Ética de Blaise Pascal sobre a Existência Hunana - 5'
Princípio de Pascal -2'
Deus e Aposta de Pascal -10'
Blaise Pascal " L'UOMO É UNA CANNA CHE..." 50'
CDD: 149.7
FÉ E RAZÃO NA APOLOGIA DA RELIGIÃO CRISTÃ DE PASCAL
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Resumo:
O texto procura mostrar, por via de um comentário do fragmento que
contém as anotações de Pascal para a exposição feita em Port-Royal a
propósito da Apologia que pretendia escrever, que a implicação entre
razão e fé no esforço de compreensão da religião cristã deriva
diretamente da implicação entre grandeza e miséria, contradição
constitutiva do homem a partir do pecado original.
O próprio núcleo do cristianismo é paradoxal e contraditório; não há como torná-lo transparente à razão.
Mas podemos compreender as causas desse obscurecimento, a relação entre
a opacidade atual e a luz da verdade que os primeiros seres humanos
compartilharam com Deus, e a perda deliberada dessa condição. Podemos
compreender também, histórica e racionalmente, o percurso salvífico do
povo escolhido em direção à Redenção. É esse amálgama, de provas,
testemunhos históricos, contradições e mistérios que produz a relação
vivida, mais do que intelectualmente compreendida, entre o homem e a
verdade cristã para Pascal. Palavras-chave: miséria/grandeza; figurativos; história da salvação.
Sabemos
que o conjunto de fragmentos que conhecemos sob o título Pensées de
Pascal são anotações a partir das quais deveria ter sido composta uma
obra que se denominaria Apologia da Religião Cristã.
A
extrema diversidade de forma e conteúdo desses fragmentos torna
praticamente impossível qualquer suposição bem fundada acerca da maneira
como se teria constituído esse livro. Não temos, portanto, meios
seguros de, reorganizando e prolongando hipoteticamente o conjunto de
fragmentos, chegar a uma conclusão plausível sobre a forma final da
Apologia. No entanto, alguns desses textos nos revelam, de modo mais ou
menos preciso, algo a que poderíamos chamar o “projeto” de Pascal. É o
caso do fragmento que recebe o número 149 na edição Lafuma e 430 na
edição Brunschvicg, e que os comentadores crêem poder datar como sendo
de outubro de 1658.1 Nele encontramos as notas utilizadas por Pascal
numa exposição sobre o plano da Apologia feita em Port-Royal. O
comentário desse texto poderá talvez nos fornecer subsídios iniciais
para uma reflexão acerca da relação entre fé e razão na obra que Pascal
pretendia elaborar. Aceitaremos aqui, como meio de facilitar o trabalho,
os riscos inerentes ao esquematismo, dividindo o fragmento em 5 pontos.
1)
A primeira parte, que supõe o tratamento anterior do tema da dualidade
grandeza/miséria, que se apresenta para Pascal como uma contradição, e
da qual falaremos mais adiante, indica, por assim dizer
“dogmaticamente”, a maneira como a religião cristã deve ser considerada
como o único meio de penetrarmos nessas “espantosas contrariedades”
referentes à polarização constituinte da condição humana, situação que é
para o homem causa de perplexidade e infelicidade. Com efeito, a
“verdadeira religião” nos mostra que “há um
Deus; que somos obrigados a amá-lo; que nossa verdadeira felicidade é
estar nele, e o nosso único mal estar separado dele;que
reconheça que estamos cheios de trevas que nos impedem de conhecê-lo e
de amá-lo; e que assim como os nossos deveres nos obrigam a amar Deus, e
as nossas concupiscências nos desviam dele, estamos cheios de
injustiça. É preciso que nos dê satisfação dessas nossas oposições, em
relação a Deus e ao nosso próprio bem; é preciso que nos ensine os
remédios para essas impotências e os a respeito a Cronologia que integra.
Citaremos
os fragmentos segundo as numerações de Lafuma e Brunschvicg. meios de
obter esses remédios.” O que Pascal enumera aqui são as oposições
básicas das quais decorrem todas as outras que fazem do homem um ser
dividido. A contradição de fundo é aquela que opõe nossos deveres para
com Deus às nossas concupiscências: o predomínio destas nos mantém nas
trevas e introduz a injustiça no próprio núcleo do nosso ser, na medida
em que produz o afastamento de Deus. O homem não é apenas injusto, pelos
seus pensamentos e ações; a injustiça, tornada constitutiva, aparece
como aquilo que condiciona a sua própria natureza, enquanto corrompida.
