sexta-feira, 5 de abril de 2013

LEMBRAR E ESQUECER EM BERGSON E NIETZSCHE ao som de MOZART - 116 min.


 O melhor de Mozart - 116min.

 Lembrar e esquecer em Bergson e Nietzsche

Maria Cristina Franco Ferraz


Professora Titular de Teoria da Comunicação da UFF, pesquisadora do CNPq, doutora em Filosofia pela Universidade de Paris I - Sorbonne (1992), com dois estágios de pós-doutoramento em Berlim (Instituto Max Planck de História da Ciência, em 2004 e Centro de Pesquisa em Literatura e Cultura, em 2007).


RESUMO: 
Os conceitos bergsonianos e nietzschianos de memória e de esquecimento interpelam de modo vigoroso o pensamento contemporâneo. O conceito de memória proposto por Bergson no final do século XIX dialoga criticamente tanto com sua época quanto com a cultura contemporânea, na qual a expansão das neurociências enfatiza o papel do cérebro e da bioquímica de um corpo “desespiritualizado” como instâncias explicativas de todos os fenômenos humanos. O tema da memória em Bergson alia-se ao conceito de virtualidade e suscita uma potente reflexão acerca da liberdade e da temporalidade. Em Nietzsche, o privilégio da força ativa do esquecimento, remetida à digestão, oferece uma perspectiva renovadora acerca do corpo e de nossa relação com o passado, para além do ressentimento e da negatividade, atualmente presente na lógica e na prática da descartabilidade.

PALAVRAS-CHAVE: memória/esquecimento; corpo; temporalidade.

A retomada dos conceitos de memória e de esquecimento propostos, no final do século XIX, por Nietzsche e Bergson ganha, atualmente, singular relevância. Em primeiro lugar, como estratégia para a discussão crítica acerca de novas verdades que se disseminam na cultura contemporânea, provenientes do campo em expansão das neurociências e da genética. 

Atrelada a essa expansão, consolida-se cada vez mais o que alguns autores chamam de cultura somática, na qual declina o modo de subjetivação moderno, ancorado na experiência de si como sujeito dotado de interioridade, em favor de bioidentidades (Freire Costa, 2005) ou individualidades somáticas (Rose, 2007). Significativamente, uma exposição acerca do corpo humano, atualmente em curso no Museu Histórico Nacional do Rio, utiliza o seguinte slogan publicitário: “Você tem um encontro marcado com o seu interior”. Tal interior resume-se, hoje, a órgãos, veias, vísceras, ossos, músculos.

O paulatino esvaziamento de uma interioridade psicológica e subjetivamente configurada é historicamente adjacente à alteração das elaborações teóricas acerca dos fenômenos da memória e do esquecimento. Nesse sentido, retomar os conceitos propostos por Nietzsche e por Bergson no século XIX resulta um gesto privilegiado para dimensionarmos com maior precisão as implicações existenciais, políticas e filosóficas do que estamos tendencialmente nos tornando no século XXI.

BERGSON: MEMÓRIA, CÉREBRO, TEMPO  


O conceito bergsoniano de memória, intimamente articulado ao de virtualidade, ganha atualmente um interesse especial em função da predominância crescente de certa concepção de memória proveniente do campo das neurociências, que se expande pelos meios de comunicação e pela indústria de entretenimento.

Para atestar a tendência a se reduzir o fenômeno da memória ao nível bioquímico do corpo, a uma concepção computacional do cérebro, vejamos algumas citações extraídas do livro de divulgação Memória, do neurocientista radicado no Brasil Iván Izquierdo:

“De um ponto de vista operacional, as memórias nada mais seriam do que alterações estruturais de sinapses, distintas para cada memória ou tipo de memórias.” (IZQUIERDO, 2002, p. 47).
“... a memória de trabalho depende basicamente da atividade elétrica on line de neurônios do córtex pré-frontal e de suas interações com o sistema hipocampal e com outras regiões corticais...” (IZQUIERDO, 2002, p. 67).
“As notáveis diferenças entre a bioquímica da evocação e a da consolidação fazem com que a primeira não possa ser considerada como uma simples reiteração da segunda...” (IZQUIERDO, 2002, p. 59).
Entendida como processamento de informações pelas sinapses e redes neuronais do cérebro[1], a memória se torna função da materialidade do cérebro, sem que se discutam as premissas filosóficas inerentes a essa perspectiva. Para começar, a problemática relação ou correlação cérebro/memória, bem como o estatuto da noção de causalidade cientificamente assinalável. Crítico agudo das perspectivas teóricas e científicas de sua época, Henri Bergson tematizou a relação cérebro/memória desde o prefácio acrescido à sétima edição de Matéria e memória, de um modo tão luminoso que, em pleno século XXI, ainda soa bastante oportuno:

        “Que haja solidariedade entre o estado de consciência e o cérebro é incontestável. Mas também há solidariedade entre a roupa e o prego onde ela está dependurada, pois se arrancamos o prego, a roupa cai. Dir-se-ia por isso que a forma do prego desenha a forma da roupa ou nos permite de algum modo pressenti-la? Assim, do fato de que o psicológico esteja pendurado em um estado cerebral não se deve concluir o ‘paralelismo’ das duas séries, psicológica e fisiológica” (BERGSON, 2001, p. 164).

 Bergson estabelece um vínculo de solidariedade entre o estado de consciência e o cérebro, mas postula uma diferença de natureza entre essas duas instâncias, barrando a via ao gesto de redução de uma delas à outra. Solidariedade implica uma relação necessária, mas não deixa brechas para o estabelecimento de nexos de equivalência ou de causalidade. A metáfora do prego e da roupa é bastante precisa: ela evidencia, por um lado, o vínculo entre os dois elementos em questão e, por outro, a irredutibilidade entre as duas instâncias, inviabilizando operações reducionistas. Bergson propôs um dualismo renovador: matéria e memória não seriam instâncias redutíveis uma à outra, nem “séries paralelas”. Matéria e memória diferem de modo radical, distinguindo-se por suas naturezas diversas.

Retomemos, de modo sucinto, a concepção bergsoniana de memória, em seus vínculos com a materialidade do cérebro e com a virtualidade. Em Matéria e memória, Bergson não cessa de afastar-se de uma visão espacializada da memória, que faria do cérebro e de suas células locais de armazenamento, lugares de mera arquivação do passado. Rompendo com a tradição filosófica de que as pesquisas científicas da época permaneciam tributárias, Bergson não pensa o cérebro como órgão da representação, da especulação, do conhecimento puro, remetendo-o sempre a uma ação vitalmente interessada.

Partindo da discussão das doenças da memória, Bergson refuta a partir de vários ângulos a concepção do cérebro como um reservatório de imagens e de lembranças. No caso por exemplo das afasias, que corresponderiam a lesões locais do cérebro, entende a lesão psicológica não como uma abolição das lembranças (supostamente guardadas, estocadas - segundo a perspectiva à qual se contrapõe - nas células cerebrais) mas como uma impotência para evocá-las ou para atualizá-las. Prova disso é que um certo esforço ou certas emoções podem trazer bruscamente de volta à consciência palavras que se acreditavam perdidas de uma vez por todas. Ou seja: as lembranças não estão situadas nem arquivadas em células do cérebro. O esquecimento tampouco equivale a uma operação meramente negativa, de aniquilação das lembranças.

Também podemos encontrar em William James uma concepção ativa e viva das lembranças, sob a forma de uma presença latente ou virtual. Por exemplo, no capítulo 9 de seus Princípios de psicologia (JAMES, 1952), intitulado “O fluxo de pensamento”, James enfatiza que uma palavra esquecida não está ausente da mente. É o que podemos constatar na seguinte situação, por sinal bastante corriqueira: tendo esquecido um nome próprio, se nos perguntam se é este ou aquele nome, temos geralmente a capacidade de assinalar que não se trata dos nomes mencionados. Entretanto, no momento em que ouvimos o nome correto, imediatamente o reconhecemos. Conforme esse exemplo evidencia, o nome esquecido não se encontra eliminado da memória, mas brilha por assim dizer em ausência; permanece vivo, embora inacessível à clareza da consciência.

