Bergson
A IMAGINAÇÃO EM BERGSON
Bergson destaca em sua obra
a participação da imaginação no procedimento pelo qual assimilamos o real
através de um esquema estático e espacializado. Segundo ele, representamos
espacialmente estados que são qualitativamente heterogêneos e
intrinsecamente inseparáveis para nossa consciência. Essa operação se dá
através do que ele nomeia de espacialização, ou seja, a imaginação num
sentido mais estrito.
Em “A Evolução Criadora”, Bergson coloca
a questão de como se poderia reproduzir o movimento natural e a variedade
da vida. Em seguida, ele nos apresenta uma maneira simples e eficaz de
fazê-lo. Obtenha uma série de fotografias de uma cena animada, projete
estas imagens na tela através de um cinematógrafo, aparelho pelo qual estes
instantâneos ganham movimento ao substituí-los rapidamente uns pelos
outros. Dessa maneira, a mobilidade da cena é reconstituída pelo movimento
que o aparelho dá a cada imagem, fazendo com que elas recuperem a sua
animação. Sendo preciso que haja movimento em algum lugar, aqui o movimento
está no aparelho cinematográfico. Eis o artifício do cinema, que coincide
com aquele do nosso conhecimento. Ele abandona o movimento interior e natural
das coisas, para recompô-lo de forma artificial, através de cortes
instantâneos praticados no devir. Para Bergson, essa é a maneira como a
inteligência geralmente procede, como se “uma espécie de cinematógrafo
interior” tivesse sido acionado, assim é o “mecanismo de nosso conhecimento
usual” (BERGSON, 2005, p. 95).
Na mesma obra, encontramos a
inteligência atuando na representação de um objeto através das vistas
instantâneas que tomamos dele, representando-o através dos símbolos
justapostos que formamos ao seccioná-lo. Isso considerado, Bergson observa
que, contrariamente ao ponto de vista que sentenciava que “todas as
operações da inteligência visavam a introduzir certa unidade na diversidade
dos fenômenos” (Ibidem, p.165), há no trabalho da inteligência uma ação de
dividir, mais do que de unificar.
A percepção, por sua vez, solidifica a
continuidade do real em uma sucessão de imagens descontínuas, e, ao
apresentar-nos o universo desse modo, ela faz um detalhamento do filme
imagem por imagem (Ibidem, p.327). Essa deficiência da percepção
prolonga-se no hábito da nossa inteligência de representar-nos o movimento
como uma série de posições e a mudança como uma série de estados. O tempo,
assim dividido e justaposto, suas partes se sucedem à maneira das imagens
do cinema: “o filme pode passar dez, cem, mil vezes mais depressa sem que
nada fosse modificado (...) seriam ainda as mesmas imagens” (BERGSON, 1979,
p. 105).
Quando no Ensaio, a história
dos personagens Paul e Pierre serve para ilustrar os dois modos distintos
pelos quais é possível assimilar os estados de consciência de outrem,
novamente Bergson enfatiza formas diferentes de assimilação da vida
consciente. Podemos assimilar os estados de consciência de outra pessoa
experimentando-os por nós próprios, ou seja, de maneira dinâmica; ou, de
outro modo, podemos substituir a consciência destes estados pela sua
imagem, o que corresponderia à sua assimilação estática. Nessa última
forma, os estados ao invés de se produzirem na consciência, são apenas imaginados.
Assim percebemos no esquema de apreensão estática a participação da
imaginação no procedimento pelo qual eu traduzo os estados de consciência
de outrem em imagens particulares: “Paul (...) pode juntar assim à imagem
dos estados sucessivos pelos quais Pierre irá passar, a indicação de seu
valor em relação ao conjunto de sua história – ou ele pode resignar-se a
passar por si mesmo por estes estados diversos, não mais em imaginação, mas
em realidade” (BERGSON, 2007,140).
