sábado, 30 de abril de 2011

FILOSOFIA E CIÊNCIA EM BERGSON : DA DURAÇÃO AO TEMPO




 
Henri-Louis Bergson

DA DURAÇÃO AO TEMPO ESPACIALIZADO:

FILOSOFIA E CIÊNCIA EM BERGSON



Geovana da Paz Monteiro

                 O filósofo deve ir mais longe que o cientista.
Fazendo tábua rasa do que é apenas um símbolo imaginativo, verá o mundo material resolver-se num simples fluxo, numa continuidade de escoamento, num devir.
                    H. Bergson, A evolução criadora, p. 397.
É comum encontrarmos nos dicionários e manuais de filosofia algum verbete ou capítulo dedicado ao tempo. Nesses registros, geralmente bastante panorâmicos, também estão sempre presentes as referências a Henri Bergson como um filósofo que se ocupou em pensar a duração. Porém, aprofundando a pesquisa sobre o pensamento bergsoniano, constatamos que, ao contrário dos demais, Bergson investiga o tempo de maneira deveras peculiar. 

Tentaremos, nesta exposição, acompanhar com esse filósofo os contornos da duração que se deixam exprimir em palavras, embora as palavras não sejam as melhores amigas do filósofo cuja procura é simpatizar, através da intuição, com a realidade se fazendo.

O ideal de precisão bergsoniano demanda certo afastamento dos conceitos em nome de uma atenção às coisas, ao vivido. No que diz respeito à ciência, é aceitável que os conceitos venham sobrepor-se à experiência, haja vista a matéria, seu objeto, ser o modelo segundo o qual nossa inteligência se regule e os conceitos produtos dessa faculdade. Entretanto, se a linguagem conceitual vem se casar quase que perfeitamente à ciência, ela só se conformaria à metafísica arbitrariamente, pois "a experiência interior não encontrará em parte alguma linguagem estritamente apropriada” (Bergson, 2006, p. 48).

Para Bergson, a filosofia deveria se apartar da atitude mera e estritamente conceitual; contudo, aceita-a sem reservas. A filosofia tem se subordinado à linguagem tendo em vista a resolução de seus problemas, mas assim condenou-se à repetição de respostas prontas.
Esses conceitos estão inclusos nas palavras.
Foram, o mais das vezes, elaborados pelo organismo social com vistas a um alvo que nada tem de metafísico. Para formá-los, a sociedade recortou o real segundo suas necessidades. Por que haveria a filosofia de aceitar uma divisão que tem todas as chances de não corresponder às articulações do real? (Bergson, 2006, p. 54).
 
Requerer para a filosofia um ideal de precisão, visto que tal tenha sido o que mais lhe faltou (Bergson, 2006, p. 3), não será, entretanto, reivindicar a rigidez da conceitualização cujo uso se vê propagado quer no âmbito cientifico quer no filosófico. A comunhão entre filosofia e ciência dando na experiência implicará o afastamento daquilo que, para Bergson, não passa de “[...] conhecimento vago que está armazenado nos conceitos usuais e é transmitido pelas palavras” (Bergson, 2006, p. 47). 

Bergson persiste em um problema fundamental: o tempo. É o lugar do qual sempre partimos e para o qual sempre retornamos quando nos propomos a estudar sua filosofia, como propõe Worms:
É toda a sua filosofia, com efeito, que Bergson apresenta como decorrência, não da ‘questão’ do tempo, mas da simples constatação da passagem do tempo, do simples fato de que o tempo passa (Worms, 2004, p. 129).
A duração, tal qual a compreende Bergson, consiste em uma continuidade, ou seja, o prolongamento de um antes em um depois. Poderíamos questionar o que há nisto de tão peculiar. Afinal, todos nós percebemos a passagem do tempo assim, um instante após o outro. Quem discordaria de uma ideia tão comum? A aparente trivialidade encobre o verdadeiro sentido do tempo bergsoniano. Não se trata aí de um tempo mensurável – ou melhor, trata-se também disto, posto que duração seja totalidade, isto é, a realidade em seu estado mais fundamental.

Segundo Bergson, desde que os primeiros filósofos se dedicaram a pensar a passagem do tempo, foi transformando-o em espaço que eles elaboraram suas reflexões. Mas qual é mesmo a natureza do espaço? Seria o espaço uma qualidade atribuída às coisas materiais ou seriam as coisas materiais atribuídas a ele? 

Percebemos de fato o espaço
 ou apenas construímos dele uma representação abstrata? 
Em seu primeiro livro, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson define o espaço como “uma realidade sem qualidade” (Bergson, s.d., p. 69), um meio homogêneo onde a matéria se desdobra, pertencendo portanto ao domínio quantitativo:
O que se torna necessário é afirmar que conhecemos duas realidades de ordem diferente, uma heterogênea, a das qualidades sensíveis, a outra homogênea, que é o espaço. Esta última, claramente concebida pela inteligência humana, permite-nos até efetuar distinções nítidas, contar, abstrair, e talvez também falar (Bergson, s.d., p. 71).
Afirmar a homogeneidade do espaço 
é considerá-lo um vazio a ser preenchido pela matéria, 
um meio sobre o qual os objetos vêm se justapor.
Mas se, de acordo com o filósofo, “[...] a homogeneidade consiste aqui na ausência de toda qualidade [...]” (Bergson, s.d., p. 71), será contraditório com a natureza qualitativa do tempo considerá-lo um meio homogêneo passível de mensuração; será o mesmo que admiti-lo sem qualidade.

“Contudo, concorda-se em olhar o tempo 
como um meio indefinido, diferente do espaço,
mas homogêneo como ele” 
(Bergson, s.d., p. 71).
Para Bergson, isso não pode ser assim; a distinção entre a duração e o tempo homogêneo medido diz respeito ao fato de que uma é sentida, vivida, intuída, ao passo que o outro é contado, não indo além de uma representação, de um símbolo numérico e, portanto, estático, da realidade fluida que passa sem deixar rastros, salvo aqueles registrados pela memória. 

A duração não está nos instantes contados, nas paradas imaginadas e somadas, ela é perceptível naquilo que não apreendemos matematicamente, ela está muito mais no ato, nos intervalos que unificam e prolongam o instante precedente no instante seguinte. Assim, a duração é uma e várias. Sendo multiplicidade indiscernível, multiplicidade qualitativa, heterogênea, ela é o que unifica sem por isso encerrar-se em uma forma estática e homogênea, ou seja, sem identificar-se com o espaço. 

Grosso modo,
o espaço sendo o lugar da repetição, 
da fixidez das formas acabadas, 
é contrário ao tempo onde se desvela toda criação.
Na ideia de uma multiplicidade não numérica encontramos implícita essa potência criadora, como Bergson mesmo denomina, essa imprevisível novidade que a duração carrega consigo, criação que exclui toda repetição. Trata-se, pois, de dois processos distintos: um repetitivo, captado pelo esforço científico, próprio à inteligência; outro sempre em vias de renovar-se porque criativo, ou seja, temporal, tal que não se revelaria senão intuitivamente.

Confundidos tempo e espaço, 
todos os grandes problemas filosóficos surgiram então. 
Filosofia e ciência, desde seu início histórico, trataram o tempo ao modo do espaço. Assim, isso que podemos com Bergson denominar “espacialização do tempo” não é um achado ou privilégio da Física moderna, levado a cabo por Einstein e os continuadores da Teoria da Relatividade. 

Ao contrário, Einstein, na visão de Bergson, só levou às últimas consequências uma confusão que remonta à Grécia Antiga, quando Zenão de Eleia misturou movimento e espaço. Daí em diante, todos os “pseudoproblemas” foram adquirindo proporções elevadas e ocupando o pensamento dos filósofos. Mas todos, ou quase todos, acabaram repetindo os mesmos equívocos. Bergson, no entanto, ao criticar a história da Filosofia, propõe um novo ponto de partida, a saber: investigar se, na raiz de todos os grandes problemas filosóficos, não está uma grave incompreensão do que seja de fato o tempo, ou melhor, a realidade.

Em seu percurso, Bergson constatou que a assimilação do tempo às grandezas de ordem numérica ocorre porque sua representação simbólica, sua medida, é algo extremamente útil à vida cotidiana. Como ele mesmo declara: “o tempo entra nas fórmulas da mecânica, nos cálculos do astrônomo e até do físico, sob a forma de quantidade” (Bergson, s.d., p. 77). Doravante, a ideia de um “tempo-quantidade” cria um conflito entre a esfera psicológica, o tempo de nossas consciências, e o tempo dos relógios, mensurável e homogêneo.

Em todo caso, Bergson está disposto
a dissipar a confusão; para ele, 
o tempo, que é seu, mas que também é o de todo mundo,
não é mensurável.
O filósofo mostra que a representação do tempo livre de interferências psicológicas não reflete o fundamental, pois, como ele afirmará anos mais tarde, “duração implica consciência”, e esta por sua vez deverá ser entendida não como testemunha do tempo que passa, mas como condição de sua passagem. Como afirma Worms:
Se a duração não existe portanto senão ‘para’ uma consciência, não é no sentido de que ela apareceria ‘a’ uma consciência que seria sua espectadora, mas na medida em que existiria, ela própria, como consciência, esta última sendo mesmo, por seu ato ou atividade própria, sua condição efetiva de possibilidade (Worms, 2004, p. 133).
Nesse sentido, a relação entre o espaço percorrido pelos ponteiros de um relógio e o tempo real é fictícia. As posições percorridas só existirão para uma consciência, e mais especificamente para uma memória que as registre.

