" Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o Prof. Dr. Carlos Roberto Velho Cirne Lima
explicou as correções que faz ao sistema de Hegel e que o tornaram
referência entre os estudiosos do pensador. Uma dessas correções
reside no uso incorreto da palavra contradição, que Cirne Lima
substitui por contrariedade: assim, quando o filósofo alemão “fala em
contradição, entenda-se contrariedade”. Refletindo sobre o conceito de
autonomia baseado em Hegel, o pesquisador compreende
que o eu não pode ser entendido apenas como singular, mas como um “eu
expandido”, e por isso comprometido com todo o universo, pois é
autônomo o sujeito que dá a si mesmo as suas leis e as cumpre.
Questionado sobre a repercussão que a formalização da Ciência da lógica, realizada em parceria com o lógico Carlos Soares, Cirne Lima
manifestou seu estranhamento com o silêncio que seguiu a publicação
dos dois artigos que a divulgaram: “Nenhum lógico lê nosso trabalho
porque ele trata de Hegel, e nenhum hegeliano o lê porque é lógica”.
Cirne Lima é professor do PPG em
Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pelo Berchmannskolleg,
em Pullach (Alemanha), doutor em Filosofia pela Universität Innsbruck,
(Áustria) e obteve Livre-docência pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, (UFRGS). Entre seus livros publicados, citamos Realismo e dialética. A analogia como dialética do Realismo (Porto Alegre: Globo, 1967); Sobre a contradição (Porto Alegre: Edipucrs, 1993); e Dialética para principiantes (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002). Seu livro mais recente chama-se Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico (Caxias do Sul, RS: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2006). Com Carlos Soares escreveu os artigos Being, notthing, becoming. Hegel and Us - A formalization. Filosofia Unisinos, São Leopoldo - RS, v. 6, n. 1, p. 5-39, 2005 e Being, nothing becoming. Hegel and Us - A formalization. Part 2. Filosofia Unisinos, v. 7, p. 05-39, 2006.
Dele a IHU On-Line publicou entrevistas na 80ª edição, de 20-10- 2003, sob o título As universidades perderam a unidade do saber, e na 102ª edição, de 24-05-2004, sob o título Karl Rahner defendeu idéias, antes do tempo, cedo demais. Na edição, de 23-05-2005, intitulada O ser humano como sujeito social na Teoria dos Sistemas, Auto-Organização e Caos, Cirne Lima foi um dos integrantes da mesa-redonda que debateu esse assunto com os filósofos Karen Gloy, da Universidade de Lucerna, Áustria, e Günther Küppers, da Universidade de Bielefeld, Alemanha. A entrevista mais recente concedida pelo filósofo à IHU On-Line foi na edição 183, de 5-06-2006, quando falou sobre o lançamento do CD-ROM Dialética para todos, sob o título Dialética para todos: Aristóteles com o controle-remoto na mão. Todas as entrevistas estão disponíveis para download no site do IHU, www.unisinos.br/ihu.
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IHU On-Line – O senhor poderia explicar em que consistem suas duas correções ao sistema hegeliano?
Carlos Roberto Cirne Lima – Quando falo em correção no sistema de Hegel, estou pressupondo erros que ele cometeu e que devam ser corrigidos. Esses erros foram apontados por Schelling no tempo em que Hegel lecionava em Berlim. Schelling lecionava na Universidade de Munique. Companheiro de estudos de Hegel, Schelling, depois de certo período, seguiu outros caminhos. A amizade deles, inclusive, parece que diminuiu. Schelling
era, naquela época, uma das pessoas que melhor entendiam o que Hegel
queria e o que havia feito. Dois ou três anos antes de Hegel morrer, Schelling
ofereceu um semestre inteiro de aulas em Munique com o título
Preleções sobre a filosofia contemporânea. Nessa oportunidade ele fez
uma coisa inédita, porque cada capítulo é destinado a um grande
pensador: Descartes, Christian Wollf , Spinoza, Leibniz, Kant, Fichte. Só que depois de Fichte vem o próprio Schelling, e ele fala dele mesmo. Depois de falar sobre ele mesmo, fala sobre Hegel. A seguir, no último capítulo, ele fala sobre si próprio novamente como o Schelling da velhice. Então, há dois capítulos sobre Schelling, e no meio deles um capítulo sobre Hegel. Nesse capítulo, Schelling critica Hegel, apontando algumas críticas corretas e com fundamento.
