quarta-feira, 31 de julho de 2013

A IMAGINAÇÃO CRIADORA: JUNG E BACHELARD - Zé Américo: Imaginação Criadora II




A IMAGINAÇÃO CRIADORA:
JUNG E BACHELARD
Maria Paula M. S. Bueno Perrone
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Introdução
Gaston Bachelard nasceu na pequena cidade francesa da região da Champagne,
Bar-sur-Aube, em 1884, nove anos depois de Jung e morreu um ano depois, o que os coloca como
pensadores europeus contemporâneos, praticamente da mesma geração. Os dois foram
fortemente influenciados pelo romantismo, que podemos reconhecer, por exemplo, no âmbito
da discussão da morte, ou das mortes, vista de modo muito semelhante no pensamento dos
dois autores, ou seja, apontando para a possibilidade de renascimentos em vida, um incessante
recomeçar de um novo ponto de partida. Bachelard é reconhecido como um fenomenólogo,
modo pelo qual Jung gostava de se definir não no sentido de um enquadre filosófico mas no
de que procurou privilegiar a fenomenologia da psique como seu objeto de atenção, a base empírica na qual apoiou suas descobertas: para ele importava a dinâmica, o fenômeno psíquico. Não é totalmente aleatório que a fenomenologia de algum modo seja comum a eles:

o pensamento tanto de um quanto do outro coloca-se em confronto direto com a perspectiva cartesiana presente em toda a cultura ocidentala partir da modernidade, caracterizada pela arrogante crença na infalibilidade e universalidade da razão e pelo consequente empobrecimento do ser humano.

Jung começou a escrever seus primeiros trabalhos ainda jovem: em 1902, com 27 anos
e apenas dois de trabalho como psiquiatra no hospital Burghölzli, de Zurique, como
integrante da equipe de Eugen Bleuler, conclui e publica sua dissertação médica. Em 1905, com 30 anos, ascendendo na carreira clínica, passa a dar cursos na universidade de Zurique como livre-docente. Jung precedeu Bachelard talvez menos por ser de uma geração anterior mas pela antecedência de sua produção teórica. Bachelard tinha sido funcionário administrativo dos correios enquanto estudava matemática visando a ser engenheiro; a primeira guerra mundial o fez mudar de direção: tornou-se professor de química e física no magistério secundário em sua cidade natal,passando de cientista para estudioso de filosofia, área em que se licencia só em 1920, aos 36anos, e na qual apresenta seu doutorado 5 anos mais tarde. A partir de 1930 torna-se professor
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Associação Junguiana do Brasil – AJB, Instituto de Psicologia da USP - IPUSP
de filosofia na universidade de Dijon e em 1940 na Sorbonne, onde permaneceu. Publica seus
primeiros trabalhos a partir de 1928, com 44anos, no campo da física e da teoria do conhecimento.

Bachelard: O interesse pela imaginação Bachelard preocupa-se, inicialmente, com a construção de
um novo espírito científico,título de um livro seu publicado em 1934, em que se volta para a contínua superação dos métodos. Em 1935 e 36, ao lado de seu interesse pelo espírito científico, volta-se para a temática do tempo ; escreve duas importantes obras sobre a descontinuidade temporal,A intuição do instante e A dialética da duração, em que propõe uma noção de duração não bergsoniana. Num de seus trabalhos mais importantes, A formação do espírito científico(1937), voltado para a objetividade científica, em que faz uma síntese de sua epistemologia não-cartesiana, ciência e poesia aparecem como dois mundos distintos que deveriam ser mantidos separados em benefício da objetividade científica. Nessa obra trata também da “alquimia poética”, que encara ainda como um obstáculo à ciência.

Esse Bachelard “diurno” voltado para a consciência da racionalidade e orientado para a filosofia da ciência, preocupou-se em clarificar os conceitos das grandes conquistas científicas do século XX (como da teoria da relatividade generalizada, da física quântica, das geometrias não-euclidianas) e delas extrair conseqüências filosóficas.

