneira dinâmica; ou, de outro modo, podemos substituir a consciência destes estados pela sua imagem, o que corresponderia à sua assimilação estática. Nessa última forma, os estados ao invés de se produzirem na consciência, são apenas imaginados. Assim percebemos no esquema de apreensão estática a participação da imaginação no procedimento pelo qual eu traduzo os estados de consciência de outrem em imagens particulares: “Paul (...) pode juntar assim à imagem dos estados sucessivos pelos quais Pierre irá passar, a indicação de seu valor em relação ao conjunto de sua história – ou ele pode resignar-se a passar por si mesmo por estes estados diversos, não mais em imaginação, mas em realidade”   (BERGSON, 2007,140).

Se passarmos da consideração dos estados psicológicos para a percepção do movimento, encontramos mais uma vez o trabalho da imaginação. Segundo Bergson, o movimento é percebido pela nossa consciência imediata de maneira inteiramente diversa daquela que os artifícios do espírito o apresentam. A primeira apreende o movimento como um todo indivisível, enquanto os últimos dividem o movimento em partes distintas, apreendidas sob a forma de imagens. Para o filósofo, é a imaginação que opera esta divisão, esta é a sua função no campo do conhecimento. Comparável à ação de um relâmpago ou das luzes estroboscópicas que iluminam uma cena de modo intermitente, a imaginação representa-nos o movimento real como descontínuo e decomposto (BERGSON, 2006, p.221).

No Ensaio, Bergson declara que costumamos situar o movimento; dizer que ele se dá no espaço e, assim, ao declararmos esse movimento homogêneo e divisível, na verdade, estamos tratando do seu percurso no espaço, considerando apenas as posições sucessivas que o móvel ocupa durante seu trajeto e, não mais, a transição entre uma e outra posição _ processo que envolve uma duração, um fluir do tempo. Nesse caso, não se trata mais de uma coisa ocupando um lugar no espaço, mas de um progresso, um movimento, uma “passagem de um ponto a outro” que é percebido através de um processo psíquico e inextenso em que a consciência rememora as posições sucessivas anteriores e faz a síntese qualitativa: “uma organização gradual de nossas sensações sucessivas umas com as outras, uma unidade análoga àquela de uma frase melódica” (BERGSON, 2007, p. 82).

A participação que a imaginação tem no procedimento pelo qual assimilamos o real através de um esquema estático e espacializado é enfatizada por Worms, quando este explica que representamos espacialmente estados que são qualitativamente heterogêneos e intrinsecamente inseparáveis para nossa consciência. Essa operação, para ele, se dá através do que ele nomeia de “espacialização, ou seja, num sentido estrito, imaginação. Representamos sob a forma de imagens no espaço as coisas que são para isso mais ou menos suscetíveis, forjando assim arranjos que tem alguma coisa de imaginário” (WORMS, 2004, p.49).

Constatamos, portanto, que a imaginação está sempre no encalço do fragmentado, do decomposto, do fracionado; seja na recapitulação de cada detalhe da história de Pierre realizada por Paul, seja no acompanhamento de cada som distinto produzido pelas batidas de um pêndulo, seja no seccionamento de um movimento indiviso e contínuo. Exemplos em que se confirma que, par Bergson, a imaginação ocupa-se em talhar o que aparece à consciência imediata como um conjunto indivisível: “Os sentidos, entregues a si mesmos, apresentam-nos o movimento real, entre duas detenções reais, como um todo sólido e indiviso. A divisão é obra da imaginação, que tem justamente por função fixar as imagens moventes de nossa experiência ordinária” (BERGSON, 2006, p.221).

O caráter de fixidez e de imobilidade da inteligência é enfatizado pelo filósofo em vários momentos de sua obra. Caráter que se manifesta quando o intelecto, ao considerar o movimento, retém dele apenas uma sucessão de posições. Observamos que esse modo como a inteligência é apresentada, acompanhando o movimento como uma série de pontos que se apresentam um após o outro, assemelha-se ao modo como Bergson outrora nos representava a imaginação, acompanhando o número de sons de um movimento pendular. Que significado essa semelhança tem para nós? A operação de decompor, seja um movimento indiviso, seja os estados psicológicos intrinsecamente coesos, aparece como sendo comum à inteligência e à imaginação. 

