sábado, 6 de abril de 2013

A MÍSTICA CRISTÃ NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON


Mozart-Sinfonia N* 41 - Júpiter -in Cmajor K 551-1788 - 44min.

A MÍSTICA CRISTÃ NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON


Catarina Rochamonte

Devido a uma inclinação natural da inteligência humana, a história da filosofia caracterizou-se, segundo Bergson, pela negação da duração concreta, ou seja, pela compreensão do Ser como algo imóvel, intemporal. Da mesma forma a ciência, por uma espécie de metafísica inconsciente, reduziu a realidade àquilo que se repete, que pode ser calculado ou que já estaria dado virtualmente no passado. 

Nem o mecanicismo, nem o finalismo em biologia estariam, entretanto, aptos a explicar a vida no que ela tem de mais próprio, a sua potência de criação. Uma filosofia da vida, tal como Bergson propõe em A Evolução Criadora, ultrapassa ambas as perspectivas, pois não interpreta o passado como uma virtualidade do futuro nem vê na organização natural uma fabricação; não tenta enquadrar a vida nos moldes limitados de uma inteligência que a vida mesma criou.

 O método filosófico proposto por Bergson é caracterizado por um esforço de redirecionamento da inteligência que, somente contrariando a sua tendência natural, é capaz de iluminar de algum modo o movimento próprio da vida.

A nova metafísica, fundada na intuição da duração, não é uma sistematização da ciência, mas um conhecimento complementar que dela difere tanto em seu método quanto no aspecto da realidade que toma por objeto. Mas como delegar à filosofia a tarefa de remontar à origem da vida que é puro dinamismo se a inteligência só pode apreciar o imóvel? Primeiramente levando em consideração que o espírito transborda a inteligência[1], que a inteligência é apenas uma função do espírito; depois considerando que, embora a consciência humana seja predominantemente inteligência, uma franja de intuição a envolve e essa outra forma de atividade psíquica que é a intuição segue, ela sim, o fluxo da vida que a inteligência só alcança nas suas interrupções.

