Este é o 1ºandamento, o Molto Allegro,
da mais importante música (Sinfonia nº40)
de um dos maiores génios da música de todos os tempos,
Wolfgang Amadeus Mozart.
CAPITULO I
Ação e duração
A suspeita de Hume
Que David Hume tenha acordado Immanuel Kant do seu sono dogmático não
é nenhuma novidade, mas que o empirista inglês tenha vislumbrado algumas
“intuições bergsonianas” parece bastante curioso.20 Pois, um dos maiores alvos de Bergson é o associacionismo, ao qual a teoria humeana do conhecimento fornece-lhe os fundamentos.21 Logo na seção 2 da sua Investigação22, Hume detecta um “fenômeno contraditório” com a sua teoria da correspondência entre impressão sensível e idéia: trata-se da “gradação contínua de tons”. Podemos imaginar uma tonalidade de azul que está entre outras duas, das quais temos a impressão sensível.
Nos aproximaríamos dessa tonalidade de azul, mesmo sem ter dela a impressão
correspondente, usando expressões como: “é um azul um pouco mais escuro”, ou então, “é um azul mais claro que esse e menos do que aquele”. Esse fenômeno foi, para Hume, apenas uma exceção à regra. Mas, como veremos, esse será o ponto de partida de Bergson, uma vez que introduz as noções de intensidade, de qualidade e de grau com as quais o filósofo francês poderá pensar a diferença qualitativa e a multiplicidade de fusão que dão impulso à sua própria filosofia da duração.
Na seção 3, Hume expõe a teoria da associação de ideias, isto é, os princípios
de conexão entre idéias. São eles: semelhança, contigüidade e causalidade, três
temas que ocuparão um lugar importante no desenvolvimento desta tese.
Veremos que a questão da semelhança é fundamental para a compreensão do fenômeno do 20 Esse é um típico enunciado anti-bergsoniano que pode deixar o leitor em estado de choque, pois todo processo de criação ou de invenção supõe, na verdade, uma imprevisibilidade que interdita a previsão. Por isso, usamos o verbo “vislumbrar” (do latim vix luminare, iluminar mal) para indicar que Hume viu algumas coisas que não desenvolveu e que, como veremos, permitem iluminar bem a posição de Bergson. Todavia, isso não é algo que salte aos olhos de um leitor humeano, nem mesmo de um bergsoniano; pelo contrário, é preciso ler nas entrelinhas dos textos, nos poros onde a escrita respira e tentar captar assim essas idéias que são, para nós, como “lufadas” de ar fresco.
21 “Bergson critica a hipótese da justaposição de fatos de consciência com exterioridade recíproca que [compõem] uma ordem reversível – hipótese defendida pelos adeptos da escola inglesa, não por acaso pais do determinismo” (CAPPELLO, M. “Liberdade e necessidade em Bergson: dois sentidos do eu?”, p.117. PINTO, D.; MARQUES, S. (Orgs.) – op. cit. É verdade que Hume seria aqui mais um avô do que um pai, visto que Bergson (e provavelmente Cappello) se refere aos psicólogos associacionistas do século XIX: Taine e Stuart Mill, entre outros, “filósofos que não se puderam resignar a serem simplesmente psicólogos em psicologia [...]. Psicólogos pelo método que aplicam, permaneceram metafísicos pelo objeto que se propõem” (PM, p.200).22 HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral (trad. J.Marques). São Paulo: Ed. Unesp, 2004.19
reconhecimento; a contigüidade denota um caráter de justaposição espacial que é criticado por Bergson; e a relação de causa e efeito se funda em uma transposição dos hábitos contraídos na ação para a esfera especulativa. Entretanto, há um quarto princípio de associação, que não é um elemento primordial da teoria, tanto que Hume só se refere a ele em uma nota. Ele o chama de “contraste ou oposição” e o define como uma mistura de causação e semelhança; rápida transição entre duas emoções contrárias, em que um objeto destrói o outro, causando a sua aniquilação, o que implica em sua existência anterior. Nessa nota, indiretamente, Hume está colocando o problema da sucessão temporal. A questão é saber se essa rápida transição entre estados de consciência – para falar em termos bergsonianos – implica uma destruição ou se não haveria, antes, uma interpenetração. Assim sendo, mais do que em uma existência anterior ou pré-formação de sentimentos isolados, devemos pensar no processo de amadurecimento do eu como uma criação no tempo. Além disso, a idéia de contraste introduz o problema da oscilação entre polos contrários que levará Bergson a desenvolver o método das diferenças: diferenças de grau,
quando pensamos na transição progressiva ou na intensidade; diferenças de
natureza, quando se trata de qualidades ou funções diferentes.
Muito mais se poderia explorar nesse texto de Hume23, mas isso nós afastaria
do nosso objetivo, que é examinar o primeiro livro de Bergson – Ensaio, destacando a relevância da ação humana para a compreensão de noções antagônicas como as de “destino” e “liberdade”. Ora justificando os nossos atos através de um princípio de pré-determinação (lei de causalidade), ora na forma de ações livres, essas duas noções se contrapõem uma à outra e – o que aqui nos interessa – deixam de lado a essência da liberdade, prendendo-se à explicação teórica. Um bom começo seria pensar a liberdade como uma experiência e não como uma coisa.
A liberdade bergsoniana é uma liberação progressiva, incompatível com o determinismo e com a causalidade, na medida em que admite passagens graduais entre essas doutrinas e o fato da liberdade. Determinismo e causalidade não são estruturas irrecusáveis do 23 O próprio Deleuze parece interpretar o bergsonismo à luz de Hume como um “empirismo superior” ou talvez como um “empirismo transcendental”: “Na desarticulação do real que operam [as linhas de fatos] segundo as diferenças de natureza, elas já constituem um empirismo superior, apto para colocar os problemas e para ultrapassar a experiência em direção às condições
concretas [...].
A intuição apresenta-se como um método da diferença ou da divisão: dividir um misto em duas tendências. Esse método [...] é mais do que uma descrição da experiência e menos (aparentemente) do que uma análise transcendental” [...]. A semelhança vai ainda mais longe entre Hume e Bergson [...]. O projeto que se encontra em Bergson [...] não é absolutamente novo [...], uma vez que ele define uma concepção geral de filosofia e sob vários aspectos participa do empirismo inglês” (DELEUZE, 1999, p.21, 100, 115, 138-139 – grifo nosso).
20
real, senão ordenanças da ação transpostas para a especulação. Bergson pensa que uma filosofia mais intuitiva poderia desfazer-se dessa transposição ilegítima, por isso, introduz os dados imediatos da consciência: antes de pensá-los, já os estamos vivendo. Desse modo, o filósofo se instala no terreno da psicologia descritiva para comunicar aquilo que se passa nas vivências, que pertence ao âmbito do fazer-se e não ao do já feito.
Há duas maneiras de pensar a liberdade: primeiramente, como uma questão
moral cuja explicação examina os nossos juízos, procurando estabelecer alguma
relação de necessidade entre eles e a nossa ação. Nesse caso, a determinação
causal da ação poderá ser teleológica (ênfase na causa final – finalismo) ou
mecanicista, quando se articula a relação entre os motivos e a ação com base no principio de associação de idéias. A outra maneira é a que nos propõe Bergson e consiste em compreender a liberdade empírica através da ação contingente.
Trabalhar, por exemplo, é uma escolha ou uma obrigação? Uma vez feita essa
pergunta, a liberdade passa a ser entendida como uma alternativa entre possíveis ou como coerção. Ora, em que sentido podemos afirmar que a perspectiva de Bergson traz uma solução original para o problema da liberdade?
No contexto moral, a ação humana pode ser julgada, portanto, a liberdade
acarreta uma responsabilidade moral em vista da imputabilidade do ato praticado: atos voluntários são imputáveis, na medida em que são realizados “por querer”; atos involuntários não, porque são realizados “sem querer”. Quando o sujeito é ele próprio a origem causal dos seus movimentos, não pode alegar-se coerção externa.
Imaginemos um caso de envenenamento para medir as consequências dessa
formulação do problema da liberdade. Um sujeito bebe um cálice de vinho, ignorando que alguém colocou veneno nele. O ato de envenenar-se será, então, contingente, pois, para ser imputado, o agente deve conhecer as circunstâncias relevantes. Ainda que vaga, começa a delinear-se aqui a idéia de uma certa unidade de ação, oposta à permissão de que os nossos pensamentos corram à solta, visto que o homem raramente age, fala ou pensa sem um propósito e, por menos apropriados que sejam os meios que escolhe para atingir seus fins, nunca perde de vista um objetivo. Nessa acepção, a produção sem um desígnio seria atribuída ao louco e a intenção de praticar o ato é essencial no homem. Também no caso dos animais existe algo a perseguir ou do que se deve fugir, porém, não depende deles fazer o que fazem ou deixam de fazer, uma vez que são acometidos passivamente por seus desejos. O 21 homem, ao contrário, pode deliberar, por isso, as ações voluntárias são contingentes e ele é por elas responsável.
