Mozart - Concerto No.25 in C 503 - 32'
CONTOS DE FADAS E PSICANÁLISE
Marilena Chauí
- Professora de Filosofia na Usp e autora de vários livros
(Do livro: Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida,
Marilena Chauí, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54)
(...) Poderíamos considerar que numa sociedade
como a nossa, que dessacralizou a realidade e eliminou quase todos os
ritos, os contos funcionam como espécie de "rito de passagem"
antecipado. Isto é, não só auxiliam a criança a lidar com o presente,
mas ainda a preparam para o que está por vir, a futura separação de seu
mundo familiar e a entrada no universo dos adultos.
Do ponto de vista da repressão sexual, os contos são
interessantes porque são ambíguos. Por um lado, possuem um aspecto
lúdico e liberador ao deixarem vir á tona desejos, fantasias,
manifestações da sexualidade infantil, oferecendo à criança recursos
para lidar com eles no imaginário; por outro lado, possuem um aspecto
pedagógico que reforça os padrões da repressão sexual vigente, uma vez
que orientam a criança para desejos apresentados como permitidos ou
lícitos, narram as punições a que estão sujeitos os transgressores e
prescrevem o momento em que a sexualidade genital deve ser aceita, qual
sua forma correta ou normal. Reforçam, dessa maneira, inúmeros
estereótipos da feminilidade e da masculinidade, ainda que, se tomarmos
os contos em conjunto, os embaralhem bastante.
Se a psicanálise estiver certa ao diferenciar fases
da sexualidade infantil, podemos observar que a repressão atua nos
contos seguindo essas fases: as crianças são punidas se muito gulosas
(fase oral), se perdulárias ou avarentas (fase anal), se muito curiosas
(fase fálica ou genital). Em certo sentido, os contos operam com a
divisão estabelecida por Freud, entre o princípio do prazer (excesso de
gula, de avareza ou desperdício, de curiosidade) e o princípio de
realidade (aprender a protelar o prazer, a discriminar os afetos e
condutas, a moderar os impulsos).
Para facilitar a exposição, vamos dividir os contos
em dois grandes "tipos": aqueles que asseguram à criança o retorno à
casa e ao amor dos familiares, depois de aventuras em que se perdeu
tanto por desobediência quanto por necessidade, e aqueles que lhe
asseguram ser chegada a hora da partida, que isso é bom, desejável e
definitivo.
Nos contos que designamos aqui como contos de
retorno, a sexualidade aparece nas formas indiretas ou disfarçadas da
genitalidade, que são apresentadas como ameaçadoras, precisando ser
evitadas porque a criança ainda não está preparada para elas.
Isto não significa que a criança seja assexuada, pelo
contrário, mas que a sexualidade permitida ainda é oral ou anal. Em
contrapartida, nos contos que aqui designamos como contos de partida, a
sexualidade genital terá prioridade sobre as outras, com as quais vem
misturada, e pode ser aceita depois que as personagens passarem por
várias provas que atestem sua maturidade.
No Chapeuzinho Vermelho (que, na canção
infantil, é dito "Chapeuzinho cor de fogo", o fogo sendo um dos símbolos
e uma das metáforas mais usados em nossa cultura para referir-se ao
sexo), o lobo é mau, prepara-se para comer a menina ingênua que, muito novinha, o confunde com a vovó, precisando ser salva pelo caçador que, com um fuzil (na canção: "com tiro certo"), mata o animal agressor e a reconduz à casa da mamãe.
Há duas figuras masculinas antagônicas: o sedutor animalesco e perverso, que usa a boca (tanto para seduzir como para comer) e o salvador humano e bom, que usa o fuzil (tanto para caçar quanto para salvar).
Há três figuras femininas: a mãe (ausente) que previne a filha dos perigos da floresta; a vovó (velha e doente) que nada pode fazer, e a menina (incauta) que se surpreende com o tamanho dos órgãos do lobo e, fascinada, cai em sua goela.
A sexualidade do lobo aparece não só como animalesca e
destrutiva, mas também "infantilizada" ou oral, visto que pretende
digerir a menina (o que poderia sugerir, de nossa parte, uma pequena
reflexão sobre a gíria sexual brasileira no uso do verbo comer).
O comer também aparece num outro conto de retorno, João e Maria. A curiosidade de João, depois acrescida pela gula diante da casa de confeitos, arrasta os irmãozinhos para a armadilha da bruxa
(que é, na simbologia e mitologia da Europa medieval uma das figuras
mais sexualizadas, possuída pelo demônio (o sexo), ou tendo feito um
pacto com ele).
A astúcia salva as crianças quando João exibe o rabinho mole e fino de um camundongo no lugar do dedo grosso e duro (o pênis adulto), evitando a queda do menino no caldeirão fervente (outro símbolo europeu para o sexo feminino, tanto a vagina quanto o útero).
Há tempo para que o pai surja e os reconduza à casa, depois de matar a bruxa. (A imagem do caldeirão fervente também aparece em O Casamento de Dona Baratinha, o noivo nele caindo, vítima da gula, não podendo consumar o casamento.)
Nos contos de partida, a adolescência é
atravessada submetida a provações e provas até ser ultrapassada rumo ao
amor e à vida nova. Nesses contos, a adolescência é um período de
feitiço, encantamento, sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos
quanto imerecidos, mas que servem de refúgio ou de proteção para a
passagem da infância à idade adulta.
É um período de espera: Gata Borralheira na cozinha,
Branca de Neve semimorta no caixão de vidro, Bela Adormecida em sono
profundo, Pele-de-Burro sob o disfarce repelente. Heróis e heroínas se
escondem, se disfarçam, adoecem, adormecem, são metamorfoseados (como os
príncipes nos Três Cisnes, a princesa em A Moura Torta, o príncipe em A Bela e a Fera, etc.).