O relógio somente marca as simultaneidades instantâneas 
entre um momento da vida consciente 
e um ponto do espaço. 
 
Aprofundando a defesa de uma duração psicológica realizada em seu primeiro livro e estendendo-a ao tempo universal, em Duração e simultaneidade Bergson esclarece que a aparente oposição entre tempo físico e o tempo da consciência não se sustenta senão por um apelo a abstrações filosóficas que, para ele, no fundo são vazias de conteúdo. Embora tenha proferido duras críticas à matematização da realidade naquele livro, Bergson não sai em defesa de um tempo meramente psicológico. Quando afirma que duração implica consciência, ressalta que primeiramente o tempo real é experiência pessoal, mas daí se expande ao mundo das outras consciências e das coisas.

A ideia de uma duração universal 
é bastante cara ao senso comum. 
De modo geral, todos nós acreditamos na ligação entre nossa própria duração e a do universo. Julgamos que nossos fatos de consciência se dão simultaneamente aos processos da natureza; enfim, acreditamos seguir um mesmo fluxo, nós, seres conscientes, e o mundo. Nosso tempo é concebido, então, universal, e isso implica uma concepção de simultaneidade absoluta. Contudo, embora Bergson estivesse muito mais propenso ao senso comum, isto é, à experiência vivida que à racionalização, não é para ele tão simples determinar a natureza do tempo real. 

É verdade que em Duração e simultaneidade o filósofo está inteiramente voltado ao esforço de demonstrar a inconsistência da possibilidade de tempos múltiplos e descompassados. Mas, é preciso esclarecer que esse tempo universal defendido por Bergson não se identifica às concepções da Física clássica. Devemos ter em conta, primeiramente, a noção de multiplicidade qualitativa que está na base dessa compreensão de tempo. 

Afinal, todos sabem que Bergson 
é um defensor da diversidade, 
mas precisamos revelar que tipo de diversidade 
é essa que mantém a unidade na multiplicidade. 
Para tanto distinguiremos duas esferas: uma científica e outra filosófica. A primeira também poderia ser denominada esfera da fabricação, já que, de acordo com Bergson,

 “fabricar consiste em informar a matéria, 
[...] em convertê-la em instrumento a fim de dela se assenhorar” 
(Bergson, 2005, p. 198). 
 
E esse poder fabricador que nos é conferido pela inteligência é desempenhado com bastante propriedade pela ciência. 

O que há de multiplicidade na matéria se reduz, então, segundo o domínio científico, à quantidade; portanto, toda diferença aqui é de ordem quantitativa. 

A esfera filosófica, por sua vez, restringe-se aos dados imediatamente percebidos. Difere em natureza da quantitativa, das grandezas matemáticas.

 Assim, a multiplicidade peculiar que faz da duração uma e várias consiste em um “progresso qualitativo” semelhante ao ritmo, à cadência de uma melodia, mas que o “[...] interpretamos no sentido de uma mudança de grandeza, porque gostamos das coisas simples” (Bergson, s.d., p. 18-19). 

Em verdade, o que compõe a multiplicidade qualitativa, a própria duração ela mesma, são diferenças de natureza, jamais de grandeza. Deste modo, a duração pura se nos apresenta como um elo de conservação entre os momentos distintos de um mesmo fluxo. 

Mas, se duração implica consciência e esta, por sua vez, memória, sabendo-se que não há memória nas coisas, como poderíamos conceber uma duração para as coisas (Bergson, 2006, p. 56)?

A possibilidade de pensarmos um tempo universal 
está inteiramente fundada na duração psicológica. 
Restaria ao universo sem memória apenas a instantaneidade própria ao espaço, e espaço sozinho não guarda qualquer traço-de-união, ou seja, nenhuma temporalidade. Embora Bergson, como Berkeley (1980, § 3), leve ao extremo a ideia de que “ser é ser percebido”, ele garante às coisas uma existência própria, ao contrário do filósofo irlandês. 

Ou seja, se conforme Berkeley as coisas só existiriam para uma consciência capaz de percebê-las, para Bergson elas possuem uma existência em si; todavia, sem consciência estariam condenadas à eternidade, isto é, as coisas não durariam. Assim, Bergson não poderia falar em uma simultaneidade relativa aos objetos em si mesmos – a estes restaria o que o filósofo denomina, no ensaio de 1922, contemporaneidade

A simultaneidade sendo a relação entre dois ou mais fluxos, pode ser assim definida graças à presença de uma consciência, isto é, de uma temporalidade psicológica. Então, se a simultaneidade é fundamentalmente psicológica, não haveria razão em separar-se um tempo do filósofo e um tempo do físico, como o queria Einstein. Aos olhos de Bergson, tal separação é artificial, haja vista os dois tempos serem, no fundo, o mesmo. 

A duração só existirá para uma consciência;
 fora desta haverá simultaneidades no espaço. 

Como vimos, independentemente de defender a unidade ou a multiplicidade do tempo, Bergson acredita que uma unidade só poderá realizar-se à custa de uma multiplicidade indefinível geometricamente, mas qualitativamente. Assim, o fluxo da nossa vida profunda, rico em alterações qualitativas indiscerníveis, uma vez que não se encontram justapostas em um espaço homogêneo, mas interpenetrando-se continuamente, o fluxo de um rio e o voo de um pássaro faz um só fluxo ou três distintos, caso nossa atenção o queira. Porém, ainda que se os tome por distintos, não deixam de pertencer a uma mesma duração, porque ligados pela nossa:
O voo do pássaro e minha própria duração são simultâneos somente porque minha própria duração se desdobra e se reflete em uma outra que a contém, ao mesmo tempo que ela mesma contém o voo do pássaro: há, portanto, uma triplicidade fundamental dos fluxos. É nesse sentido que minha duração tem essencialmente o poder de revelar outras durações, de englobar as outras e de englobar-se a si mesma ao infinito  (Deleuze, 1999, p. 64).
 
Em suma, não haveria o que se denominar por simultaneidade sem a presença de um ser consciente, isto é, é a nossa duração que torna os fluxos do rio e do voo do pássaro simultâneos. 

De acordo com o filósofo, a simultaneidade psicológica, entretanto, não interessa à ciência, assim como tudo o que diga respeito à natureza do tempo real, entendendo-se por isto um tempo que dure. Segundo Bergson, a ciência investiga a simultaneidade de dois instantes, e jamais chegaríamos a ela através da duração pura, posto que “o tempo real não tem instantes” (2006, p. 62);

o instante é sempre uma virtualidade,
ou seja, uma miragem retrospectiva utilizada 
para medir a duração.
 

A duração, porém, não é passível de medida. Acabamos então por medir o espaço. Logo, instante é espaço e a simultaneidade entre instantes seria fictícia na falta de um traço-de-união, de um ser consciente. 

Sem a duração, sequer formaríamos a ideia do instante.
Investigando doravante a Teoria da Relatividade, Bergson nota que, ao contrário de dados imediatos, ao admitir a existência real de tempos múltiplos e não simultâneos, ela postula fenômenos que escapam tanto à percepção quanto à imaginação.
Somente com o recurso de uma matematização 
poderíamos conceber uma viagem na velocidade da luz.
 

E, tal como já notara o velho Descartes em suas Meditações, há uma singular distinção entre a faculdade de imaginar e a da intelecção pura, seu célebre exemplo do quiliógono o demonstrara:
quando quero pensar em um quiliógono,concebo na verdade que é uma figura composta de mil lados tão facilmente quanto concebo que um triângulo é uma figura composta de apenas três lados, mas não posso imaginar os mil lados de um quiliógono como faço com os três lados de um triângulo, nem, por assim dizer, vê-los como presentes com os olhos do meu espírito 
(Descartes, 1988, sexta meditação, § 2).
 
Ora, é justamente essa dependência extrema de uma intelectualização do mundo o que denuncia Bergson na teoria de Einstein. É necessário, entretanto, ressaltar que o filósofo sempre fez reservas à inteligência; dessa forma, seu embate não se atém especificamente à Teoria da Relatividade, mas à intelectualização do real de modo geral. 

Como sabemos,
essa teoria subverte nossas concepções habituais
de tempo e espaço, simultaneidade e sucessão.
 

Para o senso comum, talvez soe estranha a ideia de que a medida do tempo seja distinta para observadores diversos, bem como a de que a simultaneidade dos acontecimentos esteja comprometida dada a existência de tempos múltiplos.