Em outro contexto, a liberdade humana é confrontada com o destino. Na
tragédia grega, por exemplo, os deuses fazem do herói uma espécie de “marionete livre”, manipulando as circunstâncias da ação. Não se trata aqui de um destino causal, mas de um destino trágico, já que o protagonista é vítima do destino que os deuses lhe causaram. Haveria uma simultaneidade entre a ação livre e outra ação desconhecida que leva o herói a cometer parricídio, incesto e outros crimes semelhantes. O plano dos deuses respeita inteiramente a autonomia da ação humana, fazendo com que o sujeito execute um plano que não foi por ele mesmo planejado, embora possa escolher livremente suas ações. Poderia se pensar que existe uma causa originária da qual derivam necessariamente todas as volições, sem deixar lugar para a contingência em parte alguma do universo.
Nenhuma indeterminação, nenhuma liberdade, pois a nossa ação sofre, ao mesmo tempo, uma atuação. O que é interessante nessa confrontação? Deixando de lado o plano dos deuses, essa simultaneidade da ação nos permitiria compreender a coexistência da ação livre com a ação prática e pensar nelas, não como em dois opostos (a liberdade de escolha absoluta, de um lado; a coerção ou o determinismo inflexível, de outro), senão como em duas tendências que nunca se realizam completamente. Estaríamos sempre na transição que vai de um a outro extremo, ora mais perto da ação livre, ora mais perto da ação prática. O que Bergson vai mostrar é que não se pode reduzir uma à outra nem explicar uma pela outra.24
A investigação em torno da ação se desdobra, necessariamente, em uma
descrição dos diferentes tipos de ação. É provável que este trabalho não consiga
esgotar a lista, mas ao deter-se em três modalidades (ação livre, ação prática e ação vital) e proporcionar-nos uma visão de conjunto, poderá oferecer uma idéia mais nítida do papel que este termo desempenha na obra de Bergson. O filósofo não dedicou nenhum livro ao conceito de ação25, mas aborda essa noção, de uma (?)
24 Essa parece ser a conclusão de Cappello ao apontar que liberdade e determinismo não são “auto-excludentes”, senão duas tendências originais que não podem ser superadas pela exclusãode uma ou de outra. A autora enfatiza a questão do trânsito entre essas duas tendências: “entre o constante fazer-se e deixar-se fazer”, sugerindo que na moral bergsoniana podem conviver um determisnismo que não exclui a possibilidaede da liberdade, e uma liberdade que não afasta o perigo do determinismo (cf. CAPPELLO, M. op. cit., p. 130).
25 Como fez, em 1893, Maurice Blondel partindo da seguinte constatação: “Na minha vida, a ação é fato, o mais geral e constante de todos. [...] É preciso transportar para a ação o centro da filosofia, já que lá se encontra também o centro da vida” (p.XXIII). O que para Bergson corresponde à mudança, à duração pura e, no final das contas, será definido como elã vital; para 22 maneira ou de outra, em todos os seus livros. Tentaremos, na medida do possível, isolar e reunir as principais questões relativas ao problema da ação, avaliando a coerência e a atualidade do tema, a fim de reconstituir um estudo fiel ao pensamento do autor que nos permita mostrar de que maneira a perspectiva bergsoniana ilumina alguns problemas filosóficos. Com esse intuito, nos esforçamos para situar os textos de Bergson em um mundo filosófico no qual o leitor encontrará também outros autores e comentadores, evidenciando, para além do interesse propriamente histórico da pesquisa, algumas contribuições que orientam a argumentação bergsoniana e consolidam a unidade da experiência filosófica.
O problema da ação surge como um problema de política quando o filósofo
grego começa a pensar suas ações em relação à cidade (polis). Para os modernos, esse problema assume um caráter moral ao considerar o “homem interior” e sua ação sobre ele mesmo. Dos três ramos frutíferos da “árvore cartesiana”: mecânica, medicina e moral, esta última era a mais visada pela filosofia (embora a semente do interesse filosófico pela natureza já estivesse presente em Bacon e numa parte do cartesianismo). Deveremos esperar até o século XIX para que esse interesse desperte completamente e se volte para o estudo da ação do homem sobre a natureza. É nesse período que “o ponto de vista da ação substitui aquele do dado, o dinâmico substitui o estático, tomando então lugar não apenas no homem, mas também no interior da própria natureza” (THIBAUDET, 1926, p.78-79). Nesse contexto, emerge uma filosofia que explica a inteligência pela ação, pelas condições e pelas necessidades de uma tomada de consciência do espírito sobre a matéria, pela natureza do homo faber. Essa é uma das contribuições do bergsonismo que se desenvolve a partir da intuição da ação. Blondel era simplesmente a ação. A ação é imanente ao homem, na medida em que ele não apenas age, mas deve agir. É na ação que o homem expressa o mais profundo de si mesmo, isto é, a sua vontade.
O movimento da vida é concebido a partir de uma dialética da vontade: “Por um lado, tudo que domina e oprime a vontade; por outro lado, a vontade de dominar tudo” (p.X). Esse eterno contraste entre o poder da vontade, que empurra a vida em direção a novas ações e os resultados factuais desses esforços denotam uma “desproporção entre o que somos e o que tendemos a ser” (p.145). A vontade querida coloca-se como objeto diante da vontade que quer e esta ressurge continuamente, visto que nunca chegamos a ser aquilo que queremos: “estamos em uma relação de dependência no que se refere ao nosso verdadeiro fim” (p.133) – cf. BLONDEL,
M. L’Action. Essai d’une critique de la vie et d’une science de la pratique. Paris: PUF, 1993.
Em termos mais bergsonianos, é por estarmos continuamente “em duração” que o nosso eu não pode ser algo pronto, mas aquilo que está sempre se fazendo, tal como a nossa ação. Blondel é uma das fontes inspiradoras que nos levaram a interpretar o conjunto da obra de Bergson como uma filosofia da ação, na qual a consideração da vontade e da ação acarreta o abandono da
prerrogativa da contemplação teórica. Nesse sentido, as principais intuições bergsonianas correspondem, nesta tese, aos capítulos sobre a ação livre, a ação prática e a ação vital. 23
Podemos tomar a ação como critério para pensar os problemas filosóficos, daí
a importância da teoria do conhecimento, porque não são apenas as coisas, senão também as palavras, que são recusadas como formas ou figuras da ação.
Bergson aplica a perspectiva da ação à ordem da especulação sem fazer da própria ação um novo conceito. Por isso, quando interpretamos o pensamento de Bergson como uma filosofia da ação, não pretendemos identificá-lo com uma etiqueta conceitual, e sim, mostrar que, descrevendo algumas ações, é possível dissolver problemas teóricos ao reaproximá-los da praxis. Para encontrar o princípio da ação é preciso que nós deixemos de agir, ou melhor, que alguma coisa deixe de agir em nós. Assim, poderemos sentir efetivamente a presença da ação por contraste com a sua ausência. A intuição da ação comporta, portanto, duas ordens: um caráter originário recoberto por outra espécie de ação; um princípio individual que se poderia assimilar à ação humana e uma transcendência universal da ação que permeia a dimensão vital. Da mesma maneira, Schopenhauer pensava que para chegar à verdade da vontade era necessário deixar de consentir à sua ilusão, isto é, deixar de querer.
Encontrar a totalidade indivisa da ação significa ir até o princípio mesmo do ser, por isso, a filosofia de Bergson nos coloca em contato com a nossa própria interioridade, na qual encontramos a ação, indo além do ato particular.26
Acreditamos que a ação humana decorre naturalmente de uma decisão prévia.
Somos livres porque a nossa ação implica uma escolha ante a qual se apresentam duas ou mais alternativas que nos convidam a deliberar. É verdade que muitas vezes nos sentimos influenciados por fatores externos, tais como pressões sociais, ou internos, como a nossa vida passada. Nesse caso, a relação entre passado e
presente poderia explicar a realização do ato, mas, se admitirmos que esses fatores são as verdadeiras causas da ação, a liberdade se torna um conceito ambíguo e, até mesmo, contraditório. É isso o que Bergson aponta na concepção determinista, aquela que, seguindo os mesmos pressupostos da física, aplica a lei de causa e efeito à liberdade da ação. Os estados de consciência não são isoláveis como os objetos físicos, por conseguinte, não podemos tratá-los da mesma maneira. Superar o determinismo psicológico exige uma compreensão adequada da temporalidade (duração psicológica) à qual poderemos assimilar à criação do ato-livre.
O Ensaio está dividido em três capítulos. No primeiro, Bergson destaca a
diferença qualitativa que caracteriza a noção de intensidade por oposição à extensão,26 cf. THIBAUDET, 1926, p.80. 24 concebida sempre a partir de diferenças quantitativas. Isso dá o “tom” do bergsonismo, marcado pela idéia de duração que o autor desenvolve no segundo capítulo.
A liberdade não poderá mais ser pensada a partir da justaposição de
elementos no espaço – como um diagrama em forma de “Y” –; ponto de partida dos deterministas e dos defensores do livre arbítrio, que escondem a sucessão temporal por trás da simbolização espacial. Assim, perdemos o caráter inextenso dos nossos estados de consciência, aquilo que faz deles um fluxo em devir, processo ininterrupto e irreversível que não se presta à simultaneidade necessária para justapor um momento (anterior) a outro (posterior). Bergson exprime esse fluxo temporal com o termo “fusão”, indicando que não se pode apreender a lei de causalidade como uma relação entre “momentos” do tempo, o primeiro sendo a causa do segundo, que é o seu efeito. Veremos que o filósofo inverte essa concepção da causalidade (própria da física) quando trata dos estados de consciência, alterando-lhe o nome para “causalidade psicológica”.