A partir da discussão dos estudos sobre as afasias, afecções ligadas à memória verbal, Bergson explicita os vínculos entre o cérebro e a memória: “Tais fatos […] concorrem para provar que o cérebro serve aqui para escolher no passado, para diminuí-lo, para simplificá-lo, para utilizá-lo, e não para conservá-lo”.[2] O cérebro não contém “caixas de lembranças” que conservariam fragmentos do passado. Bergson associa essa visão do cérebro a certa noção do passado derivada de um gesto de abolição do tempo como puro movimento, como mudança contínua, ininterrupta, indivisível.

O filósofo sublinha de que o modo a espacialização do tempo, que marca nossa tradição de pensamento, está relacionada a uma idéia igualmente espacializada e interiorizada do cérebro. Pensamos assim, segundo Bergson, por termos contraído o hábito de acreditar que o passado está abolido – ilusão que, como mostra em Matéria e memória, serve ao agir humano. Sintetizando essa visada, no capítulo III de Matéria e memória reporta a dificuldade em se admitir que o passado não está abolido (em se admitir, portanto, a existência do inconsciente) às exigências da atenção à vida.

Em função de exigências pragmáticas, não duvidamos, por exemplo, que o espaço que não vemos - o que está atrás de nós, partes (momentaneamente fora de nossa visão) do local onde estamos, a rua, cidade etc onde nos encontramos - exista independentemente de nossa percepção atual. No entanto, não costumamos aplicar o mesmo tipo de crença ao tempo passado. Como a ação, interesse vital, promove necessariamente um movimento em direção ao que está por vir, ao mesmo tempo em que ela abre o espaço à nossa frente vai fechando o tempo atrás de nós: “O mesmo instinto em virtude do qual abrimos indefinidamente diante nós o espaço faz com que fechemos atrás de nós o tempo, à medida que ele escoa.” (BERGSON, 2001, p. 286).

Para Bergson, o passado e a memória encontram-se sempre em uma relação de simultaneidade com o presente e o vivido. Ele alude à conhecida experiência do déjà vu para atestar a verdadeira coincidência, na duração real, entre passado (e, portanto, memória) e presente. Nessa experiência comum, por uma breve fração de segundos, em função de certo relaxamento de nossa atenção à vida pragmaticamente orientada, vislumbramos por breves instantes a simultaneidade entre o imediatamente vivido e a produção de memória. Nesse sentido, percepção e memória, distintas por natureza, fundem-se de fato, na medida em que a percepção se dá no tempo e ocupa portanto uma duração.

A percepção de fato se mistura pelo menos em dois sentidos com a memória. Em primeiro lugar porque, ao se dar no tempo, instala-se na mobilidade de um fluxo contínuo que só pode ser detido caso seja ilusoriamente rebatido sobre o espaço. Assim como o imediatamente vivido e o que já passou ou, em linguagem usual, o presente e o passado não podem ser isolados em um tempo que não cessa de fluir de modo indivisível, a percepção efetiva coincide necessariamente com a produção de lembranças. Por outro lado, perceber implica contrair o tempo do universo segundo a duração daquele que percebe, tal como Bergson mostra no exemplo da luz vermelha, utilizado no capítulo IV de Matéria e memória. A luz vermelha, na matéria, corresponde a 400 trilhões de vibrações sucessivas. O regime temporal implicado em nosso aparelho perceptivo contrai essas vibrações em uma única qualidade sensível: o vermelho (BERGSON, 2001, p. 340-341). Memória também remete a essa contração de uma temporalidade inerente à matéria (e que a física procura medir) segundo a duração própria a determinado vivente.

Para Bergson, a memória está sempre integralmente presente, mas sob o modo da virtualidade. Ela nos acompanha por inteiro ao longo da vida, atualizando-se em geral em função das exigências da ação. Na perspectiva inaugurada por Bergson, estamos imersos na duração, em uma temporalidade que dura; nossa memória não consiste de modo algum em uma “regressão do presente ao passado, mas, ao contrário, em um progresso do passado no presente” (BERGSON, 2001, p. 369). Nosso corpo, com tudo o que o cerca, nada mais é do que “a ponta movente que nosso passado empurra a todo momento, para nosso futuro” (Bergson, 2001, p. 373).

