domingo, 24 de abril de 2011

O IMAGINÁRIO METAFÓRICO DA ESCUTA - Marcos Nogueira

{" Um pensador profundo, vindo das matemáticas 
para a filosofia, verá um pedaço de ferro 
como uma "continuidade melódica" 13 }

 Bergson
em
O Pensamento e o Movente (Introdução)

O Imaginário Metafórico da Escuta
Marcos Nogueira

Resumo: Quando ouvimos música, não ouvimos somente uma seqüência de sons, ouvimos, intencionalmente, algo nos sons. Ouvir música é ouvir uma organização implícita: uma forma expressa por fatos não-materiais. O artigo propõe discutir o âmbito metafórico da descrição da forma musical, um mundo “como se nos parece”, isto é, da perspectiva da imaginação. Essas metáforas têm origem, portanto, menos em nosso interesse cognitivo, que em nosso envolvimento imaginativo com o mundo. Se as metáforas podem ser tomadas como “superfície lingüística dos símbolos”, então o exercício metafórico na experiência musical revela-se uma tentativa subliminar de acessar um potencial simbólico da música.

O espaço fenomênico da música
Um conceito regula toda a experiência da forma musical: o sentido de movimento, ou seja, de “passagem” de um evento ou de um estado para outro. Essa idéia de passagem tem tanto implicações espaciais – planos e deslocamentos – quanto temporais – a experiência do ritmo (sucessão mais ou menos regularizada de eventos) e da métrica, como resultado da interação entre os vários aspectos da “matéria sonora”.

Como Wallace Berry (1987), entendo que o conceito de movimento está aqui estreitamente ligado ao conceito de complexos de eventos “progressivos”, “recessivos” e “estáticos”. Podemos assim descrever o que seriam os três fatores em que reside o movimento em música:


(1) percebe-se como um tipo de movimento a passagem por um “campo temporal”; isso se dá quando reconhecemos sucessões de eventos sonoros que apresentam regularidades de fluxo (como, por exemplo, uma simples encadeamento de sons pulsados regularmente); 

(2) outro fator de movimento é a percepção da mudança a partir dos contrastes qualitativos entre eventos sonoros sucessivos (por exemplo, o reconhecimento de um intervalo melódico entre sons com alturas diferentes); e, por fim, 

(3) um terceiro fator tem a ver com a ilusão de um “campo espacial” em música, inerente, sobretudo, ao espectro de freqüências e amplitudes sonoras perceptíveis, que produz a idéia de posição para os eventos, ou seja, reconhece-se que sons estão mais acima ou abaixo, mais à frente ou mais atrás.

Alguns supõem então que movimento em música seja algo ideal (um movimento cuja única realidade está na esfera mental); outros argumentam que o movimento em música é um movimento puro, um movimento no qual nada se move, sendo por isso o movimento mais real, manifesto como é em si. Sua espacialidade é mera aparência. Não se assemelha a espacialidade visual. Tudo que constitui espaço como uma moldura na qual objetos são situados como ocupantes está ausente do continuum sonoro musical.

Por isso, a idéia de movimento musical é paradoxal: como podemos falar de movimento quando nada se move? Espaço musical e movimento musical não são análogos de espaço e movimento do mundo físico. Mas quando experimentamos, por exemplo, o "subir" e o "descer" em música, podemos pensar em metáforas espaciais necessárias: podemos dizer até mesmo que se estamos ouvindo sons como música torna-se necessário que "ouçamos" movimento. 


Não há espaço real para sons, mas há um espaço fenomênico de sons musicais, mesmo que não possamos avançar desse espaço fenomênico para uma ordem espacial objetiva. E esse espaço fenomênico, na linguagem musical, de um modo ou de outro, está sempre intimamente relacionado à idéia de forma musical: uma espécie de “triálogo” entre passado, presente e futuro.