Realmente Bergson acreditava que a Teoria da Relatividade, ao multiplicar o tempo, estivesse lidando com uma duração única, embora acrescentasse a ela tempos fictícios. Para Bergson, a operação segundo a qual o tempo referencial se dilata – ao passo que o espaço se contrai – só exprimiria uma verdade matemática. Desse modo, no exemplo tomado de Paul Langevin, o conhecido “paradoxo dos gêmeos”, um só tempo poderia ser considerado real. Um dos tempos permaneceria, para o filósofo, representação simbólica; portanto, virtual, fictícia.

Bergson não foi o único em sua época a recusar a efetividade dos tempos múltiplos de Einstein; como ele, muitos físicos acreditavam estar lidando com tempos fictícios (o holandês Hendryk Antoon Lorentz (1853-1928) entre eles). 

Contudo, ao contrário deles, a recusa bergsoniana não se devia simplesmente ao apego a uma visão de mundo newtoniana. O filósofo estava, antes, apegado à experiência vivida. No entanto, com frequência observamos alguns desavisados (Sokal e Bricmont, 2001, p. 181-200) que associam as ideias defendidas em Duração e simultaneidade a uma incompreensão grotesca da teoria de Einstein, enquanto se esquecem de associá-las ao contexto geral do próprio pensamento de Bergson.

Devemos notar, de tudo o que filósofo disse acerca do tempo e de sua espacialização, que o objetivo fundamental é esclarecer seu sentido real. Ou seja, mostrar a relação que as teorias científicas, ao utilizar o tempo como uma quarta dimensão do espaço, estabelecem entre esse tempo decantado de sua duração e a própria duração. 

O que revela, portanto, para o filósofo, relação alguma, salvo a de representação simbólica, tradução que não se atém ao original. Para Bergson, enfim, não somente a Teoria da Relatividade, mas nenhuma teoria poderá exprimir a totalidade do real pelo fato mesmo de que o real não se atém às convenções: “[...] trata-se, afirma-nos, de distinguir o que é real do que é convencional” (Bergson, 2006, p. 76).

O real não se alcança em absoluto
senão pelo esforço intuitivo. 

Não há tempo real, vivido, percebido, 
sem um elemento de ligação do antes no depois; 
portanto, não há tempo sem consciência.
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Trad. de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, [s. d.].
WORMS, F. A concepção bergsoniana do tempo. In: Doispontos, revista do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, vol. 1, nº 1, 2004, pp. 129-149.
Este texto foi publicado nos Anais do Colóquio Internacional Henri Bergson, NEFI/UERJ, 7 a 9 novembro 2007, disponíveis em CD-ROM.

Geovana da Paz Monteiro
Mestranda do Programa de Pós-Graduação 
em Filosofia da Universidade Federal da Bahia – UFBA;
bolsista FAPESB, sob a orientação dos professores 
doutores Olival Freire Jr. e João Carlos Salles Pires da Silva.
Fonte:
Educação Pública
Biblioteca/Filosofia
Publicado em 15 de janeiro de 2008

Sejam fewlizes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.
 

DURAÇÃO E SIMULTANEIDADE: A NATUREZA DO TEMPO



CAPÍTULO III

A NATUREZA DO TEMPO

Sucessão e consciência. 
- Origem da idéia de um Tempo universal. - A Duração real e o tempo mensu­rável. - A simultaneidade imediatamente percebida: simultaneidade de fluxo e simultaneidade no instante. - A simultaneidade indicada pelos relógios. - O tempo que se desenrola. - O tempo desenrolado e a quarta dimensão. -
Que sinal permitirá reconhecer que um Tempo é real.


Não há dúvida de que o tempo,
para nós, confunde-­se inicialmente com a continuidade 
de nossa vida inte­rior. 
O que é essa continuidade? A de um escoamento ou de uma passagem, mas de um escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos, uma vez que o es­coamento não implica uma coisa que se escoa e a passa­gem não pressupõe estados pelos quais se passa: a coisa e o estado não são mais que instantâneos da transição ar­tificialmente captados; e essa transição, a única que é na­turalmente experimentada, é a própria duração.

Ela é me­mória, mas não memória pessoal, exterior àquilo que ela retém, distinta de um passado cuja conservação ela ga­rantiria; é uma memória interior à própria mudança, me­mória que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros instantâneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantemente. 

Alelluia - Radeir - óleo s/madeira -2007

Uma me­lodia que ouvimos de olhos fechados, pensando apenas nela, está muito perto de coincidir com esse tempo que é a própria fluidez de nossa vida interior; mas ainda tem qualidades demais, determinação demais, e seria precis começar por apagar a diferença entre os sons, e depois abolir as características distintivas do próprio som, con­servar dele apenas a continuação do que precede no que se segue e a transição ininterrupta, multiplicidade sem divisibilidade e sucessão sem separação, para encontrar por fim o tempo fundamental. Assim é a duração ime­diatamente percebida, sem a qual não teríamos nenhu­ma idéia do tempo.


Como passamos desse tempo interior para o tempo das coisas? Percebemos o mundo material e essa percep­ção nos parece, com ou sem razão, estar concomitante­mente em nós e fora de nós: por um lado, é um estado de consciência; por outro, é uma película superficial de matéria onde coincidiriam o senciente e o sentido. 

A cada momento de nossa vida interior
corresponde assim um momento de nosso corpo
e de toda a matéria circun­dante, 
que lhe seria" simultânea":
essa matéria parece então participar 
de nossa duração consciente. 

Gradual­mente, estendemos essa duração ao conjunto do mundo material, porque não vemos nenhum motivo para limi­tá-la à vizinhança imediata de nosso corpo: o universo nos parece formar um único todo; e, se a parte que está à nossa volta dura à nossa maneira, o mesmo deve aconte­cer, pensamos nós, com aquela que a rodeia por sua vez, e assim indefinidamente. Nasce, desse modo, a idéia de uma Duração do universo, isto é, de uma consciência im­pessoal que seria o traço-de-união entre todas as cons­ciências individuais, assim como entre essas consciência e o resto da natureza2. 


Tal consciência captaria numa única percepção, instantânea, acontecimentos múltiplos situados em pontos diversos do espaço; a simultaneida­de seria precisamente a possibilidade que dois ou mais acontecimentos teriam de entrar numa percepção única e instantânea. 

Que há de verídico, que há de ilusório nesse modo de conceber as coisas? O que importa por enquanto não é descobrir o que há de verdade ou de erro, mas perceber nitidamente onde termina a expe­riência e onde começa a hipótese. 

Não há dúvida de que nossa consciência se sente durar, nem de que nossa per­cepção faz parte de nossa consciência, ou de que algo de nosso corpo e da matéria que nos cerca entra em nossa percepção3: assim, tanto nossa duração como uma certa participação sentida, vivida, de nosso ambiente material nessa duração interior são fatos da experiência. Mas, em primeiro lugar, como mostramos outrora, a natureza des­sa participação é desconhecida: poderia estar relaciona da com a propriedade que as coisas exteriores teriam ­sem que elas mesmas durem - de se manifestar em nos­sa duração na medida em que agem sobre nós e de es­candir ou balizar, assim, o curso de nossa vida conscien­te4.

Em segundo lugar, supondo que esse ambiente" dure", nada prova rigorosamente que encontraríamos a mesma duração quando mudássemos de ambiente: durações di­ferentes, ou seja, com ritmos diversos, poderiam coexis­tir. Levantamos outrora uma hipótese desse tipo no que concerne às espécies vivas. Distinguimos durações com tensão mais ou menos alta, características dos diversos graus de consciência, que se escalonariam ao longo do reino animal.

No entanto, na época não percebíamos e continuamos não vendo hoje nenhuma razão para es­tender para o universo material essa hipótese de uma multiplicidade de durações. Deixamos em aberto a ques­tão de saber se o universo era divisível ou não em mun­dos independentes uns dos outros; o mundo que nos épróprio, com o elã particular que nele a vida manifesta, bastava-nos. Mas, caso fosse preciso decidir a questão, optaríamos, no estado atual de nossos conhecimentos, pela hipótese de um Tempo material uno e universal.

Não é mais que uma hipótese, mas está fundada num raciocínio por analogia que devemos ter por conclusivo enquanto não nos tiverem oferecido nada mais satisfató­rio. Esse raciocínio, que mal é consciente, poderia ser formulado, acreditamos, da seguinte maneira.

Todas as consciências humanas são de mesma natureza, perce­bem da mesma maneira, de certa forma andam no mesmo passo e vivem a mesma duração. Ora, nada nos im­pede de imaginar quantas consciências humanas quiser­mos, disseminadas aqui e acolá pela totalidade do uni­verso, mas suficientemente próximas umas das outras para que duas delas consecutivas, tomadas ao acaso, te­nham em comum a porção extrema do campo de sua ex­periência exterior. 

Cada uma dessas duas experiências exteriores participa da duração de cada uma das duas consciências. E, como as duas consciências têm o mesmo ritmo de duração, o mesmo deve acontecer com as duas experiências. Mas as duas experiências têm uma parte co­mum. Então, mediante esse traço-de-união, elas se jun­tam numa experiência única, desenrolando-se numa du­ração única que será, como queiram, a de uma ou de ou­tra das duas consciências.