Em geral, as meninas adormecem ou viram animaizinhos
frágeis (pomba, corça) e os meninos adoecem, viram animais repugnantes
(freqüentemente, sapos, o sapo sendo um dos companheiros simbólicos
principais das bruxas) ou viram pássaros (o pássaro sendo considerado um
símbolo para o órgão sexual masculino). A expressão, muito usada
antigamente, "esperar pelo príncipe encantado" ou "pela princesa
encantada" não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo,
mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque
ainda não chegou a hora do desencantamento.
Gata Borralheira vai ao baile (primeiros jogos
amorosos, como a dança dos insetos), mas não pode ficar até o fim (a
relação sexual) sob pena de perder os encantamentos antes da hora. Deve
retornar à casa, deixando o príncipe doente (de desejo), e com o par de
sapatinhos momentaneamente desfeito, ficando com um deles, que conserva escondido sob as roupas.
Borralheira e o príncipe devem aguardar que os emissários do rei-pai a encontrem, calce os sapatos, completando o par.
Sapatos que são presente de uma mulher boa e poderosa (fada) e que
pertencem apenas à heroína, de nada adiantando os truques das filhas da
madrasta (cortar artelhos, calcanhar) para deles se apossarem. As filhas da madrasta querem sangrar antes da hora e sobretudo querem sangrar com o que não lhes pertence, de direito (relação sexual ilícita, repressivamente punida pelo conto).
Branca de Neve, cujo corpo não foi violentado pelo
fiel servidor (não lhe arrancou o coração, a virgindade, substituindo-o
pelo de uma corça) será vítima da gula e da sedução da madrasta-bruxa, permanecendo imóvel num caixão de cristal (seus órgãos sexuais) com a maçã atravessada na garganta, sem poder engoli-la.
Além da simbologia religiosa em torno da tentação
pelo fruto proibido (o sexo), o vermelho trazido pela bruxa liga-se
também à simbologia medieval onde as bruxas fabricam filtros de amor
usando esperma e sangue menstrual, bruxaria que indica não só a
puberdade de Branca, mas também a necessidade de expeli-la para poder
reviver. Despertará por um descuido dos anões vigilantes - a casinha na floresta, os pequenos seres trabalhadores que penetram em túneis escuros
no fundo da terra (que na simbologia sexual é imagem da mãe fértil), um
"Mestre", um a ter sono permanente, outro a espirrar, outro não podendo
falar, não foram proteção suficiente, a morte aparente tendo sido
necessária para reter Branca. (Seria interessante observar a necrofilia do belo príncipe, pois pretende levar a morta em sua companhia.)
Bela Adormecida será vítima da curiosidade que
a faz tocar num objeto proibido - o fuso, onde se fere (fluxo
menstrual), mas sem ter culpa, visto que fora mantida na ignorância da
maldição que sobre ela pesava. Sangrando antes da hora, adormece,
devendo aguardar que um príncipe valente, enfrentando e vencendo provas,
graças à espada mágica (também símbolo do órgão viril), venha salvá-la
com um beijo. Em sua forma genital, o sexo aqui aparece de duas
maneiras: prematuro e ferida mortal, no fuso; oportuno e vivificante, na
espada.
De modo geral, heróis e heroínas são órfãos de pais
(os heróis) ou de mãe (as heroínas), vítimas do ciúme de madrastas,
padrastos ou irmãos e irmãs mais velhos. Essa armação tem uma
finalidade.
Graças a ela, preservam-se as imagens de pais, mães e irmãos bons (pai
morto na guerra, mãe morta no parto, irmãos menores desamparados),
enquanto a criança pode lidar livremente com as imagens más.
Há um desdobramento de cada membro da família em duas
personagens, o que permite à criança realizar na fantasia a elaboração
de uma experiência cotidiana e real, isto é, a da divisão de uma mesma
pessoa em "boa" e "má", e dos sentimentos de amor e ódio que também
experimenta. Lutar contra padrastos, madrastas e seus filhos é mais
fácil do que lutar com pai, mãe e irmãos.
Freqüentemente, os contos se estruturam de modo mais complexo. Em A Bela Adormecida,
por exemplo, há várias figuras femininas superpostas: a mãe ausente; a
fada má que maldiz a criança; a fada boa que substitui a morte pelo sono
e promete um salvador; a velha fiandeira, desobediente, que conservou o
fuso proibido; a menina curiosa e desprevenida que, andando por lugares
desconhecidos e subindo por uma escada (símbolo da relação sexual) se fere e adormece, à espera da espada e do beijo.
A fada má pune o rei que a excluiu de um festa
dedicada à fertilidade (o nascimento da princesa), a punição consistindo
em decretar a morte da menina quando esta apresentar os sinais da
fertilidade (maldição que simboliza o medo das meninas diante da
menstruação e da alteração de seus corpos).
A morte da menina decorre da curiosidade que a faz antecipar com um objeto errado (masturbação) a sexualidade.
A fada boa está encarregada de contrabalançar o
equívoco (e o descuido masculino, que não suprimiu todos os fusos)
colocando a menina na tranqüilidade sonolenta da espera e entregando a
espada ao príncipe (que, portanto, recebe o objeto mágico de uma mulher,
pois todos nascem de mulheres). O beijo final contrabalança o medo que a
espada poderia provocar, pois é instrumento de guerra e morte (o beijo
simboliza, em muitas culturas, não só amor e amizade, mas também um
pacto ou uma aliança).
Na maioria dos contos, o pai é indiretamente responsável pela maldição ou pelas desventuras da filha. Mas em A Bela e a Fera o pai é diretamente responsável ao arrancar de um jardim que não lhe pertence, uma rosa branca, despertando a Fera. Há no roubo da flor a simbolização do desejo e do medo inconsciente das meninas de serem raptadas ou violentadas.