Compreende-se, assim, que Worms chame de fato primitivo à simples
constatação de que o tempo passa, visto que, se nos deixarmos levar pelas
mediações simbólicas e espacializantes, perdemos totalmente a realidade temporal.27
Não devemos procurar a temporalidade fora do espírito, numa suposta exterioridade material, mas sim, na duração, que é o dado imediato da consciência. É por isso que a metafísica de Bergson não ignora a “realidade de fato”, a passagem do tempo enquanto movimento. Se essa filosofia consegue recuperar o tempo, que é o seu verdadeiro objeto, terá sido graças à descoberta da nossa própria interioridade psicológica. Mas a observação da nossa vida interior exige que a psicologia se liberte dos pressupostos mecanicistas e materialistas. O determinismo psicológico é o primeiro desses pressupostos, ao qual Bergson contrapõe a “ação livre” como marca da indeterminação da vontade.
Com efeito, somos conscientes de um poder interno
que obedece ao comando de nossa vontade e nos permite mover os membros do
nosso corpo. Constatamos que a vontade tem uma influência sobre a língua e os
dedos, mas não sobre o coração e o fígado. Será que o ato de volição constitui uma espécie de poder criativo, na medida em que gera uma nova ação e modifica o quadro preexistente? Será que, como viu Hume, essa disposição mental ou expectativa que nos faz esperar determinado efeito quando se apresenta a causa é apenas um hábito? Quando nos deparamos com fenômenos extraordinários como 27 cf. WORMS, F. “A concepção bergsoniana do tempo”. Doispontos, v.1, nº 1 (2004b), p.129-149. 25 terremotos, somos incapazes de indicar uma causa adequada e de explicar o modo pelo qual o efeito é produzido por ela. Acreditamos que deve existir um princípio inteligente invisível (Deus ex-machina) ou – como fez Hume – concebemos a causalidade a partir da idéia de conexão necessária. Mas essa concepção, aos olhos de Bergson, tem dois problemas: em primeiro lugar, a divisão e a fixação de objetos;
conseqüentemente, a transferência da nossa sensação de esforço para esses objetos inanimados.
Enfrentar o problema da oposição entre liberdade e necessidade é um
verdadeiro desafio, tendo em vista que a filosofia passou dois mil anos “golpeando o vazio” numa controvérsia em torno da ambigüidade das palavras. As suspeitas que levantamos acima adquirem mais consistência quando pensamos em cada objeto como algo inteiramente novo, o que torna impossível obter qualquer ideia de necessidade ou conexão. Podemos admitir que um acontecimento se siga a outro, mas não que seja produzido por este. Ao observar conjunções constantes nas operações da natureza, transpomos esse hábito para o domínio da ação humana e acreditamos que podemos encontrar também aí certa uniformidade. Isso pressupõe um nivelamento da ação, isto é, a ideia de que os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações. Mas a fonte da ação é uma mistura de paixões mescladas em graus variados, assim, para ter acesso aos móveis da ação e do comportamento humano, teríamos que ser capazes de conhecer os sentimentos. Por isso, o filósofo da moral fixa os princípios do mesmo modo que o físico e pretende encontrar a uniformidade na ação de forma tão pronta e universal como no caso das operações
com corpos. É inegável o valor da experiência para conhecermos as inclinações
humanas a partir de suas expressões e gestos, mas a explicação de suas ações a
partir do conhecimento dos seus motivos é fruto de uma lógica retrospectiva.
Não podemos esperar que todos os homens venham a agir sempre da mesma
maneira, sem levar em conta a diversidade de caracteres. Essa uniformidade não se observa em parte alguma da natureza. Pressupõe-se apenas certo grau de regularidade e que a força do hábito molda a mente humana, conferindo esse caráter fixo e determinado à ação. Ante a mudança gradual de nossos sentimentos, Hume concede que é possível encontrar ações que não têm nenhuma conexão regular com quaisquer motivos conhecidos, exceções a todos os padrões de conduta estabelecidos pelo homem. Essas ações extraordinárias não podem ser explicadas nem mesmo pela própria pessoa que as vivenciou, já que o caráter do homem tem 26 certo grau de inconstância e irregularidade. Há pessoas que não se apegam a regras fixas de conduta, mas procedem de forma caprichosa e volúvel, enquanto outras preferem seguir uma rotina de vida, estabelecendo e respeitando horários de trabalho, descanso, alimentação, etc.
Será que é possível viver tão espontaneamente, sem seguir regras nem obedecer a padrões?
Será que isso nos daria uma prova mais intuitiva da liberdade humana?
Uma versão do argumento humeano do “prisioneiro” reaparece no filme Dancing in the dark (Lars Von Trier), na cena que mostra uma mulher condenada à forca. Ela pode imaginar (e cantar) todos os passos que dará até o momento da execução. A doutrina de necessidade baseia-se nessa conjunção regular de fatos e nunca foi objeto de disputa, pois, a uniformidade experimentada nas ações humanas nos permite fazer certas inferências acerca das suas motivações. Entretanto, a tentativa de atribuir necessidade às determinações da vontade sempre provocou o desacordo entre os filósofos, uma vez que ali está em jogo o princípio de indeterminação da vontade, aquele que anima internamente a ação.
Será que Bergson pretende defender a liberdade, desqualificando totalmente a necessidade? Ou será que ele desenvolve um projeto de reconciliação dos termos (semelhante ao de Hume), mostrando que a controvérsia metafísica é puramente verbal? Se levarmos em conta a ação da vontade nas deliberações da nossa vida, podemos pensar que a liberdade implica uma espécie de
indiferença, mas raramente experimentamos esse desprendimento ao refletir sobre as ações humanas: “uma atitude perfeitamente desinteressada”, nota Hume, se observa raramente nos lideres, muito pouco nos indivíduos, jamais nas multidões.28
De acordo com as determinações da vontade, a liberdade é um poder de agir ou de não agir. Haveria uma liberdade hipotética, universalmente admitida, para todo aquele que não esteja preso ou acorrentado. Assim formulada, a liberdade não se opõe à necessidade, mas à coerção, então, não precisamos postular a existência do acaso nem da liberdade absoluta por oposição à necessidade.29 A conciliação dos 28 cf. HUME, D. op. cit., p.125, 136-137.
29 É hora de abrirmos um longo parêntese. Francis Wolff chama a atenção para a formação de “conceitos híbridos”, a meio caminho entre o discurso prático e o discurso teórico, entre as exigências da pessoa e do ato, porquanto é preciso que a pessoa permaneça a mesma através da diversidade de seus atos, temporalmente dispersos: “o conceito metafísico de liberdade [...],
quando não se confunde simplesmente com o de vontade tem uma função similar”, que consiste em afirmar a identidade do sujeito que age. Essa observação coloca o problema da liberdade como uma alternativa entre “duas linguagens-mundo”, a que privilegia a identidade do eu (aquilo que já é) e a que pretende explicar a contingência da liberdade em termos do por quê:
Ação e duração
A suspeita de Hume
Que David Hume tenha acordado Immanuel Kant do seu sono dogmático não
é nenhuma novidade, mas que o empirista inglês tenha vislumbrado algumas
“intuições bergsonianas” parece bastante curioso.20 Pois, um dos maiores alvos de Bergson é o associacionismo, ao qual a teoria humeana do conhecimento fornece-lhe os fundamentos.21 Logo na seção 2 da sua Investigação22, Hume detecta um “fenômeno contraditório” com a sua teoria da correspondência entre impressão sensível e idéia: trata-se da “gradação contínua de tons”. Podemos imaginar uma tonalidade de azul que está entre outras duas, das quais temos a impressão sensível.
Nos aproximaríamos dessa tonalidade de azul, mesmo sem ter dela a impressão
correspondente, usando expressões como: “é um azul um pouco mais escuro”, ou então, “é um azul mais claro que esse e menos do que aquele”. Esse fenômeno foi, para Hume, apenas uma exceção à regra. Mas, como veremos, esse será o ponto de partida de Bergson, uma vez que introduz as noções de intensidade, de qualidade e de grau com as quais o filósofo francês poderá pensar a diferença qualitativa e a multiplicidade de fusão que dão impulso à sua própria filosofia da duração.
Na seção 3, Hume expõe a teoria da associação de ideias, isto é, os princípios
de conexão entre idéias. São eles: semelhança, contigüidade e causalidade, três
temas que ocuparão um lugar importante no desenvolvimento desta tese.
Veremos que a questão da semelhança é fundamental para a compreensão do fenômeno do 20 Esse é um típico enunciado anti-bergsoniano que pode deixar o leitor em estado de choque, pois todo processo de criação ou de invenção supõe, na verdade, uma imprevisibilidade que interdita a previsão. Por isso, usamos o verbo “vislumbrar” (do latim vix luminare, iluminar mal) para indicar que Hume viu algumas coisas que não desenvolveu e que, como veremos, permitem iluminar bem a posição de Bergson. Todavia, isso não é algo que salte aos olhos de um leitor humeano, nem mesmo de um bergsoniano; pelo contrário, é preciso ler nas entrelinhas dos textos, nos poros onde a escrita respira e tentar captar assim essas idéias que são, para nós, como “lufadas” de ar fresco.