Uma vez que o mesmo racio­cínio pode se repetir progressivamente, uma mesma du­ração vai recolher ao longo de seu caminho os aconteci­mentos da totalidade do mundo material; e poderemos então eliminar as consciências humanas que tínhamos inicialmente disposto aqui e acolá como retransmissores para o movimento de nosso pensamento: não haverá mais que o tempo impessoal em que todas as coisas se escoarão. Nessa nossa formulação da crença da humani­dade talvez estejamos pondo mais precisão do que con­vém. 

Cada um de nós
 contenta-se em geral
em ampliar indefinidamente, 
por meio de um vago esforço de imagi­nação,
seu ambiente material imediato, 
o qual, percebi­do por cada um de nós, 
participa da duração de sua cons­ciência. 
Mas quando esse esforço se torna mais preciso, quando procuramos legitimá-Io, surpreendemos a nós mesmos desdobrando e multiplicando nossa consciên­cia, transportando-a para os confins extremos de nossa experiência exterior e depois para o fim do novo campo de experiência que ela assim se ofertou, e assim por diante indefinidamente: de fato, são consciências múltiplas oriundas da nossa, semelhantes à nossa, que encar­regamos de montar a corrente através da imensidão do universo e de atestar, pela identidade de suas durações internas e pela contigüidade de suas experiências exte­riores, a unidade de um Tempo impessoal.

Essa é a hipó­tese do senso comum. Afirmamos que poderia igual­mente ser a de Einstein, e que a Teoria da Relatividade é feita sobretudo para confirmar a idéia de um Tempo comum a todas as coisas. Essa idéia, hipotética em todos os casos, parece-nos até ganhar um rigor e uma consistên­cia particulares na Teoria da Relatividade, entendida como deve ser entendida. Será essa a conclusão que se extrairá de nosso trabalho de análise. Mas não é esse o ponto importante por enquanto. 

Deixemos de lado a questão do Tempo único. O que queremos estabelecer é que não se pode falar de uma realidade que dura sem in­troduzir nela uma consciência. 

O metafísico fará intervir diretamente 
uma consciência universal. 

O senso comum pensará nisso vagamente. O matemático, é verdade, não terá de se ocupar dela, uma vez que se interessa pela me­dida das coisas e não por sua natureza. 

Mas, caso se per­guntasse o que mede, caso fixasse sua atenção no pró­prio tempo, conceberia necessariamente uma sucessão e, por conseguinte, um antes e um depois e, por conse­guinte, uma ponte entre os dois (se não, haveria apenas um dos dois, puro instantâneo): ora, mais uma vez, é im­possível imaginar ou conceber um traço-de-união entre o antes e o depois sem um elemento de memória e, por conseguinte, de consciência.

Talvez o emprego dessa palavra repugne se associa­rem a ela um sentido antropomórfico. Mas, para conce­ber uma coisa que dura, não é de modo algum necessá­rio pegar a memória que nos é própria e transportá-Ia, mesmo atenuada, para o interior da coisa. Por mais que se diminua sua intensidade, corre-se o risco de deixar na coisa algum grau da variedade e da riqueza da vida inte­rior; conservando-lhe assim seu caráter pessoal, huma­no, em todo caso. É o caminho inverso que é preciso se­guir. 

Haverá que considerar um momento do desenrolar do universo, isto é, um instantâneo que existiria inde­pendentemente de qualquer consciência, e, em seguida, tentar evocar conjuntamente um outro momento tão próximo quanto possível daquele e fazer entrar assim um mínimo de tempo no mundo, sem deixar passar com ele o mais leve lampejo de memória. Verão que isso é im­possível. Sem uma memória elementar que ligue os dois instantes entre si, haverá tão-somente um ou outro dos dois, um instante único por conseguinte, nada de antes e depois, nada de sucessão, nada de tempo.

Pode-se con­ceder a essa memória o estritamente necessário para fazer a ligação; será, se quiserem, essa própria ligação simples prolongamento do antes no depois imediato com um es­quecimento perpetuamente renovado do que não for o momento imediatamente anterior. Nem por isso se terá deixado de introduzir memória. 

A bem dizer, é impossí­vel distinguir entre a duração, por mais curta que seja, que separa dois instantes e uma memória que os ligasse entre si, pois a duração é essencialmente uma continua­ção do que não é mais no que é. Eis aí o tempo real, ou seja, percebido e vivido. Eis também qualquer tempo con­cebido' pois não se pode conceber um tempo sem repre­sentá-Io percebido e vivido. Duração implica portanto consciência; e pomos consciência no fundo das coisas pelo próprio fato de lhes atribuirmos um tempo que dura.

Aliás, quer o deixássemos em nós ou o puséssemos fora de nós, o tempo que dura não é mensurável. A me­dida que não é puramente convencional implica com efeito divisão e superposição. Ora, não se conseguiria superpor durações sucessivas para verificar se são iguais ou desiguais; por hipótese, uma não existe mais quando a outra aparece; a idéia de igualdade constatável perde aqui toda significação.


Por outro lado, embora a duração real se tome divisível, como veremos, pela solidariedade que se estabelece entre ela e a linha que a simboliza, ela própria consiste num progresso indivisível e global. 

 Sinfonia N.40 - Mozart - Smalin
Es­cutem a melodia fechando os olhos, pensando apenas nela, não justapondo mais sobre um papel ou sobre um teclado imaginários as notas que vocês conservavam as­sim uma para a outra, que aceitavam então tomar-se si­multâneas e renunciavam a sua continuidade de fluidez no tempo para se congelar no espaço: encontrarão indi­visa, indivisível, a melodia ou a porção de melodia que terão recolocado na duração pura. 

Ora, nossa duração in­terior' 
considerada do primeiro ao último momento 
de nossa vida consciente, é algo parecido com essa melodia. 
 

 Sinfonia N.40 - Mozart - Smalin

Nossa atenção pode desviar-se dela e conseqüentemen­te de sua indivisibilidade; mas, quando tentamos cortá-Ia, é como se passássemos bruscamente uma lâmina através de uma chama: dividimos apenas o espaço ocupado por ela. Quando assistimos a um movimento muito rápido, como o de uma estrela cadente, distinguimos muito niti­damente a linha de fogo, divisível à vontade, da indivisí­vel mobilidade que ela subtende: é essa mobilidade que é pura duração. 

Por mais que o Tempo impessoal e uni­versal, caso exista, se prolongue infindavelmente do pas­sado ao porvir, ele é feito de uma peça só; as partes que nele distinguimos são simplesmente as de um espaço que desenha seu rasto e que se toma a nossos olhos seu equivalente; dividimos o desenrolado, mas não o desen­rolar. Como passamos, primeiro, do desenrolar para o de­senrolado, da duração pura para o tempo mensurável? Éfácil reconstituir o mecanismo dessa operação.

Se eu passear meu dedo sobre uma folha de papel sem olhar para ela, o movimento que realizo, percebido de dentro, é uma continuidade de consciência, algo de meu próprio fluxo, duração, enfim. Se, agora, abrir os olhos, verei que meu dedo traça sobre a folha de papel uma linha que se conserva, onde tudo é justaposição e não mais sucessão; tenho aí algo da ordem do desenro­lado, que é o registro do efeito do movimento e que tam­bém será seu símbolo. Ora, essa linha é divisível, ela é mensurável. Ao dividi-Ia e medi-Ia, poderei portanto di­zer, se me convier, que divido e meço a duração do mo­vimento que a traça.

Portanto, 
é bem verdade que o tempo se mede
por intermédio do movimento. 
Deve-se acrescentar, porém, que, se essa medida do tempo pelo movimento é possí­vel, é sobretudo porque nós mesmos somos capazes de realizar movimentos e porque esses movimentos têm en­tão um duplo aspecto: como sensação muscular, fazem parte da corrente de nossa vida consciente, duram; como percepção visual, descrevem uma trajetória, criam para si um espaço. Digo "sobretudo", pois, a rigor, poder-se-ia conceber um ser consciente reduzido à percepção visual e que contudo conseguisse construir a idéia de tempo mensurável. Seria então preciso que sua vida transcor­resse na contemplação de um movimento exterior pro­longando-se sem fim. 

Também seria preciso que ele pu­desse extrair do movimento percebido no espaço, e que participa da divisibilidade de sua trajetória, a pura mobi­lidade' ou seja, a solidariedade ininterrupta do antes e do depois dada à consciência como um fato indivisível: fizemos há pouco essa distinção quando falamos da li­nha qe fogo traçada pela estrela cadente. Tal consciência teria uma continuidade de vida constituída pelo senti­mento ininterrupto de uma mobilidade exterior que se desenrolaria indefinidamente.

E a ininterrupção do de­senrolar também seria distinta do rasto divisível deixado no espaço, o qual também é da ordem do desenrolado. Ele se divide e se mede porque é espaço. O outro é dura­ção. Sem o desenrolar contínuo, não haveria mais que espaço, e um espaço que, não subtendendo mais uma duração, não representaria mais o tempo.

