domingo, 7 de abril de 2013

A FILOSOFIA VIVA DE CLAUDIO ULPIANO – por Guilherme Freitas


Mozart- Piano Concerto N*22 in flat. K482 - 34min.

A FILOSOFIA VIVA DE CLAUDIO ULPIANO 

– por

 Guilherme Freitas

O Globo – Prosa & Verso – Sábado, 6 de abril: AVENTURA DO PENSAMENTO

 


Conhecido pelas concorridas aulas em universidades e cursos livres que se espalharam pelo Rio nos anos 1980 e 90, o filósofo Claudio Ulpiano, que foi um dos pioneiros na difusão da obra de Gilles Deleuze no Brasil mas não deixou textos publicados, tem obra inédita lançada mais de uma década depois de sua morte. Centro dedicado à preservação do trabalho do professor prepara mais lançamentos, como livro de fragmentos e curso de cinema. 

Em uma mensagem enviada a um grupo de estudantes da Austrália, em 1990, Claudio Ulpiano definiu o filósofo brasileiro como “uma espécie de buraco no fundo dos oceanos, para onde as águas de todo o planeta se dirigem”.

 A mensagem começava no plural, como se Ulpiano falasse em nome dos pensadores da periferia do mundo: “exatamente por sermos uma mistura nós somos estrangeiros o tempo todo”, dizia. Mas logo deslizava para o singular, deixando claro tratar-se, no fundo, de um esboço de autorretrato: “sou filósofo, mas me misturo com santos medievais, poetas malditos franceses, pintores modernistas, música da pesada, matemática (…). E no meu entender isso é um meio de produzir alguma coisa nova, e talvez muito bonita”.

Essa breve descrição, com sua ênfase na palavra “mistura”, pode ser lida como a declaração de princípios de um professor para quem a prática da filosofia não se limitava às salas de aula, nem aos livros. Personagem singular da vida intelectual brasileira dos anos 1980 e 90, Ulpiano foi pioneiro na divulgação da obra de Gilles Deleuze no país e ficou conhecido pelas concorridas aulas na Uerj e na UFF e pelos cursos livres que oferecia por toda a cidade, em casas de amigos, centros culturais, espaços públicos.

 A multiplicidade de seus interesses se refletia nas turmas: artistas, cientistas, psicanalistas, jovens estudantes e acadêmicos experientes eram atraídos por sua fala ao mesmo tempo rigorosa e convidativa, que aproximava a filosofia dos alunos sem vulgarizá-la. Acreditava que o diálogo era a essência de seu trabalho de filósofo, e ao morrer, em 1999, aos 66 anos, não deixou textos publicados.
 
 
 
Esse cenário começa a mudar com o lançamento de “Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento”, uma edição do Centro de Estudos Claudio Ulpiano, coordenado pela viúva dele, Silvia Ulpiano, sua filha, Renata Duarte, e a escritora Marici Passini. A obra, fruto da tese de doutorado de Ulpiano na Unicamp, será lançada segunda-feira, às 19h30m, no campus da PUC na Gávea (no auditório B8, ala Frings), em um evento que terá apresentações de vários acadêmicos e artistas que foram alunos do filósofo.
O livro é a realização mais recente do Centro, que desde 2005 se dedica a catalogar e divulgar a obra do filósofo. 

O site www.claudioulpiano.org.br reúne aulas transcritas ou em vídeo (a partir de gravações de alunos, já que o professor não se preocupava em registrá-las), manuscritos, entrevistas, notas biográficas, depoimentos e ensaios sobre Ulpiano. Em 2012, o Centro criou o selo Ritornelo Livros para publicar obras dele e de autores afins. Entre os lançamentos planejados estão a coletânea “Escritos íntimos”, com reflexões sobre vida, arte e filosofia que Ulpiano deixou anotadas em cadernos de estudo, folhas soltas, guardanapos; um curso completo dele sobre cinema; e uma série de edições de bolso de algumas de suas principais aulas.