No final do capítulo 3 de Matéria e memória, na contramão das perspectivas correntes à época, Bergson associa o cérebro à função plástica, vitalmente orientada do esquecimento: “... o cérebro contribui para lembrar a lembrança útil, mas, mais ainda, para afastar provisoriamente todas as outras.” (BERGSON, 2001, p. 315). Conclui essa afirmação ressaltando a diferença entre cérebro (matéria) e memória (e ao mesmo tempo a solidariedade entre ambos), citando o filósofo Ravaisson, para quem “a materialidade coloca em nós o esquecimento” (BERGSON, 2001, p. 316). Longe de ser local de armazenamento ou arquivo de lembranças, o cérebro pode ser associado à inibição das lembranças, ao esquecimento, remetido à atenção à vida e, portanto, ao mecanismo de suspensão da memória como um todo no plano da virtualidade.

A memória entendida nesse sentido corresponde a uma fonte inesgotável para que o homem varie de resposta a determinadas situações, para que ele invente novos horizontes. Segundo Bergson, o sistema nervoso central liberou o homem dos automatismos, da prisão às respostas imediatas, prontas e necessárias, como aquelas a que os animais “inferiores” se limitam. O cérebro está portanto intimamente ligado à rica possibilidade de hesitar, de adiar, diferir, suspender ou ainda variar respostas às promessas e ameaças que convocam a ação do vivente. Além disso,  já que um sem-número de lembranças pode vir a se atualizar, essa noção de memória funciona como um manancial inesgotável que permite ao homem libertar-se da mera repetição, dos hábitos e do reino da necessidade.

Confirmando a potência desse conceito de memória no sentido do não automatismo e da liberdade, há certas passagens de Matéria e memória que dotam as lembranças de uma curiosa força e vivacidade. Enquanto as teorias do século XIX, herdeiras do empirismo inglês, consideravam as lembranças como percepções enfraquecidas, a filosofia bergsoniana estabelece uma diferença radical (uma diferença de natureza) entre memória e percepção e dota as lembranças de grande intensidade. Algumas passagens de Matéria e memória sugerem que as lembranças parecem ter uma intenção (que evidentemente não pode ser remetida a qualquer sujeito) de se atualizar, reencontrando o calor do vivido[3].

Embora para Bergson as lembranças “puras” estejam contaminadas pela impotência própria ao passado, nem por isso são inertes, secas, fracas ou isoladas. Mantidas no plano da virtualidade, sempre poderão encontrar brechas para se atualizarem. É o passado que é impotente, não elas, que se mantêm vivas no plano virtual, que tem estatuto ontológico (e não meramente psicológico) em Bergson. Esse aparente paradoxo pode ser remetido a uma dupla afirmação bergsoniana retomada de modo sintético por Deleuze: o passado é, enquanto o presente era (DELEUZE, 2004, p. 42), uma vez que o passado nunca deixou de ser, mas simplesmente de ser útil, e o presente se confunde com o puro escoamento, com o que está em vias de se tornar. Nesse sentido, “nada é menos do que o momento presente” (BERGSON, 2001, p. 291).

A construção filosófica de Bergson sem dúvida alguma respondia às angústias de seu tempo, com relação à automação dos corpos e à rotinização da vida, por conta da inserção crescente dos homens ocidentais em uma lógica de estímulo-resposta demandada pelos meios de produção fabril, pela indústria cultural nascente, pela intensa estimulação sensório-motora dos corpos nas cidades em expansão.

Prioritariamente focalizada na época, a memória-hábito corresponde à incorporação paulatina de esquemas sensório-motores que se tornam fixados no corpo de uma vez por todas. Nesse caso, segundo Bergson, o passado sobrevive em nós sob a forma de mecanismos motores gerados pela repetição de um mesmo esforço. Trata-se da montagem de réplicas prontas a determinadas questões postas ao vivente. Na memória-hábito o passado atua, age em nós - e não imagina. Haveria portanto uma outra maneira, de natureza distinta, de o passado sobreviver em nós: através de lembranças independentes, datadas, singulares, irrepetíveis.