Nesse sentido, agimos contraditoriamente em relação a Deus e ao nosso
bem porque todas as nossas ações estão comprometidas com a contradição
que nos define.
A
religião cristã nos apresenta essa contradição, e assim se distingue da
filosofia e das outras religiões que procuram superar a contradição
atendo-se a um dos seus termos: grandeza ou miséria. Quando a filosofia
nos faz crer que somos autárquicos e auto-suficientes na prática do bem
(estóicos) ela na verdade nos leva à presunção e ao orgulho como
substitutivos da visão de nossa condição; quando outras religiões (os
maometanos) nos fazem crer que a felicidade sobrenatural é constituída
de prazeres semelhantes aos terrenos, faz da concupiscência um critério
de crença e de esperança na vida futura. E assim exacerbam as nossas
“impotências” em vez de nos indicarem os “remédios” para elas. A
verdadeira religião não nos faz escolher entre o nosso bem e as nossas
fraquezas, mas nos mostra como as nossas fraquezas nos impedem de
alcançar o nosso bem.
A
religião cristã nos coloca o bem como exigência e ao mesmo tempo as
nossas fraquezas, que nos impedem de cumpri-la. Fica assim, nesse
primeiro momento, delineado o objetivo da Apologia, que só pode ser
estabelecido a partir de uma visão lúcida da contradição, da divisão que
atravessa a condição humana.
2)
Como e por que pode a religião cristã desempenhar esse papel que Pascal
julga estar fora do alcance de qualquer outro “saber” sobre o homem,
filosófico ou religioso? Porque o que caracteriza o cristianismo como
verdadeira religião é que nele se expressa a sabedoria de Deus.
Somente
ouvindo tal sabedoria é que o homem pode vir a saber algo acerca da
relação entre a sua fraqueza e o seu dever de atingir o bem, porque a
sabedoria divina pode nos falar de nossa dupla natureza: a perfeição
inicial e a corrupção atual. Pois a perfeição originária do homem deriva
do Criador; e sua corrupção deriva do mau uso que fez dos dotes a ele
atribuídos pelo Criador. “Criei o homem santo, inocente, perfeito;
enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas
maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Não se
achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o
afligem. Mas não pôde manter tanta glória sem cair na presunção. Quis
tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu socorro. Subtraiu-se
ao meu domínio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua
felicidade em si mesmo, abandonei-o; (...) de maneira que hoje, o homem
tornou-se semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim que
apenas lhe resta uma luz confusa do seu autor, de tal forma se
extinguiram ou perturbaram todos os seus conhecimentos!” Nesse segundo
momento Pascal, dando a palavra à própria sabedoria divina, revela a
causa das trevas e da injustiça em que o homem se encontra mergulhado.
A
causa da corrupção é a duplicidade de natureza introduzida no homem
pelo pecado. Há dois aspectos a serem observados na revelação dessa
causa: a perfeição com que o homem foi criado e que era uma imagem da
glória de Deus; e a presunção na qual, por sua própria vontade, o homem
transformou essa glória, pelo esquecimento de que ela era toda devida a
Deus, e não a si próprio. Foi esse esquecimento, gerado pela presunção,
que o encorajou a tentar fazer-se “centro de si mesmo”, igualando-se a
Deus. A glória do homem, sendo relativa a Deus, depende do “domínio” de
Deus, livremente aceito. Trocar o centro de si em Deus pelo centro de si
em si mesmo provocou então o afastamento, com o cortejo de misérias que
o acompanha.
A
queda ocorre então como a passagem da glória divina, de que
participava, à animalidade pura e simples, que passa a compartilhar com
as bestas. Trocou o domínio de Deus pelo domínio das criaturas, o que
deve ser entendido não tanto no sentido de que o homem deve se defender
dos animais mais fortes, mas principalmente no sentido de que a sua
própria natureza animalizou-se com o predomínio da concupiscência. Mas o
caráter especial atribuído à criatura humana por Deus (ser capaz de ver
a majestade de Deus) não se extinguiu de todo. Resta a “luz confusa”
como uma reminiscência imprecisa do seu autor, em meio às trevas em que
se transformou o conhecimento que dantes possuía de Deus. E essa
ausência de conhecimento de Deus tem como conseqüência a impossibilidade
de conhecer a si mesmo, pois o núcleo central desse conhecimento
esvaziou-se.
3)
No entanto, essa mesma “luz confusa” nos autorizaria talvez a falar de
um certo saber de si por parte do homem, não no sentido de que ele teria
adquirido um conhecimento, nos moldes daqueles que prometem a filosofia
e as falsas religiões, mas no sentido de apreender melhor as razões
pelas quais, justamente, não pode conhecer-se num regime de identidade
que conciliasse as oposições. Sabe, pelo menos, que é um ser
contraditório, como se tornou tal e o quanto é impossível que venha a
dominar pela razão essa contradição que o constitui, já que não existe
uma natureza humana a ser apreendida intuitiva ou analiticamente, mas
duas, e opostas entre si.
“Eis
o estado em que os homens se acham hoje. Resta-lhes algum instinto
impotente de felicidade de sua primeira natureza, e estão mergulhados
nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, a qual se tornou a
sua segunda natureza.” A “luz confusa” a que Pascal se referira
anteriormente relaciona-se com esse “instinto impotente de felicidade”. É
singularmente expressivo da condição humana que um “instinto”, isto é,
algo considerado como um guia infalível no âmbito da natureza, seja dito
“impotente” quando se trata de dirigir os homens para a felicidade. É
que, no caso da “segunda natureza”, a felicidade não é um estado
natural, pois o homem encontra-se afastado do ser em quem unicamente
encontraria a sua felicidade.
O
instinto não pode ser mais do que uma lembrança confusa da primeira
natureza, e nesse sentido ele é impotente para levar o homem ao encontro
de algo que ele deliberadamente recusou ao pecar.
Nesse
sentido a impotência do instinto é símbolo do homem abandonado por
Deus. E é algo que nos indica que há, na condição humana, traços que a
fazem trágica, como diz Goldmann, porque a memória da primeira natureza
nos põe diante de algo que não podemos alcançar, como se houvesse no
homem um impulso para uma meta que ele jamais atingirá, impulso ao qual,
paradoxalmente, os seus próprios movimentos não podem corresponder. Por
isso, essa contradição entre duas naturezas é ao mesmo tempo um
princípio de revelação:
“Por
esse princípio que vos revelo, podeis reconhecer a causa de tantas
contrariedades que assombraram todos os homens e os dividiram em
sentimentos tão diversos. Observai agora todos os movimentos de grandeza
e glória que a experiência de tantas misérias não pôde refrear, e vêde
se não é preciso que a causa disso esteja em outra natureza.”
Um
princípio de conhecimento constituído pelo amálgama de duas naturezas
contraditórias: por isso tal princípio só pode ser revelado pela
sabedoria divina pois a razão jamais procuraria um princípio de
explicação na contradição.
O
fato de que a contradição é o princípio de explicação do homem não
significa que Deus tenha criado uma criatura dividida e oposta a si
mesma. Ao desejar acrescentar, pela ilusão engendrada na soberba, algo
mais àquilo de que já fora dotado por Deus, o homem quebrou a unidade de
seu princípio, enfraquecendo a ligação com Deus de onde provinha a
potência de sua inclinação ao bem, motivo pelo qual ele agora tenta
atingir o bem e a felicidade a partir de sua própria fraqueza. Nesse
sentido a liberdade humana introduziu a desordem na criação, ao recusar a
ordenação originária da criatura para Deus. Tal desordem se manifesta
nos termos contraditórios do que deveria ser o princípio explicativo do
homem.
Mas
a “luz confusa” e o “instinto impotente”, reminiscências da natureza
perdida, manifestam-se ainda, com os “movimentos de grandeza” esboçados
no fundo da miséria. A contradição permanece justamente porque a miséria
não logrou “refrear” inteiramente tais movimentos que, no entanto, se
dependessem apenas do homem, morreriam no seu próprio nascedouro. Será
também objetivo da Apologia mostrar que a misericórdia de Deus nos
concede a graça para resgatarmos a união com Deus, recompondo a unidade
do nosso ser.
4)
Nesse que consideramos o quarto momento do texto, Pascal enfatiza a
insuficiência da filosofia, isto é, das luzes da razão, e a fraqueza do
homem para retornar a Deus. “É em vão, ó homens, que procurais em vós
mesmos o remédio para as vossas misérias. Todas as vossas luzes só podem
chegar a conhecer que não é em vós mesmos que descobrireis a verdade e o
bem. Os filósofos prometeram-no mas não puderam fazê-lo. Não sabem qual
é o vosso verdadeiro bem, nem qual o vosso verdadeiro estado.”