Torpor vegetativo, instinto e inteligência são as vias divergentes tomadas pelo élan vital no curso do seu desenvolvimento. Não há uma hierarquia ascendente entre essas três manifestações da vida, mas uma diferença de natureza, embora todas possam ser remetidas à fonte vital comum. Instinto e inteligência implicam-se mutuamente, mas não se identificam nem se subordinam um ao outro. Trata-se, sobretudo de duas formas de atividade psíquica ou, ainda, de duas espécies distintas de conhecimento. 
 O conhecimento possibilitado pela inteligência é exterior e vazio, mais pensado e consciente; o conhecimento instintivo é interior e pleno, mais atuado e mais inconsciente. Embora inteligência e instinto sejam manifestações vitais, a inteligência, enquanto instrumento de fabricação, tem preferencialmente por objeto o sólido inorganizado, o estável e imóvel, sendo naturalmente incapaz de uma compreensão adequada da vida. 
 O instinto, por sua vez, afina-se perfeitamente com o vital e, tornado desinteressado e consciente de si mesmo (fenômeno chamado por Bergson de intuição), pode nos revelar da vida aquilo que a inteligência inevitavelmente deixa escapar.
Quanto mais a ciência se aproxima do vital, mais perde em objetividade e tem de perder, pois o vivo não se deixa apreender pelo método objetivo. Cabe então à filosofia, com um novo método, evitar que a análise dos fatos biológicos e psicológicos fique limitada à ciência positiva que busca no rigor matemático seu modelo. Iluminadas pela abordagem filosófica, biologia e psicologia se acercariam do vital com mais propriedade, pois é justamente o caráter psicológico da vida o que a intuição filosófica vem apontar. 
 A ciência, que lida com a matéria espacializada, toma-a por objeto tal como ela se nos apresenta já adaptada à nossa inteligência, mas, se a física toma por objeto a matéria assim analisada em sua adaptação natural à inteligência, a metafísica pretendida por Bergson toma por objeto o fluxo vital cuja interrupção se apresenta como matéria. Na origem desse fluxo de vida há consciência ou supra-consciência[2]; não a nossa consciência limitada, que só se atém ao já feito, não o nosso querer limitado que se esclarece em motivos e que se deixa determinar, mas o puro querer, a corrente volitiva que atravessa a matéria, comunica a vida e que só pode ser iluminada no dinamismo que lhe é essencial.
Tanto a ciência quanto a metafísica deixaram escapar de suas investigações o tempo real, i.e, a duração. A ciência busca aquilo que é mensurável e aquilo que é mensurável caracteriza-se justamente por não durar. No caso da metafísica, a perda da duração relaciona-se à linguagem, pois esta, não encontrando meios de exprimir o tempo real, mescla-o ao espaço, falando do movimento como uma série de posições e da mudança como de estados sucessivos. Tal afastamento da duração ou mascaramento do tempo real deve-se a um condicionamento do intelecto que, destinado a ação, busca exercê-la sobre pontos fixos. Não estamos, porém, condenados a um distanciamento do tempo real, pois a duração que a ciência e a metafísica eliminam, sentimo-la em nós. A restituição do movimento à sua mobilidade, da mudança à sua fluidez, do tempo à sua duração remete-nos à interioridade ao mesmo tempo em que reabilita a metafísica a partir da experiência interna da própria duração.
A reflexão de Bergson sobre a duração fê-lo erigir a intuição como método filosófico, mas, diferentemente da utilização do termo por outros filósofos, a intuição bergsoniana seria uma reinserção no próprio tempo e não um salto para o eterno. Filósofos como, por exemplo, Schelling e Schopenhauer, já haviam contraposto a intuição à inteligência, mas, aceitando o pressuposto da idealidade do tempo, identificaram a superação da inteligência com a saída da temporalidade. 
 A tese de Bergson, porém, é que a inteligência não opera naturalmente sobre o tempo real, isto é, sobre a duração, mas que é capaz de fazê-lo através de um esforço que reverte a sua inclinação natural. Esse esforço, contração ou tensão é o que Bergson chama de intuição e define como consciência imediata do fluxo da vida interior, passível de ser prolongada em intuição da consciência em geral por meio de uma “simpatia divinatória” com tudo o que vive e dura. Tratar-se-ia, neste caso, de uma intuição do vital; recuperação, pela consciência, do elã de vida que também está em nós. 
A intuição é, pois, o método da metafísica, enquanto o espírito (ou o que há de espiritual na matéria) é seu objeto. À ciência caberá a análise da matéria, por intermédio da inteligência. Ciência e metafísica são, portanto, métodos diferentes, mas complementares e de igual valor, que consideram metades diferentes de uma mesma realidade.
Embora consciência e cérebro apresentem-se ligados no homem, a hipótese de Bergson é a de que o cérebro é dispensável para a consciência[3]. O cérebro seria um órgão especializado, capaz de responder mais perfeitamente à função de escolha, própria da consciência. Enquanto a medula contém um certo número de respostas prontas a estímulos possíveis, o cérebro aciona um mecanismo motor escolhido e não simplesmente imposto. 
Adotando uma perspectiva descendente na observação do reino animal vemos confundirem-se cada vez mais as funções medular e cerebral, i.e., fundirem-se cada vez mais automatismo e escolha. Entretanto, a mera possibilidade de resposta, através de movimentos, a uma determinada excitação é por Bergson compreendida como um rudimento de consciência.
Baseada em uma substituição do percepto pelo conceito, a filosofia, construída no terreno da dialética, estaria fadada ao conflito entre sistemas, como já o diagnosticara Kant, caso não pudesse, de alguma forma, remontar à percepção em um esforço de intuição. Segundo Bergson, é possível uma dilatação, uma extensão, um alargamento ou aprofundamento da percepção capaz de dotar a filosofia da precisão de que ela carece quando permanece no domínio puramente conceitual. Tal possibilidade encontra seu fundamento na tese bergsoniana da constituição do conhecimento por dissociação brusca ao invés de associação de elementos simples[4]
