Mozart-Sinfonia N* 41 - Júpiter -in Cmajor K 551-1788 - 44min.
Devido
a uma inclinação natural da inteligência humana, a história da
filosofia caracterizou-se, segundo Bergson, pela negação da duração
concreta, ou seja, pela compreensão do Ser como algo imóvel, intemporal.
Da mesma forma a ciência, por uma espécie de metafísica inconsciente,
reduziu a realidade àquilo que se repete, que pode ser calculado ou que
já estaria dado virtualmente no passado.
Nem o mecanicismo, nem o
finalismo em biologia estariam, entretanto, aptos a explicar a vida no
que ela tem de mais próprio, a sua potência de criação. Uma filosofia da
vida, tal como Bergson propõe em A Evolução Criadora, ultrapassa
ambas as perspectivas, pois não interpreta o passado como uma
virtualidade do futuro nem vê na organização natural uma fabricação; não
tenta enquadrar a vida nos moldes limitados de uma inteligência que a
vida mesma criou.
O método filosófico proposto por Bergson é
caracterizado por um esforço de redirecionamento da inteligência que,
somente contrariando a sua tendência natural, é capaz de iluminar de
algum modo o movimento próprio da vida.
A
nova metafísica, fundada na intuição da duração, não é uma
sistematização da ciência, mas um conhecimento complementar que dela
difere tanto em seu método quanto no aspecto da realidade que toma por
objeto. Mas como delegar à filosofia a tarefa de remontar à origem da
vida que é puro dinamismo se a inteligência só pode apreciar o imóvel?
Primeiramente levando em consideração que o espírito transborda a
inteligência[1],
que a inteligência é apenas uma função do espírito; depois considerando
que, embora a consciência humana seja predominantemente inteligência,
uma franja de intuição a envolve e essa outra forma de atividade
psíquica que é a intuição segue, ela sim, o fluxo da vida que a
inteligência só alcança nas suas interrupções.
Torpor vegetativo, instinto e inteligência são as vias divergentes tomadas pelo élan vital no
curso do seu desenvolvimento. Não há uma hierarquia ascendente entre
essas três manifestações da vida, mas uma diferença de natureza, embora
todas possam ser remetidas à fonte vital comum. Instinto e inteligência
implicam-se mutuamente, mas não se identificam nem se subordinam um ao
outro. Trata-se, sobretudo de duas formas de atividade psíquica ou,
ainda, de duas espécies distintas de conhecimento.
O conhecimento
possibilitado pela inteligência é exterior e vazio, mais pensado e
consciente; o conhecimento instintivo é interior e pleno, mais atuado e
mais inconsciente. Embora inteligência e instinto sejam manifestações
vitais, a inteligência, enquanto instrumento de fabricação, tem
preferencialmente por objeto o sólido inorganizado, o estável e imóvel,
sendo naturalmente incapaz de uma compreensão adequada da vida.
O
instinto, por sua vez, afina-se perfeitamente com o vital e, tornado
desinteressado e consciente de si mesmo (fenômeno chamado por Bergson de
intuição), pode nos revelar da vida aquilo que a inteligência
inevitavelmente deixa escapar.
Quanto
mais a ciência se aproxima do vital, mais perde em objetividade e tem
de perder, pois o vivo não se deixa apreender pelo método objetivo. Cabe
então à filosofia, com um novo método, evitar que a análise dos fatos
biológicos e psicológicos fique limitada à ciência positiva que busca no
rigor matemático seu modelo. Iluminadas pela abordagem filosófica,
biologia e psicologia se acercariam do vital com mais propriedade, pois é
justamente o caráter psicológico da vida o que a intuição filosófica
vem apontar.
A ciência, que lida com a matéria espacializada, toma-a por
objeto tal como ela se nos apresenta já adaptada à nossa inteligência,
mas, se a física toma por objeto a matéria assim analisada em sua
adaptação natural à inteligência, a metafísica pretendida por Bergson
toma por objeto o fluxo vital cuja interrupção se apresenta como
matéria. Na origem desse fluxo de vida há consciência ou
supra-consciência[2];
não a nossa consciência limitada, que só se atém ao já feito, não o
nosso querer limitado que se esclarece em motivos e que se deixa
determinar, mas o puro querer, a corrente volitiva que atravessa a
matéria, comunica a vida e que só pode ser iluminada no dinamismo que
lhe é essencial.