Quanto ao hábito, a experiência banal do aprendizado de andar de bicicleta (ou de dirigir um carro) evidencia que a repetição dos movimentos e de tentativas reiteradas vai aos poucos construindo novos mecanismos que integram as pequenas percepções, os movimentos corporais (mesmo os mais ínfimos), estendendo o esquema corporal de forma a incluir e a literalmente incorporar os veículos utilizados, seja a bicicleta, seja o automóvel. Uma vez montados, esses circuitos sensório-motores são anexados e consolidados de tal forma que produzem certo efeito de naturalização. Em geral, quando já se aprendeu a andar de bicicleta, tem-se a sensação de que se trata de uma atividade fácil, natural. Sobretudo, nunca se esquece, mesmo quando não se pedala por anos. Pode se perder a maestria, mas o esquema sensório-motor fixado é de fato o passado agindo em nós, de forma econômica e geralmente eficiente.

À diferença dos hábitos, as lembranças puras, consideradas por Bergson como ponto de partida efetivo para a investigação acerca da memória, são caprichosas, únicas, guardando sempre o sabor, o odor e a textura inconfundíveis da experiência passada, em seu caráter singular. Enquanto a memória-hábito permite uma economia da atenção para a efetuação de tarefas - muitas delas mecânicas -, as lembranças puras guardam a riqueza própria ao que não é passível de idêntica repetição. Bergson acrescenta que quanto mais a memória-hábito age em nós, mais nos assemelhamos a “autômatos conscientes” (BERGSON, 2001, p. 296), enquanto, mergulhando nas lembranças puras, nos tornamos sonhadores sonambúlicos. Como sempre em Bergson, essa distinção de natureza (aqui entre hábito e memória verdadeira) não inviabiliza o estado misto em que em geral vivemos, oscilando e variando salutarmente entre um pólo e outro.

As relações entre percepção, memória-hábito e lembranças independentes podem ser ainda exploradas em um exemplo que Bergson dá desde o primeiro capítulo. Trata-se da experiência de passear por uma cidade desconhecida. Em geral, enquanto não se conhece o lugar, tende-se inicialmente a caminhar por ele tanto mais atento quanto hesitante. As distâncias parecem mais longas e cada passo, uma verdadeira aventura. A percepção vai decrescendo na medida em que nos familiarizamos com o local. Ou seja: como percebemos para agir, ao construirmos hábitos podemos nos deslocar com facilidade, já sem atentar para detalhes. Ao ganho de tempo e de eficiência corresponde, portanto, um inevitável empobrecimento da percepção. Uma das graças das viagens reside, sem dúvida, na reativação da plena potência da percepção, antes que nos apropriemos humanamente do desconcertante ou mesmo temível desconhecido, domesticando-o no zoológico do previamente conhecido.

Na relação entre o pensamento de Bergson e o momento histórico em que sua obra se situa, pelo menos dois aspectos são significativos. Em primeiro lugar, o fato de Bergson ter abandonado e criticado o privilégio concedido à memória-hábito que marcava as teorias de seu século. A memória deixa assim de ser buscada na ordem da repetição para passar a ser atrelada a um passado que não se repete mas imagina e sonha em nós. O que então se tem a investigar passa a ser o jogo incessante entre essas imagens-lembranças que acorrem em direção à ação presente e as “lembranças puras” (conceito de direito, e não de fato) mantidas impotentes nesse passado singular que se conserva por inteiro, no plano virtual da memória. Memória então passa a ser diretamente ligada à dinâmica do tempo vivido como duração.

 
ESQUECER, ATIVIDADE PLÁSTICA: PERSPECTIVA NIETZSCHIANA[4]

Na abertura da segunda Consideração intempestiva (ou extemporânea), intitulada da “Da utilidade e desvantagem da história para a vida”, Nietzsche nos convida a buscar em nossa memória ecos do que sentimos ao vermos um rebanho pastando. Sem saber o que são ontem ou hoje, os animais saltam daqui e dali, alimentam-se, repousam, digerem, para tornar a pular. De manhã à noite, dia após dia, mantêm-se permanentemente ligados a seu prazer e desprazer. Atados à estaca do instante, nunca experimentam nem tédio nem melancolia.