A primeira dessas críticas é a mais séria de todas: que Hegel
nunca deu o devido valor e importância para a contingência ou, em
outras palavras, a facticidade das coisas nesse mundo e, portanto, da
história. Aquilo que hoje Habermas chama de facticidade (o termo técnico é contingência), é aquilo que pode ser e pode não ser, mas de fato é. Hegel
tem a tendência muito forte de dizer que tudo que é a rigor tinha que
ser. Ele nunca escreve isso com essa força, com esse descaramento.
Ele não é bobo... Inclusive no começo da Filosofia do direito, Hegel pressupõe claramente o mundo contingente em que podemos e devemos fazer os mais variados contratos. Esse é um lugar em que Hegel
respeitou a contingência do mundo. Mas, em muitos outros lugares, ele
parece negar mais e mais a contingência do mundo. Num texto
importante, que tem como título A razão na história, que é a introdução à
Filosofia da história de Hegel, ele escreve “para entender a história é preciso afastar a contingência”. E a objeção que Schelling faz, e depois repetida por muitos outros contemporâneos que trabalham sobre Hegel,
é que, embora ele tenha e fale sobre a contingência em vários lugares
e tenha certa importância, nas grandes linhas do sistema, ela é
negligenciada. Ela não recebe a importância que deveria ter, de sorte
que a história já em Hegel adquire um caráter necessitário, o que vai provocar o grande erro de Marx
de que a história é inexorável e que, portanto, a revolução comunista é
um momento inexorável da história, que necessariamente vai acontecer.
Esse é o primeiro grande erro de Hegel. Ele não foi suficientemente claro em dar ênfase para a facticidade da história.
O segundo erro de Hegel
O segundo grande erro de Hegel é
mais um problema de terminologia combinado com certa ambigüidade. O
filósofo fala constantemente da contradição como motor do sistema. Só
que todos os lógicos a partir de Aristóteles até hoje
dizem que quem não respeita o princípio da não-contradição perde o uso
da razão e “fica reduzido ao estado de planta” . E Hegel diz que a contradição é o motor do sistema... Essa é uma objeção que os lógicos e a filosofia analítica fazem contra Hegel e que os hegelianos não conseguem responder. Se contradição é algo tão ruim, se ela nos tira o uso da razão, como é que em Hegel
a razão funciona e se movimenta mediante a contradição? A resposta
que eu dou, e nesse ponto eu estou quase sozinho, acompanhado apenas
por Eduardo Luft, que foi meu aluno, e por Klaus Düssing, na Alemanha, é que quando Hegel fala em contradição, ele deveria estar falando em contrariedade. Junto comigo, Düsing
não apenas aceita, mas defende essa teoria. Em lógica, contradição é
diferente de contrariedade. Na contradição, se um pólo é verdadeiro, o
outro é falso, e é impossível que ambos sejam falsos. Ora, em Hegel,
tese e antíteses são falsas, e isso é possível na contrariedade, mas
não é possível na contradição. Daí então se coloca a minha correção em
Hegel e dizer que quando ele fala em contradição, entenda-se contrariedade.
IHU On-Line – E a que o senhor atribui essa incompreensão do termo contradição?