Essa tese, apresentada na obra matéria e memória, ao considerar que a percepção supera o estado cerebral que corresponde à nossa representação, fundamenta a hipótese de uma percepção mais ampla que aquela que se dá em função da nossa faculdade de agir; tal hipótese encontra respaldo ainda na constatação da existência de homens “despreendidos”, nos quais a faculdade de perceber, desvinculada da faculdade de agir, torna-se uma visão privilegiada das coisas, visão esta que nos é apresentada nas obras de arte. Uma vez constatada a possibilidade de uma percepção desvinculada da necessidade de ação, caberia à filosofia deslocar metodicamente a nossa atenção para essa percepção mais completa da realidade. Ainda, dado que se estabeleceu uma relação entre desinteresse e amplitude de percepção, caberia também ao filósofo interpretar o significado metafísico da ação desinteressada, tão característica das almas generosas e santas.
A evolução seria vista então como um esforço de liberação que se realiza no homem, sendo a alegria o sinal de que a energia espiritual que evolui encontrou sua destinação. Distinta do prazer, trata-se da alegria presente em toda criação, cujo apogeu seria a ação generosa das almas místicas por onde atravessaria sem obstáculos a impulsão vital original sob a forma de amor. 
Os místicos seriam misteriosamente insuflados pelo mesmo élan cujo desenvolvimento resulta no interminável espetáculo da evolução. Dado esse fato, o método da “intuição filosófica” não nos pede mais que uma experiência de simpatia com relação a esses grandes homens de bem cuja atividade plena de entusiasmo religioso seria reveladora de “verdade metafísica.”
A religião chamada por Bergson de primitiva, natural ou estática é uma resposta da natureza à perturbação que a inteligência traz à vida individual ou social, seja quando inclina o homem ao egoísmo, seja quando debilita o ímpeto vital com a idéia da morte. Em ambos os casos entram em cena as representações religiosas fabricadas pela função fabuladora da inteligência. São então criados deuses que asseguram punição e castigo para aqueles que, seguindo uma inclinação egoísta, prejudicam a coesão social. Representa-se também a imagem de uma vida após a morte ou, ainda, figuram-se potências favoráveis ou desfavoráveis aos anseios individuais capazes de preencher o espaço de indeterminação entre o desejo e sua concretização. 
A religião estática está, portanto, sempre ligada à representação, havendo na evolução das representações religiosas um progresso que corresponde ao processo civilizatório. A religião dinâmica, porém, no que tem de mais característico, ultrapassa o âmbito da representação porque é contato direto com a vida, é retorno à origem do instinto e da inteligência através da intuição mística.
Mas“Moral fechada” ou “religião estática”, “moral aberta”, ou “religião dinâmica”, tudo é de essência biológica, pois se dá em função da vida. No primeiro caso, em função de uma vida que quer se conservar; no segundo caso, em função de uma vida que quer se superar. O élan vital é a fonte de toda moral e toda religião. Abaixo do plano da inteligência está a obrigação moral que, atuando com uma força comparável à do instinto, assegura a coesão e a ordem da sociedade. Acima do plano da inteligência está o apelo sobre-humano lançado às almas heróicas, cuja atuação renova a sociedade e faz nascerem novas idéias.
No comum dos homens, a inteligência permanece serva do instinto de conservação individual ou social, enquanto em alguns indivíduos excepcionais ela ultrapassa essa necessidade de sobrevivência ao mergulhar na fonte da potência fundamental que domina a vida. Essa potência é o amor. Há, pois, menos diferença entre o animal e o homem comum lutando ambos pela sobrevivência do que entre um homem comum e aquele que conseguiu superar as necessidades da espécie e as naturais inclinações egoístas, pondo-se em contato com o impulso vital e agindo sempre com generosidade.
O pragmatismo de Bergson não nega seu espiritualismo, pois no homem a evolução criadora torna-se capacidade de criar-se a si mesmo, de se fazer moralmente perfeito. A vida mística ou a via mística seria aquela em que, através de um retorno à sua fonte, através de um aprofundamento da própria humanidade, o homem descobre que o seu destino é tornar-se mais que homem, é tornar-se como um deus. 
A experiência mística apresenta-se ao olhar de Bergson como o zênite da evolução criadora, como ponto culminante dos esforços do espírito, como destinação maior do homem que logrou mais nessa vida do que sobreviver. Em acordo com a consideração da essência biológica da moralidade, a potência de ação das almas místicas adviria de uma intensificação do élan vital através do contato com a sua fonte. 
A moral e a religião são naturais, embora essa natureza tenha obtido no homem a capacidade de ir além de si mesma. É natural para o homem ir além da humanidade, i.e., além daquilo que o caracteriza enquanto espécie e que o conserva em sociedade. É natural, mas é raro; é a destinação de todo homem, mas é um destino excepcional.
A religião, enquanto produto da própria inteligência, tem como função básica salvaguardar a vida em sociedade, mas pode ir além dessa função primária. A natureza nos destina a uma sociedade (fechada), mas tal destinação natural pode ser ultrapassada pelo impulso moral advindo de fontes mais profundas que a mera pressão social. Essa fonte mais profunda é o próprio princípio da vida.
A determinação natural da inteligência, voltada para a sobrevivência do indivíduo e para a preservação da espécie, limita normalmente a religião a um conjunto de normas supostamente desprovidas de genealogia e cuja função social já foi sobejamente constatada. 
A dimensão utilitária da religião pode, entretanto, ser ultrapassada. Essa possibilidade relaciona-se à origem comum a que se pode remeter tanto a inteligência quanto o instinto, pois se no homem a inteligência, através da função fabuladora, conduz à religião estática, petrificada em instituições e costumes, o instinto com sua potencialidade intuitiva, pode conduzir à religião dinâmica, através da experiência de contato com o processo contínuo de criação. 