Tanto
a ciência quanto a metafísica deixaram escapar de suas investigações o
tempo real, i.e, a duração. A ciência busca aquilo que é mensurável e
aquilo que é mensurável caracteriza-se justamente por não durar. No caso
da metafísica, a perda da duração relaciona-se à linguagem, pois esta,
não encontrando meios de exprimir o tempo real, mescla-o ao espaço,
falando do movimento como uma série de posições e da mudança como de
estados sucessivos. Tal afastamento da duração ou mascaramento do tempo
real deve-se a um condicionamento do intelecto que, destinado a ação,
busca exercê-la sobre pontos fixos. Não estamos, porém, condenados a um
distanciamento do tempo real, pois a duração que a ciência e a
metafísica eliminam, sentimo-la em nós. A restituição do movimento à sua
mobilidade, da mudança à sua fluidez, do tempo à sua duração remete-nos
à interioridade ao mesmo tempo em que reabilita a metafísica a partir
da experiência interna da própria duração.
A
reflexão de Bergson sobre a duração fê-lo erigir a intuição como método
filosófico, mas, diferentemente da utilização do termo por outros
filósofos, a intuição bergsoniana seria uma reinserção no próprio tempo e
não um salto para o eterno. Filósofos como, por exemplo, Schelling e
Schopenhauer, já haviam contraposto a intuição à inteligência, mas,
aceitando o pressuposto da idealidade do tempo, identificaram a
superação da inteligência com a saída da temporalidade.
A tese de
Bergson, porém, é que a inteligência não opera naturalmente sobre o
tempo real, isto é, sobre a duração, mas que é capaz de fazê-lo através
de um esforço que reverte a sua inclinação natural. Esse esforço,
contração ou tensão é o que Bergson chama de intuição e define como
consciência imediata do fluxo da vida interior, passível de ser
prolongada em intuição da consciência em geral por meio de uma “simpatia
divinatória” com tudo o que vive e dura. Tratar-se-ia, neste caso, de
uma intuição do vital; recuperação, pela consciência, do elã de vida que
também está em nós.
A intuição é, pois, o método da metafísica,
enquanto o espírito (ou o que há de espiritual na matéria) é seu objeto.
À ciência caberá a análise da matéria, por intermédio da inteligência.
Ciência e metafísica são, portanto, métodos diferentes, mas
complementares e de igual valor, que consideram metades diferentes de
uma mesma realidade.
Embora
consciência e cérebro apresentem-se ligados no homem, a hipótese de
Bergson é a de que o cérebro é dispensável para a consciência[3].
O cérebro seria um órgão especializado, capaz de responder mais
perfeitamente à função de escolha, própria da consciência. Enquanto a
medula contém um certo número de respostas prontas a estímulos
possíveis, o cérebro aciona um mecanismo motor escolhido e não
simplesmente imposto.
Adotando uma perspectiva descendente na observação
do reino animal vemos confundirem-se cada vez mais as funções medular e
cerebral, i.e., fundirem-se cada vez mais automatismo e escolha.
Entretanto, a mera possibilidade de resposta, através de movimentos, a
uma determinada excitação é por Bergson compreendida como um rudimento
de consciência.
Baseada
em uma substituição do percepto pelo conceito, a filosofia, construída
no terreno da dialética, estaria fadada ao conflito entre sistemas, como
já o diagnosticara Kant, caso não pudesse, de alguma forma, remontar à
percepção em um esforço de intuição. Segundo Bergson, é possível uma
dilatação, uma extensão, um alargamento ou aprofundamento da percepção
capaz de dotar a filosofia da precisão de que ela carece quando
permanece no domínio puramente conceitual. Tal possibilidade encontra
seu fundamento na tese bergsoniana da constituição do conhecimento por
dissociação brusca ao invés de associação de elementos simples[4].
Essa tese, apresentada na obra matéria e memória, ao
considerar que a percepção supera o estado cerebral que corresponde à
nossa representação, fundamenta a hipótese de uma percepção mais ampla
que aquela que se dá em função da nossa faculdade de agir; tal hipótese
encontra respaldo ainda na constatação da existência de homens
“despreendidos”, nos quais a faculdade de perceber, desvinculada da
faculdade de agir, torna-se uma visão privilegiada das coisas, visão
esta que nos é apresentada nas obras de arte. Uma vez constatada a
possibilidade de uma percepção desvinculada da necessidade de ação,
caberia à filosofia deslocar metodicamente a nossa atenção para essa
percepção mais completa da realidade. Ainda, dado que se estabeleceu uma
relação entre desinteresse e amplitude de percepção, caberia também ao
filósofo interpretar o significado metafísico da ação desinteressada,
tão característica das almas generosas e santas.