A distinção entre lugar e ocupante é fundamental para o conceito de espaço
. Assinala também uma importante diferença entre espaço e tempo, pois o tempo não é ocupado ou preenchido por coisas que nele ocorrem, como são os espaços. Um evento toma tempo, mas não compete com outros eventos pelo tempo que requer, uma vez que podem ser simultâneos. Esse caráter topológico do espaço, como um sistema de lugares e superfícies, não é reproduzido no domínio acústico musical. Nesse domínio, confrontamo-nos somente com uma sucessão de eventos, ordenados “no tempo”, mas não no espaço, e que retém a direcionalidade e a não espacialidade que, numa abordagem tradicional, são marcas da dimensão temporal.


Propõe-se então dizer que na experiência musical confrontamo-nos com o tempo, não exatamente com os eventos no tempo, mas com o tempo em si expandido, espalhado e oferecido à nossa contemplação e apreensão direta e completa, tal como o espaço está espalhado diante de nós no campo visual. No domínio acústico a ordem temporal é dissolvida e reconstituída como um espaço fenomênico.

Transferimos para este espaço a familiaridade e o sentido de liberdade que caracteriza nossa experiência da ordem espacial. Por um momento parece que podemos "vagar no tempo" com a mesma autonomia que exercitamos nossa mobilidade espacial.


A imagem de tempo
A experiência do movimento em música resulta, pois, da nossa tendência em identificar eventos sonoros distintos e em agrupá-los em unidades estruturáveis.  


O ritmo musical é um fenômeno gestáltico
tanto quanto a percepção de padrões visuais.  

Sua constituição, contudo, exige essencialmente a ação direta da imaginação e da subjetividade dos desejos, uma vez que tais processos de agrupação não derivam de relações reais com suportes materiais. Por essa razão, na experiência do ritmo musical buscamos algumas referências reais e essa experiência acaba sendo, de algum modo, um reflexo de nossa experiência de vida corporal. Ao “ouvirmos” ritmo musical, estamos ouvindo uma espécie de “animação”: uma aparência de vida.

Suzanne Langer, em sua crítica da arte, lembrou a definição do teórico oitocentista Eduard Hanslick, que viu os elementos da música como uma virtualização criada apenas para a simples percepção: "formas sonoras em movimento". Segundo ela, esse movimento é a essência da música; um movimento de formas não visíveis, dadas ao ouvido em vez de à visão. Mas o que seriam, de fato, tais formas? Não são objetos do mundo real, são "elementos numa ilusão puramente auditiva". 


A esfera em que os sons musicais "se movem"
seria uma esfera de pura duração. 

 E essa duração, entretanto, não é um fenômeno real, não é um período de tempo, mas é algo radicalmente diferente do tempo em que decorre nossa vida prática.

A duração musical é uma imagem daquilo que poderia ser denominado “tempo experienciado” – a passagem da vida que sentimos à medida em que as expectativas se tornam "agora" e "agora". Cumpre investigar, portanto, a relação estreita entre a experiência da forma musical e a experiência do tempo, que, de certo modo, parecem confundir-se na “atitude estética” musical.

Para Langer, toda música cria uma ordem de tempo virtual em que suas formas sonoras se movem umas em relação às outras, e deixa que nossa imaginação monopolize esse tempo, organizando-o e formando-o por si mesma. Assim, criamos imagens do tempo medidas pelo movimento de formas que parecem dar-lhe substância; porém uma substância que consiste inteiramente de som: "a música torna o tempo audível". Isso pode ser entendido como sendo a música uma forma de duração: ela suspende o tempo objetivo e oferece-se como um equivalente e ideal substituto. Daí, dizer-se que a ilusão primária da música é, a partir das mudanças, a imagem sonora da passagem, abstraída da realidade para tornar-se livre e plástica.

Henri Bergson compartilha da idéia de que a noção de tempo não se dá fora da consciência, e, se o tempo é um dado imediato da consciência, sua objetividade é de ordem subjetiva: uma duração interior. Assim, a memória sustém o tempo, é-lhe essencial. 


E não parece mais possível pensar em texto e sujeito como níveis separados do fato musical. A relação dialógica do compositor com o texto que ele cria faz viverem obra (idéia) e texto (objeto), assim como a relação dialógica experimentada pelo intérprete (executante ou ouvinte) do texto suporta a existência de fruição (prazer) e obra (idéia). O tempo não é, portanto, dado a priori: realiza-se na interação diádica entre consciência e objeto.