De 1937 em diante, cada vez mais atraído pelo imaginário poético, abre-se para o estudo da
imaginação, que passa a valorizar como uma forma de apreensão e recriação da realidade. Escreve muitos trabalhos relativos a essa questão, que amplia para o sonho, o devaneio, sua relação com os elementos. E assim trilha essas duas sendas, paralelamente, até à fase final de sua obra.

No entanto, através da noção de imaginação criadora, elas se encontram. A imaginação e a
vontade são para ele as duas principais funções psíquicas. Enquanto a tradição filosófica
racionalista sempre priorizou a imaginação reprodutora, em que a imagem seria um resíduo
do objeto percebido retido na memória, portanto apenas uma reprodução da realidade,
constituído de idéias feitas e acabadas que justificam o mundo tal como ele parece ser, um
mundo de ilusões, Bachelard aprofundou suas reflexões acerca da imaginação no sentido
contrário: opôs-se aos preconceitos e à prevenção; trabalhou com a noção de
imaginação criadora, que traz as sementes das transformações.
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É essencialmente a partir da distinção entre esses dois tipos de imaginação que Bachelard baseia sua crítica à psicanálise, teoria que o influenciou a partir de 1940 e com a qual manteve uma relação tumultuada. Sua principal discordância em relação à teoria freudiana é sobretudo no campo da apreci
ação da obra de arte. Para ele a imagem na perspectiva da psicanálise não tem essencialidade
, precisa buscar seu significado fora dela, é simulacro sem vida autônoma que só se traduz
através do conceito. Além disso, está presa a uma temporalidade e a uma causalidade. Em suas palavras:

Dizer que a imagem poética escapa à causalidade é sem dúvida uma declaração que tem gravidade. Mas as causas alegadas pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar
bem o caráter realmente inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma estranha ao processo de sua criação. ... Pode-se, certamente, nas pesquisas psicológicas, dar uma atenção aos métodos psicanalíticos para determinar a personalidade de um poeta, pode-se encontrar assim uma medida para as pressões – sobretudo para a opressão – a que um poeta teve que se submeter no decorrer de sua vida, mas o ato poético, a imagem súbita, a chama do ser na imaginação escapam a tais indagações. Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética é preciso voltar a uma fenomenologia da imaginação. (p.184)

O homem por ele concebido é o homem demiurgo, instaurador de novas realidades,
cuja fonte é a imaginação criadora , a essência do espírito humano, que de modo dinâmico o
torna capaz de produzir tanto ciência quanto arte, ou seja, o pensamento e o sonho. Em
Bachelard, a imaginação criadora une os dois mundos. Nessas diferentes faces da capacidade
de criar a experiência psicológica está presente sob a direção do imaginário. Concebe a
imaginação como fonte, como o que impulsiona o pensamento e o faz dinâmico, criando o
novo como um grande susto, numa instantaneidade.

Lê-se na introdução desse livro dedicado ao estudo do deva neio poético que o fenomenólogo da imaginação deve tentar reviver os impulsos da imaginação, que se dá num jato, e acentuar as virtudes de origem das imagens poéticas, em benefício da produtividade psíquica que é a da imaginação.

 “É preciso nunca perder de vista o mais profundo do psiquismo, onde germinam as imagens.”

Bachelard encontrou em Jung a noção de arquétipo e de  inconsciente coletivo para embasar suas concepções acerca do psiquismo e da origem da imaginação criadora. Para Bachelard a imagem é o novo, não deriva de outra instância.
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Bachelard
BACHELARD: 
o filósofo e o poeta

O Trabalho solitário do filósofo e do poeta

A obra de Gaston Bachelard contém duas facetas: a poesia e a ciência. Seria pois mutilá-la se separássemos o sonho do rigor racional. A diversidade do seu pensamento exprime a plenitude da vida de Bachelard: ele é simultaneamente aquele que, face às experiências «despedaçadas e despedaçantes» reivindica a interioridade da existência na sua mesa de trabalho, e aquele que denuncia «o sonho enfadonho do que se imobiliza no seu canto». Para saber sonhar é preciso estar-se profundamente apegado ao real, não somente aos elementos da matéria, mas às palavras e à sua poesia, não somente à casa natal, «natal e sonhada» de Bar-sur-Aube, mas às ruas de Paris e às lutas humanas. A obra de Bachelard está enraizada no concreto. Sem dúvida, estas duas vertentes da sua obra, o sonho e o racional da ciência, são em certo sentido antitéticas. Mas Bachelard conciliou essas duas exigências, através de uma atitude: a recusa de qualquer dogmatismo.

