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Imaginação Material Segundo Gaston Bachelard
por
Reinério Luiz Moreira Simões
por
Reinério Luiz Moreira Simões
RESUMO
O tema central da nossa dissertação é o conceito de imaginação material, proposto por Gaston Bachelard, filósofo da descoberta científica e da criação artística. Escolhemos a obra de Bachelard por sua novidade e por suas críticas que ultrapassam a tradição filosófica, o fundamento ocularista do conhecimento e a imaginação formal, prisioneira da abstração e do formalismo. Nossa intenção é demonstrar através do conceito de imaginação material, a singular contribuição de Gaston Bachelard para os estudos acerca do imaginário e para a estética filosófica contemporânea.
RÉSUMÉ
Le thème principal de nôtre dissertation c’est le concept de imagination matérielle, proposé par Gaston Bachelard, philosophe de la découverte scientifique e de la création artistique. Nous avons choisi l’oeuvre de Bachelard pour sa nouveauté et pour sa critiques que dépassent la tradition philosophique, le fondement oculairiste du connaissance et l’imagination formelle, captive de l’abstraction e du formalisme. Nôtre intention c’est démontrer la singulière contribution de Gaston Bachelard pour les études au sujet d’imaginaire et pour l’esthétique philosophique de nôtre époque.
No mais profundo do seu ser, a psique é universo.
Carl Gustav Jung
Carl Gustav Jung
L’imagination invente de l’esprit nouveau.
Gaston Bachelard
Gaston Bachelard
A Imaginação Material segundo Gaston Bachelard
Introdução
A tradição filosófica tem configurado dois tipos de imaginação: uma, a faculdade mental de evocar, sob a forma de imagens, objetos conhecidos por uma sensação ou experiência anteriores; outra, a faculdade pela qual a mente cria e recria, ainda que a partir de formas sensíveis e concretas, imagens novas. No primeiro caso, temos a imaginação reprodutora, meramente evocativa, a depender, substancialmente, das nossas sensações e da memória. No segundo caso, temos a imaginação produtora, emancipada do sensível, essencialmente criadora, simbolizante, poetificante, inventora de novas imagens ou sínteses originais de imagens.
Pretendemos demonstrar em nosso trabalho, a filiação de Bachelard à concepção de imaginação produtora e sua contribuição singular com o conceito de Imaginação Material, ao defender a existência de uma objetividade material e dinâmica do nosso conhecimento poético do mundo.
Demonstraremos, nesse ponto, a ruptura bachelardiana com a “tradição ocularista” da filosofia ocidental, que privilegia a visão como o sentido co-extensivo ao próprio pensar. O vocabulário básico da filosofia herdou este predomínio de metáforas visuais aplicadas ao ato do conhecimento: evidência, perspectiva, ponto-de-vista, enfoque, teoria, visão-de-mundo, visada, etc.
O pressuposto ocularista e intelectualista faz do homem mero espectador e do mundo mero espetáculo, idealizando a matéria para reduzi-la às figurações lógico-matemáticas que se tornam objeto de contemplação. Eis a imaginação formal, típica das matemáticas.
A imaginação material, ao contrário, tributária principalmente da mão, é o embate das forças humanas e as forças naturais, do trabalho operante e criativo do homem frente às resistências da matéria.
Defenderemos, conclusivamente, a tese central de nosso trabalho, a saber: a poética de Bachelard rompe com a tradição filosófica ao tratar da imaginação ao estabelecer um conceito – a imaginação material – e um sistema de análise poética – a poética dos quatro elementos – que propiciam categorias estéticas inteiramente novas para nossa compreensão da arte e da ontogênese da arte.
1º Capítulo
A Filosofia Ontogenética de Gaston Bachelard
A obra de Gaston Bachelard ergue uma ponte entre duas culturas muitas vezes apartadas: a científica e a humanista. Em nossa época de transformações contínuas, a filosofia bachelardiana destaca-se pelo caráter proteiforme da descoberta científica e da criação artística.A ciência é constituída pelo trabalho coletivo dos operários da prova. A poesia é nosso modo de habitar o mundo através da celebração e da felicidade. Bachelard cimentou estas duas vias com igual simetria e força: a via apenas na aparência mais sábia da epistemologia, cujo universo é explorado e legitimado pela reflexão racional; e a via do devaneio poético, meditando através do material imaginário sobre a empresa sempre surpreendente da linguagem humana.
O saber racional e a criação poética não são excludentes. Embora opostos em determinadas instâncias, vão se encontrar no momento da imaginação criadora. A obra de Bachelard ilustra ela própria este princípio dinâmico: uma unidade não harmônica de um conflito. A melhor expressão dessa unidade é a imagem recolhida por Jean Lescure num dos últimos cursos proferidos por Bachelard. Chama-se o ponto da vela:
“Esse ponto que os dicionários descrevem como aquele
onde se aplica a resultante de todas as ações do vento
sobre as velas ele o construía na interseção desta força
resultante com a força de resistência que o mar opõe ao
avanço do navio.”
onde se aplica a resultante de todas as ações do vento
sobre as velas ele o construía na interseção desta força
resultante com a força de resistência que o mar opõe ao
avanço do navio.”
(Jean Lescure, 1963)
Este ponto tão variável como variam as forças e as resistências, é a obra humana em constante composição. Não existe propriamente repouso, se até o repouso é uma “vibração feliz” (Bachelard, 1936, p. 6). A filosofia bachelardiana não é uma filosofia do ser, uma ontologia, mas uma filosofia da obra, do fazer-ser, da ontogênese como criação absoluta.
Na ciência e na poesia procura Bachelard um elo primordial entre o homem e o mundo, seja o homem diurno e suas elaboradas construções racionais, seja o homem noturno e a função do irreal da imaginação criadora. Estas duas vertentes da filosofia bachelardiana têm ocupado os críticos, que se perguntam da dualidade inconciliável ou da unidade funcional e dinâmica de sua obra.
Há os que apontam o dualismo do dia e da noite[1], metáforas por si só excludentes e antagônicas. O lado solar seria incompatível com o lado lunar, contrapondo, desse modo, os mundos da ciência e do onirismo. Se recorrêssemos ao próprio Bachelard, que nunca deixou de aprofundar a oposição dos dois universos, o argumento da dualidade seria irrefutável. Não haveria acordo possível entre dois mundos que se excluem e até mesmo rechaçam-se.
Leia-se um trecho de Le Matérialisme Rationnel, onde se estabelece a dicotomia de um duplo materialismo, que se bifurca na imagem onírica e no conceito racional: "Os problemas do materialismo colocar-se-ão tanto mais nitidamente se nós realizarmos mais francamente uma separação total entre a vida racional e a vida onírica, aceitando uma dupla vida, a do homem noturno e a do homem diurno, a dupla base de uma antropologia completa. Tudo depende do problema visado, problema de estética da linguagem ou problema da racionalização da experiência. Mas, mesmo que estejam empenhados assim tão nitidamente, os valores oníricos e os valores intelectuais continuam em conflito. Eles afirmam-se muitas vezes, uns e outros, neste conflito"[2].
Em outras obras, afirma-se que os eixos da poesia e da ciência são inversos. A filosofia, diz Bachelard em A Psicanálise do Fogo, pode tão somente tornar a poesia e a ciência complementares, uní-las como dois contrários perfeitos. É preciso opor ao espírito poético expansivo o espírito científico taciturno, para o qual a antipatia prévia representa uma proteção saudável.
No primeiro capítulo de A Poética do Devaneio encontramos uma confissão de um fazedor de livros e ao mesmo tempo a delimitação de um programa de trabalho. Se tivesse de resumir sua própria carreira irregular e laboriosa, marcada por vários livros, o melhor seria colocá-la sob os signos contraditórios do conceito e da imagem. Entre o conceito e a imagem, não há nenhuma síntese ou filiação possível. Quem se dedica com todo o seu espírito ao conceito, com toda a sua alma à imagem, sabe que os conceitos e as imagens se desenvolvem sobre duas linhas divergentes da vida espiritual. É até mesmo recomendável, aconselha Bachelard, excitar uma rivalidade entre a atividade conceptual e a atividade de imaginação. Parece evidente, portanto, a incompatibilidade entre as reflexões racionais da ciência e o devaneio da imaginação poética.
Entretanto, a tal ponto os dois mundos são opostos que se correspondem negativamente, um torna-se o inverso polimorfo do outro, numa simetria interna de inversão. Parece haver uma divergência de vetores, embora as forças do trabalho humano e as resistências da matéria sejam a batalha comum do cientista e do poeta.
Esta perfeita simetria tem despertado a atenção de alguns, como o quadro traçado por Paul Ginestier[3].
A "Filosofia da Descoberta Científica" possui princípios ativos (a razão e a dialética), princípios aplicados (racionalismo, métodos, pedagogia científica) e um "corpo de doutrina" (o surracionalismo, o conhecimento aproximado, o ideal epistemológico).
A "Filosofia da Criação Artística" apresenta igualmente seus princípios ativos (o devaneio, os elementos materiais, os complexos oníricos), os princípios aplicados (a imaginação, o ser, a metafísica instantânea) e uma doutrina (o surrealismo, a crítica, o ideal literário).
O que se nota nesta abordagem é a perfeita simetria de princípios e doutrinas: o Novo Espírito Científico desenvolve a lógica da descoberta, os operários da cidadela da ciência são os trabalhadores – sempre coletivos – da prova e da demonstração, a razão objetiva convive com a ruptura epistemológica, o homem diurno produz livros de idéias; o Novo Espírito Literário promove a lógica da invenção, os operários da cidadela poética são os trabalhadores – quase sempre e preferencialmente solitários – da mostração e da celebração, a imaginação material habita o coração dos elementos, o homem noturno produz livros de imagens.
Ora, tal simetria é exagerada, forçada, traindo o projeto "polifilosófico" do próprio Bachelard, que afirmava de modo anti-cartesiano o intento de desenvolver uma filosofia que não tivesse ponto de partida…
Mas se abandonarmos as teses do dualismo absoluto e da simetria perfeita, o que resta? Uma unidade temática e uma comunicação funcional e variável entre mundos opostos. A obra, sem dúvida, é bipartida em seus temas e propósitos. Pode-se, porém, encontrar uma “unidade de comportamento”[4] e pontos de convergência, como a função filosófica comum do conceito de trabalho[5], aplicável seja ao trabalhador intelectual, seja ao trabalho das mãos que a imaginação poética tonaliza.
Autores particularmente autorizados, como Dagognet e Canguilhem, concordam em apontar os elos dinâmicos que unificam a filosofia polifônica de Gaston Bachelard. Primeiro, há uma concordância em todas as obras de forma negativa: a luta contra o mesmo obstáculo da intuição, da vista e da forma. A prova desta unidade combativa pode ser encontrada na possibilidade de algumas páginas da obra epistemológica poderem ser transplantadas para o estudo dos elementos e inversamente.
Para exemplificar, surge no pólo epistemológico a necessidade de desembaraçar a filosofia do “privilégio das determinações visuais”, a exemplo da fenomenologia clássica que se compraz em exprimir-se em termos de visão[6]. O eco dessa observação numa obra sobre os elementos: “Os olhos em paz vêem as coisas, recortam-nas sobre o fundo de universo, e a filosofia – ofício dos olhos – ganha consciência do espetáculo. O filósofo põe um não-eu face ao eu. A resistência do mundo não passa de uma metáfora, não é mais do que uma “obscuridade”, uma irracionalidade”[7].
O estilo iconoclasta de Bachelard[8] abre duas frentes de combate: na epistemologia, eliminar os sucedâneos da ocularidade, ou seja, a forma e a fórmula, a ociosidade do espetáculo, o afastamento da matéria e das técnicas, a substituição da fenomenologia por uma “fenomenotécnica”; na poética, vencer e superar a reprodução, as aparências e as superfícies, acentuando as ambivalências, os conflitos e os dinamismos. Daí o verdadeiro domínio para estudar a imaginação não ser a pintura, mas a obra literária, ou mais especificamente a palavra e a frase poética, onde se percebe como a forma é pouco importante e a matéria é fundamental.
O combate sem tréguas ao predomínio da ocularidade, tema que ainda será melhor desenvolvido no terceiro capítulo de nossa investigação, ganha força quando Bachelard joga com os conceitos de dialética e de trabalho. Em toda a sua obra, o trabalho constitui um valor primordial. É necessário freqüentar a escola da ciência, sempre nova, em vez de se limitar a escrutar os seus próprios pensamentos e repetir sempre a mesma lição. A filosofia do espírito trabalhador e da matéria trabalhada deve abandonar as origens absolutas, que são falsos pontos de partida. Este constante trabalho de recomeço, de reconstituição, que a ciência atual provoca, eqüivale ao movimento incessante que a imaginação dinâmica da poesia sempre nova exige. No onirismo ativo, a imagem ultrapassa as formas e liberta uma energia viva, empenha-se numa dialética de trabalho, dinamismo e esperança. Nestas condições, poesia e ciência merecem o epíteto de materializantes. A imaginação material, para além das seduções da imaginação das formas, pensa a matéria, sonha a matéria, vive na matéria, ou ainda – o que dá no mesmo – materializa o imaginário. Ciência e poesia, portanto, ambas essencialmente ontogenéticas, superam e renovam o mundo, emanam de uma vigorosa filosofia da energia.
Segundo ponto de convergência em todas as obras de Bachelard é o “racionalismo aberto”, o abandono de uma razão explicativa, em favor de uma razão sintética, suscetível de conversões e mutações.
A ciência contemporânea compele o espírito a modificar os seus hábitos, a renunciar à sua lógica, que é, ela mesma, um mau hábito. Numa perspectiva plural e marcadamente anti-cartesiana, Bachelard mostra o perigo e a inutilidade de um discurso sobre o método científico, que será sempre um discurso de circunstância, incapaz de descrever uma constituição definitiva do espírito humano.
Precisamente por isso a pedagogia científica tem de ser a pedagogia da ruptura, porque a física e a química possuem hoje o poder de refazer os fundamentos, de retomar os axiomas a fim de os enriquecer e complementar. A razão do novo espírito científico é solidária de uma experiência construtiva e não pode hesitar perante a dialética da descontinuidade, a exemplo da ambivalência das teorias da onda e do corpúsculo.
Há uma crescente organização dos conceitos e das experiências, uma sistematização cada vez mais alargada, que produz objetos mais ricos de determinação. Extensão e compreensão crescem em conjunto. O progresso das ciências e a correspondente “filosofia do não” operam uma síntese que identifica no antigo um caso particular e privilegiado da nova lei. Ruptura, ultrapassagem, negação e reordenação são vocábulos que marcam a supremacia da relação sobre o ser, o rompimento da razão com o seu passado, o rejuvenescimento da razão no intercâmbio com uma ciência sempre mais completa e complexa. Em suma, o conceito bachelardiano para este renovado racionalismo é surracionalismo.
O mesmo espírito preside o estudo sobre os elementos e o devaneio poético, também condenando o racionalismo redutor e unitário, que reconduz o novo para o antigo. A razão não pode reduzir as imagens a situações familiares, a incidentes pessoais (como faz a psicanálise), a ocasiões comuns. Ao contrário, deve elevar-se aos excessos da expressão exuberante, entrar na síntese imprevisível da criação poética, habitar a ruptura das significações, a abertura da linguagem humana que o poeta, trabalhador do verbo, opera de modo audacioso. Ruptura, transcendência e novidade também são os termos do “novo espírito literário”. E aqui, o conceito é por demais conhecido em nosso século: o surrealismo.
Terceiro ponto de convergência é a filosofia comum da energia que Bachelard denomina ritmanálise[9].
Em La Dialétique de la Durée, poesia e ciência culminam ambas no vibratório – da onda ou do ritmo – ao contrário do substancialismo inerte. Ser poeta é multiplicar a dialética temporal, é recusar a continuidade tranqüila da sensação e da dedução, é acolher o repouso vibrado. A física da radiação promove a mesma adesão às oscilações intermitentes. A matéria não subsiste sempre constante e inerte, numa duração uniforme. Ela não só é sensível aos ritmos, ela existe, com toda a força do termo, no plano do ritmo. A própria vida é sustentada pela regularidade dos grandes ritmos naturais, como a respiração.
Em resumo, a crítica ao predomínio do sentido visual, a defesa de uma razão aberta à dialética da ruptura e da descontinuidade, a presença do rítmo como elemento universal, esses três motivos permeiam toda a obra de Bachelard.
A nosso entendimento, os dois mundos bachelardianos não são apenas paralelos, mas refletem-se um no outro. Conforme o exposto, concordamos com a tese da unidade móvel e dinâmica defendida por Dagognet e Canguilhem. Para corroborar este ponto de vista, observemos mais perto a corrente subterrânea que une os pólos da epistemologia e da poética.
A vertente científica do pensamento de Bachelard é constituída por uma análise eminentemente epistemológica. Trata-se de uma Filosofia das Ciências, ou mais precisamente, de uma filosofia da descoberta científica. Seu principal intento é apreender a prática do pensamento científico contemporâneo, em sua dialética de fluxo e refluxo, para apontar a novidade essencial que lhe é própria.
Se a ciência não é unitária, Bachelard defende uma filosofia disseminada e plural, a única capaz de dar conta da prodigiosa complexidade do pensamento científico. Assim, tendo por objeto um conhecimento in fieri, a epistemologia bachelardiana se interessa pela lógica da descoberta científica, caracterizada pela polêmica da verdade contra o erro e pelo esforço repetido de submeter as verdades aproximadas a uma retificação permanente.
Bachelard expõe sua epistemologia em mais de uma dezena de obras. É sobretudo na obra Filosofia do Não que ele anuncia a necessidade de se fundar uma nova filosofia das ciências, mais adequada ao pensamento científico em contínua evolução. Não podem mais os cientistas utilizar uma filosofia finalista e fechada, cabendo a Bachelard a defesa veemente de uma razão aberta e dialogal. Como nosso estudo enfatiza a vertente poética, abordaremos, de modo esquemático, alguns tópicos da epistemologia bachelardiana.
O racionalismo de Bachelard pode ser aproximado ao de Brunschvicg: rejeita simultaneamente o empirismo e o idealismo puro. O mundo construído pela ciência não é nossa “representação” nem nossa “convenção”, mas nossa verificação. Os princípios de nossa razão não são, como queria Kant, categorias intangíveis, mas são susceptíveis de evoluir através do diálogo permanente entre a razão e a experiência. Os princípios da razão são relativos ao momento histórico em que se exercem. Por esse motivo, o Discurso sobre o Método, de Descartes, não passa de um “discurso de circunstâncias”, ultrapassado ou absorvido pelo prodigioso progresso das ciências no século XX, que delinearam um novo espírito científico: a geometria não-euclidiana, a mecânica não-newtoniana e a epistemologia não-cartesiana.
A filosofia bachelardiana é um racionalismo rigoroso, sempre insistindo sobre a plasticidade evolutiva dos princípios da razão. Se a ciência modifica continuamente nossos princípios, superar um instrumento intelectual não é superar a própria razão. Muito ao contrário, é uma vitória da razão em sua flexibilidade e sua capacidade de invenção. Temos que ir além de um racionalismo de conceitos fechados e acabados, para alcançarmos um supra-racionalismo, mais adequado às exigências da razão ativa, operante, viva e conquistadora.
Dentre as qualidades distintivas do pensamento científico, listamos as seguintes: [10]
a) O conhecimento científico rompe e até mesmo se opõe ao conhecimento comum, pois a técnica nos dias atuais procura determinar aspectos do real que não são dados imediatos, mas resultados construídos pelo cientista. Há uma descontinuidade absoluta entre o realismo sensível e o racionalismo cientifico do pesquisador. A hipótese científica apresenta uma evolução dialética, ou seja, não linear, com rupturas. Em conseqüência, há um corte inevitável entre o saber comum e o saber científico.
b) O conhecimento científico é superação de obstáculos epistemológicos, que estão incrustados tanto no senso comum quanto na experiência científica. Se a opinião pensa mal, ao ser um conhecimento não questionado, há obstáculos que abrangem a história da ciência e da educação.
c) O conhecimento científico é retificação de erros. Retificar é regularizar, normalizar os enganos, desvios e fantasias infundadas. As idéias científicas não são resumo da experiência, mas programa de ação, refinamento, precisão e esclarecimento do material empírico. Seguir a constituição da ciência é compreendê-la como um saber aproximativo. A história das retificações científicas é a própria história dos sistemas científicos.
d) O conhecimento científico é um corracionalismo. Bachelard substitui o cogito cartesiano por um cogitamos: a verdade científica é estabelecida pelo trabalho cooperativo e pela intersubjetividade científica.
e) O conhecimento científico é um materialismo racional, crítico do materialismo ingênuo, que privilegia os dados imediatos da consciência perceptiva, e do racionalismo puro, que privilegia o cogito em detrimento da experiência. Bachelard combina as contribuições dos dois pólos do conhecimento, sujeito e objeto, afirmando que a realidade, à qual o cientista tem acesso, é um objeto construído pela consciência racional, a partir dos dados da experiência.
f) O conhecimento científico é um surracionalismo, afirmação da atividade criadora da razão em face da atividade repetidora da memória. A busca científica orienta-se em direção ao futuro (criação e novidade) e não ao passado (memória e repetição). O conhecimento surracional é rítmico, uma expansão conquistadora de novas dimensões do real e um retorno estratégico aos postos avançados do saber.
Destaque-se esta última característica, onde torna-se patente a confluência de pensamento científico e arte. Bachelard compõe o neologismo surracionalismo obviamente influenciado pelo movimento surrealista. Não é, como veremos, um encontro ou um achado fortuito.
Segundo Canguilhem[11], um excelente crítico da obra de Bachelard, a epistemologia contemporânea foi revolucionada por esse filósofo pela introdução de alguns conceitos-chaves – recorrência, vigilância, obstáculo, ruptura – mas também por ter reconhecido que a ciência não é pleonasmo de experiência.
Para provar a coerência da epistemologia bachelardiana, Canguilhem formula um breve corpo de axiomas:
1. Primado teórico do erro
A objetividade de uma idéia será mais clara e mais distinta, na medida em que aparecer sobre um fundo de erros mais profundos e mais diversos. É preciso errar para atingir um fim. Não há verdades primeiras, só erros primeiros. A primeira e mais rica função do sujeito é a de se enganar. Quanto mais complexo for seu erro, mais rica será sua experiência. A experiência é a lembrança dos erros retificados.
2. Depreciação da intuição
As intuições são muito úteis: servem para serem destruídas… O imediato deve dar lugar ao construído e o dado dever ser reencontrado como um resultado.
3. Objeto e perspectiva
Compreendemos o real na medida em que a nossa necessidade o organiza. Nosso pensamento vai ao real, não parte dele. Dito de outro modo, o real nunca toma a iniciativa, pois só pode responder algo quando nós o interrogamos. O fatos não falam e o ponto de vista cria o objeto.