A inteligência acompanha o movimento através de pontos que lhe são dados em uma sucessão numérica, assim como a imaginação acompanhava, igualmente de maneira quantitativa, os sons emitidos pelo pêndulo do relógio. Portanto, observamos um termo comum entre as funções da inteligência e da imaginação, e esta constatação despertou em nós o interesse em investigar quais são os limites entre essas duas faculdades no que concerne às suas funções no processo do conhecimento. Nesse ponto, as duas questões que surgem e que nós temos como essenciais para nossa investigação são: onde começa e onde termina o trabalho da imaginação na atividade de decompor a totalidade do real em imagens descontínuas? E em que momento e contexto ela poderá abandonar este seu papel no conhecimento para apresentar-se em campos mais férteis, junto à realidade contínua e indivisível que se manifesta apenas através de um esforço de intuição?

Em “Matéria e Memória”, Bergson evoca o testemunho da consciência que nos mostra “em nosso entendimento certa faculdade de dissociar e de opor logicamente, mas não de criar ou de construir” (Ibidem, p. 212). Encontramos ao longo de sua obra descrições recorrentes acerca da inteligência, cuja função é opor e decompor de maneira lógica o objeto que ela busca conhecer; função ora atribuída explicitamente à inteligência, ora deduzida do processo imaginativo. No entanto, uma faculdade de “criar ou de construir” parece não ter sido objeto de atenção de nosso filósofo, assim como evidenciado e criticado por alguns comentadores, como veremos logo adiante.

Gilson atenta igualmente para o problema da falta de um tratamento da faculdade imaginativa em Bergson. Ele afirma que: “Quando Bergson parte das imagens, ele evita analisar o papel da imaginação produtiva” (GILSON, 1992, p.41). Worms, por sua vez, observa que a faculdade que, para Bergson, responde pela representação de seres fictícios e imaginários, presentes nas narrativas e fábulas, é a fabulação _ que substitui a imaginação enquanto fonte de ficção. Segundo ele, a inscrição dessa nova faculdade gera uma polêmica de muitas frentes. Uma delas, a que nos interessa no momento, é a psicológica: “sobre a delimitação dos conceitos e das faculdades, aqui ‘a imaginação’” (WORMS, 2000, p.27). Enquanto isso, Caeymaex considera que “Talvez não haja um ‘problema’ da imaginação em Bergson” (CAEYMAEX, 2005, p.32), o que ela deduz pelo fato de que ele não se ocupou com uma psicologia da vida imaginária. Em nosso ponto de vista, embora reconheçamos que Bergson não tenha problematizado o papel da imaginação, encontramos em muitos pontos de sua obra, definições, considerações e exemplos relativos ao processo imaginativo que, embora sucintos, nos parecem bastante relevantes para um questionamento profundo e produtivo acerca da função e do mecanismo da imaginação na criação e no conhecimento.

Em “A imaginação”, Sartre se questiona sobre o modo pelo qual a imaginação criadora pode surgir a partir de um esquema estático do conhecimento: “se as imagens não podem fornecer mais do que ‘mosaicos’, como pode o esquema modificá-las a ponto de fazer com que elas se fundam em uma nova imagem, de uma qualidade irredutível?” (SARTRE, 1987, p.62). Então, juntamente com Sartre, nos perguntamos: “como explicar a imaginação criadora?” 

A Função Fabuladora
Como nos mostram passagens da obra “Duas fontes da moral e da Religião”, há um equívoco em tomar a imaginação como sendo a faculdade responsável pela criação de personagens e de histórias fictícias. O erro decorre do fato de que a psicologia reúne sob um mesmo rótulo as descobertas da ciência, as realizações da arte, e as representações fictícias. Para Bergson, a faculdade que responderá pela ficção, não tem nenhum parentesco com aquelas, senão pelo fato de que também não se confunde com o trabalho lógico: “É unicamente pela comodidade da linguagem, e pela razão inteiramente negativa de que estas diversas operações não são nem percepção, nem memória, nem trabalho lógico do espírito” (BERGSON, 2003, p.58). Assim, ele isola as representações fictícias do domínio “artificialmente delimitado da imaginação” e chama de fabulação o ato pelo qual elas surgem. Definir esta função fabuladora como sendo uma variação da imaginação é, portanto, um equívoco que Bergson explica da seguinte forma: “Nós chamamos de imaginativas as representações concretas que não são nem as percepções nem as lembranças. Como essas representações não desenham um objeto presente nem uma coisa passada, elas são todas (...) designadas por uma única palavra na linguagem corrente” (Ibidem, p.104).