Quando a música cessa, não deixa, entretanto,
de atuar na consciência do ouvinte. 

Há, apenas, uma transferência de foco, aparentemente exterior, quando da "duração" da música fisicamente, para um processo puramente mental. No entanto, o que muitas vezes não nos damos conta é que isto não se dá somente quando clareado pelo cessamento da estimulação dos objetos sonoros. Tal processo ocorre por todo o decorrer da música, é o que possibilita o reconhecimento de sua forma e a lingüisticidade musical.

Tudo isso é promovido pela ação da memória que media a interação ouvinte-obra: por meio do processo de significação – dada a experiência prévia do intérprete – do que é retido pela memória e que, portanto, não é passado e sim, presente, aquilo que está soando adquire significação por contraposição ao oculto na memória, e o produto dessa confrontação presente antecipa, por uma espécie de lógica do sentido, o que virá e que atua, também, presentemente. Sendo assim, o que se denomina forma musical é um processo de síntese contínua, promovido pela consciência, que se dá como experiência de espacialização do tempo.

E se há forma, há partes. É a consciência, pois, que as articula, isto é, age no sentido de efetuar as junções entre as partes de um todo, a fim de que se estabeleçam tempo e forma. Para Gaston Bachelard a descontinuidade e a lacuna é que dão sentido à ação da consciência, uma vez que não seriam a continuidade e o fluxo dados imediatos de consciência, mas uma construção, uma ordenação que não se dá, precisamente, "no tempo", mas, ao invés, é gerada pelo tempo construído internamente. A sucessão temporal passa a ser uma construção intencionada, promovida pela consciência; um produto de um desejo de ordenação.


O real nos é incompleto, estranho

Na experiência da música, a expectativa de que algo novo, distinto, portanto, do que está soando, ocorrerá é uma projeção da expectativa do futuro a partir de ocorrências presentes. Mas quando a redundância domina o presente nos força a percebê-lo mais como vivência do passado. No momento em que o grau de expectativa do futuro como diferença diminui, o tempo parece perder consistência, como se não "passasse". Donde enquanto a interação diádica entre obra e receptor é regida pela expectativa, há tempo e impressão de passagem de tempo.

O instante crítico e, muitas vezes, relativamente distinguível situado na elisão do esvair da impressão de tempo e o limiar da pura redundância, da repetição apenas como refluxo do passado, é um ponto articulatório essencial para o compositor: é o instante fundamental que concentra a própria essência temporal e artística musical. 


Não podemos, contudo, desconsiderar a experiência prévia dos ouvintes, que gera suas expectativas habituais com as quais os próprios compositores criam as condições de maior ou menor comunicabilidade nas peças. Quanto menos a idéia musical é regida pelos padrões cristalizados previamente, e quanto mais se organiza por meio de um "discurso" indeterminado, lacunar e ambíguo, mais afirma a espacialização do tempo, que se torna algo mais maleável, que a qualquer momento pode dar a impressão de ter sido suspenso, deslocado ou comprimido.

A dimensão acústica é o background contra o qual o sentido musical é adquirido. O espaço fenomênico estrutural e o tempo fenomênico funcional da música são contrapostos pela causalidade fenomênica que ordena a obra musical. E a principal manifestação dessa causalidade está no mundo das ações humanas. Priscila Kuperman, numa síntese do processo evolutivo – em sua segunda etapa, do surgimento da consciência –, observa que o suporte do mundo vivo resulta de modelos rítmicos: “desde as diferentes manifestações de um ritmo pessoal, que compõem a essência de uma identidade individual, até a realidade à nossa volta, tudo é uma incessante dança rítmica. 


A comunicação humana se dá através da sincronização de ritmos individuais – ou não se dá” (2003:8). Os sons em música seguem outros como movimentos corporais sincronizados, com uma causalidade que faz imediato sentido para nós – mesmo que seu como esteja tão mergulhado na natureza das coisas que se esconda de nossa apreensão. Um som musical é ouvido como resposta ao seu predecessor, tanto quanto tende ao seu sucessor, continuando uma ação que faz sentido como um todo.