Retoma-se aqui o tema da impossibilidade de se considerar, pela razão,
os dois termos da contradição constitutiva do homem, grandeza e
miséria.
A razão, isto é, a filosofia, escolhe.
Considera que o homem participa da natureza divina, seja pela via do
panteísmo estóico, para o qual Deus está em nós e nós estamos em Deus,
simplesmente pela razão de que, em última instância, tudo é Deus, seja
pela via de provas racionais que nos fazem transpor a distância entre a
finitude humana e a transcendência divina, ignorando a insuficiência da
nossa segunda natureza; ou nos considera completamente incapazes de
qualquer movimento de grandeza, seja no conhecimento, seja na moral
(pirronismo), e assim nos aparta da natureza divina de uma forma
radical, como se nunca tivéssemos tido uma primeira natureza. A questão é
mais complexa: não estamos prontos para buscar o nosso bem em Deus,
porque nossa condição não nos faz semelhantes a ele por natureza; mas
nem por isso devemos inferir que deveríamos, por natureza, procurar o
nosso bem na esfera da concupiscência, pois nossa natureza não é
exclusivamente animal.
No
primeiro caso assumiríamos o orgulho, no segundo a baixeza; mas é no
plano da contradição entre essas duas atitudes que se encontra o
“remédio”. Tanto é assim que podemos reconhecer os “dois estados” em
nós, atentando para os movimentos que nos levam a desejar a grandeza e
aqueles que nos inclinam a conformarmo-nos com a concupiscência. “(...)
observai-vos a vós mesmos, e vede se não encontrais aí os caracteres
vivos dessas duas naturezas.” As seitas filosóficas recalcaram ou os
caracteres indicadores de miséria ou aqueles relacionados com a
grandeza; mas eles permanecem “vivos”, na efetividade da contradição que
constitui a condição decaída, e o grau de intensidade da miséria é
tanto maior quanto mais ela é sentida como queda de um estado contrário.
A razão filosófica é simplificadora; mas a vivência autêntica da
contradição é uma espécie de refutação existencial dessa explicação simples. “Tantas contradições se achariam em assunto simples?”
5)
É importante considerar essa espécie de refutação existencial da
incompreensibilidade racional porque o que se pode obter com isso terá
uma base mais firme do que a razão, tratando-se da relação entre Deus e o
homem. Parece ser este o sentido da aproximação de duas palavras na
seqüência do texto, que aqui consideramos na sua quinta parte:
Incompreensível e Incrível. “Incompreensível.
Tudo que é incompreensível não deixa por isso de existir. O número infinito.
O
espaço infinito igual ao finito. Incrível que Deus se una a nós.”2 O
homem não é “assunto simples”. Nesse ser complexo e contraditório, a
constatação da própria existência é muito mais um desafio à razão do que
a comprovação do seu poder de afirmação. Pode-se dizer que Pascal
situa-se entre Montaigne e Descartes da seguinte forma: o pirrônico,
para Montaigne, duvida de tudo menos de sua própria dúvida, pois quando
duvida sabe que está duvidando. É como se ele pudesse dizer, portanto,
duvido, logo existo. Sabemos que Pascal aproveita-se dessa afirmação de
Montaigne para constatar que nunca houve pirrônico perfeito. Mas do fato
de que o cético não pode refutar o cogito não se segue para Pascal
nenhuma promessa de conhecimento sistemático alicerçado nessa primeira
verdade. Pois o Eu penso enquanto verdade significa precisamente que eu
duvido, e que é verdade que duvido.
A
diferença entre Montaigne e Descartes é que o primeiro afirma a
indubitabilidade da dúvida e o segundo afirma a indubitabilidade do Eu
que duvida. Para Pascal essa diferença não é relevante, pois o que lhe
interessa é negar, em relação ao cético, que não podemos chegar a
qualquer verdade e, ao mesmo tempo, mostrar que o sujeito pensante
descoberto por Descartes é, antes de tudo e talvez permanentemente, o
sujeito que duvida ou que pode ter qualquer uma de suas afirmações
postas em dúvida.
De alguma maneira, é 2
Na tradução brasileira da Nova Cultural, Coleção Os Pensadores, que
segue a edição de Brunschvicg, há um ponto de interrogação depois de
Incompreensível e de Incrível. Na edição Lafuma esse sinal não existe como
se Descartes nos tivesse salvo do ceticismo completo para que, de posse
da verdade da existência, tivéssemos assim assegurada a base subjetiva
de toda dúvida, e pudéssemos continuar a oferecer o flanco aberto ao
ataque do cético.
3
Nem o cético, nem o dogmático podem suplantar um ao outro: a
contradição constitutiva impede que a vitória seja definitivamente
atribuída a qualquer um deles. Isso significa que quando anulamos um dos
lados em proveito do outro escamoteamos a nossa própria condição. Pois,
como assinala Bénichou, para Pascal a dúvida não antecede a razão; é o
próprio exercício racional que suscita a dúvida, de acordo com a
convicção de Pascal que a nossa condição, no seu dinamismo
contraditório, consiste na passagem entre contrários.4 Por isso há,
nessa condição, algo de indecidível que se mostra quando refletimos
acerca de nossa relação com Deus. “Incrível que Deus se una a nós”: de fato, o que nos levaria a pensar que Deus pudesse comunicar-se com uma criatura que se autovilipendiou pelo pecado?
No
entanto, se afirmamos isso dogmaticamente, arrogamo-nos o direito de
“medir a misericórdia de Deus e de nela introduzir os limites que
[nossa] fantasia [nos] sugere”. Pois quem somos nós para afirmar que
nossa baixeza levou Deus a anular completamente a capacidade humana de
senti-lo e de amá-lo? Quando constatamos que existimos não percebemos
também que um dos modos desse existir é a inclinação para amar, ainda
que ela se exerça nas trevas? Ora, se em meio a essas trevas, se Deus
emitisse algum sinal luminoso de si próprio, “não seria [o homem] capaz
de conhecê-lo e de amá-lo da maneira como aprouvesse a Deus comunicar-se
conosco?”
Devemos,
portanto, abandonar duas pretensões: o conhecimento de Deus e de nós
mesmos, posto que vivemos nas trevas; e a negação completa da
possibilidade de que Deus se dê a conhecer, pelo poder que possui de
atravessar as trevas que nos envolvem. Se nossa impotência pode
levar-nos ao desespero quanto à nossa relação com Deus, disso não
podemos inferir, contudo, a negação de toda esperança, pois em qualquer
dos casos estaríamos afirmando mais do que nossa fraqueza permite. O que
significa que é da miséria que
pode brotar a expectativa de que Deus não nos abandone inteiramente. Faz
parte do paradoxo de nossa condição que o desejo de absoluto e de
infinito se enraíze na extrema miséria que qualifica nossa finitude, e
por isso é somente a partir da consciência profunda da nossa
insuficiência que podemos esperar qualquer gesto de Deus.
A
religião cristã, isto é, a revelação de Deus em Cristo, insere-se nesse
espaço incompreensível que se situa entre a cegueira humana e a
manifestação luminosa de Deus. Por isso ela se constitui tanto daquilo
que o homem pode compreender quanto daquilo que é e será sempre
inacessível à razão. “Não quero que submetais vossa crença em mim sem
razão e não pretendo assujeitar-vos com tirania. Não pretendo tampouco
tudo justificar.” Por que as verdades da religião se manifestam de dois
modos contrários entre si? Porque Deus se revela a criaturas livres que
podem tanto abrir-se à revelação quanto tornarem-se impermeáveis a ela.
“Deus
quis redimir os homens e abrir a salvação aos que o procurassem. Mas os
homens se tornaram tão indignos disso que é justo que Deus recuse a
uns, por causa do seu endurecimento, o que concede a outros por uma
misericórdia que não lhes é devida.”5
Deus
poderia ter-se manifestado de forma irrecusável, como ele o fará no
Juízo Final, mas isso teria sido de alguma maneira violentar a liberdade
de crer. Por isso aqueles de coração “endurecido” não aderiram a
Cristo, recusando-se a aceitá-lo como o Salvador.
Não
viram o sinal de Deus manifestando-se nas trevas. Como essa
manifestação supõe as trevas e a luz, aqueles que souberam ver a luz nas
trevas, porque “a procuravam”, foram agraciados com a salvação, embora
tampouco a merecessem, mas porque Deus recompensa com o encontro aqueles
que labutam na procura “de todo o seu coração” e deixa permanecer nas
trevas aqueles que o recusam, também “de todo o seu coração”. Essa é a
razão pela qual a fé é decisiva, pois é ela que nos faz sentir Deus por
via do coração, desde que ele não esteja endurecido pelo afastamento de
Deus, que nesse caso se manifesta pela recusa da fé. Vê-se que a
liberdade de crer é inseparável da RAZÃO.