Como vimos, há uma dualidade no sujeito cognoscente. Há o homem diurno, que aplica a razão como instrumento da ciência e vive em animus a tensão taciturna do livro de idéias. É o sujeito da consciência clara, que busca a verdade rompendo com o senso comum e superando os obstáculos epistemológicos. E há o homem noturno, que pela fantasia e a imaginação criadora se ancora no mundo e o apreende através do devaneio poético. É o “homem feliz”[12], que vive no mundo em anima, vivenciando a plenitude e a extensão dos livros de imagens. Esta dualidade aponta para a complementaridade entre a ciência e a arte, cuja interseção é o dinamismo do saber de nosso tempo.
A primeira análise bachelardiana da imaginação principia de modo negativo nas obras La Formation de l’Esprit Scientifique e La Psychanalyse du Feu, ambas de 1938. A imaginação é vista como obstáculo inconsciente à formulação de conceitos científicos. De negativo o eixo torna-se positivo, visando a compreensão ontológica da imagem, trabalho operado nas obras sobre os elementos da física pré-socrática: o fogo, a água, a terra e o ar.
A partir de La Psychanalyse du Feu, como vimos contemporânea de La Formation de l’Esprit Scientifique, a obra epistemológica de Bachelard é contraponteada por suas obras de poética. Estabelecendo as correspondências de modo dialético, o que implica em afirmações, negações e superações abrangentes, temos uma seqüência de publicações alternadas, das quais destacamos as seguintes: A Filosofia do Não e Lautrèamont em 1940; quatro obras sobre a imaginação e os elementos: A Água e os Sonhos (1942), O Ar e os Sonhos (1943), A Terra e os Devaneios da Vontade (1948), A Terra e os Devaneios do Repouso (1948); três estudos sobre a ciência contemporânea: O Racionalismo Aplicado (1949), A Atividade Racionalista da Física Contemporânea (1951) e O Materialismo Racional (1953); e por fim as últimas obras sobre o devaneio poético: A Poética do Espaço (1957), A Poética do Devaneio (1961), A Chama de uma Candeia (1961) e O Direito de Sonhar (1972 – publicação póstuma).
O relacionamento interno entre as obras de estética e de epistemologia traz de volta a principal polêmica. O homem diurno da cidade científica e o homem noturno do devaneio poético são opostos?
São excludentes ou complementares?
Bachelard é algo como um “penseur double”?
Um jano bifronte em duas disciplinas diametralmente opostas?
Esta discussão central é o que propomos estabelecer neste primeiro capítulo. Procurar uma unidade nas obras de Bachelard parece um empreendimento inútil, já que seu próprio perfil intelectual aflui em paradoxos; um filósofo que gentilmente zomba dos filósofos, um racionalista rigoroso que confessa com modéstia estar apenas tentando tornar-se tal, um sonhador fluente que busca articular a lei das imagens. Sua carreira intelectual, que abrange austeras pesquisas epistemológicas e sensíveis estudos sobre a imaginação poética, oferece um exemplo notável de unidade móvel ou de uma dualidade integrada na variação.
Apesar da repetida insistência em distinguir a natureza da literatura e do pensamento científico – de fato, em momento cruciais, oposta e inversa -, é possível retirar da epistemologia de Bachelard certos temas que permeiam a totalidade de sua obra e que são úteis à compreensão de sua poética da imaginação. Se não esperamos de uma filosofia atual que ela seja sistemática, ainda assim podemos buscar uma unidade subjacente de sentido. Mas qual tipo de unidade é possível garimpar na corrente bachelardiana? Quais são esses temas implícitos e abrangentes?
Antes de tudo, devemos manter sempre em mente as enérgicas advertências do próprio Bachelard contra a tentação em unificar e reduzir ao idêntico, que considerava um dos mais importantes obstáculos epistemológicos. Em vez de imobilizar a intuição numa unificação muito rápida, como nas teorias pré-científicas, o pensamento vivo e dinâmico deve ser dominando por seu “caráter mutável” (alguns pensadores ingleses denominam shifting character), cuja característica essencial é a habilidade em sacudir os hábitos intelectuais para acompanhar as lições de uma ciência evolvente e desconcertante.
Para Bachelard, o moderno educador rejeita o papel do sábio que divide os frutos do seu aprendizado na forma de verdades estabelecidas e convida-nos a experimentar com ele “a mobilidade essencial dos conceitos”. Noção central da filosofia bachelardiana, a mobilidade não se restringe à superficialidade que substitui um conceito por outro, mas a dialética interna que dispensa modificar as denominações. A ciência contemporânea tem retificado progressivamente conceitos antigos, tais como o de átomo, desprendendo-os de uma conteúdo fixo. Esta mobilidade é igualmente essencial para a imaginação. O devaneio despedaça significados congelados e restaura a ambivalência e a liberdade das palavras.
A preservação deste “caráter mutável” não é somente uma exigência metodológica. De extrema importância para a compreensão de sua poética, há também um paralelo filosófico com a visão bachelardiana do tempo humano. Na Dialética da Duração, Bachelard diz que aceita quase tudo de Bergson, exceto a idéia de continuidade. Se o tempo é criativo, não é por virtude da permanência vital do passado, mas através de uma decisão no sentido etimológico do termo: o término de cada instante significa, ao mesmo tempo, um novo começo. Como expressa o filósofo em seu estilo gnômico, os momentos diferem devido à sua fecundidade.
As imagens poéticas são instantâneos quase fotográficos, ou seja, ontofanias momentâneas e fugazes, e por isso mesmo, extremamente fecundas. As imagens são decisões temporais, são cortes no âmago do ser. Daí serem únicas e cuja autenticidade não é repetível.
Esta filosofia do instante perpassa tanto os fundamentos matemáticos da física quântica como a celebração da palavra poética, sendo um dos principais nexos metafísicos da filosofia de Bachelard.
Podemos encontrar outro paralelo na concepção bachelardiana de descontinuidade no progresso cultural do homem, histórico ou individual. É impossível explicar um estágio de desenvolvimento, seja antigo ou moderno, pelo que o precede. Um padrão mutante, mais do que dedutivo ou aditivo, expressa melhor o progresso.
Devemos estar cientes do caráter essencialmente rítmico das pesquisas bachelardianas. O rítmo geral é indicado pela alternância de ciência e poesia, que correspondem às duas dimensões da psique – animus e anima – e realizam duas potencialidades diferentes da linguagem humana. Tudo que o filósofo faz é desfrutar ambos os pólos dessa dupla natureza. Ao nível metodológico, o mesmo rítmo dual é encontrado no pêndulo entre a ironia da polêmica e a simpatia do entusiasmo. Um rápido esboço da obra bachelardiana tomaria a forma de uma lista de afirmações retificando umas às outras, quase ao ponto de contradição. A unidade aparece então como um objetivo assintótico: nunca o possuímos, apenas descobrimos em nós mesmos a possibilidade de reconciliação.
É significativo que a última obra de Bachelard, La Flamme d’une Chandelle, por ele designada como um pequeno livro de um devaneio simples, ofereça a convergência dos seus temas mais pessoais. O devaneio reconcilia o mundo com o sujeito, presente e passado, solidão e comunicação. Há apenas uma exigência: que se busque a expressão escrita, seja através da criação original ou do encontro com um poema já existente. Esta distinção importante faz de Bachelard não apenas um mestre espiritual, mas também um filósofo que abre amplas perspectivas em crítica literária.
Permanece válido, portanto, que os poetas cultivem sua subjetividade psicológica, rica em projeções imediatas que a ciência necessita exorcizar. Assim como fala do espírito poético expansivo e do espírito científico taciturno, Bachelard explora os dois domínios, mas se apressa em não confundi-los. Psicólogo sutil da subjetividade poética e crítico lúcido da objetividade científica, Bachelard nos ensina a distinguir esses valores antinômicos. À imaginação diurna do sábio que inventa hipóteses racionais e as submete à prova da experimentação objetiva, ele opõe a imaginação noturna do poeta que enriquece o lado subjetivo e afetivo da cultura humana.
Recorde-se um dos lemas de Wittgenstein: “A filosofia luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem.”[13] A Filosofia da Ciência é um combate sem tréguas contra o enfeitiçamento da linguagem, mas a Poética, ao contrário, é uma adesão de corpo e alma aos encantamentos da linguagem.
Do laboratório científico, os trabalhadores da prova nos trazem a lição da prudência experimental.
Do laboratório surrealista, os trabalhadores da celebração poética nos oferecem as “cataratas de diamantes e as torrentes de lama” [14] que brotam das profundezas do inconsciente, tratando as imagens com a maior seriedade.
Na ontogênese do imaginário, Bachelard freqüenta os dois laboratórios e combina os procedimentos: estuda as imagens poéticas com prudência experimental, seriedade e, ao término do seu itinerário noturno, perfaz um mergulho profundo nas portas liberadas do inconsciente.
O esteta e filósofo Gilbert Durand, estudioso da imaginação simbólica e das estruturas antropológicas do imaginário – o “jardim de raízes imaginárias” que constituem o “patrimônio intangível”[15] do Sapiens Sapiens – classifica a obra de Bachelard entre as hermenêuticas instauradoras, ao lado de Ernst Cassirer e Jung. Segundo Durand, discípulo direto de Bachelard, há dois grandes grupos de hermenêuticas: as redutoras, que reduzem o símbolo a um simples epifenômeno, ao efeito, à superestrutura, ao sintoma patológico, a exemplo da Psicanálise de Freud, do Funcionalismo de Georges Dumézil e do Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss; e as instauradoras, que amplificam o símbolo, deixando-se levar por sua força de integração para atingir uma forma de “sobreconsciente vivido”[16], como na Filosofia das Formas Simbólicas do neokantiano Ernst Cassirer e na psicologia dos arquétipos de Jung. A Fenomenologia Poética de Bachelard é um dos métodos de interpretação da imaginação simbólica, diz Durand, que respeita o dinamismo criador do imaginário, a amplificação poética de cada imagem concreta. Como será bem delimitado no segundo capítulo, a obra de Bachelard ultrapassa as limitações tanto da teoria freudiana ortodoxa como da fenomenologia niilista de Sartre.
O primeiro e o último dos ensaios estéticos de Bachelard são consagrados ao fogo e à chama, no espaço de tempo de 1938 a 1961. Da Psicanálise do Fogo, onde a prudência experimental vasculha o imaginário em busca de depuração dos obstáculos epistemológicos, ao inacabado A Poética do Fogo, belo exemplar de um poema em prosa sobre a significação cósmica da fantasia, percorre Bachelard os universos paulatinamente complementares da ciência e da arte.
Como bem observa Ginestier:
“Primeiramente homem de ciência,
depois filósofo da ciência,
Bachelard torna-se o filósofo da imaginação poética
e em seguida, por um belo equilíbrio, poeta.”[17]
A ciência e a arte representam uma alternância de interesses e uma dupla afinidade. A vocação microfísica e a alquimia poética[18] são dois vetores espirituais idênticos, realizando a doutrina fundamental da dupla verdade: a ciência é, até o fim, a verdade eficaz; a poesia é o pão cotidiano essencial.