21 “Bergson critica a hipótese da justaposição de fatos de consciência com exterioridade recíproca que [compõem] uma ordem reversível – hipótese defendida pelos adeptos da escola inglesa, não por acaso pais do determinismo” (CAPPELLO, M. “Liberdade e necessidade em Bergson: dois sentidos do eu?”, p.117. PINTO, D.; MARQUES, S. (Orgs.) – op. cit. É verdade que Hume seria aqui mais um avô do que um pai, visto que Bergson (e provavelmente Cappello) se refere aos psicólogos associacionistas do século XIX: Taine e Stuart Mill, entre outros, “filósofos que não se puderam resignar a serem simplesmente psicólogos em psicologia [...]. Psicólogos pelo método que aplicam, permaneceram metafísicos pelo objeto que se propõem” (PM, p.200).22 HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral (trad. J.Marques). São Paulo: Ed. Unesp, 2004.19
reconhecimento; a contigüidade denota um caráter de justaposição espacial que é criticado por Bergson; e a relação de causa e efeito se funda em uma transposição dos hábitos contraídos na ação para a esfera especulativa. Entretanto, há um quarto princípio de associação, que não é um elemento primordial da teoria, tanto que Hume só se refere a ele em uma nota. Ele o chama de “contraste ou oposição” e o define como uma mistura de causação e semelhança; rápida transição entre duas emoções contrárias, em que um objeto destrói o outro, causando a sua aniquilação, o que implica em sua existência anterior. Nessa nota, indiretamente, Hume está colocando o problema da sucessão temporal. A questão é saber se essa rápida transição entre estados de consciência – para falar em termos bergsonianos – implica uma destruição ou se não haveria, antes, uma interpenetração. Assim sendo, mais do que em uma existência anterior ou pré-formação de sentimentos isolados, devemos pensar no processo de amadurecimento do eu como uma criação no tempo. Além disso, a idéia de contraste introduz o problema da oscilação entre polos contrários que levará Bergson a desenvolver o método das diferenças: diferenças de grau,
quando pensamos na transição progressiva ou na intensidade; diferenças de
natureza, quando se trata de qualidades ou funções diferentes.
Muito mais se poderia explorar nesse texto de Hume23, mas isso nós afastaria
do nosso objetivo, que é examinar o primeiro livro de Bergson – Ensaio, destacando a relevância da ação humana para a compreensão de noções antagônicas como as de “destino” e “liberdade”. Ora justificando os nossos atos através de um princípio de pré-determinação (lei de causalidade), ora na forma de ações livres, essas duas noções se contrapõem uma à outra e – o que aqui nos interessa – deixam de lado a essência da liberdade, prendendo-se à explicação teórica. Um bom começo seria pensar a liberdade como uma experiência e não como uma coisa.
A liberdade bergsoniana é uma liberação progressiva, incompatível com o determinismo e com a causalidade, na medida em que admite passagens graduais entre essas doutrinas e o fato da liberdade. Determinismo e causalidade não são estruturas irrecusáveis do 23 O próprio Deleuze parece interpretar o bergsonismo à luz de Hume como um “empirismo superior” ou talvez como um “empirismo transcendental”: “Na desarticulação do real que operam [as linhas de fatos] segundo as diferenças de natureza, elas já constituem um empirismo superior, apto para colocar os problemas e para ultrapassar a experiência em direção às condições
concretas [...].
A intuição apresenta-se como um método da diferença ou da divisão: dividir um misto em duas tendências. Esse método [...] é mais do que uma descrição da experiência e menos (aparentemente) do que uma análise transcendental” [...]. A semelhança vai ainda mais longe entre Hume e Bergson [...]. O projeto que se encontra em Bergson [...] não é absolutamente novo [...], uma vez que ele define uma concepção geral de filosofia e sob vários aspectos participa do empirismo inglês” (DELEUZE, 1999, p.21, 100, 115, 138-139 – grifo nosso).
20
real, senão ordenanças da ação transpostas para a especulação. Bergson pensa que uma filosofia mais intuitiva poderia desfazer-se dessa transposição ilegítima, por isso, introduz os dados imediatos da consciência: antes de pensá-los, já os estamos vivendo. Desse modo, o filósofo se instala no terreno da psicologia descritiva para comunicar aquilo que se passa nas vivências, que pertence ao âmbito do fazer-se e não ao do já feito.
Há duas maneiras de pensar a liberdade: primeiramente, como uma questão
moral cuja explicação examina os nossos juízos, procurando estabelecer alguma
relação de necessidade entre eles e a nossa ação. Nesse caso, a determinação
causal da ação poderá ser teleológica (ênfase na causa final – finalismo) ou
mecanicista, quando se articula a relação entre os motivos e a ação com base no principio de associação de idéias. A outra maneira é a que nos propõe Bergson e consiste em compreender a liberdade empírica através da ação contingente.
Trabalhar, por exemplo, é uma escolha ou uma obrigação? Uma vez feita essa
pergunta, a liberdade passa a ser entendida como uma alternativa entre possíveis ou como coerção. Ora, em que sentido podemos afirmar que a perspectiva de Bergson traz uma solução original para o problema da liberdade?
No contexto moral, a ação humana pode ser julgada, portanto, a liberdade
acarreta uma responsabilidade moral em vista da imputabilidade do ato praticado: atos voluntários são imputáveis, na medida em que são realizados “por querer”; atos involuntários não, porque são realizados “sem querer”. Quando o sujeito é ele próprio a origem causal dos seus movimentos, não pode alegar-se coerção externa.
Imaginemos um caso de envenenamento para medir as consequências dessa
formulação do problema da liberdade. Um sujeito bebe um cálice de vinho, ignorando que alguém colocou veneno nele. O ato de envenenar-se será, então, contingente, pois, para ser imputado, o agente deve conhecer as circunstâncias relevantes. Ainda que vaga, começa a delinear-se aqui a idéia de uma certa unidade de ação, oposta à permissão de que os nossos pensamentos corram à solta, visto que o homem raramente age, fala ou pensa sem um propósito e, por menos apropriados que sejam os meios que escolhe para atingir seus fins, nunca perde de vista um objetivo. Nessa acepção, a produção sem um desígnio seria atribuída ao louco e a intenção de praticar o ato é essencial no homem. Também no caso dos animais existe algo a perseguir ou do que se deve fugir, porém, não depende deles fazer o que fazem ou deixam de fazer, uma vez que são acometidos passivamente por seus desejos. O 21 homem, ao contrário, pode deliberar, por isso, as ações voluntárias são contingentes e ele é por elas responsável.
Em outro contexto, a liberdade humana é confrontada com o destino. Na
tragédia grega, por exemplo, os deuses fazem do herói uma espécie de “marionete livre”, manipulando as circunstâncias da ação. Não se trata aqui de um destino causal, mas de um destino trágico, já que o protagonista é vítima do destino que os deuses lhe causaram. Haveria uma simultaneidade entre a ação livre e outra ação desconhecida que leva o herói a cometer parricídio, incesto e outros crimes semelhantes. O plano dos deuses respeita inteiramente a autonomia da ação humana, fazendo com que o sujeito execute um plano que não foi por ele mesmo planejado, embora possa escolher livremente suas ações. Poderia se pensar que existe uma causa originária da qual derivam necessariamente todas as volições, sem deixar lugar para a contingência em parte alguma do universo.
Nenhuma indeterminação, nenhuma liberdade, pois a nossa ação sofre, ao mesmo tempo, uma atuação. O que é interessante nessa confrontação? Deixando de lado o plano dos deuses, essa simultaneidade da ação nos permitiria compreender a coexistência da ação livre com a ação prática e pensar nelas, não como em dois opostos (a liberdade de escolha absoluta, de um lado; a coerção ou o determinismo inflexível, de outro), senão como em duas tendências que nunca se realizam completamente. Estaríamos sempre na transição que vai de um a outro extremo, ora mais perto da ação livre, ora mais perto da ação prática. O que Bergson vai mostrar é que não se pode reduzir uma à outra nem explicar uma pela outra.24
A investigação em torno da ação se desdobra, necessariamente, em uma
descrição dos diferentes tipos de ação. É provável que este trabalho não consiga
esgotar a lista, mas ao deter-se em três modalidades (ação livre, ação prática e ação vital) e proporcionar-nos uma visão de conjunto, poderá oferecer uma idéia mais nítida do papel que este termo desempenha na obra de Bergson. O filósofo não dedicou nenhum livro ao conceito de ação25, mas aborda essa noção, de uma (?)
24 Essa parece ser a conclusão de Cappello ao apontar que liberdade e determinismo não são “auto-excludentes”, senão duas tendências originais que não podem ser superadas pela exclusãode uma ou de outra. A autora enfatiza a questão do trânsito entre essas duas tendências: “entre o constante fazer-se e deixar-se fazer”, sugerindo que na moral bergsoniana podem conviver um determisnismo que não exclui a possibilidaede da liberdade, e uma liberdade que não afasta o perigo do determinismo (cf. CAPPELLO, M. op. cit., p. 130).
25 Como fez, em 1893, Maurice Blondel partindo da seguinte constatação: “Na minha vida, a ação é fato, o mais geral e constante de todos. [...] É preciso transportar para a ação o centro da filosofia, já que lá se encontra também o centro da vida” (p.XXIII). O que para Bergson corresponde à mudança, à duração pura e, no final das contas, será definido como elã vital; para 22 maneira ou de outra, em todos os seus livros. Tentaremos, na medida do possível, isolar e reunir as principais questões relativas ao problema da ação, avaliando a coerência e a atualidade do tema, a fim de reconstituir um estudo fiel ao pensamento do autor que nos permita mostrar de que maneira a perspectiva bergsoniana ilumina alguns problemas filosóficos. Com esse intuito, nos esforçamos para situar os textos de Bergson em um mundo filosófico no qual o leitor encontrará também outros autores e comentadores, evidenciando, para além do interesse propriamente histórico da pesquisa, algumas contribuições que orientam a argumentação bergsoniana e consolidam a unidade da experiência filosófica.