Se passarmos da consideração dos estados
psicológicos para a percepção do movimento, encontramos mais uma vez o
trabalho da imaginação. Segundo Bergson, o movimento é percebido pela nossa
consciência imediata de maneira inteiramente diversa daquela que os
artifícios do espírito o apresentam. A primeira apreende o movimento como
um todo indivisível, enquanto os últimos dividem o movimento em partes
distintas, apreendidas sob a forma de imagens. Para o filósofo, é a
imaginação que opera esta divisão, esta é a sua função no campo do conhecimento.
Comparável à ação de um relâmpago ou das luzes estroboscópicas que iluminam
uma cena de modo intermitente, a imaginação representa-nos o movimento real
como descontínuo e decomposto (BERGSON, 2006, p.221).
No Ensaio, Bergson declara
que costumamos situar o movimento; dizer que ele se dá no espaço e, assim,
ao declararmos esse movimento homogêneo e divisível, na verdade, estamos
tratando do seu percurso no espaço, considerando apenas as posições
sucessivas que o móvel ocupa durante seu trajeto e, não mais, a transição
entre uma e outra posição _ processo que envolve uma duração, um fluir do
tempo. Nesse caso, não se trata mais de uma coisa ocupando
um lugar no espaço, mas de um progresso, um movimento, uma
“passagem de um ponto a outro” que é percebido através de um processo
psíquico e inextenso em que a consciência rememora as posições sucessivas
anteriores e faz a síntese qualitativa: “uma organização gradual de nossas
sensações sucessivas umas com as outras, uma unidade análoga àquela de uma
frase melódica” (BERGSON, 2007, p. 82).
A participação que a imaginação tem no
procedimento pelo qual assimilamos o real através de um esquema estático e
espacializado é enfatizada por Worms, quando este explica que representamos
espacialmente estados que são qualitativamente heterogêneos e
intrinsecamente inseparáveis para nossa consciência. Essa operação, para
ele, se dá através do que ele nomeia de “espacialização, ou seja,
num sentido estrito, imaginação. Representamos sob a forma de imagens no
espaço as coisas que são para isso mais ou menos suscetíveis, forjando
assim arranjos que tem alguma coisa de imaginário” (WORMS, 2004, p.49).
Constatamos, portanto, que a imaginação
está sempre no encalço do fragmentado, do decomposto, do fracionado; seja
na recapitulação de cada detalhe da história de Pierre realizada por Paul,
seja no acompanhamento de cada som distinto produzido pelas batidas de um
pêndulo, seja no seccionamento de um movimento indiviso e contínuo.
Exemplos em que se confirma que, par Bergson, a imaginação ocupa-se em
talhar o que aparece à consciência imediata como um conjunto indivisível:
“Os sentidos, entregues a si mesmos, apresentam-nos o movimento real, entre
duas detenções reais, como um todo sólido e indiviso. A divisão é obra da
imaginação, que tem justamente por função fixar as imagens moventes de
nossa experiência ordinária” (BERGSON, 2006, p.221).
O caráter de fixidez e de imobilidade da
inteligência é enfatizado pelo filósofo em vários momentos de sua obra.
Caráter que se manifesta quando o intelecto, ao considerar o movimento,
retém dele apenas uma sucessão de posições. Observamos que esse modo como a
inteligência é apresentada, acompanhando o movimento como uma série de
pontos que se apresentam um após o outro, assemelha-se ao modo como Bergson
outrora nos representava a imaginação, acompanhando o número de sons de um
movimento pendular. Que significado essa semelhança tem para nós? A
operação de decompor, seja um movimento indiviso, seja os estados
psicológicos intrinsecamente coesos, aparece como sendo comum à
inteligência e à imaginação.
A inteligência acompanha o movimento através
de pontos que lhe são dados em uma sucessão numérica, assim como a
imaginação acompanhava, igualmente de maneira quantitativa, os sons
emitidos pelo pêndulo do relógio. Portanto, observamos um termo comum entre
as funções da inteligência e da imaginação, e esta constatação despertou em
nós o interesse em investigar quais são os limites entre essas duas
faculdades no que concerne às suas funções no processo do conhecimento.