O Epistemólogo polemista

Gaston Bachelard coloca a coragem intelectual no centro da sua reflexão, e isto desde as suas primeiras obras sobre o trabalho científico: a sua tese sobre O Conhecimento Aproximado, depois O Novo Espírito Científico, publicado em 1934. Nelas mostra a razão aberta ao futuro, sempre capaz, na conquista da liberdade, de pôr em causa os princípios sobre os quais se apoiara tranquilamente até esse momento. Bachelard sublinha que, no progresso do pensamento científico, os adquiridos se formam de modo descontínuo, por ruptura. Baseia-se como prova nas crises do início do século xx: a crise da relatividade, do determinismo, da teoria dos conjuntos.

O seu contributo fundamental foi ter analisado os «obstáculos» epistemológicos que existem no próprio interior do pensamento, nas profundezas do inconsciente, muitas vezes culturais, do psiquismo. Desse ponto de vista, A Formação do Espírito Científico e A Psicanálise do Fogo, que datam do mesmo ano (1938) são as mais instrutivas. A sua obra é uma ajuda preciosa para desmontar o mecanicismo, a ciência espectáculo, a análise fragmentada, a redução ao simplismo, a noção estática da matéria, à qual correspondem os conceitos deturpados. Bachelard convoca a «filosofia do não» para marcar o seu contributo para uma dialéctica do conhecimento que se opõe a uma concepção deturpada da razão. Designa o pensamento como um «sobreracionalismo». Alguns historiadores e filósofos das ciências criticam-no hoje em dia, pela audácia das suas formulações. Mas isso é esquecer que o pensamento de Bachelard não tem nada de académico e que ele é voluntariamente polémico, na sua vontade pedagógica de denunciar os bloqueios, os «erros e os horrores» da razão.

A Exploração da imaginação criadora

Valorizando a liberdade criadora, Bachelard reabilita a imaginação. Próximo da fenomenologia ou da psicanálise, rejeita uma concepção «coisista» da imagem. Segundo ele, a imaginação está aberta, «toda para o futuro». Através da psicanálise das imagens, como da inteligibilidade da ciência, procura penetrar na riqueza inesgotável do real, cuja profundidade é vivida antes de ser pensada. A imaginação é a própria força do psiquismo, mas é preciso saber aprender a sonhar, pois o devaneio poético, que Bachelard opõe ao devaneio da sonolência, pressupõe uma disciplina. Ele é «desenvolvimento do ser e tomada de consciência». Contrariamente a Bergson, defende a força da linguagem, que cria o ser. Se o imaginário pode ser criador de realidade, se nos «abre uma via nova», não é porque a imaginação exprime, antes de mais, a afirmação do ser humano na natureza? «A descoberta do outro passa pelo Cosmos», escreve Bachelard. A riqueza e a diversidade concreta, «exuberante», da obra de Bachelard abre-nos para a densidade do mundo.

• OBRAS PRINCIPAIS

O Novo espírito científico (1934); A Formação do espírito científico (1938); A Psicanálise do fogo (1938); A Água e os sonhos (1942); A Terra e as fantasias da vontade (1948); A Poética do espaço (1957). Ed. Portuguesas: O materalismo racional, Lisboa, Ed. 70, 1953; A Epistemologia, Ed. 70, 1981; A Filosofia do Não: Filosofia do novo espírito científico. Presença, 1984; (nota d'O Canto: A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 1998).

(Dicionário Prático de Filosofia, verbete Bachelard)


Fontes:
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