A
evolução seria vista então como um esforço de liberação que se realiza
no homem, sendo a alegria o sinal de que a energia espiritual que evolui
encontrou sua destinação. Distinta do prazer, trata-se da alegria
presente em toda criação, cujo apogeu seria a ação generosa das almas
místicas por onde atravessaria sem obstáculos a impulsão vital original
sob a forma de amor.
Os místicos seriam misteriosamente insuflados pelo
mesmo élan cujo desenvolvimento resulta no interminável
espetáculo da evolução. Dado esse fato, o método da “intuição
filosófica” não nos pede mais que uma experiência de simpatia com
relação a esses grandes homens de bem cuja atividade plena de entusiasmo
religioso seria reveladora de “verdade metafísica.”
A
religião chamada por Bergson de primitiva, natural ou estática é uma
resposta da natureza à perturbação que a inteligência traz à vida
individual ou social, seja quando inclina o homem ao egoísmo, seja
quando debilita o ímpeto vital com a idéia da morte. Em ambos os casos
entram em cena as representações religiosas fabricadas pela função
fabuladora da inteligência. São então criados deuses que asseguram
punição e castigo para aqueles que, seguindo uma inclinação egoísta,
prejudicam a coesão social. Representa-se também a imagem de uma vida
após a morte ou, ainda, figuram-se potências favoráveis ou desfavoráveis
aos anseios individuais capazes de preencher o espaço de indeterminação
entre o desejo e sua concretização.
A religião estática está, portanto,
sempre ligada à representação, havendo na evolução das representações
religiosas um progresso que corresponde ao processo civilizatório. A
religião dinâmica, porém, no que tem de mais característico, ultrapassa o
âmbito da representação porque é contato direto com a vida, é retorno à
origem do instinto e da inteligência através da intuição mística.
Mas“Moral
fechada” ou “religião estática”, “moral aberta”, ou “religião
dinâmica”, tudo é de essência biológica, pois se dá em função da vida.
No primeiro caso, em função de uma vida que quer se conservar; no
segundo caso, em função de uma vida que quer se superar. O élan vital é
a fonte de toda moral e toda religião. Abaixo do plano da inteligência
está a obrigação moral que, atuando com uma força comparável à do
instinto, assegura a coesão e a ordem da sociedade. Acima do plano da
inteligência está o apelo sobre-humano lançado às almas heróicas, cuja
atuação renova a sociedade e faz nascerem novas idéias.
No
comum dos homens, a inteligência permanece serva do instinto de
conservação individual ou social, enquanto em alguns indivíduos
excepcionais ela ultrapassa essa necessidade de sobrevivência ao
mergulhar na fonte da potência fundamental que domina a vida. Essa
potência é o amor. Há, pois, menos diferença entre o animal e o homem
comum lutando ambos pela sobrevivência do que entre um homem comum e
aquele que conseguiu superar as necessidades da espécie e as naturais
inclinações egoístas, pondo-se em contato com o impulso vital e agindo
sempre com generosidade.
O
pragmatismo de Bergson não nega seu espiritualismo, pois no homem a
evolução criadora torna-se capacidade de criar-se a si mesmo, de se
fazer moralmente perfeito. A vida mística ou a via mística seria aquela
em que, através de um retorno à sua fonte, através de um aprofundamento
da própria humanidade, o homem descobre que o seu destino é tornar-se
mais que homem, é tornar-se como um deus.
A experiência mística
apresenta-se ao olhar de Bergson como o zênite da evolução criadora,
como ponto culminante dos esforços do espírito, como destinação maior do
homem que logrou mais nessa vida do que sobreviver. Em acordo com a
consideração da essência biológica da moralidade, a potência de ação das
almas místicas adviria de uma intensificação do élan vital
através do contato com a sua fonte.
A moral e a religião são naturais,
embora essa natureza tenha obtido no homem a capacidade de ir além de si
mesma. É natural para o homem ir além da humanidade, i.e., além daquilo
que o caracteriza enquanto espécie e que o conserva em sociedade. É
natural, mas é raro; é a destinação de todo homem, mas é um destino
excepcional.