O problema da ação surge como um problema de política quando o filósofo
grego começa a pensar suas ações em relação à cidade (polis). Para os modernos, esse problema assume um caráter moral ao considerar o “homem interior” e sua ação sobre ele mesmo. Dos três ramos frutíferos da “árvore cartesiana”: mecânica, medicina e moral, esta última era a mais visada pela filosofia (embora a semente do interesse filosófico pela natureza já estivesse presente em Bacon e numa parte do cartesianismo). Deveremos esperar até o século XIX para que esse interesse desperte completamente e se volte para o estudo da ação do homem sobre a natureza. É nesse período que “o ponto de vista da ação substitui aquele do dado, o dinâmico substitui o estático, tomando então lugar não apenas no homem, mas também no interior da própria natureza” (THIBAUDET, 1926, p.78-79). Nesse contexto, emerge uma filosofia que explica a inteligência pela ação, pelas condições e pelas necessidades de uma tomada de consciência do espírito sobre a matéria, pela natureza do homo faber. Essa é uma das contribuições do bergsonismo que se desenvolve a partir da intuição da ação. Blondel era simplesmente a ação. A ação é imanente ao homem, na medida em que ele não apenas age, mas deve agir. É na ação que o homem expressa o mais profundo de si mesmo, isto é, a sua vontade.
O movimento da vida é concebido a partir de uma dialética da vontade: “Por um lado, tudo que domina e oprime a vontade; por outro lado, a vontade de dominar tudo” (p.X). Esse eterno contraste entre o poder da vontade, que empurra a vida em direção a novas ações e os resultados factuais desses esforços denotam uma “desproporção entre o que somos e o que tendemos a ser” (p.145). A vontade querida coloca-se como objeto diante da vontade que quer e esta ressurge continuamente, visto que nunca chegamos a ser aquilo que queremos: “estamos em uma relação de dependência no que se refere ao nosso verdadeiro fim” (p.133) – cf. BLONDEL,
M. L’Action. Essai d’une critique de la vie et d’une science de la pratique. Paris: PUF, 1993.
Em termos mais bergsonianos, é por estarmos continuamente “em duração” que o nosso eu não pode ser algo pronto, mas aquilo que está sempre se fazendo, tal como a nossa ação. Blondel é uma das fontes inspiradoras que nos levaram a interpretar o conjunto da obra de Bergson como uma filosofia da ação, na qual a consideração da vontade e da ação acarreta o abandono da
prerrogativa da contemplação teórica. Nesse sentido, as principais intuições bergsonianas correspondem, nesta tese, aos capítulos sobre a ação livre, a ação prática e a ação vital. 23
Podemos tomar a ação como critério para pensar os problemas filosóficos, daí
a importância da teoria do conhecimento, porque não são apenas as coisas, senão também as palavras, que são recusadas como formas ou figuras da ação.
Bergson aplica a perspectiva da ação à ordem da especulação sem fazer da própria ação um novo conceito. Por isso, quando interpretamos o pensamento de Bergson como uma filosofia da ação, não pretendemos identificá-lo com uma etiqueta conceitual, e sim, mostrar que, descrevendo algumas ações, é possível dissolver problemas teóricos ao reaproximá-los da praxis. Para encontrar o princípio da ação é preciso que nós deixemos de agir, ou melhor, que alguma coisa deixe de agir em nós. Assim, poderemos sentir efetivamente a presença da ação por contraste com a sua ausência. A intuição da ação comporta, portanto, duas ordens: um caráter originário recoberto por outra espécie de ação; um princípio individual que se poderia assimilar à ação humana e uma transcendência universal da ação que permeia a dimensão vital. Da mesma maneira, Schopenhauer pensava que para chegar à verdade da vontade era necessário deixar de consentir à sua ilusão, isto é, deixar de querer.
Encontrar a totalidade indivisa da ação significa ir até o princípio mesmo do ser, por isso, a filosofia de Bergson nos coloca em contato com a nossa própria interioridade, na qual encontramos a ação, indo além do ato particular.26
Acreditamos que a ação humana decorre naturalmente de uma decisão prévia.
Somos livres porque a nossa ação implica uma escolha ante a qual se apresentam duas ou mais alternativas que nos convidam a deliberar. É verdade que muitas vezes nos sentimos influenciados por fatores externos, tais como pressões sociais, ou internos, como a nossa vida passada. Nesse caso, a relação entre passado e
presente poderia explicar a realização do ato, mas, se admitirmos que esses fatores são as verdadeiras causas da ação, a liberdade se torna um conceito ambíguo e, até mesmo, contraditório. É isso o que Bergson aponta na concepção determinista, aquela que, seguindo os mesmos pressupostos da física, aplica a lei de causa e efeito à liberdade da ação. Os estados de consciência não são isoláveis como os objetos físicos, por conseguinte, não podemos tratá-los da mesma maneira. Superar o determinismo psicológico exige uma compreensão adequada da temporalidade (duração psicológica) à qual poderemos assimilar à criação do ato-livre.
O Ensaio está dividido em três capítulos. No primeiro, Bergson destaca a
diferença qualitativa que caracteriza a noção de intensidade por oposição à extensão,26 cf. THIBAUDET, 1926, p.80. 24 concebida sempre a partir de diferenças quantitativas. Isso dá o “tom” do bergsonismo, marcado pela idéia de duração que o autor desenvolve no segundo capítulo.
A liberdade não poderá mais ser pensada a partir da justaposição de
elementos no espaço – como um diagrama em forma de “Y” –; ponto de partida dos deterministas e dos defensores do livre arbítrio, que escondem a sucessão temporal por trás da simbolização espacial. Assim, perdemos o caráter inextenso dos nossos estados de consciência, aquilo que faz deles um fluxo em devir, processo ininterrupto e irreversível que não se presta à simultaneidade necessária para justapor um momento (anterior) a outro (posterior). Bergson exprime esse fluxo temporal com o termo “fusão”, indicando que não se pode apreender a lei de causalidade como uma relação entre “momentos” do tempo, o primeiro sendo a causa do segundo, que é o seu efeito. Veremos que o filósofo inverte essa concepção da causalidade (própria da física) quando trata dos estados de consciência, alterando-lhe o nome para “causalidade psicológica”.
Compreende-se, assim, que Worms chame de fato primitivo à simples
constatação de que o tempo passa, visto que, se nos deixarmos levar pelas
mediações simbólicas e espacializantes, perdemos totalmente a realidade temporal.27
Não devemos procurar a temporalidade fora do espírito, numa suposta exterioridade material, mas sim, na duração, que é o dado imediato da consciência. É por isso que a metafísica de Bergson não ignora a “realidade de fato”, a passagem do tempo enquanto movimento. Se essa filosofia consegue recuperar o tempo, que é o seu verdadeiro objeto, terá sido graças à descoberta da nossa própria interioridade psicológica. Mas a observação da nossa vida interior exige que a psicologia se liberte dos pressupostos mecanicistas e materialistas. O determinismo psicológico é o primeiro desses pressupostos, ao qual Bergson contrapõe a “ação livre” como marca da indeterminação da vontade.
Com efeito, somos conscientes de um poder interno
que obedece ao comando de nossa vontade e nos permite mover os membros do
nosso corpo. Constatamos que a vontade tem uma influência sobre a língua e os
dedos, mas não sobre o coração e o fígado. Será que o ato de volição constitui uma espécie de poder criativo, na medida em que gera uma nova ação e modifica o quadro preexistente? Será que, como viu Hume, essa disposição mental ou expectativa que nos faz esperar determinado efeito quando se apresenta a causa é apenas um hábito? Quando nos deparamos com fenômenos extraordinários como 27 cf. WORMS, F. “A concepção bergsoniana do tempo”. Doispontos, v.1, nº 1 (2004b), p.129-149. 25 terremotos, somos incapazes de indicar uma causa adequada e de explicar o modo pelo qual o efeito é produzido por ela. Acreditamos que deve existir um princípio inteligente invisível (Deus ex-machina) ou – como fez Hume – concebemos a causalidade a partir da idéia de conexão necessária. Mas essa concepção, aos olhos de Bergson, tem dois problemas: em primeiro lugar, a divisão e a fixação de objetos;
conseqüentemente, a transferência da nossa sensação de esforço para esses objetos inanimados.
Enfrentar o problema da oposição entre liberdade e necessidade é um
verdadeiro desafio, tendo em vista que a filosofia passou dois mil anos “golpeando o vazio” numa controvérsia em torno da ambigüidade das palavras. As suspeitas que levantamos acima adquirem mais consistência quando pensamos em cada objeto como algo inteiramente novo, o que torna impossível obter qualquer ideia de necessidade ou conexão. Podemos admitir que um acontecimento se siga a outro, mas não que seja produzido por este. Ao observar conjunções constantes nas operações da natureza, transpomos esse hábito para o domínio da ação humana e acreditamos que podemos encontrar também aí certa uniformidade. Isso pressupõe um nivelamento da ação, isto é, a ideia de que os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações. Mas a fonte da ação é uma mistura de paixões mescladas em graus variados, assim, para ter acesso aos móveis da ação e do comportamento humano, teríamos que ser capazes de conhecer os sentimentos. Por isso, o filósofo da moral fixa os princípios do mesmo modo que o físico e pretende encontrar a uniformidade na ação de forma tão pronta e universal como no caso das operações
com corpos. É inegável o valor da experiência para conhecermos as inclinações
humanas a partir de suas expressões e gestos, mas a explicação de suas ações a
partir do conhecimento dos seus motivos é fruto de uma lógica retrospectiva.