A figura masculina se divide: há o pai-bom e o
homem-fera, divisão que obriga Bela a viver com o segundo para salvar o
primeiro. Contudo, desejando rever o pai doente, Bela deixa que Fera,
abandonada, também adoeça (de desejo).
A imaturidade de Bela, seu medo da Fera, seu desejo
de permanecer junto ao pai só são superados quando, pela piedade e pela
sedução, retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra
o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se
desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição
da imagem masculina através de seus desejos. Do pai à fera, da fera ao
príncipe.
Em Pele-de-Burro, o desejo incestuoso do pai é
a mola do conto. A primeira tentativa da filha para evitar o incesto
fracassa: pede vestido feitos de Natureza (sol, mar e lua), mas a
Natureza não é contrária ao incesto, o rei podendo perfeitamente
conseguir os vestidos.
A princesa deve, então, fugir. Mas seu disfarce
indica os efeitos do desejo incestuoso do rei: cobre-se numa pele de
burro, animalizando-se. Num outro reino (que não o da Natureza), a princesa irá aos bailes da corte, mas, como a Gata Borralheira,
não pode ficar até o fim para não correr o risco de ser descoberta.
Porém, o príncipe apaixonado ficará doente e o remédio virá no bolo
feito pela princesa. Bolo que possui o mesmo sentido e o mesmo efeito
que a espada mágica, porém com a marca do feminino: é no interior do bolo que se encontra o remédio salvador, o anel.
Embora os contos reforcem estereótipos de
feminilidade e masculinidade e preconceitos sobre homem e mulher, são
ambíguos e ricos e por isso não são sexistas: a salvação pode ser
trazida tanto pelo herói quanto pela heroína. As fadas, aliás, possuem
um objeto mágico supremo, talismã dos talismãs: a vara de condão, sendo
seres excepcionais porque reúnem atributos femininos e masculinos, sonho
e fantasia de todas as crianças (e não só delas, evidentemente).
Em Os Três Cisnes, é a menina quem quebra o
encantamento dos irmãos, tudo dependendo de sua força de vontade (ficar
em absoluto silêncio durante sete anos) ou moderar o princípio de prazer,
e de sua coragem e destreza para acertar as setas, no momento exato,
nos corações dos três cisnes, matando-os para que vivam os irmãos.
Ela é portadora de um objeto viril - o arco e flecha
-, sabendo usá-lo. Sua destreza é ímpar: deve usar, e usa, o arco tendo
os olhos vendados (..... a venda nos olhos é símbolo medieval para a
morte. Este conto, portanto, realiza uma verdadeira crítica da relação
sexo-morte, pois morte dos cisnes é nascimento de sua virilidade, por
obra de uma mulher. E o incesto, aqui, é óbvio).
Além de não serem sexistas e de contornarem o
incesto, os contos não condenam o sexo com animais: é o amor e o afeto
pelos animais que permitirá desencantá-los.
Alguns psicanalistas consideram que as primeiras manifestações da sexualidade estão liadas ao que denominam escolha de objeto e objeto parcial.
A mãe (ou quem faz o papel de mãe para a criança)
seria o primeiro objeto escolhido e seus seios seriam o primeiro objeto
parcial.
Por outro lado, como a mãe não está permanentemente
presente, acarinhando e alimentando a criança, esta desenvolve fantasias
sobre o objeto parcial: ausente ou faltando, torna-se um mau objeto; presente e satisfatório, torna-se um bom objeto.
A criança desenvolve também fantasias de agressão e
de ternura com relação a esses objetos, sobretudo a da perseguição, no
caso do mau objeto. Assim, nos contos, frutas, plantas, flores e
alimentos venenosos ou ardilosos seriam objetos parciais maus ou
persecutórios, mas contrabalançados por bolos, filtros, poções, jóias
que trazem saúde e quebram feitiços, sendo objetos parciais bons, com os
quais a criança e os contos realizam a reparação do objeto escolhido, amado e odiado.
O objeto parcial persecutório mais perfeito, porém, é
aquele que não é devorado pela criança, mas que ameaça devorá-la. Nos
contos: os dragões, os lobos, os ogros, as tempestades, as florestas
sombrias, os castelos cheios de armadilhas. E para contrabalançar
tamanha perseguição e reparar o objeto amado, nos contos de retorno, adultos salvam as crianças da perseguição e, nos contos de partida,
a sexualidade amadurecida e vencedora das fantasias persecutórias mais
antigas aparece no próprio herói ou na heroína cujos objetos mágicos
(oferecidos por um bom adulto) lhes permitem, sozinhos, vencer a
perseguição. Nesse mesmo contexto, compreende-se que a fada tenha a vara
e a princesa dos Três Cisnes, o arco. É colocado em mãos femininas algo que poderia ser fonte de temor para as meninas.
São raros os casos, nos contos de retorno, em
que a criança consegue voltar à casa sozinha, sem auxílio de algum
adulto, mesmo porque a finalidade do conto é mostrar o despreparo da
criança para sair pelo mundo.
A grande exceção é o Pequeno Polegar, criança em tudo excepcional.
Como seu nome indica, Pequeno Polegar é uma anomalia
(e talvez por isso o entusiasmo das crianças por ele), o tamanho
compensado pela inteligência fora do comum. As botas de sete léguas, que
com astúcia consegue, além de serem capacidade mágica para vencer o
espaço e o tempo (a pouca idade), são também meio de assegurar à criança
que seus órgãos sexuais pequenos não exigem renúncia dos desejos, mas
imaginação para satisfazê-los. É interessante observar que, se nos Três Cisnes a menina empunha o arco, aqui o menino entra num enorme e protetor "recipiente': as botas. E se sai muito bem.