A
religião, enquanto produto da própria inteligência, tem como função
básica salvaguardar a vida em sociedade, mas pode ir além dessa função
primária. A natureza nos destina a uma sociedade (fechada), mas tal
destinação natural pode ser ultrapassada pelo impulso moral advindo de
fontes mais profundas que a mera pressão social. Essa fonte mais
profunda é o próprio princípio da vida.
A
determinação natural da inteligência, voltada para a sobrevivência do
indivíduo e para a preservação da espécie, limita normalmente a religião
a um conjunto de normas supostamente desprovidas de genealogia e cuja
função social já foi sobejamente constatada.
A dimensão utilitária da
religião pode, entretanto, ser ultrapassada. Essa possibilidade
relaciona-se à origem comum a que se pode remeter tanto a inteligência
quanto o instinto, pois se no homem a inteligência, através da função
fabuladora, conduz à religião estática, petrificada em instituições e
costumes, o instinto com sua potencialidade intuitiva, pode conduzir à
religião dinâmica, através da experiência de contato com o processo
contínuo de criação.
Os místicos, principalmente cristãos, exprimem esse
contato como sendo uma experiência de amor que se eleva de suas almas a
Deus e retorna estendendo-se a toda a humanidade[5].
Enquanto
a religião estática estabiliza a moral em rígidos dogmas, tomando-a por
imutável e definitiva, os fundadores e reformadores religiosos
dinamizam-na, elevando-a um maior grau de pureza e espiritualidade,
libertando-a das fórmulas mortas que a cristalizaram. O sentimento de
identificação com o esforço criador da vida se manifesta nessas grandes
almas sob a forma de vontade de amar.
Antes da religião que se
estabelece, da metafísica que a fundamenta e para além da moral que a
antecede há a emoção do indivíduo que adquiriu no contato com o
princípio da vida, a força de amar toda a humanidade.Antes do
cristianismo há o Cristo[6]
que, estremecendo os alicerces da religião judaica, levou adiante a
evolução espiritual dos homens, propagando e exercendo a caridade,
emoção típica do cristianismo.
O verdadeiro misticismo, sendo definido em sua relação com o élan vital, é
um fenômeno raro, compreendido por Bergson como o transbordamento da
energia criadora em um indivíduo capaz de ir além do que é natural à
espécie humana. O misticismo ou a religião dinâmica seria uma retomada
do processo evolutivo ou do esforço criador que estacionara na
inteligência humana como se aí houvesse encontrado seu triunfo final.
O
místico está ligado de alguma forma à origem da vida e o que lá se
encontra, afirma Bergson, é uma supra-consciência[7].
Mas falar de consciência é falar de um movimento que pode ir do
automatismo à ação refletida e da ação refletida à ação amorosa das
almas que, identificadas com o “esforço criador que é de Deus, senão o
próprio Deus[8]”derrubaram
a última barreira que as separava da liberdade absoluta e da alegria
definitiva: a própria vontade. O misticismo completo não é, pois, apenas
possibilidade de contemplação e êxtase, mas potência de ação capaz de
levar a realizações extraordinárias. Essa “superabundância de
atividade”, quase sempre relacionada à difusão do cristianismo[9], adviria da união com Deus; união não apenas de sentimento e pensamento, mas principalmente de vontade[10].
Retornando à sua origem, a vontade individual renuncia a si mesma e
encontra a liberdade ao deixar coincidir sua ação com a atividade
divina. A união mística caracteriza-se assim não pela inação ou
passividade, mas pela ação inteiramente generosa de uma vontade que,
desinteressada de si mesma, passou a querer apenas o bem: “A união
mística – lê-se na explicação da máxima dos santos - nada mais é
que a simples realidade do amor sem interesse próprio. É o mais alto
estado da justiça cristã...porque ele é o mais voluntário”[11].
Manifestando-se
em obras, a mística cristã revela a essência metafísica do amor,
desvelando o segredo da criação: “A criação [...] aparecerá como um
empreendimento de Deus para criar criadores, para se juntar a seres
dignos de seu amor[12]”.
Para surgirem, esses seres dignos do amor de Deus precisaram de outros
seres vivos que foram a sua preparação, assim como precisaram de uma
materialidade sobre a qual exerceriam seu esforço: “Eles só puderam
surgir em um universo, e foi por isso que o universo surgiu[13]”.
O homem é portanto a razão de ser da vida na terra e o triunfo da
evolução criadora; não por ser dotado de inteligência, mas por ser capaz
de amar.