Os místicos, principalmente cristãos, exprimem esse contato como sendo uma experiência de amor que se eleva de suas almas a Deus e retorna estendendo-se a toda a humanidade[5].

 Enquanto a religião estática estabiliza a moral em rígidos dogmas, tomando-a por imutável e definitiva, os fundadores e reformadores religiosos dinamizam-na, elevando-a um maior grau de pureza e espiritualidade, libertando-a das fórmulas mortas que a cristalizaram. O sentimento de identificação com o esforço criador da vida se manifesta nessas grandes almas sob a forma de vontade de amar. 
Antes da religião que se estabelece, da metafísica que a fundamenta e para além da moral que a antecede há a emoção do indivíduo que adquiriu no contato com o princípio da vida, a força de amar toda a humanidade.Antes do cristianismo há o Cristo[6] que, estremecendo os alicerces da religião judaica, levou adiante a evolução espiritual dos homens, propagando e exercendo a caridade, emoção típica do cristianismo.
O verdadeiro misticismo, sendo definido em sua relação com o élan vital, é um fenômeno raro, compreendido por Bergson como o transbordamento da energia criadora em um indivíduo capaz de ir além do que é natural à espécie humana. O misticismo ou a religião dinâmica seria uma retomada do processo evolutivo ou do esforço criador que estacionara na inteligência humana como se aí houvesse encontrado seu triunfo final.


 O místico está ligado de alguma forma à origem da vida e o que lá se encontra, afirma Bergson, é uma supra-consciência[7].

 Mas falar de consciência é falar de um movimento que pode ir do automatismo à ação refletida e da ação refletida à ação amorosa das almas que, identificadas com o “esforço criador que é de Deus, senão o próprio Deus[8]”derrubaram a última barreira que as separava da liberdade absoluta e da alegria definitiva: a própria vontade. O misticismo completo não é, pois, apenas possibilidade de contemplação e êxtase, mas potência de ação capaz de levar a realizações extraordinárias. Essa “superabundância de atividade”, quase sempre relacionada à difusão do cristianismo[9], adviria da união com Deus; união não apenas de sentimento e pensamento, mas principalmente de vontade[10].
 Retornando à sua origem, a vontade individual renuncia a si mesma e encontra a liberdade ao deixar coincidir sua ação com a atividade divina. A união mística caracteriza-se assim não pela inação ou passividade, mas pela ação inteiramente generosa de uma vontade que, desinteressada de si mesma, passou a querer apenas o bem: “A união mística – lê-se na explicação da máxima dos santos - nada mais é que a simples realidade do amor sem interesse próprio. É o mais alto estado da justiça cristã...porque ele é o mais voluntário”[11].
Manifestando-se em obras, a mística cristã revela a essência metafísica do amor, desvelando o segredo da criação: “A criação [...] aparecerá como um empreendimento de Deus para criar criadores, para se juntar a seres dignos de seu amor[12]”. Para surgirem, esses seres dignos do amor de Deus precisaram de outros seres vivos que foram a sua preparação, assim como precisaram de uma materialidade sobre a qual exerceriam seu esforço: “Eles só puderam surgir em um universo, e foi por isso que o universo surgiu[13]”. O homem é portanto a razão de ser da vida na terra e o triunfo da evolução criadora; não por ser dotado de inteligência, mas por ser capaz de amar.
Apesar de apontar a inteligência como uma fonte de perturbação da vida e como geradora - através da religião criada pela função fabuladora - de falsas soluções para a inquietude que ela mesma promove, Bergson não estaciona no tema da angústia. O contato efetivo com o elã da vida e com a sua fonte, do qual dão testemunho os místicos, possibilita a superação do caráter trágico da existência humana, dando lugar a uma serenidade perene e a uma alegria sem culpa. É a essa serenidade que se dirige o homem enquanto sentido da evolução.
Mas evolução não significa progresso linear, necessário ou contínuo. O movimento da vida apresenta paradas, retrocessos e um permanente conflito entre o risco criador e a conservação do que foi criado, entre o “aberto” e o “fechado”, o “estático” e o “dinâmico”. Tal conflito pode ser observado em todo ser humano que busca transcender a própria natureza. Pode-se dizer que a luta em busca dessa transcendência caracteriza o esforço da moralidade. Quando a superação da própria natureza dá-se apenas em função da adequação social, fala-se em moral fechada; quando essa auto-superação se dá em função do amor, fala-se em moral aberta. No exercício desta, o conflito se intensifica, pois não se trata mais apenas de uma luta contra a própria natureza, mas também de uma luta contra a sociedade, cujas bases fundadas na inteligência e não no sentimento não suportam o impulso de amor que dá continuidade ao esforço criador da vida.
Pode-se dizer que, antes de focalizar seu interesse na mística, já havia, na obra de Bergson, um espaço aberto para esse tipo de experiência. Para além dos falsos problemas tradicionalmente enfrentados, o que a metafísica carecia era antes de uma experiência imediata que os dissipasse. Ultrapassando a teoria e os limites de uma abordagem externa ao objeto, a experiência mística se apresenta como vivência interna de um contato; mais precisamente contato de um indivíduo com a força criadora da vida. 
O testemunho do místico valeria assim como critério empírico para uma filosofia que não abandonou a sua pretensão metafísica, mas guardou sua dimensão existencial através da inserção na temporalidade real, no devir, na evolução criadora. Essa coincidência com a duração equivaleria nos místicos a um acompanhamento da força criadora através de uma sobrecarga na potência de agir; ação essa caracterizada não pelo interesse individual, mas pelo desinteresse de si em favor da humanidade. 
Mais do que a experiência contemplativa e extática, o que marca as almas místicas é a generosidade; a vontade de distribuir para a humanidade inteira o amor em cuja fonte inesgotável ela soube se nutrir.