O Pequeno Polegar é um dos contos onde melhor
aparecem tanto o medo que a criança tem da rejeição (ser morta pelos
pais) quanto a necessidade de reparação, sito é, de recompor a bondade
dos pais depois da fantasia de sua imensa maldade. Por isso mesmo as
proezas maiores são feitas.
Polegar substitui para si próprio e para os
irmãozinhos o pai e a mãe por pais ideais: as botas acolhedoras e
salvadoras do menino que não abandona os irmãos, os protege contra os
perigos da floresta e contra o gigante, os traz de volta à casa com
fortuna, garantindo a sobrevivência da família. Não há príncipes nem
princesas, tudo depende da inteligência e imaginação da criança pobre e
minúscula.
Há nos contos contínua intervenção de bons adultos,
mas que não intervêm de modo casual ou arbitrário e sim de acordo com
várias regras, entre as quais se destaca a escolha dos mais fracos (o
caçula, o órfão, a vítima) e dos que têm senso de justiça, além da
coragem. O uso dos talismãs também está submetido as regras, os
transgressores sendo punidos (perda da potência do objeto mágico,
retorno do objeto contra o usuário) ou protelada a chegada à meta (a
seqüência de provas recomeçando ou tornando-se mais árdua).
Heróis e heroínas precisam demonstrar que são dignos
do talismã (seja por suas qualidades anteriores à recepção do objeto,
seja pelo uso que dele faz, seja pela obediência às regras de seu
emprego).
Em resumo: as condutas estão reguladas por normas e
valores, a finalidade do conto sendo persuadir a criança de que tais
normas são boas e verdadeiras e que o sofrimento decorre apenas de sua
desobediência. É o compromisso do conto, situado entre o lúdico e a
repressão.
Na maioria dos contos, o talismã é dom de um adulto
para uma criança, mesmo que esta não o saiba. Há, porém, uma formidável
exceção: João e o Pé de Feijão.
Obtido numa sabida transação (que os adultos não entendem e castigam) o grãozinho de feijão, bom sêmen, plantado em boa terra, cresce durante uma única noite. Gigantesco caule, sobe, sobe, eleva-se até `s nuvens, rijo e duro, o menino podendo nele trepar.
Como era inevitável, João penetra no castelo do gigante malvado (figura
masculina ameaçadora) que possui um segredo precioso, uma galinha que
bota ovos de ouro (imagem feminina da fertilidade, guardada em segredo,
fonte de riqueza: os que nascem). Dela se apodera João, fugindo pelo
caule, perseguido pelo gigante e, para salvar-se, o menino corta o belo pé de feijão.
O conto procura lidar com um elemento repressivo
complicado. Obtida a galinha chocadeira de riquezas por um furto (justo,
pois o gigante é mau e a família, pobre), esse ato tem clara
significação incestuosa e pode ser um risco para a vida da família e do
menino, pois o gigante se põe a descer pela árvore, a mesma
por onde o menino trepara. É preciso cortar o pé de feijão depois que o
essencial foi conseguido, isto é, a fertilidade. O sexo cresce
livremente - é como um elemento da natureza, um vegetal -, mas essa
liberdade deve encontrar um limite e ser freada, cortada. O menino que subiu é o gigante mau que desce. E vem com fúria assassina.
Os contos de fadas, tais como os conhecemos, são
resultado de muitas reelaborações na sociedade européia, fixados nos
séculos XVIII e XIX, carregando as concepções desses séculos sobre a
sexualidade (e sobre outras coisas também).
Ora, é interessante observar que, no século XIV, ao
lado desses contos, surge, na Inglaterra, um outro tipo de estória, em
certos aspecto semelhante ao maravilhoso dos contos, mas com uma
diferença fundamental: o mundo adulto não é apresentado com divisões e
ambigüidades, bom e mau, difícil e desejável, mas como mau e
indesejável.
Estamos pensando em Peter Pan e em Alice
- o menino que recusou crescer, ficando na Terra do Nunca, e a menina
cujo autor não desejou que ela crescesse, fazendo-a conhecer a luta
mortal e absurda com a Rainha do Baralho num tabuleiro de xadrez.
Muitos comentadores, de formação psicanalítica,
afirmam que o medo de Peter Pan o faz preferir a imaturidade sexual, o
homossexualismo e a masturbação (o pó de pirlimpimpim e o vôo), e que as
"perversões" de Lewis Carrol (o autor de Alice) o fazia sentir atração sexual pelas meninas, não desejando que ficassem adultas.
Não pretendemos refutar nem concordar com esse
comentadores. Gostaríamos apenas de lembrar que essas estórias foram
imaginadas num período conhecido como o da "moral vitoriana", quando a
Inglaterra, passando pela Segunda revolução industrial, mantinha o
controle capitalista sobre o mundo.
A sociedade desse período é narrada e descrita por
inúmeros autores como uma das sociedades mais repressivas da
sexualidade. Assim sendo, podíamos considerar a recusa do mundo adulto
por Peter Pan e por Alice, em vez de "anormal", talvez muito saudável e
lúcida. A Terra do Nunca, apesar do Capitão Ganho, é perfeita, mas o
País das Maravilhas é feito de ameaças e de frustrações.
Num romance da escritora inglesa Virgínia Woolf, Orlando
(estória de um homem-mulher que vive em dois períodos diferentes da
história da Inglaterra), a romancista descreve o momento em que,
adormecendo como rapaz no século XVII, a personagem desperta como
mulher, em pleno século XIX: vê por toda parte casais com trajes cinza e
negro, o céu é tenebroso e opressivo e a moça despertada sente uma dor
inexplicável no dedo anular esquerdo (isto é, onde se coloca a aliança
de casamento).