Ante essa cena, o homem, que costuma se vangloriar de sua humanidade, não pode deixar de sentir inveja da felicidade que os animais exalam, por conta de sua total absorção no momento presente. A cena se fecha com uma irônica passagem em que Nietzsche alude a uma tentativa de diálogo do homem com o animal, necessariamente fadada ao fracasso. O homem pergunta ao animal porque ele não lhe fala de sua felicidade, limitando-se a ficar olhando. O animal quer explicar que sempre esquece imediatamente o que quer dizer. Mas logo esquece até mesmo essa resposta - e se cala. Abalado em sua arrogante pretensão à superioridade, o homem permanece, portanto sem resposta.

Nesse texto, Nietzsche passa em revista a relação problemática do homem com o passado, especialmente em seu século marcado por uma ênfase massacrante no peso da história e da memória. No ensaio, critica toda relação paralisante com a história, sob o modo do que chama de história antiquário, pesado arquivo morto, e de história monumental, na qual a memória suscita sobretudo reverência e submissão, sufocando as forças da vida. Precisamente nesse texto dedicado à utilidade e desvantagem da história para a vida, começa o ensaio valorizando o esquecimento.

Entendido como uma força plástica fundamental, como condição de toda felicidade, esquecer implica coincidir com o presente, com o instante. Na seqüência imediata da Segunda intempestiva, após admirar-se com os animais e invejar seu viver a-histórico, o homem volta seu olhar perplexo sobre si mesmo. Desgostoso e amargo, observa sua incapacidade para aprender o esquecimento, o que já evidencia que esquecer lhe é difícil, algo a ser (re)conquistado. No mesmo movimento, ele identifica sua prisão ao passado. A imagem é vigorosa: por mais longe ou rapidamente que ele corra, a corrente a que está agrilhoado sempre o acompanha. Com o passar dos anos, essas correntes tendem a engrossar, ficando ainda mais pesadas. Seu caminhar se torna então cada vez mais moroso. O homem, oprimido e triste, termina por curvar-se sob o fardo do passado.

Nietzsche acrescenta que a criança também é invejada pelo homem em sentido semelhante. Pelo menos enquanto brinca atada à baliza do instante, antes de se ver também ela enlaçada pelas cadeias do passado, através da linguagem, do aprendizado do tempo pretérito e da pequena palavra foi. As correntes do passado aparecem, nesse texto de 1873, sob a forma de um verbo que funciona como senha de entrada para todo sofrimento, rancor e fastio: “es war” (foi), o Imperfectum – assinala o filósofo. Nietzsche enfatiza a negatividade e o julgamento de valor que se projetam nessa interpretação rancorosa acerca do inexorável e irreversível passar do tempo.

Lembremos que a cura do peso desse “es war”, desse foi assim, é um momento-chave na trajetória de Zaratustra e no pensamento de Nietzsche. No capítulo “Da Redenção” (Assim falou Zaratustra II), Nietzsche indica a via para a superação do peso de um passado irrecorrível, que transforma todo o viver em castigo e punição. Sugere, em contrapartida, um ousado e trágico “assim eu o quis”, acrescido de uma afirmação ainda mais radical, projetando o querer tanto para trás quanto para frente: “assim eu vou querer”.

Essa “reconciliação com o tempo”, com o passado e a história não se confunde de modo algum com uma atitude de mera resignação ou conformidade. Reconcliar-se vai aqui ainda mais longe do que o processo de Versöhnung (“reconciliação”), de matriz hegeliana, termo alemão que não deixa de apontar para um apaziguamento das tensões, evidenciado na raiz que está no cerne dessa palavra: “filho” (Sohn). Nietzsche mostra que se tem de ir ainda mais longe, uma vez que se trata, como o texto acrescenta, de “algo mais elevado do que toda reconciliação”[5].

Como se pode ler no capítulo “Da Redenção”, a afirmação nietzschiana implica uma adesão da vontade, como vontade de potência, a tudo o que foi, é e será. Articulada à hipótese do eterno retorno, funciona como cura do ressentimento e como emblema do amor fati, amor pelo destino. Não como fatalidade em um sentido determinístico, mas como um passado liberado de todo rancor, querido assim para trás. Amor fati (certamente mais fácil de enunciar do que de pôr em prática) implica um querer capaz de não se deixar contaminar pelo fel do ressentimento. Não se trata, evidentemente, de resignação. Deixando de ser impelido por uma necessidade de corrigir, maldizer ou mesmo de tentar deter e aprisionar, esse querer para trás funciona como um dizer-sim que abençoa.