Ulpiano escreveu “Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento” nos últimos dois anos de vida. Combalido por um enfisema, cedeu aos pedidos de Silvia para deixar um registro escrito de suas reflexões. Trabalhou entre Rio, Campinas e a cidadezinha de Faxinal do Céu, na serra paranaense, aonde ia em busca de um impossível isolamento: os alunos iam atrás e ele os recebia alegremente. Entre as aulas, empenhava as forças em um texto que desse conta de sua paixão por Deleuze: “Se me proponho um trabalho sobre ele não são as funções científicas, as figuras estéticas ou as personagens filosóficas que me fazem tremer — mas os dias de gala que irei viver”, escreveu.

— Não é um livro sobre, e sim com Deleuze. Claudio queria extrair aquilo que estava virtual no pensamento de Deleuze, assim como o próprio Deleuze havia feito com Espinosa, Nietzsche, Bergson, Leibniz e tantos outros filósofos — diz Silvia.

O resultado é uma obra de capítulos curtos e independentes, que não seguem uma estrutura linear, e exploram os conceitos deleuzianos e suas leituras de outros filósofos numa linguagem mais densa que a de suas aulas. Ulpiano o define como um texto que “se pretende poético, como se fosse um poema. (…) É um sonho e coloca em primeiro plano os sonhadores. Mas também um enfrentamento — o mais inocente, do espírito consigo próprio”.

Uma leitura ética de Deleuze
Orientador de Ulpiano no doutorado, o professor da Unicamp Luiz Orlandi diz que a abordagem “poética” não se traduz em “facilitação literária” de Deleuze. É, antes, a postura natural para um pensador que desprezava “a visão tecnicista da filosofia”. Tradutor de obras importantes do francês, como “O anti-Édipo” e “Bergsonismo” (ambas pela Editora 34), Orlandi conheceu o colega em um congresso organizado depois do suicídio de Deleuze, em 1995.

 Na época, Ulpiano publicou um artigo no “Jornal do Brasil” afirmando que se deixar abater pela morte do filósofo “seria não ter aprendido sua lição: que o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos, porque nele há a potência de criar e de inventar”.

— Claudio reforçou naquele congresso sua leitura excepcionalmente ética de Deleuze. Ele o via como um pensador dos bons encontros, das relações mútuas que podem construir alternativas melhores para o mundo — diz Orlandi.

Ulpiano dizia que seu primeiro encontro decisivo foi com a biblioteca do pai. Nascido em Macaé, em 1932, veio ainda criança para o Rio e, depois da separação dos pais, morou com a mãe, que morreu jovem. Mudou-se então para a casa do pai, onde descobriu nas paredes forradas de livros a companhia ideal para as madrugadas insones da adolescência. Atravessava as noites lendo de Platão a Sartre, de Dostoiévski a romances água-com-açúcar. Mais tarde, encontrou no cinema e no jazz novas paixões.

Começou a dar aulas em Macaé, informalmente. Foi lá que Silvia o conheceu, durante um curso improvisado em um galpão, em 1977. Pouco depois, instalou-se de vez no Rio. Não tinha endereço fixo, nem trabalho estável.
 
 
 

O escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, na época professor de teoria psicanalítica na UFRJ, era vizinho de Silvia no Jardim Botânico. Um dia, ao sair de casa, topou com uma figura intrigante de barbas e cabelos longos e roupas em desalinho. Parecia um maltrapilho, recorda, mas a impressão se desfez quando Ulpiano se pôs a falar. Começaram ali uma conversa que duraria anos. À noite, o filósofo se acomodava no pátio do prédio do amigo, pedia uma garrafa cheia de café, e os dois ficavam até de manhã discordando sobre seus autores favoritos.

— Quando Claudio falava, não era como uma aula, era uma prática filosófica. Ele fazia questão de oferecer ao interlocutor tudo que sabia. Eu via filas de alunos atrás dele, parecia um filósofo pré-socrático andando por Atenas. Era a expressão viva da filosofia — diz Garcia-Roza, autor do prefácio de “Escritos íntimos”.