Todavia, nada impede supor que cada um de nós tra­ce no espaço um movimento ininterrupto do começo ao fim de sua vida consciente. Poderia andar dia e noite. Rea­lizaria assim uma viagem coextensiva à sua vida cons­ciente. Toda a sua história iria se desenrolar então num Tempo mensurável.

É num tipo de viagem dessas que pensamos quando falamos do Tempo impessoal? Não exatamente, porque vivemos uma vida social e até cósmica, tanto ou mais que uma vida individual. Substituímos muito naturalmente a viagem que faríamos pela viagem de qualquer outra pes­soa, e depois por um movimento ininterrupto qualquer que lhe seria contemporâneo. 

Chamo" contemporâneos" dois fluxos que são para minha consciência um ou dois, indiferentemente: minha consciência os percebe juntos como um escoamento único caso queira realizar um ato indiviso de atenção, distingue-os ao contrário de longo a longo se preferir dividir sua atenção entre eles, fazendo inclusive ambas as coisas concomitantemente se decidir dividir sua atenção, mas não cortá-Ia em dois. 

Chamo "simultâneas
" duas percepções instantâneas 
apreendi­das num único e mesmo ato mental, 
podendo a atenção mais uma vez fazer delas 
uma ou duas, à vontade. 
Posto isto, é fácil ver que é do nosso maior interesse tomar por "desenrolar do tempo" um movimento independente da­quele de nosso próprio corpo. A bem dizer, encontramo­10 já tomado. A sociedade adotou-o para nós. É o movi­mento de rotação da Terra. Mas, caso o aceitemos, caso compreendamos que seja tempo e não só espaço, é por­que sempre há uma viagem de nosso próprio corpo, vir­tual, e ela poderia ter sido para nós o desenrolar do tempo.

Pouco importa, aliás, que seja um corpo móvel ou outro que adotemos como contador do tempo. A partir do momento em que exteriorizamos nossa própria dura­ção em movimento no espaço, o resto se segue. Doravan­te, o tempo nos aparecerá como o desenrolar de um fio, ou seja, como o trajeto do corpo móvel encarregado de contá-lo. Teremos medido, diremos nós, o tempo desse desenrolar e, por conseguinte, também o do desenrolar universal.

Mas todas as coisas não nos pareceriam desenrolar­se com o fio, cada momento atual do universo não seria para nós a ponta do fio, se não tivéssemos à nossa dispo­sição o conceito de simultaneidade. Veremos mais adian­te o papel desse conceito na teoria de Einstein. Por en­quanto, gostaríamos de deixar bem clara sua origem psi­cológica, acerca da qual já dissemos algo. Os teóricos da Relatividade jamais falam de outra coisa senão da simul­taneidade de dois instantes. Antes desta, contudo, háuma outra, cuja idéia é mais natural: a simultaneidade de dois fluxos. Dizíamos que faz parte da própria essência de nossa atenção poder repartir-se sem se dividir. 

Quan­do estamos sentados na margem de um rio, o correr da água, o deslizar de um barco ou o vôo de um pássaro, o murmúrio ininterrupto de nossa vida profunda são para nós três coisas diferentes ou uma só, como quisermos. Podemos interiorizar o todo, lidar com uma percepção única que carrega, confundidos, os três fluxos em seu curso; ou podemos manter exteriores os dois primeiros e repartir então nossa atenção entre o dentro e o fora; ou, melhor ainda, podemos fazer as duas coisas concomi­tantemente, nossa atenção ligando e no entanto sepa­rando os três escoamentos, graças ao singular privilégio que ela possui de ser uma e várias. 

Tal é nossa primeira idéia da simultaneidade. Chamamos então simultâneos dois fluxos exteriores que ocupam a mesma duração por­que estão ambos compreendidos na duração de um mes­mo terceiro, o nosso: essa duração é apenas a nossa quan­do nossa consciência olha somente para nós, mas torna­se igualmente a deles quando nossa atenção abarca os três fluxos num único ato indivisível.

Todavia, da simultaneidade de dois fluxos jamais pas­saríamos para a de dois instantes se ficássemos na dura­ção pura, pois toda duração é espessa: o tempo real não tem instantes. Mas formamos naturalmente a idéia de instante e também a de instantes simultâneos desde que adquirimos o hábito de converter o tempo em espaço. Pois, embora uma duração não tenha instantes, uma li­nha termina em pontos5. E, a partir do momento em que a uma duração fazemos corresponder uma linha, a por­ções da linha deverão corresponder "porções de dura­ção" e a uma extremidade da linha uma" extremidade de duração": será esse o instante - algo que não existe real­mente, mas virtualmente. O instante é o que terminaria uma duração se ela se detivesse. Mas ela não se detém. 

O tempo real não poderia portanto fornecer o instante; este provém do ponto matemático, isto é, do espaço. E no entanto, sem o tempo real, o ponto não seria mais que ponto, não haveria instante. Instantaneidade implica portanto duas coisas: uma continuidade de tempo real, ou seja, de duração, e um tempo espacializado, ou seja, uma linha que, descrita por um movimento, tomou-se por isso simbólica do tempo: esse tempo espacializado, que comporta pontos, ricocheteia no tempo real e faz surgir nele o instante. 

Isso não seria possível sem a ten­dência - fértil de ilusões - que nos leva a aplicar o movi­mento contra o espaço percorrido, a fazer coincidir a tra­jetória com o trajeto, e a decompor então o movimento que percorre a linha assim como decompomos a própria linha: se quisermos distinguir na linha pontos, esses pon­tos irão tomar-se então "posições" do corpo móvel (como se este, movente, pudesse alguma vez coincidir com algo que é repouso! Como se não renunciasse assim, de ime­diato, a mover-se!). 

Então, tendo pontilhado posições sobre o trajeto do movimento, ou seja, extremidades de subdivisões de linha, fazemo-Ias corresponder a "instan­tes" da continuidade do movimento: simples interrup­ções virtuais, puras visões mentais.

(5. Que o conceito de ponto matemático seja natural é, aliás, algo de que sabem muito bem aqueles que ensinaram um pouco de geome­tria para crianças. Os espíritos mais refratários aos primeiros elementos concebem imediatamente e sem nenhuma dificuldade linhas sem espes­sura e pontos sem dimensão.)
 
Descrevemos outrora o mecanismo dessa operação; mostramos também como as dificuldades levantadas pelos filósofos em tomo da questão do movimento desvanecem-se a partir do mo­mento em que se percebe a relação entre o instante e o tempo espacializado, a relação entre o tempo espaciali­zado e a duração pura. Limitemo-nos aqui a fazer notar que, embora a operação pareça científica, ela é natural ao espírito humano; nós a praticamos instintivamente. Sua receita está depositada na linguagem.

Simultaneidade no instante e simultaneidade de flu­xo são portanto coisas distintas, mas que se compl~tam reciprocamente. Sem a simultaneidade de fluxo, não con­sideraríamos substituíveis um pelo outro esses três ter­mos, continuidade de nossa vida interior, continuidade de um movimento voluntário que nosso pensamento pro­longa indefinidamente, continuidade de um movimento qualquer através do espaço. 

Duração real e tempo espa­cializado não seriam portanto equivalentes e, por conse­gumte, não haveria para nós tempo em geral; haveria ape­nas a duração de cada um de nós. Mas, por outro lado, esse tempo só pode ser contado graças à simultaneidade no instante. 

É preciso essa simultaneidade no instante para 1? notar a simultaneidade de um fenômeno e de um momento de relógio, 2? pontilhar, ao longo de nossa pró­pria duração, as simultaneidades desses momentos com momentos de nossa duração que são criados pelo próprio ato de pontilhamento. Desses dois atos, o primeiro é o essencial para a medida do tempo. Mas, sem o segundo, haveria aí uma medida qualquer, desembocaríamos num número t que representaria qualquer coisa, não pensa­ríamos em tempo. 

É portanto a simultaneidade entre dois instantes de dois movimentos exteriores a nós que faz com que possamos medir o tempo; mas é a simulta­neidade desses momentos com momentos marcados por eles ao longo de nossa duração interna que faz com que essa medida seja uma medida de tempo.

Deveremos nos demorar sobre esses dois pontos. Abriremos primeiro um parêntese. Acabamos de distin­guir duas "simultaneidades no instante": nenhuma das duas é a simultaneidade que mais importa na Teoria da Relatividade, isto é, a simultaneidade entre indicações dadas por dois relógios afastados um do outro. Desta fa­lamos na primeira parte de nosso trabalho; iremos nos ocupar especialmente dela mais adiante. Mas está claro que a própria Teoria da Relatividade não poderá impe­dir-se de admitir as duas simultaneidades que acabamos de descrever: limitar-se-á a acrescentar uma terceira, aquela que depende de um acerto de relógios. Ora, mos­traremos com certeza que as indicações de dois relógios R e R' afastados um do outro, acertados entre si e mar­cando a mesma hora, são ou não são simultâneas segun­do o ponto de vista.

A Teoria da Relatividade tem o direi­to de afirmá-Io - veremos sob que condição. Assim, po­rém, reconhece que um evento E, que ocorre ao lado do relógio R, está dado em simultaneidade com uma indi­cação do relógio R num sentido completamente diferen­te daquele - no sentido que o psicólogo atribui à pala­vra simultaneidade. E o mesmo pode ser dito no tocante à simultaneidade do evento 

E' com a indicação do reló­gio "vizinho" R'. Pois, se não se começasse por admitir uma simultaneidade desse tipo, absoluta, e que não tem nada a ver com acertos de relógios, os relógios não servi­riam para nada. Seriam maquinismos que nos diverti­ríamos em comparar uns aos outros; não seriam utiliza­dos para classificar eventos; em suma, existiriam para si e não para nos prestar serviços. Perderiam sua razão de ser para o teórico da Relatividade, bem como para todo o mundo, pois também ele só os faz intervir para marcar o tempo de um evento.

Todavia, é bem verdade que a simultanei­dade assim entendida só é constatável entre momentos de dois fluxos se os fluxos passarem "pelo mesmo lugar". Também é bem verdade que o senso comum, a própria ciência até agora estenderam a priori essa concepção da simultaneidade a eventos separados por qualquer dis­tância. 

Sem dúvida imaginavam, como dizíamos acima, uma consciência coextensiva ao universo, capaz de abar­car os dois eventos numa percepção única e instantânea. Mas aplicavam sobretudo um princípio inerente a toda representação matemática das coisas e que também se impõe à Teoria da Relatividade. Nele encontra-se a idéia de que a distinção entre "pequeno" e "grande", entre "pouco afastado" e "muito afastado", não tem valor cien­tífico, e de que, se se pode falar de simultaneidade fora de qualquer acerto de relógios, independentemente de qualquer ponto de vista, quando se trata de um evento e de um relógio pouco distantes um do outro, tem -se igualmente o direito de dizê-Io quando é grande a distância entre o relógio e o evento, ou entre os dois relógios. 

Não há física, não há astronomia, 
não há ciência possível, 
se não for dado ao cientista o direito de figurar
esquemati­camente numa folha de papel 
a totalidade do universo. 
Admite-se portanto implicitamente a possibilidade de re­duzir sem deformar. Estima-se que a dimensão não é um absoluto, que existem somente relações entre dimensões e que tudo se passaria do mesmo modo num universo apequenado à vontade se as relações entre partes fossem mantidas. Mas como impedir então que nossa imagina­ção e mesmo nosso entendimento tratem a simultanei­dade das indicações de dois relógios muito afastados um do outro como a simultaneidade de dois relógios pouco afastados, ou seja, situados "no mesmo lugar"?

Um mi­cróbio inteligente encontraria entre dois relógios "vizi­nhos" um intervalo enorme; e não reconheceria a exis­tência de uma simultaneidade absoluta, intuitivamente percebida, entre suas indicações. Mais einsteiniano que Einstein, só falaria aqui de simultaneidade se tivesse po­dido anotar indicações idênticas em dois relógios micro­bianos, acertados entre si por sinais ópticos, que teriam substituído nossos dois relógios "vizinhos". 

A simulta­neidade que é absoluta a nossos olhos seria relativa aos dele, pois ele reportaria a simultaneidade absoluta às in­dicações de dois relógios microbianos que ele, por sua vez, perceberia (que, aliás, perceberia de modo igualmen­te equivocado) "no mesmo lugar".

Mas pouco importa por ora: não estamos criticando a concepção de Einstein; queremos simplesmente mostrar a que se prende a ex­tensão natural que sempre se praticou da idéia de simul­taneidade, depois de tê-Ia haurido da constatação de dois eventos "vizinhos".

Essa análise, que nunca foi ten­tada até agora,
revela-nos um fato de que,aliás, 
a Teoria da Relatividade poderia tirar partido

Vemos que, se nos­so espírito passa aqui com tanta facilidade de uma peque­na distância para uma grande, da simultaneidade entre eventos vizinhos para a simultaneidade entre eventos longínquos, se estende para o segundo caso o caráter absoluto do primeiro, é porque está habituado a crer que se pode modificar arbitrariamente as dimensões de todas as coisas, com a condição de conservar as relações que há entre elas. 

Mas já é tempo de fechar o parêntese. Vol­temos à simultaneidade intuitivamente percebida de que falávamos inicialmente e às duas proposições que enun­ciamos: 

1? 
é a simultaneidade entre dois instantes
de dois movimentos exteriores a nós 
que nos permite medir um intervalo de tempo; 

2? 
 é a simultaneidade desses momentos 
com momentos pontilhados por eles 
ao lon­go de nossa duração interior 
que faz com que essa medi­da seja 
uma medida de tempo.
O primeiro ponto é evidente. Vimos acima como a duração interior se exterioriza em tempo espacializado e como este, antes espaço que tempo, é mensurável. Do­ravante, será por intermédio dele que mediremos qual­quer intervalo de tempo. Como o teremos dividido em partes que correspondem a espaços iguais e que são iguais por definição, teremos em cada ponto de divisão uma extremidade de intervalo, um instante, e tomaremos por unidade de tempo o próprio intervalo. 

Poderemos então considerar qualquer movimento que ocorra ao lado des­se movimento modelo, qualquer mudança: ao longo de todo esse desenrolar pontilharemos" simultaneidades no instante".

Tantas quantas forem
as simultaneidades as­sim constatadas,
tantas serão as unidades de tempo con­tadas
para a duração do fenômeno. 

Medir tempo consis­te
portanto em enumerar simultaneidades.
Qualquer ou­tra medida implica 
a possibilidade de superpor direta ou indiretamente 
a unidade de medida ao objeto medido. 
Qualquer outra medida aplica-se portanto aos intervalos entre as extremidades, ainda que, de fato, nos limitemos a contar as extremidades. Mas, quando se trata do tem­po' só é possível contar as extremidades: será simples­mente uma convenção dizer que desse modo mediu-se o intervalo. Se, todavia, observarmos que a ciência opera exclusivamente com medidas, perceberemos que no que concerne ao tempo a ciência conta instantes, anota si­multaneidades, mas continua sem domínio sobre o que se passa nos intervalos. 

Pode aumentar indefinidamente o número das extremidades, encurtar indefinidamente os intervalos; mas o intervalo sempre lhe escapa, mostra­lhe apenas suas extremidades. Se todos os movimentos do universo se acelerassem de repente na mesma pro­porção, inclusive aquele que serve de medida para o tem­po, algo mudaria para uma consciência que não fosse solidária dos movimentos moleculares intracerebrais; entre o nascer e o pôr do sol, ela não receberia o mesmo enriquecimento; constataria, pois, uma mudança; mes­mo a hipótese de uma aceleração simultânea de todos os movimentos do universo só tem sentido se imaginarmos uma consciência espectadora cuja duração, totalmente qualitativa, comporte o mais ou o menos sem por isso ser acessível à medida6. 

Mas a mudança só existiria 
para essa consciência capaz de comparar 
o escoamento das coisas com o da vida interior.
No tocante à ciência, nada teria mudado. 

Avancemos mais. A rapidez do desenrolar desse Tempo exterior e matemático poderia tornar-se in­finita, todos os estados passados, presentes e por vir do universo poderiam estar dados de uma só vez, no lugar do desenrolar poderia haver apenas o desenrolado: o mo­vimento representativo do Tempo teria se tornado uma linha; a cada uma das divisões dessa linha corresponde­ria a mesma parte do universo desenrolado que a ela correspondia antes no universo desenrolando-se; nada teria mudado aos olhos da ciência. Suas fórmulas e seus cálculos continuariam sendo o que são.

É verdade que, no momento preciso em que se teria passado do desenrolar ao desenrolado, teria sido preciso dotar o espaço de uma dimensão suplementar. Fizemos notar, há mais de trinta anos7, que o tempo espacializado é na realidade uma quarta dimensão do espaço. Somen­te essa quarta dimensão nos permitirá justapor o que está dado em sucessão: sem ela, não teríamos o lugar. 

Quer um universo tenha três dimensões, ou duas, ou uma só, 
quer não tenha nenhuma e se reduza a um ponto, 
sempre se poderá converter a sucessão indefinida
de to­dos os seus eventos 
em justaposição instantânea ou eter­
6. É evidente que a hipótese perderia significado caso se conce­besse a consciência como um "epifenômeno" que se acresceria a fenô­menos cerebrais dos quais ela não seria mais que o resultado ou a ex­pressão. Não insistiremos aqui nessa teoria da consciência-epifenôme­no, que cada vez mais tende a ser considerada arbitrária. Já a discuti­mos detalhadamente em vários trabalhos nossos, sobretudo nos três primeiros capítulos de Matiere et Mémoire e em diversos ensaios de

L'Energie spirituelle. Limitemo-nos a recordar:
 I? que essa teoria de for­ma nenhuma é extraída dos fatos;

 2? que é fácil encontrar suas origens metafísicas; 

3? que, tomada ao pé da letra, seria contraditória consigo mesma
 (sobre este último ponto e sobre a oscilação que a teoria impli­ca entre duas afirmações contrárias, ver as páginas 203-23 de L'Energie spirituelle).

No presente trabalho, 
tomamos a consciência tal como nos é brindada 
pela experiência, sem fazer nenhuma hipótese 
sobre sua na­tureza e suas origens.
 Pelo simples fato de lhe conceder uma dimensão adi­cional. Caso não tenha nenhuma, reduzindo-se a um ponto que muda indefinidamente de qualidade, pode-se supor que a rapidez de sucessão das qualidades se tome infinita e que esses pontos de qualidade estejam dados de um só golpe, contanto que para esse mundo sem dimen­são se traga uma linha onde os pontos se justaponham. Caso já tivesse uma dimensão, caso fosse linear, precisa­ria de duas dimensões para justapor as linhas de qualida­de - cada uma indefinida - que eram os momentos su­cessivos de sua história. 

Mesma observação também se tivesse duas, se fosse um universo superficial, tela indefi­nida sobre a qual se desenhariam indefinidamente ima­gens achatadas que o ocupassem cada uma por inteiro: a rapidez de sucessão dessas imagens também poderá tor­nar-se infinita, e de um universo que se desenrola passa­remos novamente a um universo desenrolado, contanto que nos seja concedida uma dimensão suplementar. Te­remos então, empilhadas umas sobre as outras, todas as telas sem fim dando-nos todas as imagens sucessivas que compõem a história inteira do universo; possuire­mos todas juntas; mas de um universo achatado teremos tido que passar para um universo volumoso. 

Portanto é fácil entender como o mero fato de atribuir ao tempo uma rapidez infinita, de substituir o desenrolar pelo de­senrolado, nos obrigaria a dotar nosso universo sólido de uma quarta dimensão. Ora, só pelo fato de que a ciência não pode especificar a "rapidez do desenrolar" do tem­po, de que conta simultaneidades mas deixa necessaria­mente de lado os intervalos, ela versa sobre um tempo cuja rapidez de desenrolar podemos supor infinita e, assim, confere virtualmente ao espaço uma dimensão adicional.

Imanente a nossa medida do tempo é portanto a tendência a esvaziar seu conteúdo num espaço de quatro dimensões onde passado, presente e futuro estariam jus­tapostos ou superpostos desde todo o sempre. Essa ten­dência exprime simplesmente nossa incapacidade de tra­duzir matematicamente o próprio tempo, a necessidade que temos de substituí-lo, para medi-lo, por simultanei­dades que contamos: essas simultaneidades são instanta­neidades; não participam da natureza do tempo real; elas não duram.

São simples visões mentais,
que balizam com paradas virtuais a duração consciente 
e o movimento real, utilizando para isso
o ponto matemático que foi trans­portado
do espaço para o tempo.
Mas, embora desse modo nossa ciência só encontre espaço, é fácil ver por que a dimensão de espaço que veio substituir o tempo continua chamando-se tempo. É porque nossa consciência está aí. Ela volta a insuflar du­ração viva ao tempo ressecado que virou espaço. 

Nosso pensamento,
interpretando o tempo matemático, 
refaz em sentido inverso o caminho 
que percorreu para obtê­-lo. 
Da duração interior passara para um certo movimen­to indiviso ainda estreitamente ligado a ela e que se tor­nara movimento modelo, gerador ou contador do Tempo; do que há de mobilidade pura nesse movimento e que é o traço-de-união do movimento com a duração, passou para a trajetória do movimento, que é puro espa­ço; dividindo a trajetória em partes iguais, passou dos pon­tos de divisão dessa trajetória aos pontos de divisão cor­respondentes ou "simultâneos" da trajetória de qualquer outro movimento: a duração deste último movimento acha-se assim medida; tem-se um número determinadode simultaneidades; será a medida do tempo; será dora­vante o próprio tempo. Mas isso só é tempo porque po­demos nos reportar ao que fizemos.

Das simultaneida­des que balizam a continuidade dos movimentos esta­mos sempre prontos para voltar aos próprios movirnen­tos, e, por meio deles, à duração interior que lhes é con­temporânea, substituindo assim uma série de simultanei­dades no instante, que podem ser contadas mas que não são mais tempo, pela simultaneidade de fluxo que nos devolve à duração interna, à duração real.

Haverá quem se pergunte se é útil voltar à duração e se o que a ciência fez não foi precisamente corrigir uma imperfeição de nosso espírito, afastar uma limitação de nossa natureza, esparramando a "pura duração" no espa­ço. Dirão: 

"0 tempo que é pura duração está sempre em via de escoamento; só apreendemos dele o passado e o presente, o qual já é passado; o porvir parece fechado ao nosso conhecimento, justamente porque o cremos aber­to à nossa ação - promessa ou espera de novidade im­previsível. Mas a operação pela qual convertemos o tem­po em espaço para medi-Io informa-nos implicitamente sobre seu conteúdo.

A medida de uma coisa é às vezes reveladora de sua natureza, e vê-se que a expressão ma­temática tem justamente aqui uma virtude mágica: cria­da por nós ou respondendo ao nosso chamamento, ela faz mais do que lhe pedimos; pois não podemos conver­ter em espaço o tempo já escoado sem tratar do mesmo modo o Tempo inteiro: o ato pelo qual introduzimos o passado e o presente no espaço esparrama nele, sem nos consultar, o porvir. Esse porvir continua sem dúvida ocul­to por um anteparo; mas agora o temos lá, pronto, dado com o resto. Ou mesmo, o que chamávamos escoamen­to do tempo não passava do deslizar contínuo do ante­paro e da visão gradualmente obtida do que estava à es­pera, globalmente, na eternidade. 

Tomemos portanto essa duração pelo que ela é, por uma negação, por um impe­dimento incessantemente recuado de ver tudo: nossos próprios atos não nos aparecerão mais como uma oferta de novidades imprevisível. Fazem parte da trama univer­sal das coisas, dada de um só golpe. Não os introduzi­mos no mundo; é o mundo que os introduz já prontos em nós, na nossa consciência, à proporção que os alcan­çamos. 

Sim, somos nós que passamos 
quando dizemos que o tempo passa; 

é o movimento para a frente de nos­sa visão 
que atualiza, momento após momento, 
uma história virtualmente dada por inteiro." - 
É essa a meta­física imanente à representação espacial do tempo. Ela é inevitável. Clara ou confusa, foi sempre a metafísica na­tural do espírito que especula sobre o devir. Não nos cabe discuti-Ia aqui, menos ainda pôr outra em seu lu­gar.

Dissemos em outro lugar porque vemos na duração o próprio tecido de nosso ser e de todas as coisas, e como o universo é a nossos olhos uma continuidade de criação. Era um modo de permanecermos o mais perto possível do imediato; não afirmávamos nada que a ciên­cia não pudesse aceitar e utilizar; ainda recentemente, num livro admirável, um matemático filósofo afirmava a necessidade de admitir um advance of Na tu re e vinculava essa concepção à nossas.

Por ora, limitar-nos-emos a tra­çar uma linha de demarcação entre o que é hipótese, construção metafísica, e o que é dado puro e simples da experiência, pois queremos nos ater à experiência. A du­ração real é experimentada; constatamos que o tempo se desenrola, e, por outro lado, não podemos medi-Io sem o conceito de natureza, São Paulo, Martins Fontes, 1994). 

Essa obra (que leva em conta a Teoria da Relatividade) é certamente urna das mais pro­fundas já escritas sobre a filosofia da natureza.convertê-Io em espaço e supor desenrolado tudo o que conhecemos dele. Ora, é impossível espacializar pelo pen­samento apenas uma parte: uma vez iniciado, o ato pelo qual desenrolamos o passado e abolimos assim a suces­são real nos conduz a um desenrolar total do tempo; fa­talmente, então, somos levados a atribuir à imperfeição humana nossa ignorância de um porvir que seria pre­sente e a ter a duração por uma pura negação, uma "pri­vação de eternidade". 

Fatalmente voltamos à teoria pla­tônica.  

Mas, como essa concepção deve surgir do fato de que não temos meios para limitar ao passado nossa re­presentação espacial do tempo escoado, é possível que a concepção seja errônea e, em todo caso, é certo que é uma pura construção do espírito. Atenhamo-nos, pois, à experiência.

Se o tempo tem uma realidade positiva, se o atraso da duração com relação à instantaneidade representa uma certa hesitação ou indeterminação inerente a uma certa parte das coisas que mantém dependente dela todo o resto, enfim, se há evolução criadora, entendo muito bem que a parte já desenrolada do tempo apareça como justaposição no espaço e não mais como sucessão pura; posso conceber também que toda a parte do universo que está matematicamente ligada ao presente e ao pas­sado - ou seja, o desenrolar futuro do mundo inorgânico - seja representável pelo mesmo esquema (mostramos outrora que em matéria astronômica e física a previsão é na realidade uma visão). 

Pressente-se que uma filosofia 
onde a duração é tida por real e até por ativa 
poderá muito bem admitir o Espaço -Tempo de Minkowski e de Einstein 
(no qual, aliás, a quarta dimensão denominada tempo não é mais, como em nossos exemplos acima, uma dimensão totalmente assimilável às outras).