Nesse ponto, as duas questões que surgem e que nós temos como essenciais
para nossa investigação são: onde começa e onde termina o trabalho da
imaginação na atividade de decompor a totalidade do real em imagens
descontínuas? E em que momento e contexto ela poderá abandonar este seu
papel no conhecimento para apresentar-se em campos mais férteis, junto à
realidade contínua e indivisível que se manifesta apenas através de um
esforço de intuição?
Em “Matéria e Memória”, Bergson evoca o
testemunho da consciência que nos mostra “em nosso entendimento certa
faculdade de dissociar e de opor logicamente, mas não de criar ou de
construir” (Ibidem, p. 212). Encontramos ao longo de sua obra descrições
recorrentes acerca da inteligência, cuja função é opor e decompor de
maneira lógica o objeto que ela busca conhecer; função ora atribuída
explicitamente à inteligência, ora deduzida do processo imaginativo. No
entanto, uma faculdade de “criar ou de construir” parece não ter sido
objeto de atenção de nosso filósofo, assim como evidenciado e criticado por
alguns comentadores, como veremos logo adiante.
Gilson atenta igualmente para o problema
da falta de um tratamento da faculdade imaginativa em Bergson. Ele afirma
que: “Quando Bergson parte das imagens, ele evita analisar o papel da
imaginação produtiva” (GILSON, 1992, p.41). Worms, por sua vez, observa que
a faculdade que, para Bergson, responde pela representação de seres
fictícios e imaginários, presentes nas narrativas e fábulas, é a fabulação
_ que substitui a imaginação enquanto fonte de ficção. Segundo ele, a
inscrição dessa nova faculdade gera uma polêmica de muitas frentes. Uma
delas, a que nos interessa no momento, é a psicológica: “sobre a
delimitação dos conceitos e das faculdades, aqui ‘a imaginação’” (WORMS,
2000, p.27). Enquanto isso, Caeymaex considera que “Talvez não haja um
‘problema’ da imaginação em Bergson” (CAEYMAEX, 2005, p.32), o que ela
deduz pelo fato de que ele não se ocupou com uma psicologia da vida
imaginária. Em nosso ponto de vista, embora reconheçamos que Bergson não
tenha problematizado o papel da imaginação, encontramos em muitos pontos de
sua obra, definições, considerações e exemplos relativos ao processo
imaginativo que, embora sucintos, nos parecem bastante relevantes para um questionamento
profundo e produtivo acerca da função e do mecanismo da imaginação na
criação e no conhecimento.
Em “A imaginação”, Sartre se questiona
sobre o modo pelo qual a imaginação criadora pode surgir a partir de um
esquema estático do conhecimento: “se as imagens não podem fornecer mais do
que ‘mosaicos’, como pode o esquema modificá-las a ponto de fazer com que
elas se fundam em uma nova imagem, de uma qualidade irredutível?” (SARTRE,
1987, p.62). Então, juntamente com Sartre, nos perguntamos: “como explicar
a imaginação criadora?”
A Função Fabuladora
Como nos mostram passagens da obra “Duas
fontes da moral e da Religião”, há um equívoco em tomar a imaginação como
sendo a faculdade responsável pela criação de personagens e de histórias
fictícias. O erro decorre do fato de que a psicologia reúne sob um mesmo
rótulo as descobertas da ciência, as realizações da arte, e as
representações fictícias. Para Bergson, a faculdade que responderá pela
ficção, não tem nenhum parentesco com aquelas, senão pelo fato de que
também não se confunde com o trabalho lógico: “É unicamente pela comodidade
da linguagem, e pela razão inteiramente negativa de que estas diversas
operações não são nem percepção, nem memória, nem trabalho lógico do
espírito” (BERGSON, 2003, p.58). Assim, ele isola as representações
fictícias do domínio “artificialmente delimitado da imaginação” e chama de fabulação o
ato pelo qual elas surgem. Definir esta função fabuladora como sendo uma
variação da imaginação é, portanto, um equívoco que Bergson explica da
seguinte forma: “Nós chamamos de imaginativas as representações concretas
que não são nem as percepções nem as lembranças. Como essas representações
não desenham um objeto presente nem uma coisa passada, elas são todas (...)
designadas por uma única palavra na linguagem corrente” (Ibidem, p.104).