Muitos adultos ficam chocados com a violência dos
contos de fadas e se surpreendem com o fato de que não a percebiam
quando eram crianças, comprazendo-se nela. É que a maioria das crianças,
além de aceitar naturalmente o maravilhoso, espera com inabalável
certeza aquilo que o conto promete e sempre cumpre: "e foram felizes
para sempre". A gente se engana, portanto, quando tenta "açucarar" os
contos ou omitir as passagens "violentas".
Muitos se surpreendem com o fato de as crianças não
só desejarem ouvir inúmeras vezes os mesmos contos (numa repetição que
deixa os adultos extenuados), mas também não admitirem qualquer mudança
no enredo, por menor que seja (cobram do adulto que "encurta" a estória,
omite ou esquece algum detalhe, altera alguma ação). Essa relação quase
maníaca e obsessiva da criança com a narrativa é essencial.
A montagem do enredo, a configuração das personagens, os detalhes constituem um mundo cuja estabilidade repousa no fato de poder ser repetido sem alteração,
contrariamente ao cotidiano da criança que, por mais rotineiro, é feito
de mudanças. Além disso, os contos, operando com metamorfoses,
desaparecimentos e reaparecimentos, morte incompleta dos bons e morte
definitiva dos maus, funcionam em consonância com as fantasias da
criança, particularmente o modo como estrutura o desaparecimento e o
reaparecimento das pessoas mais próximas, que ama e de quem depende.
Inúmeras crianças inventam jogos de esconder e achar objetos, pois sabem onde estão.
A vantagem do conto sobre a realidade, neste aspecto,
consiste no fato de que enquanto, nesta última, a criança jamais terá
certeza do retorno dos desaparecidos ou do sumiço definitivo daqueles
que teme ou odeia, no conto tudo isto lhe é assegurado, a presença e a
ausência ficando apenas na dependência dela própria e, para tanto, exige
a narração e a repetição.
Qual de nós não experimentou as emoções de brincar de
"pique" ou "pegador"? Encontrar é vencer uma prova diante do
desaparecimento. Mas, aspecto relevante, o medo de ser encontrado
também é importante porque nos torna visíveis no que desejaríamos
ocultar. E, por isso, não ser encontrado também define o vencedor. Não é
sugestivo que as crianças menores adorem esse jogo, só que, esconder-se
para elas, é fechar os olhos? Acreditam que o que não estão vendo as
esconde. Maravilhosa fantasia. Maravilhosa onipotência (como Adão, entre
as árvores, imaginando que Deus não o vê porque não é visto por ele).
Freqüentemente os adultos temem o prazer manifestado
pela criança diante da "violência" da narrativas. Em geral, o adulto
teme, inconscientemente, ser identificado com os "maus", sem perceber
que essa identificação é sempre contrabalançada pela identificação com
os "bons" e, sobretudo, que ela é saudável para ele e para a criança que
pode, pela fantasia, fazer discriminações que lhe seriam difíceis ou
quase impossíveis sem o material imaginário.
Não é raro vermos crianças que se sentindo ou se
imaginando pouco amadas e temerosas do ódio que experimentam por alguns
adultos tenderem a duas atitudes muito compreensíveis. Algumas "torcem"
pelas bruxas, pelos ogros e dragões, identificando-se com eles e dando
vazão á agressividade que, doutro modo, poderia ser punida se
manifestada. Outras, se enchem de pavor, pois os "bons" lhes parecem
muito longínquos e inalcançáveis, enquanto os "maus" lhes parecem muito
próximos e poderosos. Em certo sentido, pode-se dizer que não o prazer e
sim o pavor sentido por algumas crianças é que poderia ser considerado
como uma espécie de aviso ou de alerta de uma sexualidade com
sofrimentos e dificuldades.
O prazer pelos contos não vai sem discriminação. A
criança discrimina os valores ali lançados e os organiza para si
própria. Em contrapartida, como observou Bettelheim, a maioria das crianças não aprecia fábulas. Qual a criança que não sente ofendido o seu senso de justiça na fábula de A Cigarra e a Formiga?
Feitas por adultos para adultos, a fábula desagrada a criança porque
esta não é moralista. A ética infantil não passa pelos códigos estreitos
dos apólogos nem pelo cultivo da frustração, próprio das fábulas - a
raposa sem as uvas, o corvo sem o queijo, o cão sem
a carne. Se a criança tolera a exigência de moderação dos impulsos, não
tolera vê-los permanentemente frustrados. À patologia repressiva da
fábula, ela opõe uma outra economia do prazer.
Como Emília, sempre sem-cerimônia, que fabula a
fábula, conta outro conto e muda a moral da estória, para escândalo de
Dona Benta.
Visitando Pele-de-Burro - Ao dar à luz uma menina, a rainha morre deixando viúvo e triste o rei que, desde então, apenas cuida da princesa.
Chegando esta aos quinze anos, sua semelhança com a
mãe é tão grande que o pai por ela se apaixona, desejando casar-se com
ela. Aterrorizada, a menina procura refúgio junto à aia que a criara.
Dando tratos à bola, finalmente a aia julga ter encontrado um
estratagema para impedir o casamento. Instrui a menina para que faça ao
pai um pedido impossível de ser satisfeito, mas condição para aceitá-lo
como marido. Deve pedir-lhe um vestido feito de sol.
Ouvido o pedido, o rei convoca todos os tecelões e
tecelãs do reino e ordena que o vestido seja feito. Em três dias, está
pronto. A aia repete o conselho, mas agora o vestido deve ser de lua.
Feito. Novo pedido, mas de um vestido de mar. Também feito. Furioso com a
recusa o rei declara que se casará com a princesa, de toda maneira,
caso contrário mandará matá-la. Apiedada, a aia obtém uma pele de burro,
nela envolve a menina e a leva para fora do reino, deixando-a entregue à
própria sorte.