Apesar
de apontar a inteligência como uma fonte de perturbação da vida e como
geradora - através da religião criada pela função fabuladora - de falsas
soluções para a inquietude que ela mesma promove, Bergson não estaciona
no tema da angústia. O contato efetivo com o elã da vida e com a sua
fonte, do qual dão testemunho os místicos, possibilita a superação do
caráter trágico da existência humana, dando lugar a uma serenidade
perene e a uma alegria sem culpa. É a essa serenidade que se dirige o
homem enquanto sentido da evolução.
Mas
evolução não significa progresso linear, necessário ou contínuo. O
movimento da vida apresenta paradas, retrocessos e um permanente
conflito entre o risco criador e a conservação do que foi criado, entre o
“aberto” e o “fechado”, o “estático” e o “dinâmico”. Tal conflito pode
ser observado em todo ser humano que busca transcender a própria
natureza. Pode-se dizer que a luta em busca dessa transcendência
caracteriza o esforço da moralidade. Quando a superação da própria
natureza dá-se apenas em função da adequação social, fala-se em moral
fechada; quando essa auto-superação se dá em função do amor, fala-se em
moral aberta. No exercício desta, o conflito se intensifica, pois não se
trata mais apenas de uma luta contra a própria natureza, mas também de
uma luta contra a sociedade, cujas bases fundadas na inteligência e não
no sentimento não suportam o impulso de amor que dá continuidade ao
esforço criador da vida.
Pode-se
dizer que, antes de focalizar seu interesse na mística, já havia, na
obra de Bergson, um espaço aberto para esse tipo de experiência. Para
além dos falsos problemas tradicionalmente enfrentados, o que a
metafísica carecia era antes de uma experiência imediata que os
dissipasse. Ultrapassando a teoria e os limites de uma abordagem externa
ao objeto, a experiência mística se apresenta como vivência interna de
um contato; mais precisamente contato de um indivíduo com a força
criadora da vida.
O testemunho do místico valeria assim como critério
empírico para uma filosofia que não abandonou a sua pretensão
metafísica, mas guardou sua dimensão existencial através da inserção na
temporalidade real, no devir, na evolução criadora. Essa coincidência
com a duração equivaleria nos místicos a um acompanhamento da força
criadora através de uma sobrecarga na potência de agir; ação essa
caracterizada não pelo interesse individual, mas pelo desinteresse de si
em favor da humanidade.
Mais do que a experiência contemplativa e
extática, o que marca as almas místicas é a generosidade; a vontade de
distribuir para a humanidade inteira o amor em cuja fonte inesgotável
ela soube se nutrir.
[1] Para Bergson, “há infinitamente mais numa consciência humana do que no cérebro correspondente” (A alma e o corpo in A energia espiritual. p.41).
Limitando-se a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se passa
na consciência, o cérebro seria, para a atividade mental, o mesmo que a
batuta do maestro para a sinfonia (ibid. p.47). Em Matéria e memória, Bergson
procura demonstrar a tese de que o cérebro é um órgão de atenção à
vida, cujos dispositivos permitem ao espírito responder à ação das
coisas com reações motoras, efetuadas ou simplesmente nascentes,
respostas essas que asseguram a inserção do espírito na realidade. O que
comumente se toma por uma perturbação da vida psicológica seria antes
uma perturbação na solidariedade da vida psicológica com o seu motor (Matéria e memória, prefácio).
O estado cerebral indicaria, em suma, apenas uma reduzida parte do
estado psicológico, justamente porque só é capaz de armazenar o passado
na forma de dispositivos motores, enquanto a memória mesma, na
forma de lembranças, seria a própria duração acumulando-se a si própria,
a vida psíquica na sua integridade.
[2]
[...] É a consciência, ou melhor, a supra-consciência que está na
origem da vida [...] Mas esta consciência, que é uma exigência de
criação, só se manifesta a si mesma lá onde a criação é possível. Ela
adormece quando a vida é condenada ao automatismo; ela desperta desde
que ressurja a possibilidade de uma escolha. ( EC, p. 261-262)
[3]
Bergson não cansa de repetir que do fato de haver entre o cérebro e a
consciência uma relação de solidariedade não se segue que ambos se
identifiquem. Para Bergson, com a possibilidade de uma redução
mecanicista na abordagem das ciências da natureza, a totalidade do
universo material em toda a sua complexidade vital passou a ser pensado
como uma grande máquina na qual deveriam engrenar-se inclusive os corpos
vivos em geral e o corpo do homem em particular (A alma e o corpo in A energia espiritual, p.