Portanto, como dizíamos, nosso filósofo
irá considerar a fabulação como a faculdade responsável
pela criação de personagens sobre os quais conta-se uma história, atividade
singular na vida de romancistas e dramaturgos. Além disso, ele ressalta o
caráter misterioso da fabulação, mas adverte que o mesmo
atributo é válido para todas as outras faculdades, por não conhecemos o
mecanismo interior delas (Ibidem, p.106). Contudo, parece-nos que ele
empenhou-se em buscar, em suas obras, muito mais elementos para a
compreensão do mecanismo interno de outras faculdades, tais como, a
inteligência, a percepção e a memória, do que o fez em relação à
imaginação. Eis uma das razões pelas quais a investigação da função e dos
processos dessa última ganhou um interesse particular para nós à medida que
nos aprofundávamos no estudo das obras de Bergson. As declarações que
surgem aqui e acolá em seus escritos acerca do papel e da função da
imaginação no conhecimento e na criação, além de escassas, o colocam diante
do embaraço causado pelas contradições que elas geram.
Em “O Riso”, a imaginação ganha uma
dimensão poética, e por que não, criadora? Nessa obra, Bergson afirma que a
imaginação poética só pode ser uma visão mais completa da realidade, que
parte de um esforço de observação interior; o que ele ilustra da seguinte
maneira. As personagens criadas por Shakespeare seriam possibilidades de
ser que se abriram ao escritor em algum momento de sua vida, direções que
ele imaginou poder ter seguido. Portanto, retornar a estas possibilidades e
direções entrevistas, consistiria num trabalho da imaginação poética.
Assim, para Bergson, é um engano supor que o papel da imaginação poética
consistiria em “compor seus heróis com pedaços tomados a torto e a direito
em torno deles, como para costurar um traje de arlequim. Nada que fosse
vivo sairia daí.
A vida não se recompõe. Ela simplesmente se deixa olhar”
(BERGSON, O Riso, 2004, 125). A partir do trecho mencionado, o primeiro
problema que surge é patente: Bergson tendo outrora atribuído
exclusivamente à função fabuladora a ação de criar personagens e de contar
uma história, parece aqui ter devolvido esta função à imaginação. O segundo
problema implica que, se o dramaturgo, ao criar seus personagens, aplica-se
na observação interna do seu próprio espírito, o que lhe proporciona uma
compreensão mais completa da realidade, a imaginação, que se serve dessa
compreensão, parece aqui relacionar-se melhor com a intuição do que com a
inteligência; contrariamente ao modo como ela havia sido freqüentemente
representada e definida ao longo das primeiras obras do autor.
Contudo, ainda em “O Riso”, encontramos
a imaginação isolando um elemento formal da matéria, que antes era vista
como vinculado a ela. Nesse caso em particular, a seriedade, própria da
cerimônia, separa-se dela para assim produzir o efeito cômico. Este ato de
isolar ou de separar, mais uma vez é identificado por Bergson como sendo
obra da imaginação: “Pode-se dizer que as cerimônias (...) perdem essa
gravidade assim que nossa imaginação as isola dela” (Ibidem, p.33). Assim,
verificamos que, dentro de uma mesma obra, a imaginação é apresentada sob
duas funções distintas: ora ela une, compõe, cria; ora ela divide e isola
elementos, assim como fazia a inteligência no campo do conhecimento,
rejeitando tudo que decorre da imprevisibilidade e da criação (BERGSON,
2005, p.
177). Diante dessa dificuldade, nos perguntamos: em que ponto a
imaginação deixaria de atuar como uma foice no campo da realidade espacializada,
para atuar junto à intuição, apreendendo uma realidade marcada pelo fluir
incessante de novidades, de criações? Enfim, quando ela deixa de reproduzir
para criar?
Somente um estudo minucioso dos escritos
de Bergson poderá nos apresentar possibilidades de respostas para as
questões aqui colocadas, que compõem a problemática acerca do papel da
imaginação no conhecimento e na criação dentro da filosofia bergsoniana.
Texto: Email: elaineguinevere@gmail.com
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