Portanto, como dizíamos, nosso filósofo irá considerar a fabulação como a faculdade responsável pela criação de personagens sobre os quais conta-se uma história, atividade singular na vida de romancistas e dramaturgos. Além disso, ele ressalta o caráter misterioso da fabulação, mas adverte que o mesmo atributo é válido para todas as outras faculdades, por não conhecemos o mecanismo interior delas (Ibidem, p.106). Contudo, parece-nos que ele empenhou-se em buscar, em suas obras, muito mais elementos para a compreensão do mecanismo interno de outras faculdades, tais como, a inteligência, a percepção e a memória, do que o fez em relação à imaginação. Eis uma das razões pelas quais a investigação da função e dos processos dessa última ganhou um interesse particular para nós à medida que nos aprofundávamos no estudo das obras de Bergson. As declarações que surgem aqui e acolá em seus escritos acerca do papel e da função da imaginação no conhecimento e na criação, além de escassas, o colocam diante do embaraço causado pelas contradições que elas geram.

Em “O Riso”, a imaginação ganha uma dimensão poética, e por que não, criadora? Nessa obra, Bergson afirma que a imaginação poética só pode ser uma visão mais completa da realidade, que parte de um esforço de observação interior; o que ele ilustra da seguinte maneira. As personagens criadas por Shakespeare seriam possibilidades de ser que se abriram ao escritor em algum momento de sua vida, direções que ele imaginou poder ter seguido. Portanto, retornar a estas possibilidades e direções entrevistas, consistiria num trabalho da imaginação poética. Assim, para Bergson, é um engano supor que o papel da imaginação poética consistiria em “compor seus heróis com pedaços tomados a torto e a direito em torno deles, como para costurar um traje de arlequim. Nada que fosse vivo sairia daí. 

A vida não se recompõe. Ela simplesmente se deixa olhar” (BERGSON, O Riso, 2004, 125). A partir do trecho mencionado, o primeiro problema que surge é patente: Bergson tendo outrora atribuído exclusivamente à função fabuladora a ação de criar personagens e de contar uma história, parece aqui ter devolvido esta função à imaginação. O segundo problema implica que, se o dramaturgo, ao criar seus personagens, aplica-se na observação interna do seu próprio espírito, o que lhe proporciona uma compreensão mais completa da realidade, a imaginação, que se serve dessa compreensão, parece aqui relacionar-se melhor com a intuição do que com a inteligência; contrariamente ao modo como ela havia sido freqüentemente representada e definida ao longo das primeiras obras do autor.  

Contudo, ainda em “O Riso”, encontramos a imaginação isolando um elemento formal da matéria, que antes era vista como vinculado a ela. Nesse caso em particular, a seriedade, própria da cerimônia, separa-se dela para assim produzir o efeito cômico. Este ato de isolar ou de separar, mais uma vez é identificado por Bergson como sendo obra da imaginação: “Pode-se dizer que as cerimônias (...) perdem essa gravidade assim que nossa imaginação as isola dela” (Ibidem, p.33). Assim, verificamos que, dentro de uma mesma obra, a imaginação é apresentada sob duas funções distintas: ora ela une, compõe, cria; ora ela divide e isola elementos, assim como fazia a inteligência no campo do conhecimento, rejeitando tudo que decorre da imprevisibilidade e da criação (BERGSON, 2005, p. 

177). Diante dessa dificuldade, nos perguntamos: em que ponto a imaginação deixaria de atuar como uma foice no campo da realidade espacializada, para atuar junto à intuição, apreendendo uma realidade marcada pelo fluir incessante de novidades, de criações? Enfim, quando ela deixa de reproduzir para criar?

Somente um estudo minucioso dos escritos de Bergson poderá nos apresentar possibilidades de respostas para as questões aqui colocadas, que compõem a problemática acerca do papel da imaginação no conhecimento e na criação dentro da filosofia bergsoniana.



Fontes: 
Texto: Email: elaineguinevere@gmail.com
Licença padrão do YouTube
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário