quarta-feira, 27 de abril de 2011

A CONSCIÊNCIA É O EU : Farias Brito - Luiz Alberto Cerqueira




 
W.A.Mozart -Violin Sonata Nr.23 in D - K 306 - 28m
Fragmentos  de
MATURIDADE DA FILOSOFIA BRASILEIRA: FARIAS BRITO 
                                                           Luiz Alberto Cerqueira*

A filosofia como ciência rigorosa do espírito

[...] entendo por espírito a energia 
que sente e conhece, e se manifesta, 
em nós mesmos, como consciência
Farias Brito

O eu e sua sombra

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
 - Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
Augusto dos Anjos

Pode-se [...] dizer 
que do tempo nada se perde 
porque o passado é presente no presente;
ou melhor, o presente não é
senão o passado agindo.
Farias Brito
 
   Referindo-se ao fato de que as palavras desenrolam as impressões mais íntimas, como os sentimentos, num tempo indiferenciado, homogéneo, em que, de certo modo, tudo é percebido sob   Ver, por exemplo, Nietzsche, A gaia ciência, §354: “Se as nossas ações, pensamentos, sentimentos e movimentos chegam  pelo menos em parte  à superfície da nossa consciência, é o resultado de uma terrível necessidade que durante muito tempo dominou o homem, o mais ameaçado dos animais: tinha necessidade de socorro e de protecção, tinha necessidade do seu semelhante, era obrigado a saber dizer essa necessidade, a saber tornar-se inteligível; e para tudo isso era necessário, em primeiro lugar, que tivesse uma “consciência”, que “soubesse” ele próprio o que lhe faltava, que “soubesse” o que pensava [...]

o pensamento que se torna consciente representa apenas a parte mais ínfima, digamos a mais superficial, a pior [...] porque só existe o pensamento que se exprime em palavras, quer dizer, em sinais de trocas [...]

Em resumo: 
o desenvolvimento da linguagem e
o desenvolvimento da consciência 
(não da razão, mas somente da razão 
que se torna consciente de si própria), 
estes dois desenvolvimentos caminham a par”.
  No filme The age of innocence (1993), baseado na obra homónima de Edith Wharton, Martin Scorcese realizou plenamente, do ponto de vista de diálogos, imagens, cenas e situações, esse sentido do “espírito objetivo” em razão do qual o “bom” senso é não quebrar as regras, garantindo assim as conveniências e a “boa” aparência de uma vida sem necessidades materiais, mesmo ao preço de viver à sombra do próprio eu.

  Referindo-se ao fato de que as palavras desenrolam as uma lógica simples como sendo agora, e que exactamente por isso os sentimentos se manifestam sem a sua animação e cor próprias, Bergson faz a seguinte provocação: 

“Se agora algum romancista audacioso,
rasgando o véu habilmente tecido do nosso eu convencional,
nos mostrar sob esta lógica aparente uma absurdidade
fundamental, sob esta justaposição de estados simples
uma penetração infinita de mil impressões diversas
que já deixaram de o ser na altura em que os nomeamos,
louvamo-lo por nos conhecer melhor que nós próprios [...]
Encorajados por ele, afastamos por momentos o véu
que interpúnhamos entre a nossa consciência e nós mesmos.
Pôs-nos na presença de nós próprios”
(idem: 93).
uma lógica simples como sendo agora, e que exactamente por isso os sentimentos se manifestam sem a sua animação e cor próprias, Bergson faz a seguinte provocação: 

“Se agora algum romancista audacioso,
rasgando o véu habilmente tecido do nosso eu convencional,
nos mostrar sob esta lógica aparente uma absurdidade 
fundamental, sob esta justaposição de estados simples
uma penetração infinita de mil impressões diversas 
que já deixaram de o ser na altura em que os nomeamos, 
louvamo-lo por nos conhecer melhor que nós próprios [...]
Encorajados por ele, afastamos por momentos o véu 
que interpúnhamos entre a nossa consciência e nós mesmos. 
Pôs-nos na presença de nós próprios”
(idem: 93).
...
...no romance de Machado de Assis e na poesia de Augusto dos Anjos. Mas a ideia de que a mesma força ou energia, que do ponto de vista da ciência física só se conhece externamente como movimento ou como corpo deslocando-se no espaço, revela-se internamente como consciência, ele encontrou-a em Bergson.

É notável em Farias Brito a assimilação das ideias de Bergson. 
Referimo-nos especialmente àquelas apresentadas no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889). Pondo-se de acordo com o francês, o brasileiro entende que “não basta indagar se o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito”, na perspectiva do criticismo de Kant (Brito, 1914: §39). Para além da teoria da idealidade e subjectividade do espaço e do tempo, “é preciso verificar se o conhecimento do eu e da consciência, por sua vez, não sofre a influência das coisas” (ibidem). 
Para compreendermos o sentido desta questão, torna-se fundamental considerarmos a passagem em que Bergson distingue o “eu interior em si considerado como um absoluto,o que sente e se apaixona, o que delibera e se decide [enquanto] força cujos estados e modificações se penetram intimamente” (Bergson, 1988: 88), do eu fenoménico e mundano resultante do facto de que “o nosso eu toca no mundo exterior superficialmente; as nossas sensações sucessivas, embora apoiando-se umas nas outras, conservam algo da exterioridade recíproca que caracteriza objectivamente as suas causas” (ibidem).

O eu adquire, assim, a sua sombra. 

E é reduzido à sua sombra que o eu se torna objecto de conhecimento científico segundo o modelo da “ciência da natureza”. Entretanto, se o “eu mais profundo não faz senão uma única e mesma pessoa com o eu superficial” (ibidem), como, exactamente, se perde a consciência de si como sendo essencialmente força, energia? Bergson explica que é por meio da palavra enquanto meio de comunicação e de formação do senso comum:


[...] na realidade, não há nem sensações idênticas, nem gostos múltiplos: é que sensações e gostos surgem-me como coisas a partir do momento em que os isolo e nomeio [...] 
O que se deve dizer é que toda a sensação se modifica 
ao repetir-se e que, se não me parece mudar 
de um dia para o outro, é porque dela me apercebo agora
através do objecto que lhe serve de causa,
através da palavra que a traduz.
A influência da linguagem sobre a sensação 
é mais profunda do que normalmente se pode pensar. 
Não só a linguagem nos leva a acreditar na invariabilidade
das nossas sensações, mas induzir-nos-á em erro, 
por vezes, quanto ao carácter da sensação experimentada [...] 

a palavra em bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por conseguinte, de impessoal nas impressões da humanidade, esmaga ou, pelo menos, encobre as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual [grifos acrescentados]. Para lutar com armas iguais, estas deveriam exprimir-se por palavras precisas; mas as palavras, logo que formadas, voltar-se-iam contra a sensação que lhes deu origem, e inventadas para testemunhar que a sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua própria estabilidade.


Em nenhum lado é tão flagrante este esmagamento 
da consciência como nos fenómenos do sentimento [...] 
O próprio sentimento é um ser que vive, se desenvolve e, conseqüentemente, muda sem cessar [...] 
Mas vive porque a duração em que se desenvolve 
é uma duração cujos momentos se penetram: 
ao separarmos estes momentos uns dos outros,
ao desenrolarmos o tempo no espaço, 
fizemos perder a este sentimento a sua animação e cor. 

Eis-nos, pois, perante a sombra de nós mesmos
 
julgamos ter analisado o nosso sentimento, mas, na verdade, substituímo-lo por uma justaposição de estados inertes, traduzíveis por palavras, e que constituem cada um o elemento comum, conseqüentemente, o resíduo impessoal, das impressões experimentadas num determinado caso pela sociedade inteira. (Idem: 91-93)

Portanto, em resposta à questão visada por Farias Brito - se o conhecimento do eu não sofre a influência das coisas -, devemos destacar o facto de que o carácter arbitrário em que consiste o valor lingüístico da palavra, em função do qual ela se torna impessoal e nela se perdem a intensidade, a diversidade e o colorido de que se revestem as sensações pessoais, desenvolveu-se a par de uma “consciência reflexa” como um eu inteiramente superficial, homogéneo e indiferente à multiplicidade dos estados de consciência. 
Isso transparece sempre e quando nos orientamos apenas pela exigência de objectividade na comunicação necessária à vida cotidiana,[1] valendo-nos do facto de que as palavras, por convenção, têm um sentido literal e querem dizer algo a priori.
Tal espírito objectivo no falar impede 
que a diversidade dos estados de consciência apareça. 
E é dessa forma que, segundo Bergson, 
a palavra “esmaga [...] as impressões delicadas 
e fugitivas da nossa consciência individual”[2].
Mas esse mesmo valor lingüístico da palavra não impede que justifiquemos o uso estético da linguagem em função da energia vivida nas sensações. Com arte superamos esse espírito objectivo sem prejuízo do sentido literal, porque, neste caso, somos nós essencialmente a querer dizer, por meio da obra, o que as palavras dizem.

Referindo-se especialmente às obras literárias, Farias Brito diz que em nós os movimentos chegam - pelo menos em parte - à superfície da nossa consciência, é o resultado de uma terrível necessidade que durante muito tempo dominou o homem, o mais ameaçado dos animais: tinha necessidade de socorro e de protecção, tinha necessidade do seu semelhante, era obrigado a saber dizer essa necessidade, a saber tornar-se inteligível; e para tudo isso era necessário, em primeiro lugar, que tivesse uma “consciência”, que “soubesse” ele próprio o que lhe faltava, que “soubesse” o que pensava [...]

o pensamento que se torna consciente representa apenas a parte mais ínfima, digamos a mais superficial, a pior [...] porque só existe o pensamento que se exprime em palavras, quer dizer, em sinais de trocas [...] Em resumo: o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria), estes dois desenvolvimentos caminham a par”.

[1] No filme The age of innocence (1993), baseado na obra homónima de Edith Wharton, Martin Scorcese realizou plenamente, do ponto de vista de diálogos, imagens, cenas e situações, esse sentido do “espírito objectivo” em razão do qual o “bom” senso é não quebrar as regras, garantindo assim as conveniências e a “boa” aparência de uma vida sem necessidades materiais, mesmo ao preço de viver à sombra do próprio eu.

[1] Referindo-se ao fato de que as palavras desenrolam as impressões mais íntimas, como os sentimentos, num tempo indiferenciado, homogéneo, em que, de certo modo, tudo é percebido sob [1] Ver, por exemplo, Nietzsche, A gaia ciência, §354: “Se as nossas acções, pensamentos, sentimentos e movimentos chegam - pelo menos em parte - à superfície da nossa consciência, é o resultado de uma terrível necessidade que durante muito tempo dominou o homem, o mais ameaçado dos animais: tinha necessidade de socorro e de protecção, tinha necessidade do seu semelhante, era obrigado a saber dizer essa necessidade, a saber tornar-se inteligível; e para tudo isso era necessário, em primeiro lugar, que tivesse uma “consciência”, que “soubesse” ele próprio o que lhe faltava, que “soubesse” o que pensava [...]

...o pensamento que se torna consciente representa apenas a parte mais ínfima, digamos a mais superficial, a pior [...] porque só existe o pensamento que se exprime em palavras, quer dizer, em sinais de trocas [...] 
Em resumo: o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria), estes dois desenvolvimentos caminham a par”.