Nesse
trecho Pascal indica a doutrina da graça tal como era interpretada
pelos jansenistas e cujos elementos principais são a graça eficaz e a
predestinação.inclinação do coração para Deus. As “provas” que Deus
fornece acerca de si mesmo não são eminentemente racionais nem visíveis
empiricamente. São marcas de divindade que colam no coração humano,
porque são destinadas a ele e não ao intelecto ou aos sentidos. Por isso
os judeus, que esperavam sinais visíveis da divindade do Messias, e
entendiam que tais sinais deveriam ser do âmbito da grandeza humana e
material, não reconheceram Jesus Cristo como o enviado de Deus, e,
portanto, não abriram seus corações para que ali se depositassem as
marcas divinas, todas de ordem espiritual e relativas à caridade. Isso
não significa que aqueles que creram o fizeram cegamente.
As
marcas, que são provas divinas de Deus, convencem não porque a razão as
aceita como se pudesse produzi-las, mas porque não há mais “razões”
para recusá-las do que para aceitá-las. Essa indecidibilidade, em si
mesma racional (pois faz parte da razão reconhecer aquilo que a
ultrapassa) é também sinal de ensinamento divino, que enquanto tal
extrapola o âmbito da razão. O fato de que o homem não pode saber “por
si mesmo” se as marcas são ou não são de Deus deveria ser motivo
suficiente para a aceitação da “autoridade” divina. É por isso que as
marcas, enquanto “provas”, são muito mais para serem sentidas do que
conhecidas. Mas como “saber” algo acerca de Deus é idêntico a
aproximar-se dele, pois o horizonte desse saber é a reunião com Deus, o
sentimento que se manifesta como desejo do infinito é mais pertinente do
que o conhecimento, e o coração é em nós a faculdade “capaz” desse
sentimento. E é esse sentimento que a Apologia pretende despertar ou
redespertar.
Ela
não se dirige, portanto, exclusivamente à razão, motivo pelo qual
Pascal desprezará as provas filosóficas da existência de Deus.
“Prefácio. As provas metafísicas de Deus acham-se tão afastadas do
raciocínio dos homens e tão embrulhadas que pesam pouco; e, mesmo que
isso servisse para alguns, serviria apenas durante o instante em que
vissem essa demonstração; mas, uma hora depois, receariam ter-se
enganado.” (Fr. Laf. 190/Br. 543)
O termo que Sérgio Milliet traduz como “embrulhadas” é impliquées e a
palavra vertida como “pesam” é frappent: as provas metafísicas de Deus
são implicadas em si mesmas,isto é, enquanto elaboração da razão, elas
dependem de pressupostos e categorias que se encontram no interior dos
limites da razão e do seu estilo de pensar – ou de demonstrar. Ora, é
essa auto-implicação das provas racionais que faz com que elas frappent
peu, impressionem pouco, porque elas não pressionam as marcas de Deus no
coração, mas apenas organizam um encadeamento de idéias.
Não
é por acaso que tais provas estão “afastadas do raciocínio dos homens”;
não é tanto porque sejam difíceis, mas é muito mais porque o estilo
demonstrativo provoca, nesse caso, uma espécie de sentimento de
insatisfação. Assim, a aparente irrefutabilidade formal não é suficiente
para impedir que, após o instante que dura a validade demonstrativa,
venha o receio de que nos tenhamos enganado, ou seja, sobrevenha o
sentimento de insuficiência da prova. É como se tal sentimento fosse a
contrapartida do sentimento de Deus que a prova não pode fornecer. O
coração não é sensível à demonstração; o que o “impressiona” é de outra
ordem e ele se deixa levar até a verdade por uma outra espécie de
mediações, que poderíamos chamar de mediações reais, para opô-las às
mediações formais do raciocínio.
Qual é a mediação real que nos aproxima de Deus?
“Quod curiositate cognoverunt superbia amiserunt. É o que produz o
conhecimento de Deus obtido sem Jesus Cristo, e que é o de comunicar-se
sem mediador com o Deus que se conheceu sem mediador. Ao passo que os
que conheceram Deus pelo mediador conhecem a própria miséria.” (Fr. Laf.
190/Br. 543) Assim como não há proporção entre o finito e o infinito,
não pode haver igualmente entre as mediações finitas construídas pela
mente humana numa cadeia de raciocínios e Deus. O que significa que
todas as provas humanas, todas essas mediações formais para atingir Deus
pela razão, equivalem a nada. Mas então temos de convir também que a
única mediação possível estaria na escala do infinito, e assim o homem
não poderia formulá-la. Pior: como indica a frase de Santo Agostinho
citada por Pascal, aqueles que acham Deus unicamente pela curiosidade,
isto é, por si mesmos, perdem-no no próprio ato de encontrá-lo, uma vez
que o acharam num movimento de soberba.
Portanto
não se trata apenas de não encontrar Deus pela razão; trata-se de
encontrar um falso deus e nele se fixar, o que é a pior forma de perder a
Deus, pois o encontro da falsidade faz cessar a busca pela verdade.
Assim, apesar de todas as dificuldades, a mediação tem de estar mesmo na
escala daquilo que se busca, isto é, do infinito. E é certo que o homem
não encontraria tal mediação, mas Deus a ofereceu. Jesus Cristo, que é
Deus, enquanto Deus encarnado e presente na história, é a mediação entre
o homem e Deus, e mediação perfeita porque encerra, na sua dupla
natureza, o Deus procurado pelo homem, e o homem, que procura por Deus.
Mas para que tal mediação se efetive, é preciso que o homem aceite o
mistério das duas naturezas presentes em Cristo, o homem/Deus. É preciso
que aceite, pela fé, o dogma central do cristianismo, que assim se
mostra como única religião verdadeira, já que fornece a única mediação
possível entre nós e a Verdade. Se não aceitamos o cristianismo como a
religião instituída pelo Mediador, não encontramos o único Mediador
real.
Se não acreditamos na realidade do homem/Deus proclamada pelo cristianismo, não encontramos, através dele, a Deus.
Essa
circularidade é significativa: ela mostra que só chegamos a Deus por
Deus, e nunca por nós mesmos exclusivamente. Aceitar isso é aceitar que
procuramos a Deus a partir da nossa miséria e, assim, tomar consciência
dessa miséria: “(...) os que conhecem Deus pelo mediador conhecem sua
miséria.” Como Cristo é aquele que traz a graça redentora, conhecer a
Deus pela mediação do Cristo é também reaproximarmo-nos de Deus, de quem
estávamos afastados pelo pecado. Esse conhecimento como reaproximação
só é possível pela mediação crística, pois só Deus pode operar essa
re-união.
Daí
a função que desempenha, na Apologia, a apresentação de Cristo como
mediador, e as “provas” da divindade de Cristo que Pascal julga poder
oferecer, não apenas a partir da Encarnação, mas a partir de toda a
história do povo de Deus consignada no Antigo Testamento e que não
possuiria outro sentido além da anunciação de Cristo, como se poderia
ver, sobretudo, pelas profecias. Por isso a teoria dos figurativos tem
alcance decisivo na apologética pascaliana, pois é por ela que
aprendemos a entender todas as personagens e episódios da Bíblia como
antecipações figurativas do Cristo, e principalmente todas as profecias
fundamentalmente como o anúncio de Cristo.
A história do povo judeu é a história da preparação(?)
para a salvação. Ora, a superação do significado literal das Escrituras
na direção da significação espiritual aí figurada seria uma daquelas
“provas” que não se esgotam no âmbito da razão. As características
únicas peculiares ao povo judeu,não explicáveis historicamente no contexto dos demais povosque
atravessaram as mesmas épocas (notadamente o monoteísmo estrito e a
preservação da Lei através dos tempos) são indícios válidos muito mais
pela nossa incapacidade de explicá-los do que pela compreensão racional
que deles temos. É por isso que a constatação desses indícios somente se
completa se aceitarmos o lugar do povo judeu, da sua história, da sua
tradição e do seu Livro, no contexto de uma história da salvação,
teleologicamente compreendida como o cumprimento da promessa de Deus,
reiterada desde os patriarcas até João Batista.
A
compreensão de nós mesmos e de nosso destino depende de compreendermos,
o quanto nos seja possível e por via de paradoxos, esse Deus que, se
abandonou o homem, por outro lado continuamente manifestou, ao longo de
toda a história, a promessa de salvação, afinal cumprida em Jesus
Cristo. Se o conhecimento que podemos ter de Deus se realiza por Deus, o
conhecimento que podemos ter de nós mesmos também só se realiza por
Deus. E em ambos os casos Jesus Cristo é a mediação.