E é ainda Ginestier que demonstra de modo dramático, o projeto unificador bachelardiano numa perspectiva de reconciliação para o homem contemporâneo:
“A arte e a ciência constituem duas atividades
complementares do homem; sua vida oscila entre dois complexos, o de Édipo – que quer salvar – e o de Morfeu – que quer agradar e consolar. Pressionados pelos imperativos da especialização e da divisão do trabalho, Édipo e Morfeu se separam, tendo cada um o seu caminho, afastando-se mais e mais e provocando a tragédia de nossa sociedade. Aquele que sabe não mais consola, aquele que consola não mais sabe. Este drama ajusta-se no célebre título: Hiroshima, meu amor.
O esforço de Bachelard procura reencontrar a unidade profunda do homem e fazer nascer um novo humanismo. Toda a sua obra visa esta reunificação. Se malograr, será Hiroshima. Se triunfar, será meu amor.”[19].
O homem bachelardiano, essencialmente criador, é o único capaz de um pensamento em expansão constante. A filosofia ontogenética suscita o surgimento de um novo humanismo, a instauração de uma filosofia aberta que conjuga a racionalidade do pensamento humano com a “irracionalidade” dos seus desejos profundos.
2º Capítulo
Bachelard e a Tradição Filosófica
Os termos imagem e imaginação derivam do latim imago e imaginationis. O correspondente grego, empregado pelas diversas escolas helênicas, é phantasma e phantasia.
A imaginação é comumente definida como a faculdade que a mente possui de produzir imagens, entendendo-se por imagem a representação mental de um objeto ausente ou a reprodução de uma sensação na ausência da causa que a produziu. Pode a imaginação consistir tanto na evocação de imagens mnemônicas, quanto na construção de imagens criadas livremente pela fantasia.
A dualidade da imaginação leva-nos a distinguir duas manifestações: uma, a faculdade mental de evocar, sob a forma de imagens, objetos ou fatos conhecidos por uma sensação ou experiência anteriores; outra, a faculdade pela qual a mente vê e representa, ainda que sob uma forma sensível e concreta, seres, coisas e situações das quais não teve experiência direta. No primeiro caso, temos a imaginação em dependência direta das nossas percepções, ou seja, de alguma coisa que já conhecemos e que depende, substancialmente, da nossa memória. Daí a imaginação residir numa evocação. No segundo caso, temos a imaginação emancipada do mundo sensível, produzindo novas sínteses de imagens libertas da sensação ou da percepção imediata de objetos externos. Temos, assim caracterizada, a invenção criadora do espírito humano, a fantasia poetificante.
A ambigüidade da função imaginativa vai redundar no valor e na posição que os sistemas filosóficos lhe dedicam na formação do conhecimento. Desse modo, ora a imagem será considerada cópia fiel da sensação, inteiramente enraizada no corpo, apesar de poder nascer de uma ação voluntária do cérebro, ora a imagem será uma espécie de transposição da sensação para uma realidade trans-sensorial, embora conserve as relações de situação e qualidade do mundo sensível. A imagem, nesse ponto, distancia-se da percepção e intelectualiza-se. A depender destas considerações, a imaginação irá ocupar, nos diversos sistemas filosóficos, ou um lugar inferior, perigoso, prejudicial ao entendimento, ou um lugar de destaque, propício, valioso, promotor de pensamento através da autêntica espontaneidade criadora.
Os diversos compêndios de filosofia, ao conceituarem a imaginação, corroboram o exposto acima. No dizer de Jolivet, “Imaginação - Faculdade de formar imagens. Imaginação reprodutora – função pela qual a consciência percebe em imagem um objeto sensível ausente. Imaginação criadora – função pela qual o espírito forma sínteses novas e originais com as imagens provenientes da experiência sensível.”[20]
Caracterização semelhante faz Didier Julia, quando considera a imaginação a “faculdade de representação de um objeto ausente. Distingue-se a imaginação reprodutora, que representa a imagem de alguma coisa que já conhecemos, e a imaginação criadora, pela qual o homem é capaz de produzir obras de arte, fazer as ciências e as técnicas progredirem.”[21]
José Ferrater Mora estabelece, com maior precisão, o vínculo entre a imaginação e a memória: “Não poucos autores modernos têm reconhecido
que a imaginação é uma faculdade ou, em geral, uma atividade mental distinta da representação e da memória, embora de alguma maneira ligada às duas: à primeira, porque a imaginação costuma combinar elementos que foram previamente representações sensíveis; à segunda, porque sem recordar tais representações, ou as combinações estabelecidas entre elas, nada poderia imaginar-se. A imaginação é, em rigor, uma representação, no sentido etimológico deste vocábulo, quer dizer, uma nova apresentação de imagens.”[22]
Note-se bem, nesta conceituação, a riqueza interpretativa que nos permite a etimologia do verbo representar: re-presentar é tornar novamente presente; presente (do latim pre-ens) significa diante do senso ou sentido. A representação imaginativa vincula-se, portanto, ao ato de tornar de novo presente uma sensação anterior.
Os espanhóis Bassols e Martinez definem a imaginação como “a capacidade de conservar e reproduzir as impressões sensoriais e perceptiva na ausência dos seus objetos. Dessa maneira, a vida psíquica adquire maior amplitude, posto que o sujeito pode ter presentes os objetos da sensação e da percepção quando estes já não estão presentes. O rastro que deixam em nós estas impressões sensoriais e perceptivas denomina-se imagem. Uma imagem é, portanto, uma representação mental de objetos ausentes.”[23]
Numa perspectiva mais histórica, Nicola Abbagnano repete os autores citados: “Imaginação (do grego phantasia) – Em geral a possibilidade de evocar ou produzir imagens independentemente da presença do objeto a que se referem. (…) em 1770, Cristian Wolff já distinguia a imaginação reprodutiva como a faculdade de produzir as percepções das coisas sensíveis ausentes, da imaginação produtiva, que consiste em produzir através da divisão e da composição, imagens de alguma coisa nunca percebida pelos sentidos.”[24]
A distinção de Wolff, retomada por Kant, culminará na classificação romântica de imaginação reprodutora e imaginação produtora ou poética – a fantasia criadora do gênio.
Para efeito de conceituação, concluímos com o seguinte:
a) imaginação é a faculdade mental de produzir imagens;
b) as imagens produzidas pela imaginação podem ser de dois tipos: cópias mentais de um objeto externo ou criações mentais desligadas de qualquer objeto externo, embora possamos em parte identificar a sua sensação originária.
Neste ponto abrimos uma nova perspectiva em nosso trabalho, quando abordaremos a posição bachelardiana em confronto com a tradição filosófica, a psicanálise e a fenomenologia. As análises de Bachelard superam a tradição ocidental sobre a imaginação, propondo uma bifurcação em imaginação formal e imaginação material.
No decorrer do pensamento ocidental, filósofos, artistas e estetas trataram da imaginação. Para compreendermos melhor a posição singular de Bachelard, devemos rever alguns momentos daquele itinerário.
Para o sensualismo epicurista, a imaginação é uma espécie de visão, uma fusão total entre a imagem e a percepção. A superfície dos objetos emite, sem cessar, partículas que se chocam com nosso olho e provocam a visão. Certas partículas mais sutis atravessam os órgãos dos sentidos e chegam ao espírito, o que explica a formação de imagens mentais na ausência dos objetos. Quando estas imagens ou simulacros se entremisturam, como no sonho, acreditamos ver monstros apavorantes ou aparências estranhas que nos induzem a temores vãos. Conclusão: tudo o que vem da imaginação provém da ação dos objetos sobre os nossos sentidos; a imaginação confunde-se à sensação.
Para o sensualismo estóico, há uma diferença de grau entre a imagem e a sensação. A sensação mantém uma adequação entre a representação do objeto e o próprio objeto, porque faz-se acompanhar do ato voluntário do assentimento. A imagem não comporta necessariamente o ato volitivo do assentimento, perdendo qualquer evidência e podendo ser infiel ao objeto. Se a sensação é o objeto real, a imagem é o objeto virtual.
No sistema platônico, a imaginação está presa à sua metafísica e teoria do conhecimento. Platão classifica-a como a mais baixa das faculdades, inaugurando, com esse menoscabo, uma longa tradição de desconfiança contra a imaginação, que só começou a dissipar-se no pensamento moderno.
No entender de Platão, a mais perfeita forma de cognição é a apreensão intelectual dos conceitos; logo abaixo dela vem o conhecimento que apreendemos através das verdades matemáticas; a terceira, denominada crença e não mais propriamente conhecimento, era a ilusão provocada pela apreensão de coisas particulares, reveladas pelos sentidos; por último, a “conjectura”, produto de uma figura ou imagem indistinta da memória, que cuido tratar-se, erradamente, de algo conhecido. A imaginação é uma fábrica de conjecturas, que deve ser urgentemente fechada para não prejudicar a suprema usina intelectual de conceitos.
Se o conhecimento ou quase-conhecimento obtido pela percepção sensorial é inevitavelmente inferior, incerto e incorreto, se fiamo-nos mais nas imagens dele decorrentes do que na intelectualização da nossa percepção direta, caímos num duplo erro cognitivo.
Apesar dos escritos mais poéticos, que parecem modificar um pouco esse menosprezo platônico pela imaginação, a exemplo dos diálogos Fedro e Simpósio, a faculdade imaginativa está expulsa da República de Platão.
No caso de Aristóteles, mais interessado que seu mestre Platão na análise psicológica dos processos mentais, foi empregado o termo grego phantasia num sentido novo. Aristóteles definiu a imaginação como a faculdade intermediária entre a percepção e o pensamento, possibilidade de toda a memória, que não pode ocorrer sem as imagens da imaginação. O pensamento revive as imagens dos sentidos na forma de “pós-imagens” de sonhos e de lembranças residuais deixadas pela sensação primária. Sem percepção, portanto, não há imaginação e sem imaginação não há pensamento. O ponto de vista aristotélico sobre a imaginação como atividade mental entre a percepção e o pensamento vai reaparecer, melhor estruturado, na filosofia de Kant. E vale lembrar o conhecido axioma emprista, segundo o qual “nihil est in intelectu quod prius nom fuerit in sensu”, sempre adequado à compreensão do sistema aristotélico.
Filósofo neopitagórico que fundou uma escola em Éfeso, o pouco conhecido Apolônio de Tiana (? – 97) é considerado a primeira e talvez a única ocasião na Antiguidade em que se atribuiu à imaginação maior poder que à razão. Segundo Apolônio a imaginação pode além de reviver e relembrar imagens da experiência passada, também elaborar e construir novas idealizações. A propósito das esculturas de Zeus feitas pelos artistas Fídias e Praxíteles, Apolônio considerava a imaginação muito mais sábia e muito mais sutil do que a imitação, pois esta só pode criar como trabalho seu o que viu, ao passo que a imaginação chega até ao que não viu. O conceito de imaginação inventora, esboçado pelo neopitagórico de Tiana, será desenvolvido por Kant e pelos românticos no século XIX. Desse veio tão antigo e permanente irá garimpar alguns temas o nosso filósofo Gaston Bachelard.
O místico neoplatônico Plotino também entendia que o artista não copia o mundo visível, mas já consegue esboçar uma visão da realidade ideal, que se esconde por trás das aparências do mundo sensível.
Pode-se considerar também Plotino quem mais se assemelhou à moderna concepção da imaginação criadora, como a expressou, por exemplo, o romântico Coleridge. Plotino, contudo, fiel ao platonismo, ainda não atribui à imaginação o poder de apreender o ideal, privilégio da compreensão do puro intelecto.