[1] Para Bergson, “há infinitamente mais numa consciência humana do que no cérebro correspondente” (A alma e o corpo in A energia espiritual. p.41). Limitando-se a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se passa na consciência, o cérebro seria, para a atividade mental, o mesmo que a batuta do maestro para a sinfonia (ibid. p.47). Em Matéria e memória, Bergson procura demonstrar a tese de que o cérebro é um órgão de atenção à vida, cujos dispositivos permitem ao espírito responder à ação das coisas com reações motoras, efetuadas ou simplesmente nascentes, respostas essas que asseguram a inserção do espírito na realidade. O que comumente se toma por uma perturbação da vida psicológica seria antes uma perturbação na solidariedade da vida psicológica com o seu motor (Matéria e memória, prefácio). O estado cerebral indicaria, em suma, apenas uma reduzida parte do estado psicológico, justamente porque só é capaz de armazenar o passado na forma de dispositivos motores, enquanto a memória mesma, na forma de lembranças, seria a própria duração acumulando-se a si própria, a vida psíquica na sua integridade. 

[2] [...] É a consciência, ou melhor, a supra-consciência que está na origem da vida [...] Mas esta consciência, que é uma exigência de criação, só se manifesta a si mesma lá onde a criação é possível. Ela adormece quando a vida é condenada ao automatismo; ela desperta desde que ressurja a possibilidade de uma escolha. ( EC, p. 261-262)

[3] Bergson não cansa de repetir que do fato de haver entre o cérebro e a consciência uma relação de solidariedade não se segue que ambos se identifiquem. Para Bergson, com a possibilidade de uma redução mecanicista na abordagem das ciências da natureza, a totalidade do universo material em toda a sua complexidade vital passou a ser pensado como uma grande máquina na qual deveriam engrenar-se inclusive os corpos vivos em geral e o corpo do homem em particular (A alma e o corpo in A energia espiritual, p. 39). A biologia, portanto, mesmo precisando lidar com algo não redutível à matéria, manteria sua filiação a esse instinto de precisão advindo do gênio grego e “também gostaria de, por intermédio da fisiologia, reduzir as leis da vida às da química e da física, ou seja, indiretamente, da mecânica. De modo que, definitivamente, nossa ciência tende sempre para o matemático, como para um ideal: visa essencialmente a medir” (ibid, p.71). Dentro desse contexto, o problema mal posto e mal resolvido por Descartes da relação entre corpo e alma passa a ser abordada pelos cientistas com os métodos de observação e experimentação externa de que tradicionalmente dispõem, limitação que requer uma identificação entre pensamento e cérebro, já que seu método de pesquisa desenvolveu-se tão somente para a análise daquilo que é material. A filosofia do séc. XVII, por sua vez, não apresentara, segundo Bergson, nada diferente da hipótese do paralelismo rigoroso entre corpo e alma, hipótese essa “deduzida muito naturalmente dos princípios gerais de uma metafísica concebida, pelo menos em grande parte, para dar um corpo às expectativas da física moderna.” (ibid, p.39)