A valorização nietzschiana da força plástica do esquecimento associa-se portanto ao gesto trágico de afirmação e redenção do tempo, não equivalendo a uma mera submissão ao passado ou à história. A temática do esquecimento, antídoto para o veneno do ressentimento, vincula-se às reflexões que Nietzsche desenvolve acerca da utilidade ou da desvantagem da História para a vida de cada homem, de cada povo ou cultura. A reconciliação mais elevada implica uma relação crítica e criadora com o passado, em favor do presente.

A força plástica do esquecimento retorna na abertura da segunda dissertação da Genealogia da moral. Nesse livro de 1887, o esquecimento não será entendido como vis inertiae (força da inércia), como pura passividade, mas será pensado como uma força plástica, modeladora, como uma atividade inibidora fundamental. Não corresponde a um movimento secundário e passivo, como no caso do desgaste lento e inevitável de uma efígie cunhada em uma moeda, por conta da usura do tempo. Para Nietzsche, esquecer seria não apenas uma atividade, mas uma atividade primordial, primeira. O esquecimento não viria apagar marcas já produzidas pela memória. 



Antecedendo à sua própria inscrição, ele impediria e inibiria qualquer fixação. Invertendo-se o sentido usual, a memória é que passa a ser pensada como uma “contra-faculdade” (ein Gegenvermögen). É ela que viria se superpor ao esquecimento, suspendendo-o (aushängen), impedindo sua ação salutar, fundamental. Abrindo a dissertação em que investiga a produção da culpa, da má consciência e “de coisas afins”, Nietzsche desenvolve essa concepção para enfatizar o caráter paradoxal da tarefa que a natureza (aqui já não oposta à cultura) se impôs em relação ao homem. Eis a tarefa: sendo todo animal puro esquecimento, a tarefa de criar, de cultivar (heranzüchten) um animal que pode prometer.

Na Genealogia, Nietzsche remete o esquecimento ao processo de digestão. Arranca o tema da digestão ao campo da mera fisiologia, trazendo-o para o da filosofia, propondo, no mesmo gesto, uma concepção de corpo bastante singular. Nietzsche afirma que não pode haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho e – sublinha – presente sem a atividade desse mecanismo inibidor que é o esquecimento. Compara o homem em que esse aparelho se encontra danificado a um dispéptico, termo da medicina de que se apropria e que designa aquele que tem dificuldade de digerir. Dispéptico seria, segundo Nietzsche, quem nunca se livra de nada, quem não “dá conta” de nada: “er wird mit Nichts ‘fertig’”. Mais literalmente ainda: não dando cabo de nada, esse homem nunca fica pronto (fertig) para o novo, para o presente. Torna-se refém do passado e de suas marcas.

Imediatamente após estabelecer essa comparação, Nietzsche a suspende, sublinhando seu gesto de ultrapassagem da distinção corpo/espírito. Afirma que o homem no qual esse aparelho inibidor não mais funciona “pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico”. O esquecimento não é portanto comparável a um processo de digestão. Atividade que concerne ao corpo, esquecer se confunde com a digestão. A digestão, por sua vez, deixa de ser pensada apenas no campo da fisiologia, como função de um corpo por assim dizer “desespiritualizado”. Como lemos em Assim falou Zaratustra III: “o espírito é um estômago”. O espírito não é semelhante a um estômago. Espírito e estômago se fundem, ultrapassando-se a velha dicotomia corpo/alma.

Após tematizar o esquecimento como digestão, Nietzsche altera a própria concepção fraca e passiva da memória. Introduz uma noção de memória da vontade, uma memória instauradora de mundos. Trata-se de uma memória lançada em direção ao futuro, na medida em que se alia à promessa. A memória não será entendida como prisão a marcas de um passado inexorável, não transformável, como um simples e “passivo não-mais-poder-livrar-se da impressão certa vez inscrita/gravada” (ein passivisches Nicht-wieder-los-werden-können des einmal eingeritzten Eindrucks). Passa a ser “um ativo não-mais-querer-livrar-se” (ein aktives Nicht-wieder-los-werden-wollen). 