39). A biologia, portanto, mesmo precisando lidar com algo não
redutível à matéria, manteria sua filiação a esse instinto de precisão
advindo do gênio grego e “também gostaria de, por intermédio da
fisiologia, reduzir as leis da vida às da química e da física, ou seja,
indiretamente, da mecânica. De modo que, definitivamente, nossa ciência
tende sempre para o matemático, como para um ideal: visa essencialmente a
medir” (ibid, p.71). Dentro desse contexto, o problema mal posto
e mal resolvido por Descartes da relação entre corpo e alma passa a ser
abordada pelos cientistas com os métodos de observação e experimentação
externa de que tradicionalmente dispõem, limitação que requer uma
identificação entre pensamento e cérebro, já que seu método de pesquisa
desenvolveu-se tão somente para a análise daquilo que é material. A
filosofia do séc. XVII, por sua vez, não apresentara, segundo Bergson,
nada diferente da hipótese do paralelismo rigoroso entre corpo e alma,
hipótese essa “deduzida muito naturalmente dos princípios gerais de uma
metafísica concebida, pelo menos em grande parte, para dar um corpo às
expectativas da física moderna.” (ibid, p.39)
“estático”
e o “dinâmico”. Tal conflito pode ser observado em todo ser humano que
busca transcender a própria natureza. Pode-se dizer que a luta em busca
dessa transcendência caracteriza o esforço da moralidade. Quando a
superação da própria natureza dá-se apenas em função da adequação
social, fala-se em moral fechada; quando essa auto-superação se dá em
função do amor, fala-se em moral aberta. No exercício desta, o conflito
se intensifica, pois não se trata mais apenas de uma luta contra a
própria natureza, mas também de uma luta contra a sociedade, cujas bases
fundadas na inteligência e não no sentimento não suportam o impulso de
amor que dá continuidade ao esforço criador da vida.
Pode-se
dizer que, antes de focalizar seu interesse na mística, já havia, na
obra de Bergson, um espaço aberto para esse tipo de experiência. Para
além dos falsos problemas tradicionalmente enfrentados, o que a
metafísica carecia era antes de uma experiência imediata que os
dissipasse. Ultrapassando a teoria e os limites de uma abordagem externa
ao objeto, a experiência mística se apresenta como vivência interna de
um contato; mais precisamente contato de um indivíduo com a força
criadora da vida. O testemunho do místico valeria assim como critério
empírico para uma filosofia que não abandonou a sua pretensão
metafísica, mas guardou sua dimensão existencial através da inserção na
temporalidade real, no devir, na evolução criadora. Essa coincidência
com a duração equivaleria nos místicos a um acompanhamento da força
criadora através de uma sobrecarga na potência de agir; ação essa
caracterizada não pelo interesse individual, mas pelo desinteresse de si
em favor da humanidade. Mais do que a experiência contemplativa e
extática, o que marca as almas místicas é a generosidade; a vontade de
distribuir para a humanidade inteira o amor em cuja fonte inesgotável
ela soube se nutrir.
[6]
“Misticismo e cristianismo se condicionam portanto um ao outro
indefinidamente. É necessário, entretanto que tenha havido um começo. De
fato, na origem do cristianismo há o Cristo.” (D.S.M.R. p. 253-254)
Para Bergson, o ser humano pode orientar-se na vida de duas maneiras. Uma através da sua capacidade intelectiva donde desponta a ciência e a tecnologia que lhe dá o prazer do bem-estar material, e outra pela faculdade intuitiva de descobrir o verdadeiro sentido da vida, donde decorre uma prática religiosa autêntica que lhe confere sua inserção na alegria da vida. Bergson nos leva ao entendimento de que a vida é uma verdadeira fonte de alegria quando praticamos a religião dinâmica ou a vida mística que o conhecimento intuitivo pode nos proporcionar. Bergson, pois, elabora uma filosofia para mostrar que há um conhecimento que nos capacita a experimentar uma realidade acima da realidade fática e cientificista do intelecto, e desfrutar de suas benesses: é a realidade divina apreendida pela intuição. Bergson define a intuição como “uma certa simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que tem de único e de inexprimível”. Este tema é abordado em sua obra As duas Fontes da Moral e da Religião.
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