Durante a Escolástica medieval imperou o preconceito platônico contra a imaginação, fortalecido pelos trechos bíblicos e pela autoridade dos padres e teólogos. Ao poder extremado da imaginação de mudar e reconstituir imagens, os medievais chamavam fantasia ou imaginação desregrada. Por outro lado, reconhecia-se na imaginação, a exemplo de Santo Agostinho, o poder e o prazer de ordenar, multiplicar e recompor livremente imagens, para enriquecer nosso pensamento.
É fácil verificar como a definição de imaginação não muda substancialmente na história do termo, mas as funções a ela atribuidas tornam-se mais numerosas e complexas.
Ao elaborar o plano de uma nova enciclopédia das ciências, o empirista moderno Francis Bacon colocava a imaginação ao lado da memória e da razão, constituindo as três faculdades humanas fundamentais. A faculdade imaginativa é a base da poesia e o poder intermediário do qual dependem o pensamento e a ação.
O renascimento artístico e literário prossegue na ortodoxia de desconfiar ou precaver-se contra os desvairios da imaginação, principalmente a paixão desorientada da fantasia.
Dois poetas e dramaturgos ingleses do século XVI retratam os perigos e os fascínios da capacidade imaginativa do ser humano.
São célebres as peças de William Shakespeare, onde personagens atormentados e dilemáticos, sob o império da imaginação desnorteada (ou fantasia) alienam-se da realidade lógica e sucumbem a uma espécie de insanidade devastadora. Basta lembrar as fantasias enciumadas de Otelo, os acessos de loucura do Rei Lear, os arrebatamentos amorosos do casal Romeu e Julieta. Em todos eles, onde falece a razão, o tropel incontrolável da fantasia os destrói. Devemos ressaltar, entretanto, que embora aceitasse a psicologia corrente em sua época, Shakespeare confere um valor quase profético, quase vidente à imaginação. É precisamente em seus terríveis acessos de alienação que a imaginação de Lear transmite as mais tremendas visões da condição humana, ou o desespero de Macbeth capta o absurdo da vida.
Contemporâneo de Shakespeare, o poeta dramático John Marston faz a defesa da fantasia como “a parte brilhante e imortal do homem, a passagem comum, a porta sagrada para a câmara privada da alma…”. Vale citar o trecho no original: “a function even of the bright immortal part of man. It is the common passe, the sacred dore, unto the prive chamber of the soule…By it we shape a new creation, of things as yet unborne, by wee feede our ravenous memory, our intention feast.”[25]
Dentre todos, John Marston é o prenúncio definitivo da imaginação criadora, da fantasia alegorizante e poetificante dos românticos do século XIX.
A imaginação ocupa posição de destaque na filosofia de David Hume, que equiparava as idéias às imagens. Em sua teoria, Hume distingue a imaginação livre ou fantasia, que produz devaneios e suposições inúteis, e a imaginação como fator necessário a toda idéia animada, potente, envolta de um sentimento especial, indispensável à produção do conhecimento.
A imaginação, além disso, está intimamente ligada à simpatia, conceito fundamental da Ética de Hume. A simpatia permite-nos penetrar a fundo nas afeições e nos sentimentos dos outros, comovendo-nos numa “irradiação da emoção partilhada” e possibilitando a harmoniosa compreensão entre os homens.
O papel desempenhado pela imagem na teoria kantiana do conhecimento é muito diferente do visto até aqui. Em Kant, a imagem é uma ponte lançada entre a sensibilidade e o entendimento. Se a matéria do conhecimento é fornecida pelos sentidos e a forma do conhecimento resulta das sínteses a priori do entendimento, a imaginação, que liga estas duas fontes heterogêneas, participa tanto de uma quanto de outra. Ela é, simultaneamente, diversidade e ordem na diversidade.
Em seu papel transcendental, a imaginação é limitada pelas formas a priori. Mas na medida em que se quer interligar o diverso sensível com um objeto, ambos não precisam estar necessariamente relacionados, como, por exemplo, na causa de prazer para o sujeito. O objeto não é mais conhecido porque está contido logicamente numa categoria, mas é considerado em estrita relação com o sujeito cognoscente. O julgamento que exprime esta relação, este acordo é o julgamento estético.
A finalidade subjetiva entre a forma do objeto e a faculdade de conhecer do sujeito é a característica essencial da imaginação. Ela furta-se ao estrito domínio do entendimento e torna-se livre. Se a criação imaginativa não pode ter o sentido realista do conhecimento, ganha em liberdade na mesma proporção que perde em valor objetivo. A imaginação, em seus fins estéticos, vivifica as faculdades cognitivas, exprime pela linguagem da arte um estado de espírito inexprimível.
Kant define a imaginação como a faculdade das intuições sem a presença do objeto. A imaginação reprodutiva (exhibitio derivativa) traz novamente ao espírito uma intuição empírica anteriormente ocorrida. A imaginação produtiva (exhibitio originaria) é o poder de representação originária do objeto.
À função produtiva da imaginação, o Idealismo Romântico, de Fichte em diante, atribui uma capacidade maior do que aquela que Kant reduzira aos limites nas condições formais.
A imaginação para Fichte é algo flutuante entre a realidade e a irrealidade, é a ação recíproca e a luta entre o aspecto finito e o aspecto infinito do Ego. Se por um aspecto o Ego põe limite à sua atividade produtiva, por outro supera e afasta quaisquer fronteiras.
A função criadora da imaginação tornou-se lugar comum da estética romântica, inclusive em Benedetto Croce.
A partir da imaginação criadora, Hegel criou a célebre distinção entre imaginação e fantasia, tão cara a inúmeros escritores e artistas do século XIX.
Imaginação e fantasia são ambos determinação da inteligência, mas a inteligência como imaginação é meramente reprodutiva, enquanto que como fantasia é criadora, simbolizante, alegorizante ou poetificante. O poder criador da fantasia está presente na pessoa privilegiada do gênio, figura arrebatada, extática, transportada, enfim, a caracterização típica do artista romântico.
A imaginação criadora ou fantasia é o sentido maravilhoso que pode substituir em nós todos os sentidos, é a visão profética da realidade absoluta, é a rainha das faculdades humanas, como dizia Beaudelaire.
Poeta, pintor e gravador, o inglês William Blake, embora uma personalidade única, exemplifica o extremo da atitude romântica diante da imaginação: é o primeiro princípio do conhecimento, a sensação espiritual. A lira do poeta une dois termos extremos e quase sempre opostos do pensamento ocidental: a sensação ou impressão física dobre os nossos sentidos corporais; o espírito ou a substância incorpórea presente na alma humana. A imaginação criadora – ou fantasia visionária segundo Blake – é o corpo divino do homem.
A concepção bachelardiana da imaginação poética é considerada, por vários comentadores de sua obra, como herdeira da tradição romântica. Assim sendo vamos listar as principais idéias que compuseram o conceito romântico da imaginação criadora:
1. A imaginação é o poder mental de apresentar energicamente uma cena ou uma situação e sua aura emocional, com um forte impacto de realidade;
2. A imaginação, devido ao seu poder de mudar/recombinar as impressões armazenadas pela experiência, é a fonte da invenção e da originalidade;
3. A imaginação é a fonte de visões mais profundas do que a compreensão lógica, e não totalmente compreensíveis para a razão humana;
4. A imaginação é a base da compreensão afim, por meio da qual podemos penetrar os sentimentos dos outros homens e comunicar-lhes os nossos.
No fervor do entusiasmo romântico, essas noções se fundiram numa liga nobre chamada “gênio”, uma combinação mais intuitiva do que lógica de idéias. A imaginação dos românticos era considerada muito mais que uma faculdade mental destinada a receber, reviver e manipular imagens, mas exatamente o que era não ficou claramente definido. Tratava-se de um conceito mágico-metafísico, que transportava a fantasia para um plano transcendente e trans-humano.
O resgate da imaginação criadora para o plano imanente, humano e cósmico, caberá a Gaston Bachelard.
No pólo oposto aos românticos, surge a estética demolidoramente cartesiana de Émile Chartier, dito Alain, filósofo francês falecido em 1951.
Uma nova concepção da criação artística deve começar por refutar a ilusão predominante que vê na imaginação o poder de evocar as aparências dos objetos ausentes ou possíveis. Numa imagem do Panteão, acreditamos ver perfeitamente esse monumento; mas podemos contar, dizia Alain, quantas colunas sustentam o frontão? A imagem, portanto, não é capaz de tornar presente o objeto ausente.
Porque viu na imagem a primeira fase da idéia, Alain considerou-a fugidia, imprecisa, inacessível e enganadora. Ela é o próprio embuste. Qualquer semelhança com a crítica platônica não é mera coincidência. Imaginar é confiar no primeiro testemunho, que resulta das reações tirânicas do corpo e do tumulto das emoções. O poder ilusório da imaginação faz-nos, na realidade, experimentar uma percepção falsa em nosso espírito arrebatado pelas emoções do corpo e que não se submete à investigação contínua da percepção verdadeira.
As duas abordagens mais marcantes sobre a imaginação no século XX foram a Psicanálise e a Fenomenologia da Imaginação de Sartre. Influenciado por ambas, Bachelard manterá uma distância crítica através do seu conceito de imaginação material, tema do quarto capítulo de nossa dissertação. Cabe, pois, nesse momento uma análise mais detalhada das relações de Bachelard com os conceitos psicanalíticos e a filosofia sartreana.
Dois conceitos fazem fortuna na literatura psicanalítica: desejo e imaginário. Lado a lado, desempenham função primordial na compreensão do aparelho psíquico segundo Freud.
O desejo é a tendência tornada consciente do seu objeto, é a representação de algo que a pessoa considera meio de satisfação ou de gratificação. A fome, por exemplo, é uma necessidade que procuro satisfazer e o meu desejo de comer, dela nascido, é a consciência que tem dessa situação. O desejo, portanto, distingue-se da necessidade, simples incitação fisiológica.
O desejo relaciona-se, em geral, a um objeto determinado: desejo beber vinho, ou cerveja, ou uísque. Pressupondo uma certa insatisfação o desejo dá à vida afetiva sua totalidade mais própria, suscitando os sentimentos e as paixões. De acordo com Freud, o ser humano é governado pelo princípio do prazer. “o eu não é senhor em sua própria casa”, conforma frase célebre. Ou seja: a realidade percebida pela consciência é tão somente a “crosta” da vida psíquica, governada por tendências, instintos e impulsos originários da camada inconsciente.
O deslocamento e transformação da energia instintiva, das pulsões inconscientes e das tendências destrutivas em sentimentos superiores e elevados, chama-se sublimação. Para Freud, as tendências sexuais podem ser sublimadas em tendências estéticas ou religiosas. O termo designa, portanto, um mecanismo de defesa do eu, pelo qual certas pulsões inconscientes são integradas à personalidade, investindo-se de um valor social positivo e desempenhando, para o indivíduo, um papel importante em sua adaptação ao meio, sem lesar seu desenvolvimento pessoal. O espírito de competição esportiva e certas vocações profissionais – como o médico cirurgião – explicam-se pela sublimação da agressividade. A sublimação é comparável à ação do homem que transforma uma queda d’água devastadora numa usina hidrelétrica.
O inconsciente é a instância psíquica que atua sobre nosso comportamento, mas escapa à consciência. É a faixa do psiquismo latente, constituída de desejos e processos psicológicos dinâmicos, recalcados para fora do campo da consciência por um poder de controle, a censura. As forças inconscientes podem manifestar-se em certos atos da vida cotidiana (lapsos, atos falhos, esquecimentos), nos sonhos e nos sintomas neuróticos.