“Não
só conhecemos Deus apenas por Jesus Cristo, mas ainda conhecemo-nos a
nós mesmos apenas por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo não sabemos o
que é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos.” (Fr. Laf. 417/Br. 548)
Sendo
Jesus Cristo a mediação entre o homem e si mesmo, não há conhecimento
de si que não passe por essa via. E não deve surpreender que o homem
corrompido encontre a única possibilidade de conhecer-se no Deus-Filho,
pois o homem é um ser contraditório e Cristo, como homem/Deus, é o
paroxismo da contradição.
A reminiscência da primeira natureza, o
que há de divino em nós, encontra no Deus feito homem, de certa
maneira, a sua correspondência, pois poderíamos dizer que há uma
simetria entre a implicação de grandeza e miséria em nós e a implicação
entre o divino e o humano em Cristo. Isso seria, aliás, o fundamento e a
possibilidade do evento salvífico: Cristo assumiu todos os pecados(IGNORÂNCIA) humanos
e sofreu o castigo inerente a eles; daí vem a validade do sacrifício do
homem/Deus pelos homens, e a impossibilidade de que esse sacrifício
fosse feito por qualquer homem em nome dos seus semelhantes. É por isso
que conhecermo-nos por Jesus Cristo significa conhecermo-nos em nossa
miséria, mais do que a conheceríamos em nós mesmos. Pois Cristo teve que
assumir a miséria num grau de radicalidade maior do que qualquer homem.
“Mas ele se fez pecado por mim e todos os vossos flagelos recaíram nele. Ele é mais abominável do que eu (...)” “E assim Jesus foi abandonado sozinho à cólera de Deus.”
(Fr. Laf. 919/Br.
553 – O Mistério de Jesus)
É também esse conhecimento da miséria pela mediação de Cristo que me
alerta para o uso indevido da razão no conhecimento de Deus: não se
trata apenas de impotência intelectual; trata-se de a criatura
reconhecer-se como indigna do seu criador e, assim, incapaz, por si
mesma, de um conhecimento que é ao mesmo tempo aproximação. Cristo, ao
participar de nossa miséria, tornando-se mais miserável do que qualquer
homem, abriu a possibilidade do resgate da miséria. Mas é evidente que
não participamos da grandeza do homem/Deus de forma análoga à que ele
participou da nossa miséria.
A grandeza, que se manifestou
inteiramente em Cristo na luminosidade da ressurreição, permanece em nós
abafada pela miséria. Por isso, conhecemos nossa miséria em Cristo; mas
o conhecimento de nossa grandeza se faz pela aceitação do resgate que a
graça trazida por Cristo pode nos proporcionar. E assim a salvação
continua relacionada com a nossa miséria, embora seja ela a recuperação
da nossa grandeza. Porque a salvação só se torna possível se visarmos a
nossa grandeza a partir da nossa miséria.
Ora,
visar a salvação a partir da perdição é algo que só faz sentido se
reconhecermos a nossa dependência de Deus e nos entregarmos a ele, pela
via da aceitação do Cristo mediador.
O
conhecimento que podemos vir a ter de nós mesmos coincide com essa
entrega. Uma entrega a um Deus distante e oculto pela via de um mediador
misterioso, pois é o mistério de Jesus, ou Jesus em seu mistério, que
se nos apresenta como mediação.
Vê-se o quanto esse conhecimento
assim mediado difere do conhecimento pretendido pela razão. Ele só pode
estabelecer-se pela fé no mistério, que, entretanto, não é um enigma
abstrato, mas um mistério que se apresentou, em pessoa, no centro da
nossa história. A Apologia visa mostrar a simultaneidade dessa
proximidade e dessa distância, porque somente essa visão contraditória
de Deus e do homem pode nos encaminhar para a verdade, a estranha
verdade do cristianismo.
“O cristianismo é estranho: ordena ao
homem que reconheça que é vil e até abominável; e ordena-lhe que queira
ser semelhante a Deus. Sem esse contrapeso, essa elevação o tornaria
horrivelmente vão e esse rebaixamento o tornaria horrivelmente abjeto”
Abstract:
The text intends to point out that the implication of faith and reason
in the christian truth derives from the relation between greatness and
misery that constitutes human condition. The centre of Christian
doctrine is a contradiction; there is no way to became it rationelly
clear. But it is possible to understand the reasons of this obscurity:
the primitive condition near God and truth of Adam and what he lost by
his own choice. There is also several points of the history of salvation
that we can understand, because we have proofs on historical
testimonies and evidences. It is this peculiar assemblage of proofs,
evidences, contradictions and mistery that compound christian truth: a
living truth more than a intelective truth, according to Pascal. Key-words: gretness/misery; symbolic figures; history of salvation.
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