Assim disfarçada, Pele-de-Burro chega ao reino
vizinho onde consegue trabalho como cozinheira do palácio e, por causa
de seus aspecto, dão-lhe como morada o chiqueiro. Todas as noites, antes
de dormir, Pele-de-Burrro usa seus vestidos e chora seu triste destino.
O filho do rei chega à idade do casamento. O pai
convida todas as damas solteiras do reino e dos reinos vizinhos para
três bailes, quando o príncipe deverá escolher a esposa. Usando seus
vestidos de sol, lua e mar, Pele-de-Burro comparece aos bailes e, desde a
primeira noite, é a preferida do príncipe que somente com ela dança.
Ela não revela o nome, onde vive , quem é.
Ao fim do terceiro baile, retorna ao chiqueiro e à
cozinha. O príncipe adoece e médicos vindos de toda parte não conseguem
curá-lo porque desconhecem seu mal.
Pele-de-Burro faz um bolo colocando seu anel de
princesa na massa. Leva ao príncipe que, na primeira dentada, morde o
anel, retira-o da boca e o reconhece. Indaga quem o colocou ali.
Pele-de-Burro é trazida e diante de todos retira a pele, aparecendo no
vestido de sol. Curado imediatamente, o príncipe se levanta, pede-a em
casamento, é aceito e logo se iniciam os festejos. E os dois foram
felizes para sempre.
Neste conto, a mãe morta não é substituída pela
madrasta perversa, mas pela boa aia que criou, aconselhou e protegeu a
menina contra o desejo incestuoso do pai. Este, diferentemente de outros
contos, não é um pobre velho infeliz, mas um fogoso senhor. A não ser
por essas diferenças, no restante o conto parece seguir o padrão dos
demais: os quinze anos da princesa e os riscos daí advindos, a fuga, o
esconderijo na pele de burro, na cozinha e no chiqueiro, os bailes e o
casamento com o príncipe, depois de salvá-lo. No entanto, a trama é bem
complicada.
A bondade da aia é ambígua e suspeita. Inicialmente
procura esconder a menina, conservando-a no quarto, longe, portanto, do
desejo paterno. Depois, sugere os vestidos que, além de serem feitos com
elementos naturais (a Natureza não proíbe o incesto) e não poderem
proteger a menina, ainda a transformam em sedutora, exacerbando o desejo
paterno, culminando na ameaça de morte (ameaça que alguns estudiosos
chamam de "julgamento do Rei Lear", para lembra o rei da tragédia de
Shakespeare que repudia a filha Cordélia porque não julga suficiente seu
amor filial). Finalmente, é a aia quem coloca a menina no interior da
pele de burro repelente e a conduz para longe da casa (numa expulsão
benigna, mas expulsão de todo modo).
Aparentemente, as personagens se distribuem duas a
duas: rei-princesa, princesa-aia. Na realidade, a relação é ternária,
pois entre o pai e a filha se coloca a aia-mãe. Morta no parto,
reaparece como ama-de-criação.
A figura da aia comanda toda a primeira parte do
conto, numa atitude vingadora contra o rei e a filha. Nessa primeira
parte, a menina está sob a ameaça de dois amores: o do pai e o da aia,
mas se a ameaça do primeiro é percebida por ela, a da segunda fica
imperceptível sob o disfarce da proteção. A personagem complexa,
portanto, é a da aia e não a do rei. Este, tudo mostra; aquela, tudo
oculta. Relegada ás partes servis do castelo, nele reina.
A situação, porém, é mais complexa. A aia-mãe, falsa
protetora, também está a serviço de uma outra fantasia. Aparentemente, o
desejo incestuoso parte do pai. Na verdade, parte da filha, a aia
estando a serviço do ocultamente desse desejo, colocada, como nas peças
teatrais, na qualidade de comparsa e cúmplice.
O amor da menina pelo pai não pode aparecer porque
sua aparição exigiria o ódio pela mãe. Ora, visto que o que a faz amada
pelo pai é sua total semelhança com a mãe, ela não só já conseguiu
ocupar o lugar materno, mas ainda colocar a mãe no lugar subalterno de
uma serviçal. Lugar, que a seguir, ela própria ocupará, ao tornar-se
cozinheira, desalojando a mãe de todos os lugares. Há uma luta surda e
inteiramente dissimulada na relação princesa-aia.
O disfarce da pele de burro é significativo. Não
significa apenas a animalização da menina por obra do pai e da mãe.
Significa mais alguma coisa. Em várias religiões existem rituais
propiciatórios dedicados á purificação e à fertilidade. Na Grécia, por
exemplo, existe o rito dionisíaco de morte do bode para expiação das
culpas, renascimento e fertilização da terra.
Nesse ritual, os participantes se cobrem com peles de
bode, dançam, têm relações sexuais e bebem vinho, encenando a história
do deus Dioniso, morto por amor de sua mãe e ressuscitado pelo
sacrifício por ela feito. Coberta na pele de burro, a menina realiza um
rito semelhante, ao qual se acrescenta a morada no chiqueiro.
Diferentemente de Branca de Neve e de Bela
Adormecida, sua espera ou passagem não se realiza pelo sono, mas à
semelhança de Borralheira, vive na sujeira e na impureza e, à semelhança
de Bela, vive com animais.
Essa impureza tem vários sentidos. É, por um lado, a
menstruação, encarada na maioria das culturas como impureza que isola as
mulheres, fazendo-as intocáveis. São os desejos proibidos, a
masturbação (vestir os vestidos antes de dormir), a fase anal, por outro
lado. Mas não só isso.