No inconsciente, o verdadeiro substrato da psique, nascem desejos e fantasias. Constantemente submetido a frustrações, o ser humano tem suas necessidades profundas raramente satisfeitas de modo direto e imediato.
O pecado da psicanálise freudiana, diz Bachelard, está na postura intelectualista que trabalha no sentido de traduzir as imagens e considerá-las sempre como símbolos, esquecendo o domínio da própria imaginação. Sob a imagem a psicanálise procura a realidade e esquece a pesquisa inversa: sobre a realidade buscar a positividade da imagem. Por esse motivo, para o psicanalista, a fabulação é considerada como ocultando alguma coisa, uma espécie de cobertura, uma função secundária. O símbolo a ser interpretado nos sonhos é um sintoma da libido, mais um “efeito-signo” que propriamente um símbolo, como bem observa Gilbert Durand[26]. A psicanálise freudiana reduz, portanto, a imagem simbólica a efeito necessário da causa primeira, a libido sexual. Este imperialismo da libido é o defeito essencial de Freud e sua hermenêutica redutora[27].
A crítica de Bachelard à psicanálise freudiana vai mais além, atingindo sua concepção de vontade.
“A psicanálise, diz Bachelard, nascida em meio burguês, negligencia muito freqüentemente o aspecto realista, o aspecto materialista da vontade humana. O trabalho sobre os objetos, contra a matéria, não permite que nos enganemos a respeito de nossas próprias forças.”[28]
O mundo é entendido pela psicanálise como espetáculo para a visão, pressuposto intelectualista e ocularista que Bachelard tanto condena. O mundo bachelardiano, ao contrário, revela-se basicamente como resistência à mão, mão comandada pela vontade de trabalhar, pela vontade de transformar, lutar e criar. Nesse caso, as duas grandes funções psíquicas são justamente a imaginação e a vontade.
O autor do qual mais se aproxima Bachelard é C. G. Jung. Discípulo e dissidente da ortodoxia freudiana, dentre os conceitos propostos pela psicologia profunda de Jung, vários são retomados por Bachelard: inconsciente coletivo, arquétipo, imaginação dinâmica e ativa, etc.
A doutrina central do pensamento de Jung é a dos arquétipos do inconsciente coletivo. Discordando de Freud sobre a natureza predominantemente sexual do inconsciente, Jung considera dois “estratos”: o inconsciente pessoal ou individual, onde estariam todas as memórias e fatos ligados às experiências do indivíduo; e o inconsciente impessoal ou coletivo, idêntico em todos os indivíduos e independente do espaço e do tempo, onde residem as estratificações das experiências milenares da humanidade.
No inconsciente coletivo existem forças e potencialidades estruturantes – os arquétipos – que afloram à vida consciente como modeladores da conduta e da personalidade, ou como origem e significado da simbologia dos sonhos e, ainda mais especificamente, como origem e significado de simbologias coletivas como os mitos, as lendas e o folclore.
O termo arquétipo deriva do grego com o significado de modelo primitivo, padrão arcaico, protótipo. O uso filosófico tem início com Platão: os arquétipos são as idéias concebidas como modelos eternos e perfeitos de todas as coisas, protótipos das realidades visíveis do mundo.
Para Jung, que retoma o conceito sem a transcendência característica do platonismo e mais próximo do transcendental kantiano, o arquétipo é um “núcleo dinâmico”, “um sistema de virtualidades psíquicas”, um fator vital para o equipamento do ser vivo. Jung utiliza sucessivamente as noções de estrutura, forma ativa e pattern para explicar a natureza do arquétipo.
Há uma semelhança entre o arquétipo e o olho humano: as imagens arquetípicas são tão diferentes do arquétipo quanto as imagens óticas o são do olho; ambos formam-se na relação entre o órgão e o objeto externo. Esta comparação, segundo Jung, afasta a noção de modelo, demasiado estática e fixista, desconhecendo o caráter essencialmente ativo e dinâmico dos arquétipos.
Não há limitações quanto a tipo, aparência ou número dos arquétipos. Os principais são os seguintes:
1. A Sombra: figurada por animais, por seres inferiores (pessoas com posição social inferior à daquele que sonha com a sombra), demônios, ou até pelo desconhecido vago e sombrio (um túnel escuro e ameaçador); a sombra representa o lado recalcado de nossa personalidade, visto em geral como “inferior” ou “maléfico”.
2. A Persona: figurações da máscara que, mais ou menos conscientemente, assumimos em nosso viver cotidiano.
3. A Anima: para os homens, todas as tendências femininas da personalidade, desde seus aspectos homossexuais até inclinações artísticas, figuradas nos sonhos por imagens femininas. Contrapartida à anima é o Animus nas mulheres, que sob a forma de uma figura masculina representa a racionalidade ou até a brutalidade agressiva nas mulheres.
4. O Velho Sábio e A Grande Mãe são figuras inflacionárias, isto é, que revelam uma perigosa vivência megalomaníaca e “mágica”. Podemos relacioná-los à experiência que teriam tido as crianças das figuras paterna e materna; as crianças se sentiriam absurdamente desprotegidas e indefesas diante daqueles seres enormes, irradiando poder e autoridade. Como as vivências emocionais da primeira infância parecem ser extremadas, o surgimento do Velho Sábio e da Grande Mãe podem estar anunciando uma explosão ou surto psicótico.
5. O Si mesmo (Selbst, em alemão; Self, na forma inglesa) é o arquétipo central. É o centro e a totalidade da psique, e o único não simbolizado antropomorficamente. Representam-no as pedras preciosas, o ovo, e as mandalas, combinações perfeitamente simétricas de um quadrado que circunda ou se inscreve num círculo.
Os arquétipos possuem um certo modo de surgimento, que se chama processo de individualização. Todo ser tende a caminhar para a ocupação das possibilidades totais de sua existência, segundo Jung; o modo total de existir da psique humana é a individuação, conceito impossível de ser explicado, mas que podemos compreender comparando-o às experiências místicas ao fim das “vias de libertação” orientais. O místico capaz de viver plenamente seu misticismo será o homem perfeitamente individuado.
Um exemplo de processo de individuação representado numa rica simbologia encontrou Jung na alquimia e em sua literatura.[29] Um de seus livros compara a evolução da transferência no processo analítico às transformações alquímicas em busca da pedra filosofal.
Jung foi cuidadoso em traçar uma distinção nítida entre imaginação passiva (fantasia) e imaginação ativa: “A fantasia é mais ou menos nossa própria invenção e permanece na superfície das coisas pessoais e das expectativas conscientes. Mas a imaginação ativa, como o termo denota, significa que as imagens têm vida própria e que os eventos simbólicos se desenvolvem de acordo com sua própria lógica – isso, é claro, se nossa razão consciente não interfere.”[30]
A imaginação ativa é uma forma de dar a palavra ao inconsciente durante o dia. Não se trata, evidentemente, de um encontro direto com o inconsciente tal e qual ele é. As imagens diversas são muito mais deformadas que os sonhos. Mais especificamente, os eventos que acontecem nos sonhos têm um caráter de autonomia e de autenticidade que raramente se encontra nas imaginações diurnas mesmo em estado de relaxação profunda. Os mecanismos de censura e de defesa que são a base do consciente diurno, misturam, desviam, ocultam a expressão dos dinamismos inconscientes. Por outro lado o ego é mais diretamente envolvido. As imagens do dia podem aproximar-se muito da elaboração narcísica. Solicitam, muito mais do que o sonho, o reconhecimento e a integração a não ser que sejam como um devaneio que arrasta o ego e tende a dissolver a consciência de si. É por isso que Jung distingue a imaginação ativa da imaginação passiva.
A imaginação é ativa quando aparece e se desenvolve em um campo ativo, isto é, em uma tensão atual entre objeto e sujeito. A cena apresenta-se a distância do sujeito. Solicita sua reação como o faria um acontecimento e ao mesmo tempo anima-o inconscientemente.
Um devaneio ou divagação parece ser, à primeira vista, base um tanto frágil para uma pesquisa séria. Cumpre lembrar, entretanto, que as idéias “acodem à nossa cabeça” e podem projetar nova luz sobre alguns de nossos problemas práticos do cotidiano. Não podemos contar com a chegada dessas prestimosas idéias; elas são imprevisíveis. Entretanto, quando chegam, estivemos em contato com nosso inconsciente, ainda que por apenas alguns segundos.
Escrevendo sobre a imaginação ativa, disse Jung: “É verdade que existem fantasias improfícuas, fúteis, mórbidas e insatisfatórias, cuja natureza estéril é imediatamente reconhecida por todas as pessoas dotadas de senso comum; mas o desempenho falho nada prova contra o desempenho normal. Todas as obras humanas têm sua origem na imaginação criativa.”[31]
Gaston Bachelard foi, sem qualquer sombra de dúvida, leitor atento de Jung. São visíveis as apropriações conceituais: as leituras em animus e anima, conforme as modulações do conceito e da imagem (ver Poética do Devaneio); os quatro elementos materiais como arquétipos do universo poético; a lei dos quatro elementos como ordenação dos a priori da imaginação criadora, como investigação da estrutura transcentental do imaginário humano; e o devaneio como exemplo de imaginação ativa, criadora e inventora.
Se Bachelard fala na dualidade do homem diurno/homem noturno, Jung expressa a presença do inconsciente por metáfora semelhante: “Pelo menos a metade de nossa vida psíquica tem nosso ser noturno por teatro; e do mesmo modo que a consciência estende suas ramificações até às nossas noites, o inconsciente também emerge em nossa vida diurna. Ninguém duvida da importância da vida consciente e de suas experiências, por que então duvidar do significado dos desenvolvimentos inconscientes? Eles são também nossa vida; neles ela palpita tanto se não mais do que em nossa existência diurna; e às vezes são mais perigosos, ou mais salutares, que esta.”[32]
E ambos, Jung e Bachelard, combatem o trabalho com as imagens que não levam a sério as imagens em si mesmas. Considera-se apenas o engodo ou a figuração, numa espécie de truque psicológico. É preciso respeitar a realidade da própria imagem. A imaginação ativa, diz Jung, não é histerização ou fuga para o domínio psicótico imaginário, mas uma boa e necessária higiene psíquica. A imaginação, dirá Bachelard, é o elo fundamental do homem com o mundo, elo da plenitude e da felicidade.
Competiu ao método fenomenológico precisar o verdadeiro caráter da imagem em face da percepção. A fenomenologia de Husserl concede uma especial função à imaginação, pois a ela é confiada a própria contemplação desinteressada que constitui a essência do seu método. Na fenomenologia, dizia Husserl, as representações e as livres fantasias chegam a uma posição privilegiada com relação às percepções, pois revelam a verdadeira natureza das experiências humanas e se tornam puros objetos de contemplação desinteressada. Desse ponto de vista, podia Husserl afirmar, sem paradoxo, que a ficção é o elemento vital da fenomenologia.
No domínio das investigações fenomenológicas impõe-se o trabalho de Jean-Paul Sartre sobre a imaginação. No ensaio L’Imagination e, sobretudo, em L’Imaginaire, o filósofo existencialista observa que o objeto na percepção é “reencontrado” pela consciência. Na imagem, pelo contrário, é a consciência que se dá o objeto. E ela dá-se-o de imediato.