Não podemos esperar que todos os homens venham a agir sempre da mesma
maneira, sem levar em conta a diversidade de caracteres. Essa uniformidade não se observa em parte alguma da natureza. Pressupõe-se apenas certo grau de regularidade e que a força do hábito molda a mente humana, conferindo esse caráter fixo e determinado à ação. Ante a mudança gradual de nossos sentimentos, Hume concede que é possível encontrar ações que não têm nenhuma conexão regular com quaisquer motivos conhecidos, exceções a todos os padrões de conduta estabelecidos pelo homem. Essas ações extraordinárias não podem ser explicadas nem mesmo pela própria pessoa que as vivenciou, já que o caráter do homem tem 26 certo grau de inconstância e irregularidade. Há pessoas que não se apegam a regras fixas de conduta, mas procedem de forma caprichosa e volúvel, enquanto outras preferem seguir uma rotina de vida, estabelecendo e respeitando horários de trabalho, descanso, alimentação, etc.
Será que é possível viver tão espontaneamente, sem seguir regras nem obedecer a padrões?
Será que isso nos daria uma prova mais intuitiva da liberdade humana?
Uma versão do argumento humeano do “prisioneiro” reaparece no filme Dancing in the dark (Lars Von Trier), na cena que mostra uma mulher condenada à forca. Ela pode imaginar (e cantar) todos os passos que dará até o momento da execução. A doutrina de necessidade baseia-se nessa conjunção regular de fatos e nunca foi objeto de disputa, pois, a uniformidade experimentada nas ações humanas nos permite fazer certas inferências acerca das suas motivações. Entretanto, a tentativa de atribuir necessidade às determinações da vontade sempre provocou o desacordo entre os filósofos, uma vez que ali está em jogo o princípio de indeterminação da vontade, aquele que anima internamente a ação.
Será que Bergson pretende defender a liberdade, desqualificando totalmente a necessidade? Ou será que ele desenvolve um projeto de reconciliação dos termos (semelhante ao de Hume), mostrando que a controvérsia metafísica é puramente verbal? Se levarmos em conta a ação da vontade nas deliberações da nossa vida, podemos pensar que a liberdade implica uma espécie de
indiferença, mas raramente experimentamos esse desprendimento ao refletir sobre as ações humanas: “uma atitude perfeitamente desinteressada”, nota Hume, se observa raramente nos lideres, muito pouco nos indivíduos, jamais nas multidões.28
De acordo com as determinações da vontade, a liberdade é um poder de agir ou de não agir. Haveria uma liberdade hipotética, universalmente admitida, para todo aquele que não esteja preso ou acorrentado. Assim formulada, a liberdade não se opõe à necessidade, mas à coerção, então, não precisamos postular a existência do acaso nem da liberdade absoluta por oposição à necessidade.29 A conciliação dos 28 cf. HUME, D. op. cit., p.125, 136-137.
29 É hora de abrirmos um longo parêntese. Francis Wolff chama a atenção para a formação de “conceitos híbridos”, a meio caminho entre o discurso prático e o discurso teórico, entre as exigências da pessoa e do ato, porquanto é preciso que a pessoa permaneça a mesma através da diversidade de seus atos, temporalmente dispersos: “o conceito metafísico de liberdade [...],
quando não se confunde simplesmente com o de vontade tem uma função similar”, que consiste em afirmar a identidade do sujeito que age. Essa observação coloca o problema da liberdade como uma alternativa entre “duas linguagens-mundo”, a que privilegia a identidade do eu (aquilo que já é) e a que pretende explicar a contingência da liberdade em termos do por quê:
“Ou a liberdade é a liberdade de ser verdadeiramente o que se é, ou ela é a causa não-causada.
Ou a liberdade é a liberdade de um sujeito que é e permanece sendo ele mesmo, mas essa ligação a tal termos, na perspectiva bergsoniana, é o resultado de um método intelectual analítico que elimina a contingência para estabelecer um solo estável onde seja possível o conhecimento. Bergson deverá reconduzir o problema da liberdade para o âmbito da experiência imediata e da análise psicológica. Contudo, as suspeitas que aparecem em segundo plano nesse texto de Hume já apontam para uma convergência conceitual entre liberdade e ação, na qual nos instalamos para interpretar a “solução”
de Bergson.30
de Bergson.30
Assim como Kant, Bergson não ficou imune às suspeitas humeanas e foi
verificar ele mesmo em que consiste a crença na lei de causalidade. Se for apenas um hábito o que nos leva a atribuir a conexão entre os eventos passados e um evento presente, devemos indagar primeiramente o que são esses eventos.
O primeiro capítulo do Ensaio tem esse papel preparatório, pois, ao examinar a noção de “intensidade”, Bergson revela um primeiro sentido do hábito, qual seja, o processo de quantificação dos nossos estados de consciência. Esse procedimento, quase inconsciente, faz com que tratemos nossos sentimentos, prazeres e dores como se fossem uns maiores que outros. Afirmamos que um som é “mais alto” que outro ou que a luz é “mais fraca” ao entardecer que durante o dia. Essas expressões, muito úteis na linguagem ordinária, denotam uma quantificação das sensações cuja origem é a confusão que fazemos entre a causa objetiva e o efeito subjetivo da sensação.31
Delineia-se, assim, uma primeira formulação do problema da causalidade em vista da intensidade dos estados psicológicos.
sujeito determinado a perde: ela não é nada, ele faz o que é. Ou ela não é liberdade de ninguém, ela não é liberdade de um sujeito, mas liberdade de fazer. Não é mais a pessoa que é livre, é o ato que é livre: mas essa ligação com o predicado a perde: ela não é nada, ninguém age, tudo é feito”.
Essa observação coloca o problema da ação no âmbito da linguagem, na medida em que questiona se é possível pensar numa ação que não esteja fundada na estrutura predicativa:
Quem age? Quem é o agente? A crítica de Politzer ao bergsonismo – endossada por Merleau-Ponty – também se apóia nesse argumento ao apontar que Bergson trata a pura interioridade de um eu como um movimento em terceira pessoa. O problema é precisamente que esse “eu interior” pode ser qualquer pessoa quando se fala dele em “terceira pessoa” (o nosso eu profundo; o nosso eu superficial), visto que obedece às exigências do sujeito predicável. Em outras palavras, como é possível dizer e compreender a possibilidade da ação que é necessária para se conceber o ato de alguém?
A “saída” de Bergson consiste em mostrar que um ato é livre quando é apreendido na duração, mas aparece determinado quando é considerado como uma coisa extensa e analisável. Por isso, conclui Wolff, “um ato não ocorre no mundo de que se fala, mas no mundo em que eu falo, e em que eu estou”30
Interpretamos o bergsonismo a partir do conceito de ação, mas isso significa “filosofia intuitiva da ação” e não filosofia analítica, pois – como reconhece Wolff – “a filosofia analítica da ação tende a reduzir qualquer pensamento a uma série de proposições atômicas justaponíveis”
“O sentimento imediato da intensidade de um estado de consciência consiste para Bergson numa única coisa, seu efeito sobre nós, ou antes, na mudança que ele nos faz experimentar”
O segundo capítulo do Ensaio assinala a passagem de cada estado de
consciência apreendido isoladamente para a sua multiplicidade, o que explica a fusão entre eles por oposição a outra espécie de multiplicidade, concebida como justaposição de unidades. Assim, a teoria das multiplicidades estabelece uma distinção radical entre a noção de duração (mais próxima da realidade da nossa experiência subjetiva) e a idéia de espaço enquanto condição para o conhecimento objetivo.
Para romper com o “paralelismo” kantiano (tempo e espaço como duas formas da sensibilidade), Bergson analisa o conceito de “número”.32 O número, com efeito, é uma totalidade provisória, sempre divisível em novas partes, que implica justaposição de elementos idênticos no espaço. Este último passa a ser concebido como suporte da ação, deixando atrás os dados imediatos (que não serão tão imediatos, se o instante em que aparecem os trai por princípio). O espaço pode ser o suporte da nossa ação social, mas o suporte da ação livre é a duração psicológica. O terceiro capítulo do Ensaio é dedicado ao problema da liberdade, cuja abordagem denota uma dupla perspectiva, na qual Bergson reúne conhecimentos de metafísica e psicologia, consagrando a duração como eixo central de toda sua filosofia.
Pensemos a liberdade humana como uma manifestação exclusiva das ações
livres realizadas por um sujeito. Essa formulação é incompatível com o determinismo dos fenômenos, já que, ao introduzir a atividade do sujeito, interdita a relação causal que se poderia estabelecer exclusivamente entre os fenômenos. Tentaremos mostrar que a consideração da ação permite a Bergson explicar a unidade real do sujeito:
“toda unidade é aquela de um ato simples do espírito e, como esse ato consiste em unir, é preciso que alguma multiplicidade lhe sirva de matéria” (DI, p.55).