[2] No filme The age of innocence (1993), baseado na obra homónima de Edith Wharton, Martin Scorcese realizou plenamente, do ponto de vista de diálogos, imagens, cenas e situações, esse sentido do “espírito objectivo” em razão do qual o “bom” senso é não quebrar as regras, garantindo assim as conveniências e a “boa” aparência de uma vida sem necessidades materiais, mesmo ao preço de viver à sombra do próprio eu.
 

[1] “A consciência é o eu.

E tal é a existência de que temos mais certeza, pois é a única que conhecemos directamente e, por conseguinte, de modo mais íntimo e profundo. Indagando-se, porém, da significação real dessa existência, vê-se que consiste unicamente em sucessão de estados ou mudanças, 

‘Sensações, sentimentos, volições, 
representações, - eis as modificações 
entre as quais se divide minha existência 
e que lhe dão sua cor própria. 
 

Eu mudo, pois, incessantemente’ - diz Bergson. E assim dizendo acrescenta não residir a mudança simplesmente na passagem de um estado a outro. ‘Acredita-se que cada estado, considerado à parte, fica o que é durante todo o tempo em que se produz. Mas um ligeiro esforço de atenção mostrará que não há afecção, representação, volição que se não modifique a todo o momento. E se um estado d’alma deixasse de mudar, sua duração cessaria de correr... 

A verdade é que mudamos incessantemente e todo o estado psicológico, de si mesmo, é já mudança.’ Ora, se toda a realidade da consciência consiste em sucessão ou mudança de estados, segue-se daí que apesar de mudar incessantemente, ela permanece sempre a mesma. 

É que não se trata de uma coisa, de um facto determinado, mas de uma corrente, de um fluxo contínuo; e esta corrente, este fluxo, se bem que a todo o momento mude de cor, todavia não se interrompe, e nunca se quebra: forma um todo indivisível e persiste sempre o mesmo em sua sucessão de mudanças. Isto significa que a essência da consciência consiste na duração. 

É assim que o filósofo acentua, de modo decisivo, que, considerando-se a vida psicológica tal como se desenvolve através dos símbolos que a encobrem, verifica-se que o tempo é a sua matéria própria.” (Idem: §44)

“Há [...] além da duração interna, sucessão que se resolve em concentração dos estados de consciência no eu, uma duração externa, o tempo que entra nos cálculos do astrónomo e se divide em períodos sucessivos, compreendendo o presente, o passado e o futuro: este é uma grandeza susceptível de medida e de cálculo... 
Forçoso é, pois, daí concluir que o tempo
é também uma grandeza 
homogénea como o espaço. 
 
É ainda, segundo Bergson, uma ilusão [...] E para prová-lo imagina, como exemplo, seguir com os olhos, sobre o quadrante de um relógio, o movimento da agulha em correspondência com as oscilações do pêndulo. Dever-se-á supor neste caso que o observador fez a medida da sucessão; mas não acontece assim. 
‘Eu não faço a medida da duração, diz Bergson, 
limito-me a contar simultaneidades [...] 
Fora de mim no espaço, não há senão uma posição única 
da agulha e do pêndulo, 
porque das posições passadas nada resta
Dentro de mim, 
dá-se um processo de organização 
ou de penetração mútua dos estados de consciência,
e é isto que constitui a verdadeira duração.  
É porque duro desta maneira que me represento 
o que chamo as oscilações passadas do pêndulo,
ao mesmo tempo que percebo a oscilação presente 
  [...] 
Considerada em relação às coisas exteriores, 
a duração existe, mas somente para uma consciência 
que conserve a lembrança dos momentos passados.”
(Idem: §42; )
                                                              Luiz Alberto Cerqueira*
 

* O autor ministra cursos de filosofia brasileira na Graduação
e na Pós-Graduação em Filosofia do Instituto 
de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal 
do Rio de Janeiro, sendo o atual coordenador 
do Centro de Filosofia Brasileira-CEFIB.
Fonte:
                                                         E-mail: cerqueira@ifcs.ufrj.br
Sejam feliozes todos os seres  Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.

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