Carlos Roberto Cirne Lima – Acredito que entre os contemporâneos é um problema de fé. Há poucos dias recebi um livro muito bem escrito do colega José Henrique Santos sobre a Fenomenologia do espírito: O trabalho do negativo: ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito
(São Paulo: Loyola, 2007). Nessa obra, ele tem um capítulo inteiro em
que expõe minha teoria sobre a contrariedade mas, depois, volta atrás
e diz que não é contrariedade, mas sim contradição. Contudo, aí ele
precisa admitir que a lógica de Hegel não tem nada a ver com a lógica
contemporânea, ou seja, é outra coisa. Mas ele não consegue explicar que
outra coisa essa lógica hegeliana seria. Os outros autores também são
assim, ao passo que na Alemanha, em Colônia, meu colega Düsing
tem a mesma teoria que eu, e chegou a ela independentemente de mim, e
eu independentemente dele. A explicação é simples. Até os advogados
confundem contradição e contrariedade e usam uma quando deveriam usar a
outra. A mesma coisa acontece com os políticos. As palavras
contradição e contrariedade, no decorrer dos séculos, ficaram com
conteúdo muitas vezes flutuante e, às vezes, eram vistas como
sinônimos. Já se um lógico ouve falar em contradição, ele diz que isso
está errado. E se o sistema de Hegel fala em
contradição, então está tudo errado. Essa é a posição de um lógico e
da filosofia analítica contemporânea. Por isso é que Hegel nesse campo analítico é um absurdo. Minha teoria é de que a lógica está correta e o que Hegel
quer dizer realmente é contrariedade. O que acontece é que, já no
tempo dele, nem todos distinguiam corretamente contradição e
contrariedade.
IHU On-Line – Professor, e após essas duas
correções que o senhor sugere, como se poderia chegar a um conceito
complexo de identidade e no que ele implica em termos de uma ponte com
o conceito de complexidade, Teoria da Evolução, Caos e Sistemas?
Carlos Roberto Cirne Lima – No meu último livro, Depois de Hegel, toda a parte final trata sobre a Teoria de Sistemas, Evolução e Complexidade. A partir do sistema de Hegel,
com as duas correções que indiquei, além de mais uma que outra
modificação, eu desemboco na Teoria da Evolução e de Sistemas, que é a
Teoria da Complexidade. Isso, em Hegel, vem do conceito de identidade, pois ela mesma é complexa. Então, x = x vale apenas para um lógico. Quando Hegel
diz que x é idêntico a x, ele não está dizendo apenas que x = x. É
por isso que no meu livro está escrito que na fórmula x = x há
identidade dialética de x e de x. A lógica implica nisso. A identidade
dialética é diferente do x = x, pois ela contém a oposição. Na
identidade simples, o pai é o pai, e tu podes esquecer completamente o
filho. Na identidade dialética se está falando sempre do pai e do
filho ao mesmo tempo, portanto da filiação. Nessa identidade, existem
sempre dois pólos que numa primeira etapa são separados e se opõem, e
numa segunda etapa se unem, se conciliam, formando a síntese.
Identidade dialética
A identidade lógica é vazia de conteúdo, enquanto
que a identidade dialética tem, dentro de si, uma oposição. Na vida
real, nem eu nem você podemos dizer que somos x = x. Somos xt1, xt2,
xt3, porque o tempo está passado. Agora estou sentado, depois estarei
de pé. Cada vez que há um movimento, tu já não és mais apenas o x.
Então tu tens que fazer uma teoria (algo que ninguém consegue fazer
direito), da identidade do x sentado, do x de pé, do x neste momento, do
x em outro lugar, porque em lógica contemporânea o x significa apenas
aquele exato momento naquela configuração. Já a identidade dialética
inclui o que eu sou e o que eu quero ser, aquilo que fui no passado.
As pessoas são uma identidade dialética: elas estão no tempo e têm
passado, presente e futuro. Esse é o mundo no qual vivemos realmente. A
identidade lógica só vale para a matemática; não vale nem mesmo para a
física, na qual já temos uma transição para a identidade dialética. A
vida é um sistema dinâmico em funcionamento. Essa é a conclusão a que
chego no final desse meu livro. Isso não é mais Hegel, mas uma continuação do sistema hegeliano.