Essa formulação envolve um outro problema, a saber, como pode a duração em si mesma, sendo uma síntese aparentemente passiva de estados de consciência, fundar positivamente uma atividade subjetiva de tipo causal?33 Nosso trabalho deverá mostrar como aparece essa atividade real do “eu” na obra de Bergson, estabelecendo uma nova dualidade, qual seja, a oposição entre atividade e passividade. Tanto essa oposição quanto as noções de causalidade e simultaneidade não se compreenderiam senão através da ação recíproca que ocorre no tempo. Diferenciar o primeiro sentido
32 Essa intenção se justifica, num primeiro momento, como uma exaltação da duração, visto que, na Estética Transcendental, Kant concebe o tempo homogêneo por analogia com o espaço – o tempo como uma linha. A análise de alguns comentadores, no entanto, ilumina certos pontos de contato entre Bergson e Kant, sobretudo, no que concerne à ação. Segundo Worms, por exemplo, o espaço e o tempo são duas maneiras de agir sobre a realidade.
da ação consiste, portanto, em caracterizar o ato livre, procurando compreender o movimento crítico de Bergson em relação ao determinismo e à causalidade: “O ato livre é antes de tudo uma ação, um ato que acrescenta aos demais estados psicológicos a estrutura da ação, a qual consiste em influir sobre a exterioridade” Nesse sentido, o final do Ensaio evoca uma força ou esforço de atualização de si mesmo que define positivamente a ação livre como algo que é irredutível a toda regularidade e a toda lei. Assim como a duração, a liberdade deve ser procurada na passagem ou na integralidade dessas duas instâncias que são dois aspectos da ação.34 Intensidade, qualidade e sensação.
Por estado psicológico devemos compreender aquelas sensações,
sentimentos, paixões e esforços puramente internos aos quais Bergson chama de estados de consciência.
A palavra “estado” não deve sugerir-nos fixidez nem separação, como ocorre na psicofísica quando trata deles separadamente. Para Bergson, a diferença que institui a heterogeneidade é gerada internamente e não por separação de estados, como se estes fossem coisas exteriores umas das outras.
É comum compararmos um estado atual com outro anterior e concluir que uma dor, por exemplo, é mais intensa que outra.35 Nenhum problema em dizer que uma sensação cresce, quando essa afirmação vem do senso comum. O problema é fazer dela uma tese filosófica ou científica, na qual se mistura a qualidade da sensação com o esforço corporal. As contrações musculares são quantificáveis, mas a sensação pura não. Examinaremos, em seguida, algumas sensações, em vista a oposição defendida por Bergson entre diferença qualitativa e diferença quantitativa. Assim, pretendemos esclarecer porque não se pode medir a intensidade dos estados de consciência.
O sentimento de alegria, por exemplo, parece ocorrer de maneira crescente, visto que nos invade ocupando progressivamente a nossa alma. Porém, quando estabelecemos pontos de divisão no intervalo que separa duas formas sucessivas da alegria, perdemos a essência qualitativa desses “sentimentos diversos, cada um dos quais, anunciado já pelo precedente, se torna visível e a seguir o eclipsa definitivamente” (DI, p.13). Segundo Bergson, nós interpretamos este progresso
34 “Quanto mais a integralidade do sujeito e a integralidade da minha vida estejam engajadas na passagem para um ato singular, mais livre será esse ato” (WORMS, 1997, p.292).
35 “Nos parece evidente que experimentamos uma dor mais intensa ao sentirmos que nos arrancam um dente do que um cabelo” (DI, p.8).qualitativo no sentido de uma mudança de grandeza, o que não é legítimo do ponto de vista da duração.
Em relação aos “sentimentos profundos”, Morato Pinto retoma uma análise de
Bento Prado Jr. sobre a experiência estética, fazendo uma analogia com o esforçomuscular.36 Essa análise nos servirá como parâmetro para pensar em duração, visto que se trata de descrever um fenômeno que envolve progressão e transformação.
Com efeito, o sentimento da graça exprime, em primeiro lugar, uma desenvoltura marcada pela leveza como sinal de mobilidade. Isso é o que observa, por exemplo, um espectador que assiste à coreografia de uma bailarina.37 Podemos distinguir o movimento fácil, que tem uma finalidade intrínseca, do movimento difícil, cuja finalidade externa supõe um trabalho contra a matéria. A desenvoltura dos movimentos se manifesta virtualmente como algo que é sugerido, como um movimento nascente, mas não realizado. Esse é o sentido fundamental da duração, na qual uma forma pode anunciar a seguinte sem contê-la, mas estando virtualmente presente. Uma segunda figura da experiência da graça introduz a temporalidade na descrição: “A percepção de uma facilidade nos movimentos vem aqui fundir-se no prazer de interromper de alguma maneira a marcha do tempo e de conter o futuro no presente” (DI, p.9).
O tempo aparece como um conteúdo que se sintetiza a si mesmo de maneira imanente, conjugando continuidade e heterogeneidade no próprio sentimento. A terceira figura é a simpatia física, proporcionada pelo ritmo e o compasso do acompanhamento musical:
O ritmo, ao escandir o movimento, torna cúmplices o espetáculo e o
espectador [...]. O espectador não é apenas o beneficiário inessencial e
intercambiável que recebe passivamente a “graça” do espetáculo [...]; é
ele que suspende provisoriamente a legislação do mundo profano do
trabalho e da exterioridade. E é esta participação no ato que engendra o
espetáculo, esta cumplicidade entre visão e visível que Bergson
descreve como uma espécie de simpatia física (PRADO Jr.,1989, p.84).
Essa irresistível atração do gracioso afina com a simpatia moral na medida em
que supõe uma comoção, uma solidariedade no movimento que incita o espectador a mover-se junto com a bailarina, diluindo na temporalidade o espaço separador entre as partes. Se a ação prática instaura uma oposição entre o dado e o desejado, uma vez que “no tempo da praxis, a distância que separa o futuro do presente é a mesma
37 Para nós, a leitura de Bento Prado também anuncia a oposição entre a ação livre dessa “fenomenologia da graça” e a ação prática à qual o “finalismo da praxis” quer submeter o corpo.que separa o desejado do dado”, a ação livre será aquela na qual “a liberdade se faz regra última, não encontrando qualquer resistência por parte da matéria: o espírito de Deus deslizando sobre as águas”
Voltemos agora à análise das sensações. A confusão habitual entre qualidade
intensiva e quantidade extensiva nos leva a atribuir fases aos estados de consciência, distinguindo-os em função das variações de grau.38 As emoções, porém, são atravessadas por milhares de sensações, sentimentos e idéias, cada uma, por sua vez, sendo um estado único em seu gênero. Assim, quando extraímos do progresso qualitativo duas fases, que tratamos como duas emoções, já estamos, na verdade, lidando com diferenças de natureza.
Bergson sustenta que a crença nas grandezas intensivas39 se produz porque não temos consciência da emissão de uma força, e sim, do movimento dos músculos, que é o seu resultado. Por isso, quanto mais um dado esforço nos dá a impressão de crescer, tanto mais aumenta o número dos músculos que se contraem simpaticamente (como quando fechamos o punho cada vez mais).40
Esse exemplo mostra que Bergson não considera apenas a mudança qualitativa do sentimento de esforço, senão também a extensão progressiva da superfície do corpo implicada muscularmente na ação.41
Podemos adiantar que a teoria das multiplicidades distingue, de um lado, a
multiplicidade quantitativa e atual; de outro, a multiplicidade qualitativa e virtual. A primeira é representada pelas realidades físicas justapostas umas às outras, dotadas de número e de extensão, ou seja, de diferenças de grau; a segunda representada por realidades psíquicas interpenetrando-se umas às outras, dotadas de diferenças de natureza. À primeira vista, essa distinção parece indicar que Bergson põe tudo o que é contável e mensurável do lado da matéria e, no espírito, aquilo que não é. Mas para Fujita não se trata disso.42
Podemos adiantar que a teoria das multiplicidades distingue, de um lado, a
multiplicidade quantitativa e atual; de outro, a multiplicidade qualitativa e virtual. A primeira é representada pelas realidades físicas justapostas umas às outras, dotadas de número e de extensão, ou seja, de diferenças de grau; a segunda representada por realidades psíquicas interpenetrando-se umas às outras, dotadas de diferenças de natureza. À primeira vista, essa distinção parece indicar que Bergson põe tudo o que é contável e mensurável do lado da matéria e, no espírito, aquilo que não é. Mas para Fujita não se trata disso.42
A multiplicidade qualitativa não se define como indivisível, senão como aquilo que muda de natureza dividindo-se, aquilo que não cessa de dividir-se mudando de natureza. É para ilustrar essa transfiguração do intensivo em extensivo que Bergson usa o exemplo da mão esforçando-se. Nesse contexto, o problema do corpo começa a intervir, já que ao falar de uma
38
38
“Ao lado dos graus de intensidade, distinguimos instintivamente graus de profundidade ou elevação” (DI, p.15).