Ao contrá­rio, nunca conseguirão extrair do esquema de Minkows­ki a idéia de um fluxo temporal. Não valeria, então, mais a pena atém-se até segunda ordem àquele dos dois pon­tos de vista que não sacrifica nada da experiência e, por conseguinte - para não prejulgar a questão -, nada das aparências? Como, aliás, rejeitar totalmente a experiên­cia interna quando se é físico, quando se opera com per­cepções e, por isso mesmo, com dados da consciência? 

É verdade que uma certa doutrina aceita o testemunho dos sentidos, isto é, da consciência, para obter termos entre os quais seja possível estabelecer relações, e depois só conserva as relações e considera os termos inexistentes. Mas essa é uma metafísica enxertada na ciência, não é ciência. E, a bem dizer, é por abstração que distinguimos termos, é também por abstração que distinguimos rela­ções: um contínuo fluente do qual tiramos ao mesmo tempo termos e relações e que, além de tudo isso, é flui­dez, eis o único dado imediato da experiência.

Mas temos de fechar esse parêntese longo demais. Acreditamos ter atingido nosso objetivo, que era o de detenninar as características de um tempo onde há real­mente sucessão. Suprimam essas características e não ha­verá mais sucessão, mas justaposição. Podem dizer que ainda se trata do tempo - somos livres para dar às pala­vras o sentido que quisermos, desde que comecemos por defini-Ias -, mas saberemos que não se trata mais do tempo experimentado; estaremos diante de um tempo simbólico e convencional, grandeza auxiliar introduzida visando o cálculo das grandezas reais. 

Foi talvez porque não analisamos 
num primeiro momento nossa repre­sentação do tempo que flui, 
nosso sentimento da dura­ção real, que tivemos tanta dificuldade para determinar a significação filosófica das teorias de Einstein, 
ou seja, sua relação com a realidade.
Aqueles que se incomodavam com a aparência paradoxal da teoria disseram que os Tempos múltiplos de Einstein eram puras entidades ma­temáticas. Mas aqueles que gostariam de dissolver as coi­sas em relações, que consideram toda realidade, mesmo a nossa, como algo matemático confusamente percebi­do, diriam de bom grado que o Espaço-Tempo de Min­kowski e de Einstein é a própria realidade, que todos os Tempos de Einstein são igualmente reais, tanto e tal­vez mais que o tempo que flui conosco. De ambos os la­dos, queimam-se etapas.

Acabamos de dizer, e mostra­remos em breve com mais detalhes, por que a Teoria da Relatividade não pode exprimir toda a realidade. Mas é impossível que ela não exprima alguma realidade. Pois o tempo que intervém na experiência de Michelson-Mor­ley é um tempo real- real também o tempo a que retor­namos com a aplicação das fórmulas de Lorentz.

Se par­timos do tempo real para desembocar no tempo real, tal­vez tenhamos feito uso de artifícios matemáticos no in­tervalo, mas esses artifícios devem ter alguma conexão com as coisas. Portanto, trata-se de distinguir o que é real e o que é convencional. Nossas análises estavam simples­mente destinadas a preparar esse trabalho.

Mas acabamos de pronunciar a palavra "realidade";
e, no que se seguirá, falaremos constantemente 
do que é real, do que não o é. 

Que queremos dizer com isso? Se fosse preciso definir a realidade em geral, dizer qual a marca pela qual a reconhecemos, não poderíamos fazê­10 sem classificarmos a nós mesmos numa escola: os fi­lósofos não estão de acordo e o problema recebeu tantas soluções quantas são as nuanças que o realismo e o idea­lismo comportam. 

Deveríamos, ademais, distinguir o pon­to de vista da filosofia do da ciência: aquela prefere con­siderar real o concreto, todo carregado de qualidade; esta extrai ou abstrai um certo aspecto das coisas e só retém dele o que é grandeza ou relação entre grandezas. Feliz­mente, só nos interessa, em tudo o que se seguirá, uma única realidade, o tempo. Nessas condições, será fácil se­guir a regra que impusemos a nós mesmos no presente ensaio: a de não afirmar nada que não possa ser aceito por qualquer filósofo, qualquer cientista - nada que não este­ja implicado em toda filosofia e em toda ciência.

Todo o mundo concordará conosco que não se con­cebe tempo sem um antes e um depois: o tempo é suces­são. Ora, acabamos de mostrar que ali onde não há algu­ma memória, alguma consciência, real ou virtual, cons­tatada ou imaginada, efetivamente presente ou ideal­mente introduzi da, não pode haver um antes e um de­pois: há um ou outro, não há os dois; e é preciso os dois para fazer tempo.

Portanto, no que se seguirá, quando quisermos saber se estamos lidando com um tempo real ou com um tempo fictício, teremos simplesmente de nos perguntar se o objeto que nos apresentam poderia ou não poderia ser percebido; tornar-se consciente. É um caso privilegiado; único até. 

Em se tratando de cor, por exem­plo, a consciência sem dúvida intervém no começo do estudo para dar ao físico a percepção da coisa; mas o físi­co tem o direito e o dever de substituir o dado da cons­ciência por algo mensurável e enumerável sobre o qual passará a operar, dando-lhe simplesmente, por uma ques­tão de comodidade, o nome de percepção original. Pode fazê-lo porque, eliminada essa percepção original, algo perdura ou ao menos se supõe que perdure. 

Mas que restará do tempo 
se eliminarem dele a sucessão? 

E que resta da sucessão se vocês suprimirem 
até a possibilita­ de de perceber um antes e um depois?
Concedo-lhes o direito de substituir o tempo por uma linha, por exem­plo, porque é preciso medi-lo. Mas uma linha só deveráchamar-se tempo ali onde a justaposição que ela nos oferece seja convertível em sucessão; caso contrário, será arbitrariamente, convencionalmente que vocês darão a essa linha o nome de tempo: terão de nos advertir a esse respeito para não nos expor a uma grave confusão.

Quan­to mais se vocês introduzirem em seus raciocínios e seus cálculos a hipótese de que a coisa denominada por vocês "tempo" não pode, sob pena de contradição, ser percebi­da por uma consciência, real ou imaginária. Não será en­tão, por definição, com um tempo fictício, irreal, que vo­cês operarão? 

Ora, é esse o caso dos tempos com que li­daremos com freqüência na Teoria da Relatividade. En­contraremos alguns percebidos ou perceptíveis; estes po­derão ser tidos por reais. Mas há outros que, de certa for­ma, a teoria proíbe de serem percebidos ou de se toma­rem perceptíveis: caso se tomassem perceptíveis, muda­riam de grandeza - de modo tal que a medida, exata quando se aplica ao que não se percebe, seria falsa tão logo percebêssemos. 

Estes tempos,
 como não declará­-los irreais, 
ao menos na qualidade de "temporais"? 
Ad­mito que para o físico é cômodo ainda denominá-los tempo - veremos mais adiante a razão disso. Mas, caso assimilemos esses Tempos ao outro, cai-se em parado­xos que certamente foram nocivos para a Teoria da Rela­tividade, embora tenham contribuído para tomá-la po­pular. Portanto, não deve causar espanto se a proprieda­de de ser percebido ou perceptível for exigida por nós, no presente estudo, para tudo o que nos oferecerem como sendo real. Não resolveremos a questão de saber se qual­quer realidade possui essa característica.  

Aqui, apenas tra­taremos da realidade do tempo.

CAPÍTULO  4

A PLURALIDADE DOS TEMPOS

Os Tempos múltiplos e retardados da Teoria da Relatividade: como são compatíveis com um Tempo único e universal. - A simultaneidade" científica", que pode ser quebrada e transformada em sucessão: como é compatível com a simultaneidade "intuitiva" e natu­ral. - Exame dos paradoxos relativos ao tempo. A hipó­tese do viajante encerrado numa bala de canhão. O es­quema de Minkowski. - Confusão que está na origem de todos os paradoxos.

Cheguemos por fim ao Tempo de Einstein e retome­mos tudo o que dissemos supondo inicialmente um éter imóvel. Temos a Terra em movimento na sua órbita. O dispositivo de Michelson - Morley está ali. Fazem a expe­riência; repetem-na em diversas épocas do ano e, por conseguinte, para velocidades variáveis de nosso plane­ta. 

O raio de luz sempre se comporta 
como se a Terra fos­se imóvel. 
Esse é o fato. Qual é a explicação?
Mas, para começar, que estamos dizendo quando fa­lamos das velocidades de nosso planeta? A Terra estaria, em termos absolutos, em movimento através do espaço? E evidente que não; estamos na hipótese da Relatividade e não existe mais movimento absoluto. Quando você fala da órbita descrita pela Terra, coloca-se em um ponto de vista arbitrariamente escolhido, o dos habitantes do Sol (de um Sol que se tomou habitável).

Agrada-lhe adotar esse sistema de referência. Mas por que o raio de luz lan­çado contra os espelhos do aparelho de Michelson-Morley levaria em conta a sua fantasia? Se tudo o que efetivamente se produz é o deslocamento recíproco da Terra e....(?)


Fonte:
USP
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Sejam abençoados todos os seres.