Garcia-Roza e Silvia incentivaram Ulpiano a dar aulas para se sustentar. Fez mestrado na Uerj e tornou-se professor lá e na UFF. Os alunos se empoleiravam nas janelas para ouvi-lo. Era requisitado para cursos de férias, enchendo salas em pleno verão. Começou a formar grupos de estudo fora das universidades, e essas reuniões filosóficas informais se tornaram uma inesperada moda carioca na virada dos anos 80 para os 90. O agravamento de sua saúde não interrompeu os cursos (Silvia conta que ele chegou a dar aulas deitado). Ulpiano via no ofício de professor “o melhor movimento que posso fazer na vida”, lê-se em um de seus manuscritos: 

“Ambiciono a solidão do meu pensamento
 — mas amo o convívio da aula. Esta ambiguidade, mais o caos que as pessoas que me cercam constituem, é toda a minha biografia”.


Na universidade e nos cursos livres, Ulpiano influenciou uma geração de professores de filosofia. Atraiu também muitos artistas pela mescla de conceitos filosóficos e análises de literatura, cinema, teatro e artes plásticas. O compositor Paulinho Moska tinha 23 anos e fazia sucesso com a banda Inimigos do Rei quando soube de um professor que falava de um tempo diferente do cronológico, o “tempo do artista”, no qual se confundiam passado, presente e futuro. 

As aulas de Ulpiano 
 abriram seus olhos para o pensamento 
teórico que atravessa a arte.


— Depois de algumas aulas perguntei o que estávamos estudando e ele respondeu: “a beleza”. Disse que eu não precisava me preocupar em decorar definições, e sim em criar a partir das aulas — diz Moska, que no lançamento do livro vai cantar a música “Gotas de tempo puro”, que compôs em parceria com Ulpiano (“Choveu dentro de mim/ gotas de tempo puro/ trovoadas de passado/ relâmpagos do futuro”).

Centro luta para preservar fitas e papeis
Ulpiano também colaborou, dessa vez para sua surpresa, com o espetáculo “A fase do pato selvagem”, do coreógrafo João Saldanha, com trilha do músico Sacha Ambak, ambos seus alunos. Eles usaram gravações das aulas para montar frases com a fala do professor. Na estreia, em 1998, Ulpiano, em cadeira de rodas na plateia, divertiu-se ao ouvir a própria voz no palco dizer: “Caminhar pelas ruas sem direção, perambulando, perambulando…”
 
 
Claudio tinha esse hábito filosófico de circular pela cidade em busca de diálogo. Nós nos conhecemos quando ele apareceu no ensaio de “Dança de três”, um espetáculo meu que ele ficou sabendo que era inspirado em Deleuze. Para ele não existia separação entre filosofia e arte, era tudo pensamento, criação — diz Saldanha.

Com o lançamento de “Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento” e dos próximos livros, o Centro de Estudos Claudio Ulpiano espera criar condições para que o filósofo continue dialogando com novas gerações de alunos. Sem sede fixa, a equipe do Centro sonha com um espaço para abrigar os manuscritos e a biblioteca de Ulpiano, onde poderiam promover também cursos e eventos. Por hora, porém, o mais urgente é preservar as centenas de papéis e fitas cassete com gravações de suas aulas, que correm risco de deterioração.

No site do Centro há uma farta amostra desse material, de aulas em vídeo com mais de uma hora a detalhes que iluminam a personalidade de Ulpiano, como a carta que escreveu para a filha de dois anos de um casal de amigos que o hospedou por alguns meses. De manhã, depois de mais uma noite insone de estudo, ele costumava encontrá-la na sala, vendo sempre os mesmos filmes, e sentava ao lado da menina para puxar conversa. O bilhete que deixou para ela é também uma espécie de declaração de princípios: “Julia Isabela, com seu pequenino espírito, diante de mim, quando lhe faço as ruinosas questões sobre ‘A bela adormecida’ e ‘O mágico de Oz’, torna-se hesitante: estaria à frente de um ignorante ou de um provocador? Mas, como seu coração ainda mantém o virgem tecido da inocência, ela me responde todas as vezes”.


 Fontes:
-filosofia-viva-de-claudio-ulpiano-492329.asp
sábado, abril 6, 2013 @ 10:04 AM-postado por: Editoria
O Globo – Prosa & Verso – Sábado, 6 de abril: AVENTURA DO PENSAMENTO

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