39 Esse é um conceito de origem kantiana. Para Kant, com efeito, o espaço e o tempo não têm grandeza no sentido físico; são condições para que possamos mensurar grandezas extensivas multiplicidade de sensações, devemos desembaralhar toda a série de estados psíquicos elementares que têm um modo de organização sui generis, das sensações periféricas, das contrações musculares e dos movimentos orgânicos, face às exigências da ação: “não se deverá comparar uma dor de intensidade crescente a uma nota da escala que se tornaria cada vez mais sonora, mas antes a uma sinfonia, em que se faria ouvir um número crescente de instrumentos” (DI, p.26).
O movimento de reação a um estímulo ou a disposição para um esforço tal
como o que fazemos ao fechar o punho cada vez mais é uma ação corporal que pode traduzir-se em sensações de dor ou prazer, mas permanece inconsciente enquanto movimento molecular. Parece como se subíssemos por graus insensíveis dos movimentos reflexos aos movimentos livres. Notemos que a diferença entre uma reação automática e uma ação livre já é demarcada aqui, quando se define o movimento livre como aquele que intercala uma sensação afetiva entre o estímulo exterior e a reação desejada que se segue. A liberdade pode ser sentida no corpo como uma afecção, o que leva Bergson a considerar a sensação (dor ou prazer) como um “começo de liberdade”, já que, caso contrário, esta não teria razão de ser.
Perceber a dor como um sinal corporal é algo que nos incita a agir ou, então, a
retardar uma ação. Este aviso que se intercala entre estímulo e reação só faz sentido para um ser que pode agir livremente, persistindo no movimento que vinha realizando, detendo-se ou mudando de atitude. O estado afetivo não é apenas um “abalo”, um movimento que já passou, mas aquilo que antecipa os movimentos que se preparam, aqueles que desejariam ser e que o corpo esboça apenas virtualmente.
Por isso, o estado de consciência presente é antes um índice da reação a acontecer do que a tradução em fenômeno físico da excitação ocorrida. Do ponto de vista da grandeza, sustenta Bergson, não há nada em comum entre um fenômeno físico e um estado de consciência. Vejamos que o prazer também é uma ação reflexa do corpo, uma inclinação espontânea que adere ao movimento de inércia, fazendo-nos “abismar” nele ao mesmo tempo em que recusamos outras sensações. Manter-se nesse estado afetivo exige uma resistência do corpo, cuja finalidade é não “orientação” corporal.
O caráter puramente qualitativo dos estados de consciência pode ser
encontrado nas sensações visuais e de gosto. A “desconfiança” humeana que
caracterizamos na primeira seção deste capítulo se justifica, agora, quando tratamos de comparar matizes de uma mesma cor. Uma cor azul, como tinha visto Hume, pode ser mais clara ou mais escura. E não há nenhuma idéia que corresponda a cada impressão, mas uma sensação qualitativa que se regula pela variação quantitativa da fonte que a produz.
No caso da cor, a alteração na fórmula da tinta (mais ou menos pigmento) será a causa da mudança qualitativa da sensação. Quando tomamos um café ocorre algo semelhante, pois o seu sabor pode parecer-nos mais ou menos amargo, entretanto, o que discernimos, de fato, durante a degustação é uma diferença de qualidade. São essas diferenças qualitativas que interpretamos como diferenças de quantidade em virtude do seu caráter afetivo, isto é, em função dos movimentos mais ou menos pronunciados de reação (prazer ou desgosto) que elas nos sugerem. Nas sensações auditivas, essa transformação inconsciente da qualidade em quantidade e da intensidade afetiva em grandeza é mais evidente, porque medimos a “altura” do som, assim como a intensidade da luz (mais ou menos luminosidade) e como tratamos a saturação das cores.
Para Bergson, é uma obsessão pela explicação causal que nos faz pôr a idéia
na sensação e a quantidade da causa na qualidade do efeito.43 O exemplo do alfinete esclarece esse argumento, que podemos chamar de argumento causal. Imaginemos que temos um alfinete em nossa mão direita e com ele espetamos suavemente a nossa mão esquerda, encostando levemente a ponta no início da operação e, aos poucos, pressionando cada vez com mais força. Estamos habituados a pensar que a sensação da mão picada equivale ao esforço progressivo que fazemos com a mão que espeta. Essa interpretação da picada é uma crença que assimila dois processos simultâneos a um só, reduzindo a qualidade da sensação afetiva à quantidade do
43 O argumento de Bergson lembra a critica de Berkeley à distinção entre “qualidades primárias” e “qualidades secundárias”, aceita de modo geral pela maioria dos filósofos no século XVII.
Locke e Newton, por exemplo, partilhavam com Galileu a idéia de que “cheiros, sabores, cores e assim por diante são apenas meros nomes que de forma alguma dizem respeito ao objeto em que se encontram, e residem somente na consciência.” (GALILEU. O ensaiador. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.219). Newton, por sua vez, explicava mecanicamente a sensação de cor, em virtude de um poder inerente às qualidades primárias dos objetos: “Se em algum momento falo que a luz e os raios são coloridos ou dotados de cores, isso não deve ser entendido filosoficamente [...]. Porque os raios, propriamente falando, não são coloridos. Neles não há nada mais que certo poder e disposição para causar [stir up] uma sensação dessa ou daquela cor”
As qualidades secundárias eram o efeito que certos corpúsculos de matéria (dotados das qualidades primárias de extensão, forma e movimento) podiam causar em nós. Berkeley vai dissolver essa distinção. Pois, se as
qualidades secundárias são todas “idéias na mente” e como estas não podem existir separadamente das qualidades primárias (já que toda cor deve ter uma extensão, o movimento não pode separar-se daquilo que se move, etc.), conclui-se que todas as qualidades, sejam primárias ou secundárias, devem existir na mente. Bergson, menos radical, também exige que se
considere a realidade qualitativa para não ceder ao movimento contrário, que consiste em quantificar a qualidade. Nesse sentido, a noção de “intensidade afetiva” vai responder pelo aspecto qualitativo da sensação, reportando a quantidade à causa exterior, a uma ação que implica certo esforço para produzir a sensação.esforço exigido pela ação. Assim, o termo “intensidade” torna-se sinônimo de “grandeza” e perde sua própria essência, que é qualitativa.44
qualidades secundárias são todas “idéias na mente” e como estas não podem existir separadamente das qualidades primárias (já que toda cor deve ter uma extensão, o movimento não pode separar-se daquilo que se move, etc.), conclui-se que todas as qualidades, sejam primárias ou secundárias, devem existir na mente. Bergson, menos radical, também exige que se
considere a realidade qualitativa para não ceder ao movimento contrário, que consiste em quantificar a qualidade. Nesse sentido, a noção de “intensidade afetiva” vai responder pelo aspecto qualitativo da sensação, reportando a quantidade à causa exterior, a uma ação que implica certo esforço para produzir a sensação.esforço exigido pela ação. Assim, o termo “intensidade” torna-se sinônimo de “grandeza” e perde sua própria essência, que é qualitativa.44
Isso é o que se observa, dizíamos, quando falamos da intensidade do som: a
altura de uma escala musical, o intervalo entre as notas e as linhas do pentagrama, dispostas uma acima da outra, são expressões que denotam uma tendência natural à espacialização e à quantificação do som. Representamos as notas sucessivas como pontos no espaço, separados uns dos outros por “saltos” bruscos. A física estabeleceu uma correspondência entre a altura das notas e o número de vibrações que se produzem em um tempo determinado. Então, acreditamos que o nosso ouvido percebe diretamente as diferenças de quantidade, mas o som seria pura qualidade se não introduzíssemos nele o esforço muscular que o produz (ou a vibração que o explica). A sensação de calor corrobora a crítica de Bergson e nos ajuda a compreender porque o autor nega que possamos medir a intensidade das sensações. A rigor, um calor mais intenso é outro calor (um calor qualitativamente diferente).
Mais uma vez, a grandeza da sensação representativa provém de uma “troca” do efeito pela causa que introduz na sensação movimentos de reação e descaracteriza a verdadeira intensidade do elemento afetivo.
É também natural sentirmos um aumento de sensação ao levantarmos algo
mais pesado. Bergson supõe que se alguém levanta um cesto, pensando que está cheio de ferro velho, terá que preparar uma contração muscular mais ou menos tensa. Não obstante, essa contração poderá não corresponder à sensação esperada, caso o cesto esteja vazio. O esforço despendido será maior do que o requerido e aí se perceberá, isoladamente, a quantidade de esforço. Esse aumento que sentimos se constitui, para Bergson, como uma nova sensação de aumento, puramente qualitativa. Introduzimos a idéia de grandeza nela, porque medimos o nosso próprio esforço muscular.45
A qualidade da sensação, sendo irredutível ao processo de quantificação, exige que se defina o aumento de sensação como uma sensação já quantificada a partir da sua causa exterior. Mas a sensação de aumento continua sendo qualidade pura, se compreendermos que ela apenas “representa” a grandeza. Note-se que Bergson contrapõe simultaneidade espacial e sucessão temporal, procurando distinguir o espaço e a duração. Nesse argumento, todavia, encontramos uma referência à simultaneidade temporal, já que se trata de dois processos que ocorrem concomitantemente na mesma localização espacial, que é o ponto da picada. Isso configura um problema que será retomado através da concepção dinâmica da causalidade.
“A diferença de qualidade se traduz aqui espontaneamente por diferença de quantidade, devido ao esforço mais ou menos extenso que o nosso próprio corpo fornece para levantar um dado
peso” (DI, p.35).
peso” (DI, p.35).
Li-Sol-30
Desconheço autor deste texto
Se souber, por gentileza me comunique!
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