IHU On-Line – O senhor poderia nos dar
mais detalhes sobre a acusação de necessitarismo que o sistema de Hegel
sofreu e os entraves que, a partir disso, se colocam em relação ética e
à liberdade?
Carlos Roberto Cirne Lima – Se dissermos que o sistema de Hegel
é necessitário, por conseqüência não há ética e nem liberdade. O
necessitarismo não dá chances de escolher entre alternativas. É
preciso seguir o caminho “necessário”. Marx tem uma
frase que expressa isso muito bem, falando que, quando alguém entra no
rio da história, não se deve tentar nadar contra a correnteza porque
não adianta nada. O certo é entrar no rio e se deixar levar pela
correnteza. Essa correnteza do rio é a necessidade, o necessitarismo
do sistema de Marx e que se encontra pré-figurado em
Hegel, pois embora tenha alguns textos contra, grosso modo, tende mais
para o necessitarismo do que para uma teoria libertária.
IHU On-Line – Em uma entrevista que o
senhor nos concedeu, especificamente no número 166 da IHU On-Line, o
senhor diz que o panenteísmo “nos levará a uma compreensão da unidade
do Universo”, aproximando diferentes religiões. Em que medida o
conceito de Absoluto hegeliano apóia essa perspectiva?
Carlos Roberto Cirne Lima – O conceito de
Absoluto apóia completamente essa teoria, algo que estou formulando com
palavras um pouco diferentes. O sistema hegeliano é panenteísta, não
há a menor dúvida. E quando um sistema é panenteísta, há mais
facilidade de diálogo com outras religiões. Vamos tomar o exemplo do
maior teólogo católico do século XXI, Karl Rahner.
Agora vamos pensar sobre o índio brasileiro, que nunca teve contato
com os brancos e que levou uma vida muito decente, muito boa, mas
nunca batizou-se ou ouviu falar de Jesus Cristo. Se esse índio morre,
ele vai para o céu? Para Rahner, sim. Esse é o cristão anônimo, teoria que ele formulou e levou ao Concílio Vaticano II . Lá Rahner
foi derrotado com essa idéia. Se expandirmos essa teoria, teremos,
então, uma teoria ecumênica. O problema é que tanto islâmicos quanto
protestantes estão caminhando a passos largos para um extremismo
religioso. No Islamismo isso fica bem claro através de todas essas
guerras que vemos hoje. A forma como os islâmicos tratam a mulher, o
uso da burka, a introdução da lei duríssima da Charia essa
tendência para o rigorismo é totalmente contra o espírito ecumênico.
Uma teoria panenteísta, que há meio século teria efeitos melhores,
hoje esbarra no fanatismo religioso, que não é só de uma religião, mas
de várias: judeus ortodoxos, árabes e até os protestantes americanos.
A Guerra do Iraque tem uma base religiosa protestante. O fanatismo
religioso é o maior inimigo de uma posição ecumênica em todos os
credos, inclusive no católico.
IHU On-Line – Quais foram as maiores
dificuldades no projeto que o senhor e seu colega Carlos Soares , da
UCS, tiveram ao formalizar a Ciência da lógica de Hegel? Como foi a
recepção desse estudo pela academia?
Carlos Roberto Cirne Lima – Hegel
dizia que sua filosofia não poderia ser formalizada. Só que ele
estava falando da lógica do seu tempo. Entretanto, os seus argumentos
atingem as lógicas contemporâneas. Assim, o Soares, que é o melhor
lógico do Rio Grande do Sul, a meu convite, se debruçou sobre o
assunto e tentamos fazer a exposição da primeira parte da Lógica de Hegel em lógica simbólica. O que causa estranhamento é que nenhum lógico lê nosso trabalho porque ele trata de Hegel,
e nenhum hegeliano o lê porque é lógica. Então, nós fizemos algo que
foi publicado numa revista de circulação ampla e não recebemos nenhuma
única manifestação, quer positiva ou negativa. Em seguida, publiquei Depois de Hegel, e nele, após cada capítulo, faço uma formalização. No trabalho sobre a Ciência da lógica,
fizemos a primeira parte. Agora fiz as três partes numa lógica mais
simples, acessível, que todos aprendem no primeiro ou segundo semestre
da Filosofia. Do ponto de vista lógico, esse trabalho é muito menos
“bonito”, “perfeito”, mas em compensação, mais fácil de ler para um
lógico. O texto de Depois de Hegel está muito claro,
fácil de ler. Espero, num futuro próximo, que haja uma reação maior do
que aquela que tivemos quando da formalização da Ciência da lógica através dos dois artigos .