Se percebo um cinzeiro, é o aspecto visível que se apresenta, mas sabemos que a face superior implica uma inferior; esse saber representa na percepção uma intenção vazia, o começo ou o esboço de uma imagem que não pode se constituir porque a própria percepção lhe cria obstáculo. Na imagem do cinzeiro, já não existem intenções vazias. A imagem de um cubo dá-nos desde o primeiro instante um cubo, a percepção de um cubo obriga-nos a dar mentalmente a volta: é uma síntese latente. A síntese imaginante é imediata. O sentido e a intencionalidade dessas duas formas de pensamento diferem essencialmente.
Ao caracterizar as diferentes estruturas do pensamento de acordo com as suas diferentes intenções, deveríamos dizer:
a) Na percepção, as relações são múltiplas entre o objeto percebido e os outros objetos, cumpre descobri-las por observação lenta.
b) Na concepção ou idéia a consciência coloca-se de imediato no âmago do objeto e percebe todas as relações possíveis com os outros objetos e suas dependências: é o saber.
c) Na imagem, a consciência dá-se imediatamente o objeto mas só em relação à sua própria intenção.
A intenção da consciência sobre o objeto determina a forma sob a qual ele aparece e o seu número fixo de determinações. O objeto em imagem é, portanto, muito diferente do objeto percebido e, para marcar essa oposição, cumpre renunciar à palavra “imagem”, sempre tomada no sentido de “duplo” ou “cópia”; é preciso renunciar também ao próprio nome imaginação para designar a função criativa do espírito e dar-lhe o único nome que lhe convém: o imaginário.
A estrutura da imagem é irracional. O que a diferencia da lembrança. O objeto na lembrança não é irreal, ele é real no passado: recordar não é evocar, o objeto-lembrança não é um conjunto de contradições, conserva a individualidade de um “dado”, impõe-se, é “reencontrado” como a percepção.
E, sobretudo, o reencontro com uma lembrança significa a convocação de um conjunto de estados de consciência. É todo o campo psicológico num momento dado da consciência que se reanima e revive globalmente. Não existe, nesse caso, nenhuma espécie de “ausência”. Na evocação, a imagem apresenta-se “desligada”, estranha ao campo de consciência presente ou passado, é talvez o ato negativo que a lança no irreal.
A realidade própria da função imaginativa está ligada à metafísica sartreana do nada e à distinção do Em-si e do Para-si. O caráter simultaneamente irrealizante e material da imaginação, e o papel que nela desempenham a liberdade e acaso, decorrem da atitude aniquiladora da consciência – a nadificação do Para-si – que visa um objeto irreal, ausente, através de um análogon material.
A imagem não é uma idéia que se realiza, mas um suporte material que se irrealiza.
Compreende-se, portanto, o que Sartre exprime dizendo que a imagem envolve um “certo nada”: a característica principal da imagem é a posição imediata do objeto e também a posição de sua ausência. A intenção imaginária é a de ser uma espontaneidade criadora, a consciência dando a si mesma o seu objeto.
O objeto real ou perceptivo pode ter determinações e relações possíveis, ao passo que o objeto imaginário possui somente as determinações que a consciência lhe dá; é uma certa maneira que a própria consciência tem de se dar um objeto.
A essência da imagem recebe a seguinte definição: certa maneira que o objeto tem de estar ausente no seio de sua presença. A distinção da imagem e da percepção mantém-se estabelecida: são dois atos de pensamento que se excluem mutuamente.
Se a imagem se distingue da sensação remanescente, como da idéia que se realiza, pode-se considerar, sem dúvida, uma outra imaginação, não mais reprodutora ou criadora, mas inventora e exploradora, o que as análises intelectualistas de Alain não puderam perceber. As teorias modernas da imaginação sublinham, com efeito, o caráter simultaneamente “irrealizante” e material da imaginação, e o papel que nela desempenham a liberdade e o acaso.
Do mesmo modo que Sartre, Bachelard vê na imaginação uma “função do irreal”[33] e uma faculdade de deformação. Longe de ser uma faculdade interior de evocação, a imaginação confunde-se, portanto, com o trabalho e o jogo sobre a matéria. A imaginação está assim presente na predileção de certos pintores por um elemento: a terra de Courbet, a água de Corot, o fogo de Van Gogh. A presença desses elementos materiais na obra de grandes artistas decorre do que Bachelard denomina imaginação material, tema do quarto capítulo de nossa investigação.
Contra a tendência da filosofia moderna de compreender a imaginação no contexto psicológico e/ou gnosiológico, Sartre mostra o “coisismo” das explanações racionalistas e associacionistas.
As análises sartreanas denunciam uma “metafísica ingênua da imagem”[34], que consiste em fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela mesma como uma coisa. Essa ontologia, esse coisismo ingênuo das imagens, diz Sartre, é a de todo mundo. Uma bela ilustração nos é fornecida pela teoria epicurista dos simulacros, conforme já assinalamos anteriormente. As coisas não cessam de emitir “simulacros”, “ídolos”, que são simplesmente envelopes. Esses envelopes têm todas as qualidades do objeto, o conteúdo, a forma, etc. São mesmo, exatamente, objetos. Uma vez emitidos, existem em si como objeto emissor e podem errar pelos ares durante um tempo indeterminado. Haverá percepção quando um aparelho sensível reencontrar e absorver um desses envelopes.
A imagem acaba recebendo uma espécie de inferioridade ontológica em relação à coisa que representa. Em resumo: “a imagem é uma coisa menor. A ontologia da imagem está agora completa e sistemática: a imagem é uma coisa inferior, que tem sua existência própria, que se dá à consciência como qualquer coisa e que mantém relações externas com a coisa da qual é imagem. Vemos que é somente essa inferioridade vaga e mal definida (que poderá não ser mais do que uma espécie de fraqueza mágica ou que descreveremos, ao contrário, como um grau menor de distinção e de clareza) e essa relação externa que justificam a denominação de imagem; adivinham-se também todas as contradições que vão resultar daí”.[35]
Esta ontologia coisista da imagem surge, na visão de Sartre, em todos os psicólogos que estudaram a questão, tendo como fundamento os grandes metafísicos dos séculos XVII e XVIII: Descartes, Leibniz e Hume. Sempre que propuseram soluções para o problema imagem-pensamento, aceitaram o postulado de uma imagem-coisa.
Segundo Sartre, as três soluções fixadas foram as seguintes: para Descartes e os cartesianos, existe um pensamento puro, sempre suscetível de se substituir à imagem como a verdade ao erro, como o adequado ao inadequado; há, pois, entre a imagem e a idéia, um verdadeiro hiato; há um reino do pensamento radicalmente distinto do reino da imagem. Para Hume e os empiristas, de acordo com o lema sensacionista nihil est in intellectu quod nom fuerit prius in sensu, o pensamento é redutível ao sistema de imagens; não há no espírito nada mais do que impressões e cópias dessas impressões que são as idéias; idéias e impressões não diferem em natureza, o que implica que a percepção não se distingue em si mesma da imagem; o que há, portanto, é um mundo de puras imagens. O esforço de Leibniz será o de estabelecer uma forma de continuidade entre dois modos de conhecimento: imagem e pensamento, sendo a imagem penetrada de intelectualidade; em decorrência desse fulcro racionalista, a única diferença entre a imagem e a idéia é a de que em um caso a expressão do objeto é confusa e, em outro, clara; há, portanto, um mundo de imagem, atrás do qual é preciso reencontrar um pensamento, que aparece a não ser indiretamente como a única razão possível da organização e da finalidade que se pode constatar no universo das imagens.
Nessas três soluções, a imagem guarda uma estrutura idêntica: permanece uma coisa. No século XIX, a psicologia positiva repete o mesmo erro: aceita o postulado de que a “imagem nada mais é do que uma coisa e que todas elas são igualmente possíveis e igualmente defeituosas”.[36]
Nem mesmo o combate de Bergson ao associacionismo, escapa da confusão supracitada. Comenta Sartre: “A concepção da imagem proposta por Bergson está longe de ser tão diferente como ele pretende da concepção empirista: para ele, como para Hume, a imagem é um elemento de pensamento que adere exatamente à percepção, apresentando a mesma descontinuidade e a mesma individualidade que esta. Em Hume, ela aparece como um enfraquecimento da percepção, um eco que a segue no tempo; Bergson faz dela uma sombra que duplica a percepção: nos dois casos, ela é um decalque exato da coisa, opaca e impenetrável como a coisa, rígida, fixa, coisa em si mesma. As imagens nunca serão, na realidade, mais do que coisas”.[37]
A superação dos erros perpetrados pela tradição, surge do método fenomenológico husserliano. É pela descrição eidética que convém começar uma psicologia fenomenológica da imagem. Não há, não poderia haver imagens na consciência. A imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa, é consciência de alguma coisa. Perceber e imaginar são estâncias diferentes, embora possam ser simultâneos.
Primeiro, a imagem difere do percebido porque ela é um análogo do objeto ausente, a sua presentificação. Segundo, a imaginação desfaz a percepção, como quando uma criança brinca: os objetos, os lugares e as pessoas nada têm a ver com seu sentido percebido. A mesa é um avião, o tapete é o mar e a vassoura é a espada do herói.
A imaginação é uma capacidade irrealizadora: ela é capaz de tornar ausente o que está presente, ou de tornar presente o ausente. A força irrealizadora da imaginação é uma força prospectiva, criadora. Para evitar os equívocos já cristalizados em torno do conceito de imaginação, o mais correto, conclui Sartre, é chamar essa dimensão da consciência de Imaginário.
A consciência imaginativa é, como se viu, uma forma de consciência diferente da percepção e da memória, tendo como ato o imaginar e o correlato o objeto-em-imagem, o imaginário.
Embora reconheça em Sartre o acerto das críticas, Bachelard ainda o considera “cartesiano malgré lui-même”, ao ignorar a contribuição dos românticos, corrente de pensamento que tanto exaltou a força da imaginação criadora, e por se utilizar da fenomenologia como suprema exaltação do olhar.
O distanciamento da posição bachelardiana em relação a Sartre reside na tendência intelectualista, privilegiadora do visual e do formal, distanciada do material e da manualidade, que fica patente na literatura sartreana. Em A Náusea, na repugnância de Roquentin pelo pastoso, como em O Ser e o Nada, que medita longamente sobre o viscoso, percebe Bachelard o velho vício da ocularidade, a hegemonia da visão ociosa herdada da fenomenologia de Husserl. E conclui:
“Nossa luta contra o viscoso não pode ser descrita por colocações entre parênteses. Somente a vista pode por entre parênteses, cerrar pálpebras, deixar o interior para amanhã, ocupando-se primeiramente em inspecionar as circunvizinhanças”.[38]
Toda a aguda análise sartreana da imaginação parte sempre do predomínio do olhar. A primeira frase do livro A Imaginação já demonstra este comprometimento: “Olho esta folha branca posta sobre minha mesa…”[39] A crítica sartreana ao coisismo não atinge o aspecto que caracteriza as interpretações tradicionais, ou seja, a imagem enquanto limitada ao território da imaginação formal e como desdobramento do puro ver.
A fenomenologia dinâmica e amplificadora[40] de Bachelard difere totalmente da fenomenologia estática e niilista de Sartre, que em demasia fiel a Husserl, põe entre parêntesis o conteúdo imaginativo para evidenciar, nessa lacuna, o sentido do imaginário. Bachelard, muito semelhante ao Hegel que define a fenomenologia como “ciência da experiência da consciência”, torna esse conteúdo imaginativo pleno, até saturado de imagens. O imaginário confunde-se, então, com o dinamismo criador da amplificação poética.