Ressurge, aqui, o “assim eu o quis e vou querer”, chave para a cura do ressentimento expressa em Assim falou Zaratustra. Lembrar também é, nesse sentido, um continuar querendo o que foi uma vez querido. Trata-se portanto de uma verdadeira memória da vontade, e não mais de uma indigesta prisão às pesadas cadeias do passado. Trata-se de uma transformação da vontade em tempo, uma apropriação do passar do tempo pelas forças da vida.

Só assim a memória pode deixar de ser grilhão e, como efeito da vontade, aliar-se à alegria e à felicidade da afirmação criadora. Se o homem colocou em risco sua saúde, sua total coincidência com o presente – condição de sua plena felicidade – foi para Nietzsche em nome de outra potência. Foi para poder inventar um presente e sem dúvida novos futuros para si. O comprometimento da memória como atividade corresponde à invenção de uma possibilidade inédita de projetar-se outro em um futuro desejado. No entanto, a inquietante produção da memória em um animal do esquecimento colocou inevitavelmente em risco a própria saúde desse animal. Esse é, em suma, o paradoxo destacado por Nietzsche no início da segunda dissertação da Genealogia da moral.

Uma vez que esquecer é digerir, o esquecimento nietzschiano já não se opõe à memória. Como em toda digestão, o processo se dá no tempo e precisa da paciência requerida pelo tempo como duração. Esquecer é incorporar certos elementos em detrimento de outros. Como processo que se dá no tempo e que se deixa atravessar e transformar pelo vivido, diz respeito à abertura dos poros dessa interface que é a pele. Portanto, esquecer é todo o contrário da pressa e da lógica da descartabilidade que impregna o regime de vida contemporâneo.

Vivemos hoje em plena ditadura de certos modelos de corpo que tornam a digestão e a nutrição elementos cada vez mais problemáticos e paradoxais (obesidade, anorexia, bulimia, lipofobia, ortorexia). Se esquecer diz respeito ao estômago, essa atividade espiritual se vê às voltas com pressões paradoxais que incidem sobre os corpos contemporâneos. O estômago tende assim a perder seus vínculos com o espírito, termo cada vez mais anacrônico e esvaziado de sentido.

Atividade plástica e inibidora, o esquecimento valorizado por Nietzsche funciona como um antídoto eficaz contra o ressentimento e a negatividade diagnosticados em nossa tradição cultural e filosófica. Como mostrou Nietzsche, esquecer requer o trabalho e o tempo da digestão. Por isso, implica lembrar para não recair nas mesmas ciladas. É sempre oportuno frisar, ainda uma vez, que a valorização nietzschiana da força plástica do esquecimento se introduz, em 1873, exatamente em um texto acerca da memória e da história que, enfatizando suas desvantagens, não deixa de ressaltar sua inegável utilidade. Não poderia portanto corresponder a uma mera desvalorização (ou negação) da história. Como vimos, o que está em jogo é digerir, atividade em que esquecimento e memória ultrapassam o regime das oposições duais. 


Curar o ressentimento é livrar-se do peso da negação, mesmo quando esta adota a máscara do descarte ou, ainda mais grave, da tentativa de eliminação, de aniquilamento de certas lembranças, que precisam ser antes de mais nada metabolizadas e transmutadas, em favor do presente.

ABSTRACT:
The Bergsonian and Nietzschean concepts of memory and forgetfulness interpelate vigorously contemporary thought. The concept of memory proposed by Bergson at the end of the XIXth century stablishes a critical dialogue with his own time as well as with contemporary culture, in which the expansion of neurosciences emphasizes the role of the brain and of the biochemics of a so-to-say “de-spiritualized” body, as explanations for all kinds of humain phenomena. Memory in Bergson is articulated to the concept of virtuality and to the themes of freedom and temporality. In Nietzsche, the accent on the active force of forgetfulness, related to the process of digestion, offers a renewed perspective on body and on our relation with the past, beyond resentiment and negativity, nowadays evident in the logics of immediate disposal.

KEYWORDS: memory/forgetfulness; body; temporality.

REFERÊNCIAS:BERGSON, Henri. Mémoire et vie (textes choisis). Paris: PUF, 1975.


Fonte:
MORPHEUS- ANO V

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