IHU On-Line – E por que o senhor deu ao seu livro o nome de Depois de Hegel?
Carlos Roberto Cirne Lima – Coloquei esse nome porque se eu colocasse apenas Hegel, as pessoas perguntariam com que direito eu estou corrigindo Hegel. O livro não tem a intenção de expor o filósofo ao pé da letra, não sendo uma obra de história da Filosofia. Corrijo Hegel, mudo palavras dele, e assim a obra está baseada no pensador. Não é um livro de um comentador de Hegel. É um livro de alguém que estudou Hegel
e que está escrevendo sobre ele. A culpa e a responsabilidade pelos
erros e acertos são minhas. O leitor atento perceberá que nesse estudo
me alicercei em erros e acertos de Hegel.
IHU On-Line – Antecipando o tema que o IHU
tratará no Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma Sociedade
de indivíduos?, como o senhor conectaria o “dever-ser” de Hegel com a
busca e construção da autonomia do sujeito contemporâneo?
Carlos Roberto Cirne Lima – O problema da autonomia é que o eu no sentido singular é algo que não existe. Essa é uma idéia de Hegel e que vem desde Platão, passando pelos neoplatônicos como Plotino , Nicolaus Cusanus , chega a Schelling e Hegel
e que eu abraço totalmente. Eu não sou apenas um eu singular. Sou nós
dois que estamos conversando. Sou nós que estamos lendo esse
trabalho. Sou nós que somos Unisinos. Sou nós que somos gaúchos,
brasileiros, humanidade, Terra, Universo. Então o eu singular é, ao
mesmo tempo, o eu universal. É por isso que eu tenho obrigações com o
outro eu, que está próximo de mim, e também com o eu que está bem
longe, no outro lado do planeta. Tenho obrigações com a natureza, com a
ecologia. O meu eu atinge o universo inteiro. O eu verdadeiro só é
verdadeiro quando é universal, o que eu chamo de autonomia, pois é o
universo que dá as leis a si mesmo. E eu, enquanto universo, dou as
leis a mim mesmo. Bem concretamente, se eu tomar a decisão de fazer
algo, essa é uma atitude singular. Em termos estaduais, federais, por
exemplo, é correto dizer que eu perdi a minha autonomia porque foram os
deputados que fizeram as leis, e não eu? Não. Sou eu que estou
simbolicamente na Assembléia fazendo as leis. E se eu não obedeço a
alguém “estranho”, estou desobedecendo a mim mesmo. Quando eu obedeço à
lei brasileira, obedeço àquele Congresso Nacional, não o singular que
existe e que está cheio de ladrões, mas àquele Congresso que
representa o meu eu ampliado. É por isso que, quando obedeço à lei
brasileira, estou obedecendo algo que eu mesmo fiz. Isso mostra que o
eu pode e deve ser expandido de tal maneira que ele abarque não só o
município, estado, ou país, mas o universo inteiro. Esse é o sentido da
autonomia.
IHU On-Line – Então seria correto afirmar
que o conceito de autonomia hegeliano se apóia em Kant e, por isso, o
indivíduo como um “nó no sistema do mundo” é aquele que age obedecendo
como um eu expandido, categoricamente?