Comunicando o indizível: metáforas
Uma parte considerável de nossas experiências particulares é gradualmente generalizada em nossa base de conhecimento. Uma cultura musical, por exemplo, pode ser definida como uma coleção particular de esquemas. Essa função generalizante é um aspecto fundamental do pensamento humano. 


E se a atividade cognitiva envolve percepção, memória, associação de informações, o pensamento implica, sobretudo, a habilidade para representar mentalmente situações ausentes e hipotéticas, para projetar-se numa cadeia especulativa que ultrapassa o presente imediato, produzindo o provável e o improvável, criando mundos possíveis e impossíveis. Estamos falando de imaginação.

É evidente que na escuta o objeto que o ouvinte reproduz para si mesmo, o objeto imaginado – uma produção do receptor como ato criativo – não é mais o mesmo objeto. E ao converter o objeto sonoro, de seu estado “material” para a imagem mental, o ouvinte se transforma junto com o objeto. Desse modo, no ato da escuta dão-se, conjuntamente, a reprodução do objeto sonoro no pensamento do ouvinte e a reprodução do próprio pensamento musical que se renova em virtude da originalidade de cada novo ato de escuta.

Visto da ótica da física, um evento musical é somente uma coleção de objetos sonoros com determinados atributos. Entretanto, de algum modo a mente humana atribui sentido a esses sons que se tornam, assim, símbolos de outros sons e de outras coisas que não são sons, algo que nos leva a reagir emocionalmente, a gostar ou a desgostar, ao afeto ou à indiferença. 


Uma pessoa pode entender a música que ouve sem ser afetada por ela; quando é afetada pela música, deve então ter passado pelo estágio cognitivo que envolve uma representação interna abstrata ou simbólica do texto musical experienciado. 

E entende-se que o modo com o qual compositores, executantes e ouvintes representam a música ao percebê-la determina como podem lembrá-la, executá-la e apreciá-la.

Mas as representações mentais e os processos que as criam não são diretamente observáveis. Devemos inferir sua natureza das observações sobre a maneira como as pessoas criam, memorizam e reagem à música. Todos somos capazes de identificar, por exemplo, uma melodia ou mesmo uma ação melódica habitual. Contudo, as notas musicais específicas que a constituem, seu andamento (sua velocidade) ou a textura sonora original que suporta essa ação melódica, propriamente, não são decisivos para a identificação. 


Os ouvintes memorizam padrões e relações, criam abstrações dos estímulos físicos, e, assim, os lembram e os reproduzem, em geral, apenas em termos essenciais.

A produção do ouvinte, que não demanda nenhuma ação física, caracteriza-se por um conjunto de atividades perceptivas, intelectuais e emocionais que resultam em memórias, em conjuntos de imagens mentais fugazes e altamente incomunicáveis, em sentimentos e em expectativas (antecipações). Quanto maior for a familiaridade do ouvinte com os padrões envolvidos na elaboração e na execução musicais, quanto mais restritos forem, portanto, os limites para a sua interpretação, mais forte será a impressão de comunicação – de que algo passa, no ato da escuta.

Isso se dá sempre que uma certa maneira de perceber e interpretar um determinado objeto (estímulo) musical torna-se dominante. Quando a cristalização de um padrão musical é excessiva e os estereótipos se tornam amplamente compartilhados, a diversidade de interpretações é drasticamente reduzida.


Desse modo, tem-se a ilusão de que a música significa a mesma coisa para ouvintes distintos, e de que ela comunica, assim, um sentido único. Por outro lado, na experiência com a chamada “música de arte” contemporânea, uma produção que se mantém relativamente mais desvinculada de condicionamentos, estereótipos e funcionalidades, o intérprete é levado ao limite de sua disposição e competência mnemônica e imaginativa diante de um texto que lhe exige a solução de um problema de experiência estética.

O tipo de apreensão básica da música e de sua comunicabilidade envolve, necessariamente, um considerável repertório de metáforas de espaço, de movimento e de animação. Se o sucesso de uma linguagem figurativa consiste exatamente em juntar coisas diferentes criando uma relação antes não existente, essa relação é estabelecida na experiência do receptor. Ou seja, a intenção de quem descreve com metáforas uma dada experiência musical é possibilitar ao interlocutor o compartilhamento da experiência que tenta descrever: a experiência de responder a uma coisa nos termos sugeridos por outra.

As metáforas musicais são uma verdadeira 
descrição de fatos não materiais 

– que não são sequer fatos sonoros – e não podem ser simplesmente eliminadas da descrição da música, uma vez que definem o objeto intencional da experiência musical. Sem as metáforas não há descrição da experiência musical. Abandonando a experiência do espaço musical, por exemplo, eliminaríamos a idéia de orientação em música, notas deixariam de se mover em direção a outras, nenhum salto melódico seria maior que outros, nem mesmo haveria saltos. A experiência da música não envolveria nem melodia nem movimentos texturais. Portanto, sendo o discurso sobre a música tão essencialmente metafórico, devemos deduzir que a música está além do mundo estritamente material dos sons.

Metáfora e imaginário musical
Em sua “metafísica da música”, ao fazer emergir a poderosa categoria da vontade, Arthur Schopenhauer coloca a questão da categoria da subjetividade e de seu paradoxo moderno: é exatamente em sua liberdade que os indivíduos estão implacavelmente presos. A subjetividade é o que menos podemos chamar de nosso, de vez que a vontade, o desejo criou em nós uma ilusão denominada razão, e, assim, nos iludimos que os objetivos da razão são os nossos objetivos. 


Schopenhauer apontou a via estética como solução para conseguirmos algum descanso na busca insaciável do desejo – mas no sentido, é verdade, menos de uma preocupação com a arte que de uma atitude transformadora da realidade. A estética, assim, seria uma fuga temporária da prisão da subjetividade. Se para Kant a estética trabalha dentro do registro do imaginário – que retira do mundo das funções práticas o objeto e o dota de uma certa autonomia própria do sujeito –, para Schopenhauer ela se lança para o simbólico, campo no qual pode-se aceitar que os objetos “não precisam de nós”.

Se nas artes da palavra e nas artes visuais somos apresentados a imagens do mundo fenomênico – das representações –, em música, para Schopenhauer, somos apresentados a algo mais. Uma vez livre de conceitos, a música não nos apresentaria a imagens do mundo fenomênico, mas à “vontade em si” – da qual temos apenas um conhecimento “imediato” e não-conceitual. 


A metáfora de Schopenhauer, despida de sua presunção metafísica, nos ensina enfim que o “movimento” que ouvimos em música é motivado pela intenção humana, e que mais do que como simples movimento o ouvimos como ação – de seres humanos se comportando.

Poderíamos sustentar, como o fez Kant, que toda experiência referida ao mundo material deve ser conceitual (uma síntese de intuição, seu componente sensorial, e conceito)? Se pensarmos que a intencionalidade requer a aplicação de conceitos que determinam como o mundo parece em nossa percepção, concordo com a reivindicação de Roger Scruton de que se devem, ao menos, distinguir duas categorias de dispositivos conceituais: em juízo e em imaginação. 


“A experiência perceptiva não é uma interpretação 
de alguma ‘intuição’ natural: 
é inspirada e informada pelo pensamento. 

Por isso, muitos filósofos dizem da percepção como um tipo de ‘representação’ e buscam explicar a intencionalidade em termos de representação mental do mundo” (1997: 92). Sendo assim, por mais estreita que seja a conexão entre experiência e conceito, isso não define inteiramente a intencionalidade de uma experiência.


Na experiência da metáfora em música 
há uma dupla intencionalidade.

  Numa mesma experiência tomamos como objeto tanto o som que percebemos quanto algo que não é som: um movimento, uma animação, uma aparência de vida que “ouvimos” no som, situada num espaço fenomênico.