Analisando o significado das cinzas e do borralho, na borralheira, Bruno Bettlheim
lembra que na antiga Roma as Vestais (meninas da mais alta estirpe
romana que deveriam permanecer virgens até os trinta anos), estavam
encarregadas de uma das mais altas, nobres e importantes funções: a
conservação do fogo sagrado, protetor de Roma. Ora, Pele-de-Burrro vive
no chiqueiro, mas é cozinheira no palácio, vivendo ao pé do fogão. Esse
lugar não só a transforma de recebedor de alimento (criança) em doadora
dele (mãe), mas também lhe dá uma nova figura: trabalha com o trigo (o
bolo) e este é símbolo de virgindade (a Virgem, do Zodíaco, carrega um
ramo de trigo) e de fertilidade. Articulam-se, assim, vida, morte, pele
de animal para purificação, virgindade e fertilidade.
Quanto aos bailes, já vimos seu sentido principal nos contos. Vestida de natureza, a princesa dança e seduz.
Quanto ao bolo, também lá mencionamos seu sentido.
Resta o anel. Além de símbolo evidente da aliança
matrimonial, o anel assume sentido para a sexualidade da personagem
masculina. Antes de enfiá-lo no dedo, o príncipe o coloca na boca.
Sua doença é a infantilidade. Sua cura, transferir o anel da boca para o
dedo, e reconhecê-lo como um objeto doado por Pele-de-Burro, não
podendo devorá-lo.
Os vestidos também são significativos, além do
sentido geral de elementos da natureza. Em inúmeras mitologias, esses
elementos são deuses e costumam formar uma trilogia ou trindade
indissolúvel: sol-dia-luz-fogo-sexo; lua-noite-treva-mistério-sexo;
mar-água-abismo-sexo. Força vital, força mágica e força concebedora.
O número três, cujo significado preciso desconhecemos
neste conto, é considerado em muitas culturas o número perfeito ou
número da harmonia e da síntese dos contrários.
Possui poderes mágicos (repetir três vezes uma
expressão ou um gesto). Na filosofia pitagórica, foram a figura perfeita
e sagrada do triângulo constituído pelos dez primeiros números.
Na Cabala, três são as luzes mais altas do infinito,
formando o "teto dos tetos" e três são as letras do nome de Deus quando
esta passa de "nada" a "Eu". Três são as Pessoas da Santíssima Trindade.
Três vezes Pedro negou Cristo. Três são as essências ou hierarquias
celestes (na primeira: tronos, serafins e querubins; na segunda:
poderes, senhorias e potências; na terceira: anjos, arcanjos e
potestades). Três são as partes da alma. Três as virtudes cardeais (fé,
esperança e caridade).
Três vestidos, três bailes. Em Branca de Neve, três
vezes a madrasta vai à casa dos anões (na primeira, com o cinto de
fitas, na segunda, com o pente, na terceira, com a maçã). Três são as
filhas em A Bela e a Fera e na Gata Borralheira, como três são as irmãs no três Cisnes e nas Três Plumas.
Três vezes, na canção, "Terezinha foi ao chão" e
"acudiram três cavalheiros/Todos três chapéu na mão/o primeiro foi seu
pai/o segundo, seu irmão/o terceiro foi aquele a quem ela deu a mão".
A referência que fizemos aos contos de fadas foi
muito sumária, deixando de lado aspectos importantes como, por exemplo,
outros significados das próprias fadas e demais figuras maravilhosas, ou
outros sentidos da relação entre a bondade e a maldade, para a criança,
e a divisão dos bons e maus nos contos.
Também não analisamos os vários significados dos
animais e das plantas (oriundos de mitologias e simbologias de várias
épocas), dos elementos naturais como água, fogo, ar e terra (sobre os
quais o filósofo Gaston Bachelard escreveu, considerando-os arquétipos
do inconsciente universal), das poções e filtros preparados por fadas e
bruxas (sobre os quais os historiadores muito têm pesquisado), das
palavras mágicas (que aprecem em outros contextos, como no filme de
Fellini, Oito e Meio, onde, ao pronunciar as palavras "Asa Nisa Masa", o menino traz e expulsa fantasmas e realiza desejos).
Não analisamos os objetos mágicos, embora tenhamos
feito breve referências às espadas, aos bolos, às botas, aos sapatinhos
(mas nada dissemos sobre o espelho, em Branca de Neve e A Bela e a Fera,
o espelho aparecendo no pensamento ocidental em idéias como "os olhos
são espelho da alma", ou como feitiço perigoso, à maneira de Narciso que
se apaixonou por sua própria imagem, propiciando o surgimento do
conceito de narcisismo ou de fase do espelho, na psicanálise).
Apesar dessas lacunas, gostaríamos de sugerir aqui
que os contos trabalham em dois níveis: um imaginário (a estória
propriamente dita) e um simbólico (a construção implícita do enredo, o
lugar e a hora de cada peripécia, os objetos, as cores, os números, as
palavras).
Gostaríamos também de lembrar que os símbolos não estão no lugar de outra coisa não são substitutos, mas são a própria coisa presentificada por meio de outras. O símbolo realiza ou traz a coisa por intermédio de outra.
Também não nos detivemos nas posições sociais e
políticas das personagens - reis, rainhas, príncipes, princesas, servos,
camponeses. Nem no fato de alguns serem estrangeiros ou deformados (não
é curioso, por exemplo, que haja uma Moura que é torta?). Nem
nos demoramos na estrutura da família encontrada nos contos. Numa
palavra, as dimensões históricas, ideológicas e políticas foram
silenciadas.
Sobretudo não fizemos qualquer menção á alma dos contos, isto é, que são obras literárias.
Nada dissemos de sua construção artística, de suas origens,
transformações e reelaborações no decorrer do tempo (situações medievais
tratadas com recursos do romantismo, por exemplo), do modo como
participam de várias fontes diferentes de pensamento (como a Cabala,
presente na escolha dos números, privilegiando o 2, o 3, o 7 e o 10; na
escolha das horas, particularmente a meia-noite; na escolha de vegetais,
cores, metáforas), do significado da ordem de aparição e desaparição de
personagens ou da seqüência dos eventos (uma análise de tipo estrutural
poderia mostrar, por exemplo, porque a seqüência é sempre a mesma).