Carlos Roberto Cirne Lima – A diferença sobre a autonomia em Kant e em Hegel é que, para Kant, a autonomia diz respeito apenas ao homem, a quem ele chama de eu transcendental. Mas o eu transcendental de Kant
abarca apenas os homens. Nesse sentido, uma ética kantiana é incapaz de
fundamentar a ecologia. Então, de acordo com a autonomia de Kant
eu posso destruir as florestas, exceto se vou prejudicar outro homem.
No conceito de autonomia que eu estou defendendo, mesmo que eu não
estivesse prejudicando o outro homem, a floresta tem a sua base moral, e
não posso matar animais sem motivo, por exemplo. Não posso destruir
uma floresta sem motivo. Posso, sim, comer um animal porque estou um
elo acima na cadeia alimentar. Como a autonomia que defendo abrange o
homem que se estende pela natureza e abarca o universo inteiro, esta é
uma autonomia mais ampla. Kant é parecido com Hegel, porém mais estreito.
IHU On-Line - E o que a filosofia
pós-moderna, de característica anti-sistema, pode aprender com Hegel? O
senhor ainda acha que a Filosofia agoniza por conta dessa falta de
sistema? Esse cenário continua e tende a continuar? Por quê?
Carlos Roberto Cirne Lima – Penso que o
problema continua e tende a continuar. A partir da virada do século
XIX para o XX, fomos destruindo a razão: prova disso são Nietzsche, Heidegger
e outros pensadores. Não há praticamente ninguém no horizonte da
Filosofia que esteja tentando fazer uma visão globalizada do mundo,
uma ciência universalíssima, nome usado antigamente. Os filósofos nos
departamentos de Filosofia estão todos fazendo história da Filosofia,
ou da Ciência. E quem está fazendo filosofia, na minha opinião, é um
que outro físico e biólogo, que tem uma visão de conjunto. Acho que
alguns físicos contemporâneos são muito mais filósofos do que os
professores de Filosofia. Dou um exemplo: a Unisinos publicou o livro A vida no cosmos (São Leopoldo: Unisinos, 2004), do físico americano Lee Smolin. Acredito que Smolin
é mais filósofo do que a maioria dos professores de Filosofia que
andam pelo mundo. Por quê? Porque ele tem uma visão do mundo e quer
procurar uma teoria do mundo. Essa é a idéia da Filosofia, e os
filósofos a abandonaram. Não vejo nenhum filósofo dedicando-se a isso
em país nenhum. Uma visão global está sendo dada fajutamente por
psicanalistas e, de uma forma muito boa, por cientistas como Lee Smolin e alguns teóricos do sistema.
IHU On-Line – Como Capra, por exemplo?
Carlos Roberto Cirne Lima – Bem, cheguei a conhecer o Capra pessoalmente. Gostamos bastante um do outro. Acho que o grande livro dele é Teia da vida
(São Paulo: Cultrix, 1997), uma obra na qual ele tem uma visão
global. Os outros livros dele eu não recomendo porque ele tenta uma
visão global e não a atinge. A Teia da vida, contudo, é um livro que traria orgulho para um filósofo.
IHU On-Line – Qual é a importância da Fenomenologia e como o senhor percebe essa obra em relação às demais na Filosofia?
Carlos Roberto Cirne Lima – A Fenomenologia
é um dos mais importantes livros da história da Filosofia. Penso,
ainda, que há poucas obras para colocar em patamar de igualdade com
ela. É um livro difícil de ler, mas de uma grandiosidade, de uma
amplidão, de uma visão do mundo tão ampla e sábia que, dificilmente,
alguém conseguirá escrever algo parecido. Há, entretanto, um erro no
capítulo final, e correções precisam ser feitas. Isso porque esse
capítulo desemboca em algo que pode ser interpretado de modo
totalitário. Se tu me perguntasses qual é o capítulo mais belo, eu
mencionaria a Vorrede (prefácio), pela sua concisão e pelo panorama que Hegel dá de cima dessa “montanha”.
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Fonte:
http://www.cirnelima.org/
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