“estático” e o “dinâmico”. Tal conflito pode ser observado em todo ser humano que busca transcender a própria natureza. Pode-se dizer que a luta em busca dessa transcendência caracteriza o esforço da moralidade. Quando a superação da própria natureza dá-se apenas em função da adequação social, fala-se em moral fechada; quando essa auto-superação se dá em função do amor, fala-se em moral aberta. No exercício desta, o conflito se intensifica, pois não se trata mais apenas de uma luta contra a própria natureza, mas também de uma luta contra a sociedade, cujas bases fundadas na inteligência e não no sentimento não suportam o impulso de amor que dá continuidade ao esforço criador da vida.

Pode-se dizer que, antes de focalizar seu interesse na mística, já havia, na obra de Bergson, um espaço aberto para esse tipo de experiência. Para além dos falsos problemas tradicionalmente enfrentados, o que a metafísica carecia era antes de uma experiência imediata que os dissipasse. Ultrapassando a teoria e os limites de uma abordagem externa ao objeto, a experiência mística se apresenta como vivência interna de um contato; mais precisamente contato de um indivíduo com a força criadora da vida. O testemunho do místico valeria assim como critério empírico para uma filosofia que não abandonou a sua pretensão metafísica, mas guardou sua dimensão existencial através da inserção na temporalidade real, no devir, na evolução criadora. Essa coincidência com a duração equivaleria nos místicos a um acompanhamento da força criadora através de uma sobrecarga na potência de agir; ação essa caracterizada não pelo interesse individual, mas pelo desinteresse de si em favor da humanidade. Mais do que a experiência contemplativa e extática, o que marca as almas místicas é a generosidade; a vontade de distribuir para a humanidade inteira o amor em cuja fonte inesgotável ela soube se nutrir.
[4] P.M. p. 1373-[5] “[...]pois o amor que o consome não é mais simplesmente o amor de um homem por Deus, é o amor de Deus por todos os homens. Através de Deus, por Deus, ele ama toda a humanidade com um divino amor” (D.S.M.R. p.247)
[6] “Misticismo e cristianismo se condicionam portanto um ao outro indefinidamente. É necessário, entretanto que tenha havido um começo. De fato, na origem do cristianismo há o Cristo.” (D.S.M.R. p. 253-254)
[7] E.C. p.261-[8] D.S.M.R. p.233-[9] D.S.M.R. p.241-[10] D.S.M.R p.244-[11] VETÖ, Miklos. O Nascimento da Vontade. São Leopoldo RS, 2005, Editora Unisinos, p. 100- [12] D.S.M.R p. 270- [13] D.S.M.R p.273 



 Li-Sol-30

Fonte:
 
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Um comentário:

  1. Para Bergson, o ser humano pode orientar-se na vida de duas maneiras. Uma através da sua capacidade intelectiva donde desponta a ciência e a tecnologia que lhe dá o prazer do bem-estar material, e outra pela faculdade intuitiva de descobrir o verdadeiro sentido da vida, donde decorre uma prática religiosa autêntica que lhe confere sua inserção na alegria da vida. Bergson nos leva ao entendimento de que a vida é uma verdadeira fonte de alegria quando praticamos a religião dinâmica ou a vida mística que o conhecimento intuitivo pode nos proporcionar. Bergson, pois, elabora uma filosofia para mostrar que há um conhecimento que nos capacita a experimentar uma realidade acima da realidade fática e cientificista do intelecto, e desfrutar de suas benesses: é a realidade divina apreendida pela intuição. Bergson define a intuição como “uma certa simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que tem de único e de inexprimível”. Este tema é abordado em sua obra As duas Fontes da Moral e da Religião.

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