Em termos fenomenológicos, a metáfora de movimento musical é uma espécie de resíduo fenomênico de nossa experiência de espaço. É necessário, porém, entender que quando recorremos às metáforas para descrever a experiência musical não estamos com isso determinando a música como conceito originado no exercício da analogia com outras coisas. Usamos metáforas porque são elas que descrevem mais precisamente o que ouvimos quando ouvimos sons como música, quando os imaginamos como forma.

Temos a habilidade de representar para nós mesmos situações ausentes ou hipotéticas, e assim projetamos o pensamento para além do presente imediato, no domínio do possível e do impossível, do provável e do improvável. Essa é a esfera do pensamento simbólico. 


Para a tradição psicológica, no processo de percepção reunimos informações acerca do mundo e buscamos intencionalmente a operação mental, o constructo, de uma proposição do mundo percebido. 

Para Humberto Maturana, no entanto, esse processo consiste mais numa interação fluente com o meio do que num simples processo de captação de informações pelos órgãos sensoriais. Implica um “fluir estrutural” do sujeito numa contínua adaptação com o fluir estrutural do meio, mas nessa interação só se desencadeiam mudanças estruturais no sujeito nele próprio determinadas. 

Disso é possível inferir que as proposições sobre o mundo percebido podem ser alimentadas sem ser afirmadas; 

a imaginação é a faculdade
que nos permite fazê-lo e isso não significa que temos
uma liberdade imaginativa total. 
Antes de tudo, nossa percepção é conduzida 
numa interação com os objetos do mundo.

Não há fatos metafóricos, uma vez que todas as metáforas são falsas. E se metáfora é o que ocorre quando um termo é transferido do uso que confere seu sentido, para um contexto em que não pode ser aplicado, só há metáforas onde há também usos literais. Todavia, existem contextos em que as metáforas são indispensáveis. É o caso da situação em que as usamos para descrever algo que não pertence ao mundo sensível. E, como advertiu Gilbert Durand (1993), essas “coisas ausentes ou impossíveis de perceber” são os objetos privilegiados da arte, da religião e da metafísica, domínios em que os signos se referem a sentidos e não a coisas sensíveis, uma vez que para a consciência nada é simplesmente apresentado, mas representado.

Na longa história do conceito de metáfora, dos retóricos gregos até o limiar do século XX, algumas proposições se mantiveram constantes: metáfora como figura de discurso ligada à denominação, que representa uma extensão de sentido mediante desvio dos sentidos literais; a semelhança como razão e fundamentação do desvio, que justifica a substituição do sentido quando esta não era necessária; em conseqüência, a metáfora é traduzível, pois não representa qualquer inovação semântica, e por não prover novas informações acerca da realidade é-lhe atribuída uma função emocional. Mas em sua contribuição à teoria da metáfora, Paul Ricoeur rejeita alguns desses pressupostos, fundamentado por teorias semânticas como a de Max Black, uma teoria da interação, oposta às de substituição.

Primeiramente, afirma ele que a metáfora só faz sentido como resultado de dois termos numa enunciação metafórica, sendo assim um fenômeno de predicação e não de denominação. Isso implica uma segunda tese: não haveria nenhum desvio do sentido literal, mas um real funcionamento da operação de predicação. Ou seja, o que está em questão não é a tensão entre dois termos envolvidos numa enunciação, e sim entre duas interpretações opostas:  


“é o conflito entre as duas interpretações 
que sustenta a metáfora”
(1996:62).

Outra observação diz respeito ao “trabalho” da semelhança que, de fato, congrega o que antes estava distante. Não haveria uma simples substituição de um termo por outro, mas uma verdadeira produção de sentido a partir da tensão entre as duas interpretações (a literal e a metafórica). Nesse caso, o sentido ampliado contribui para a polissemia em questão. Essas “metáforas de tensão” não seriam traduzíveis pois criam um sentido próprio (algo novo sobre a realidade), e assim não podem ser tratadas como ornamentos emocionais.

Ricoeur focaliza um problema que, segundo ele, resulta da delimitação que se faz entre uma teoria semântica da metáfora – referente a uma análise da faculdade da metáfora de prover informação indizível, juntamente com sua pretensão de propor uma espécie de juízo da realidade – e uma teoria psicológica da imaginação e do sentimento. 


Ricoeur adverte para o que considera um equívoco pensar que é somente em metáforas sem pretensão à verdade que se tenta deduzir seu suposto significado a partir das imagens e sentimentos por ela provocados, nesse caso tomados erroneamente “por informação genuína e por novo insight da realidade” (1992:145). Para ele, portanto, as teorias da metáfora tradicionalmente só alcançam seu objetivo atribuindo função semântica a traços que parecem ser apenas psicológicos (imaginação e sentimento), mas que passam a ter função constitutiva.

Essas teorias contradizem a considerada dicotomia husserliana entre sentido, como conteúdo objetivo, e representação, como sua realização mental (imagem e sentimento). Contudo, Ricoeur pergunta se o funcionamento do sentido metafórico não colocaria, de fato, em dúvida essa dicotomia. Que avaliação fazer acerca da função semântica da imaginação (e, conseqüentemente, do sentimento)?



Não há fatos metafóricos,
entretanto quando usamos metáforas 
estamos interessados em descrever a realidade. 

Quando usamos metáforas para descrever coisas do mundo real – da experiência imediata –, estamos empregando atalhos opcionais (e dispensáveis) para verdades complexas. Todavia, a “metáfora indispensável”, aquela que empregamos para descrever algo que não pertence ao mundo material, visa à descrição de um mundo “como se nos parece”, isto é, da perspectiva da imaginação. Essa metáfora indispensável tem origem, portanto, menos em nosso interesse cognitivo, que em nosso envolvimento imaginativo com o mundo.

A imaginação, portanto, não somente esquematiza a assimilação predicativa entre termos – pelo seu insight sintético de similaridades – ou expressa sentidos a partir de imagens provocadas e controladas pelo processo cognitivo. Ao invés, contribui concretamente com a suspensão de referências usuais e com a projeção de novas possibilidades de experimentar o mundo. Se como Sartre salientava, imaginar é dirigir-se àquilo que não existe, de algum modo, imaginar é, sobretudo, suspender, fazer-se ausente. E a imagem como ausência é, como Ricoeur adverte, o lado negativo da imagem como ficção. 


É ao aspecto fictício da imagem 
que está ligada a força dos sistemas simbólicos 
para “refazer” a realidade. 

  Entretanto, só podemos reconhecer essa função produtiva e projetiva da ficção se a distinguirmos do papel reprodutivo da “imagem mental” que simplesmente nos fornece uma reapresentação de coisas já percebidas.

Os sentimentos , por sua vez, acompanham e completam a imaginação na sua função de esquematização da nova congruência predicativa. Possuem um tipo muito complexo de intencionalidade: não seriam exatamente estados interiores mas pensamentos esquematizados interiorizados. O sentimento não é contrário ao pensamento, é o pensamento que é “legitimado como nosso”. E, além disso, os sentimentos seguem a imaginação como espécies de relações icônicas. 


O “estado afetivo” provocado pela música 
não é senão o modo pelo qual o objeto musical
nos afeta como ícone.
Esse “estado afetivo” é a música 
e nada além dela: o ícone como é sentido.

As qualidades musicais não são inferidas de uma experiência musical nem mesmo invocadas na explicação dessa experiência. São elas percebidas por seres racionais, através da ativação da imaginação, que implica a transferência de conceitos de outra ordem para o “campo de força” musical. Scruton acrescenta que as qualidades musicais são por isso, “como todo objeto de percepção imaginativa, objetos da vontade” (1997:94). Podemos então supor a existência de um conteúdo não-conceitual da experiência, uma vez que é possível que algo se ofereça à percepção sem, contudo, poder ser conceitualizado por quem o percebe. Atribuímos, assim, estatuto de conteúdo às coisas da ordem não-conceitual.

Durand, ao considerar a inadequação essencial das metades do símbolo – a metade dizível em sua concreção (o signo, propriamente), porém infinita, e a metade indizível (seu significado), que remete a um mundo de representações indiretas e figurativas sempre inadequadas –, lembra que “é através do poder da repetição que o símbolo preenche indefinidamente a sua inadequação fundamental. Mas esta repetição não é tautológica: é aperfeiçoante através da acumulação de aproximações” (1993:13).

Essa redundância significante e aperfeiçoante própria de um mito, enquanto repetição de relações lógicas e lingüísticas, é também a condição de apreensão formal da música. É por meio do jogo das redundâncias que a relação dialógica entre objeto musical e ouvinte é insistentemente realimentada e a inadequação inerente às representações formadas é contínua e ilimitadamente corrigida. Entretanto, a forma a que chamamos música difere, consideravelmente, do conjunto simbólico mítico por ser, ao contrário deste, essencialmente vinculada à materialidade que a constitui, ao aspecto sensorial – o componente intuitivo.

É necessário, no entanto, afastar o equívoco de pensar a música como sendo constituída exclusivamente do potencial semântico-icônico dos sons – do modo como a linguagem seria constituída exclusivamente a partir de seu potencial de significação arbitrária. Mundos e sociedades humanos são criados por meio de um mesmo universo sonoro e é por isso que emoção e cognição são diferentes apenas como aspectos interrelacionados de um universo de consciência humana. Tais aspectos podem ser fixados pelos diferentes potenciais de significação do som, mas estarão sempre envolvidos entre si. 


Há, portanto, nos sons diferentes potenciais
como bases para o sentido.

Todas as sociedades humanas usam sons para se comunicar, e os empregam em diferentes graus e combinações de potenciais de significação de sons enquanto fenômeno material. A música não teria que ser “puramente icônica” e a linguagem verbal “puramente arbitrária”.


A metáfora é uma invenção livre, 
um evento de discurso que contém o poder simbólico. 

Tem, no entanto, mais consistência que o símbolo quando revela com clareza a semântica de semelhanças. Contudo, como declarou Ricoeur em seu ensaio intitulado “Metáfora e símbolo”, “as metáforas são precisamente a superfície lingüística dos símbolos” (1996:81), e acrescenta ainda que o poder da metáfora de relacionar as dimensões semântica (lingüística) e pré-semântica da experiência humana é devedor da bidimensionalidade do símbolo. 

A metáfora ocorre no universo da linguagem, 
mas o símbolo oscila no limite entre logos e vida.

Assim pretendo entender o exercício metafórico na experiência musical como tentativa subliminar de acessar um potencial simbólico da música. Kuperman observou, em sua análise do mundo imaginalis, que com o advento da Modernidade problematiza-se a representação dos fenômenos “indeterminados” dada a sua singularidade: “estão além dos limites perceptivos-cognitivos dados pelas categorias mentais ou conceituais racionalistas correntes, (...) a verdade do extraordinário exclui-se de provas lógicas” (2000:100). É, porém, o imaginário, como uma dimensão outra de realidade que se afasta da razão utilitária, a única via para a indeterminação do fictício que há no objeto musical. E na experiência da música talvez nos dirijamos a uma ordem interior, o inverso, portanto, da operação do paradigma moderno de comunicação.

Imaginação e sentimento não são extrínsecos ao surgimento do sentido metafórico. Não são substitutos para certa carência de conteúdo informativo nas expressões metafóricas, mas completam sua intenção cognitiva total. No entanto, uma teoria da imaginação e do sentimento está ainda em desenvolvimento. 


Se entender que o imaginário musical está, de um lado, livre do mundo e de sua dimensão determinante, e, de outro, continua vinculado ao logos, como expressão de novos modos de ser no mundo – talvez na esfera que Baudelaire e os simbolistas pleitearam para a poesia –, devo então propor um aprofundamento do que seria a passagem da metáfora ao símbolo na experiência musical.

Marcos Nogueira  
é doutorando em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, 
mestre em Musicologia pela Uni-Rio, 
graduado em Composição Musical pela Escola de Música/UFRJ 
e professor do Departamento de Composição 
da Escola de Música/UFRJ.

Fonte:
Semiosfera
http://www.semiosfera.eco.ufrj.br/anteriores/semiosfera45/conteudo_imag_mnogueira.htm
Sejam feliozes todos os seres  Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.

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