Essa ausência da consideração artística é grave
sobretudo quando consideramos dois fatos culturais: a pasteurização dos
contos de fadas por Disney e o surgimento de um literatura infantil
"realista".
Na disneylândia (exceção feita para duas obras-primas de Disney: Fantasia e Branca de Neve e os Sete Anões),
opera-se uma curiosa inversão. Em lugar de encontrarmos, como nos
contos narrados, a criança lidando consigo mesma ao lidar com a divisão
dos bons e dos maus, encontramos adultos fabricando a "boa criança" com
quem possam conviver sem medo. O desenho só é lúdico se for "bondoso" (a
contraprova sendo o horror de um filme como Pinóquio).
Para melhor avaliarmos essa perda, podemos relembrar A Bela e a Fera,
no filme de Jean Cocteau. Além da ambigüidade na relação entre pai e
filha e na rivalidade das irmãs pelo amor paterno, Cocteau dá especial
atenção à figura de Fera: na cena do desencantamento descobrimos
que um mesmo ator faz dois papéis; num deles, é um adolescente enamorado
de Bela que, voltada para o pai, sequer o percebe; noutro, é a Fera.
O desencantamento é a reunificação das figuras que
sempre foram uma só, estando duplicadas apenas por causa do medo de
Bela. Medo magistralmente tratado na cena do espelho, onde se revezam as
imagens de Bela, do pai, da Fera e do apaixonado. Na relação sexual,
com que termina o filme, Bela e o Príncipe, enlaçados, as roupas
agitadas pelo vento, suavemente elevam-se nos ares, sumindo por entre as
nuvens.
Por sua vez, a chamada literatura infantil realista,
além de privar a criança do acesso ao imaginário maravilhoso,
fundamental para sua constituição, procura criar a "criança útil", que
compreende o mundo "tal como é" (com o detalhe de que é "tal como é"
para o adulto que escreveu a estória), aceita a divisão social dos
papéis como divisão sexual correta, faz do trabalho e do sucesso valores
centrais. A fantasia é considerada perigosa ou inútil.
Essa literatura, pretensamente realista, substitui a
criança sabida, inventiva, crédula e astuta, amedrontada e valente, pela
criança tonta e "bem-intencionada".
Talvez fosse bom relembrarmos a obra de Monteiro
Lobato que não reprimiu "perversões" (Narizinho e o Príncipe Escamado,
Emília e Rabicó), escrevendo na certeza de que a criança é inteligente,
sabida e crítica.
Afinal, não realizou a mais extraordinária proeza quando, trazendo ao Sítio do Pica-Pau Amarelo as personagens dos contos de fadas, deu-lhes a oportunidade de convocar os autores
dos contos e julgá-los, Emília propondo recontar doutro jeito as
estórias?
Pena que a televisão também tenha pasteurizado Lobato.
Enfim, não mencionamos o maravilhoso elaborado no folclore brasileiro. Por que será que o canto da Uiara seduz e mata os homens? O Saci-Pererê é preto, perneta, usa barrete vermelho e pita um pito de barro? O Curupira tem os pés virados para trás? No conto do Sete Estrelo os filhos abandonados viram estrelas, brilhando no céu? No conto A Figueira,
a madrasta enterra as enteadas, cujos cabelos se transformam em árvore e
cujo canto triste permite a um homem descobri-las e salvá-las? Mas não
custará ao jovem leitor partir em busca desse imaginário, se quiser.
Nós lhe recomendamos vivamente que, se o fizer, aceite a companhia do Macunaíma de Mário de Andrade.
Quando iniciamos este tópico, dissemos que não
concordávamos inteiramente com as interpretações de Bruno Bettelheim e
demos alguns motivos de nossa discordância. Em particular, dizíamos, a
excessiva centralização das análises em torno das relações familiares.
Para que nossa afirmação não pareça descabida, sobretudo após a pequena visita que fizemos a Pele-de-Burro,
gostaríamos de transcrever aqui um outro conto de fada que se volta, de
maneira extraordinariamente bela, para o fundo mais fundo, lá onde
mergulha a busca do maravilhoso.
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em mote a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
|
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino.
Ela dormindo encantada
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
|
Este poema encontra-se
no Cancioneiro do poeta Fernando Pessoa
e se chama Eros e Psique.
Num livro dedicado ao estudo da obra de Fernando Pessoa, intitulado Fernando Pessoa - Aquém do Eu, Além do Outro,
a escritora Leyla Perrone Moisés interpreta a figura desse poeta cuja
obra se desdobra em quatro, cada qual com um nome de poeta diferente,
cada qual por ele atribuída a uma pessoa diferente. Na busca-recusa da
identidade (aquém do eu, além do outro), a escritora nos lembra que, em
latim, persona é a máscara usada pelos atores no teatro, e que, em francês, personne quer dizer: ninguém.
Eis a versão repressiva de Eros e Psique: dois seres,
enclausurados num cubículo e em suas vestes, sem corpo e sem rosto,
enlaçados pelas convenções. Encontro sem contato (as bocas não se
beijam, beijam trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob
os panos que cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da
sociedade inteira, vigiando e controlando o pobre par.
Será Freud o primeiro a captar que Eros e Psique não
são dois entes separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são
um só e mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). Como no
poema de Fernando Pessoa, em que o príncipe destemido busca a princesa
encantada para descobrir que ele era ela. Desejo de indivisão e de fusão
perpétua (impossível), o laço que enlaça em terno e fundo abraço, é a
sexualidade humana, perpetuamente reprimida.
www.cefetsp.br/.../filosofia/contosfadaspsicanalisechaui
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