Como já se nota, a constituição da imaginação segundo Bachelard é inteiramente outra. A imaginação material não opera a partir do distanciamento da visão, não é contemplativa. Ao contrário, desafia a resistência e as forças concretas, num corpo-a-corpo com a materialidade do mundo, numa atitude dinâmica e transformadora.
Ao exame das polêmicas de Bachelard dirigidas a Sartre, percebe-se que o conceito de imaginação material contém uma crítica básica à hegemonia da percepção visual. Presente em toda tradição do Ocidente e contaminando todas as análises sobre a imaginação, este vício de ocularidade será atacado por Bachelard, permitindo uma nova compreensão do fenômeno da imaginação. Além da imaginação formal, dependente do sentido da visão, teremos a imaginação material, resultante do trabalho direto da mão humana sobre a matéria das coisas.
Antes de desenvolvermos o conceito bachelardiano de imaginação material, que constitui a nosso entender a sua grande contribuição à imaginação poética, devemos precisar o que entende o autor pelo vício de ocularidade.
3º Capítulo
A Crítica de Bachelard ao Vício da Ocularidade
Todo o vocabulário básico do pensamento ocidental herdou uma predominância de metáforas visuais aplicadas ao conhecimento: evidência, perspectiva, enfoque, leitura, ponto-de-vista, teoria, idéia (em grego eidos, “forma visível”), intuição (do latim intuere, “olhar atentamente”), inteligência (do latim intus legere, “ler dentro”), visão-de-mundo, visada, etc.
A tradição filosófica tem dado preeminência à visão como o sentido co-extensivo ao próprio pensar, a exemplo dos gregos antigos que já entendiam o ato de pensar como extensão do ato de ver. Expõe Aristóteles na Metafísica, Livro I, 980 a: “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando nos propomos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre.”[41] (grifo nosso).
A tese de Anaxágoras, de que o homem é o mais inteligente dos animais por possuir mãos, é invertida e sufocada pela corrente contemplativa de matiz aristotélica: o homem não pensa porque tem mãos, dirá o estagirita, ao contrário, tem mãos porque pensa. A hegemonia da visão e o desprezo da manualidade, decorre, sem dúvida, do escravismo da sociedade grega, que desvaloriza o trabalho manual, próprio de escravos ou classes subalternas, e prestigia o trabalho intelectual, próprio do ócio dos cidadãos livres.
A hegemonia da visão sobre os demais sentidos é o que Bachelard critica em toda a sua obra. Trata-se do vício de ocularidade[42], característico da Filosofia Ocidental. É contra o império do visual que se desencadeia uma luta acirrada, tentando a todo custo desembaraçar a filosofia das “determinações visuais”.
Por expressar-se em termos de “visões”, a fenomenologia clássica, que associa a consciência a uma intencionalidade direcional, corre o risco de cair no idealismo. A fenomenologia bachelardiana da imaginação, ao contrário, não vê as coisas com os olhos. Uma filosofia que vê com os olhos ainda está presa à contemplação do espetáculo. Para ela, o mundo não passa de uma metáfora e sua resistência é apenas uma “obscuridade”.
Daí a luta de Bachelard contra a “ocularidade” e a “forma”. O espírito não é algo que se deve formar, mas reformar. Donde a importância de uma filosofia capaz de admitir obstáculos, de viver tensões, o dinamismo do trabalho e da dificuldade. O erro básico da filosofia é a ociosidade do espetáculo, postulando uma cosmologia global e a exposição sinótica ou sistemática de uma ciência que pode ser apreendida pelo olhar. A filosofia bachelardiana postula a atividade, a aplicação e a matéria, isto é, uma “fenomenotécnica” capaz de levar em conta o regional e o circunscrito.
No domínio poético, Bachelard combate o que ele chama de “reprodução”, ou seja, os reflexos ou as aparências, as superfícies e os objetos, e mostra que tudo é movimento, tudo é contínuo élan: “O verdadeiro domínio para se estudar a imaginação não é a pintura, mas a obra literária, a palavra, a frase”[43]. É lendo que revivemos nossa tentação de sermos poetas. E todo leitor alimenta e recalca, ao mesmo tempo, um desejo de ser escritor, de ser criador com o material da linguagem humana.
Só há poesia verdadeira onde houver criação. A criação poética é um fenômeno da liberdade. Portanto, se quiser sobreviver, o filósofo não se pode contentar em perscrutar os pensamentos. Pouco importa o recenseamento que ele fizer de seus conhecimentos. O que precisa fazer é remanejar seus conhecimentos. Precisa saber receber mais do que dar ou conquistar. Precisa superar o método de repetir o que sabe para se lançar na busca do que não sabe. Os pontos de partida absolutos são falsos. O pensamento primeiro deve ser reorganizado. Não temos o direito de nos fechar nos sistemas de nossas escolhas. Temos que estar abertos à esperança de um olhar novo.
Decorre desse fato a urgente necessidade de abandonarmos muitas tradições filosóficas sobre a realidade do mundo sensível e sobre a clareza do espírito. Para tanto, Bachelard nos mostra a importância do onirismo ativo (devaneio) e nos revela as imagens ultrapassando as formas e liberando uma energia material, ao mesmo tempo que engajando a dialética de um trabalho, de um élan e de uma esperança.
Neste sentido, a poética de Bachelard vem a ser um caminho para a descoberta das forças vivas da Natureza e da profundidade dos dramas humanos. Razão pela qual Bachelard interessou-se pelo estudo da imaginação material, quer dizer, por esta necessidade de penetração que, “para além das seduções da imaginação das formas, vai pensar a matéria, sonhar a matéria, viver na matéria, ou então – o que dá no mesmo – materializar o imaginário”.[44]
O vício de ocularidade fatalmente coloca a imaginação sob o jugo da imaginação formal, ignorando ou menosprezando a imaginação material, que dá vida à causa material e se vincula às quatro raízes ou elementos primordiais que Empédocles de Agrigento apontava como as quatro matrizes do cosmos: o ar, a água, a terra, o fogo.
A imaginação formal, fundamentada na visão, caminha célere para a abstração e para o formalismo, nos quais cumpre seu destino e realiza plenamente sua índole. Embora fundamental à construção da linguagem lógico-matemática, a elaboração do pensamento formal representa inevitavelmente uma simplificação do que é realmente apreendido, com a escamoteação da materialidade das coisas e das próprias imagens. O que desde Aristóteles era visto como fruto de separação ou abstração da causa formal dos objetos, em direção à captação de sua essência, recebe outra leitura de Bachelard: “Todo pensamento formal é uma simplificação psicológica inacabada, uma espécie de pensamento-limite jamais atingido. Com efeito, ele é sempre pensado sobre uma matéria, em exemplos tácitos, sobre imagens mascaradas. Em seguida, o que se procura é convencer-se de que a matéria do exemplo não intervém. Dá-se, porém, apenas uma prova disso: os exemplos são intercambiáveis. Essa mobilidade dos exemplos e essa sutilização da matéria não bastam para fundamentar psicologicamente o formalismo, pois em nenhum momento se apreende um pensamento no vazio. Seja o que for que se diga, o algebrista pensa mais do que escreve.”[45]
Ou seja, a imaginação formal, que nutre a formalização, resulta de uma operação desmaterializadora, que intencionalmente “sutiliza” a matéria ao torná-la apenas objeto de visão, ao vê-la apenas enquanto figuração, formas e feixes de relações entre formas e grandezas, como uma fantasmática incorpórea, clarificada mas intangível. E é, na verdade, resultado da postura do homem como mero espectador do mundo, do mundo-teatro, do mundo-espetáculo, do mundo-panorama, exposto à contemplação ociosa e passiva.
Já a imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem. Na linhagem do “filósofo-voyeur” desenvolveu-se toda a tradição intelectualista que concebe a imagem como simples simulacro sem vida e essencialidade próprias – apenas o duplo ou fantasma de um objeto já percebido – e cujo significado deve sempre ser traduzido em conceito.
Essa concepção da imagem decorre, como mostra Bachelard, da tradicional maneira de se encarar a imaginação: como faculdade meramente copiadora e, por isso mesmo, subalterna e sem autonomia, dependente, por um lado, do objeto do qual produziria as cópias e, por outro, do conceito no qual essas cópias deveriam necessariamente se converter, para mostrar, fora delas próprias, sempre como alegorias, seu significado verdadeiro.
Reafirmando as críticas bachelardianas ao fundamento ocularista, destacamos dois autores que, embora em contextos diferentes, exemplificam o privilégio do sentido visual: Santo Agostinho e Martin Heidegger.
Inspirado por teses cristãs, Santo Agostinho aponta nas Confissões, Livro X, Capítulo 35, a primazia do ver sobre os demais sentidos, quando dele nos utilizamos para enfatizar uma sensação: “É aos olhos que propriamente pertence o ver. Empregamos, contudo este termo mesmo em relação aos outros sentidos, quando os usamos para obter qualquer conhecimento. Assim, não dizemos: ouve como brilha, cheira como resplandece, saboreia como reluz, apalpa como cintila. Mas já podemos dizer que todas essas coisas se vêem. Por isso não só dizemos: vê como isto brilha, mas também: vê como ressoa, vê como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro. É por isso que se chama concupiscência dos olhos à total experiência que nos vem pelos sentidos.”[46]
Santo Agostinho retoma algumas passagens, como a Primeira Epístola de São João, Capítulo 2, versículo 16, que condena “os olhos insaciáveis”, a volúpia de ver, como coisas que vêm do mundo e nos afastam de Deus-Pai.
Recorrendo a Santo Agostinho, Martin Heidegger destaca no parágrafo 36 de Ser e Tempo, no correr de suas análises do ser cotidiano da pre-sença (Dasein), o tema da curiosidade, da voracidade insaciável de novidades.
Diz Heidegger: “A constituição fundamental da visão mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo curiosidade. A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver.”[47]
O primado do ver e a concupiscência dos olhos atestam o fundamento ocularista do pensamento ocidental, confirmando as análises bachelardianas. A predominância da visão e das metáforas visuais produz a imaginação formal. Mas as forças imaginantes da nossa mente desenvolvem-se em duas direções: uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa material; ou, mais precisamente, a imaginação formal e a imaginação material. Estes dois conceitos, diz Bachelard, são indispensáveis a um estudo filosófico completo da criação poética.
Aqui principia uma das contribuições mais importantes e peculiares de Bachelard à compreensão do fenômeno poético. A partir da imaginação criadora e ativa, a imaginação material descortina um novo universo de imagens poéticas: “Além das imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há – conforme mostraremos – imagens da matéria, imagens diretas da matéria. A vista lhes dá nome, mas a mão as conhece. Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leves. Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração.”[48]
O próprio Bachelard confessa seu espanto com a carência da causa material na filosofia estética. Só poderemos considerar uma doutrina completa da imaginação humana quando tivermos atribuído às formas a sua exata matéria. Primeiro passo, como vimos, é combater e superar a hegemonia da visão e das metáforas visuais (vício da ocularidade). Segundo passo é perceber que a imagem é uma planta que necessita de terra e de céu, de substância e de forma, no sentido do aprofundamento e do impulso da matéria. Só assim a meditação sobre a matéria educa uma imaginação aberta.
Na introdução de A Água e os Sonhos, verdadeiro manifesto de criação da poética da imaginação material, Bachelard estabelece seu programa de investigação: “Em vista dessa necessidade de seduzir, a imaginação trabalha mais geralmente onde vai a alegria – ou pelo menos onde vai uma alegria! -, no sentido das formas e das cores, no sentido das variedades e das metamorfoses, no sentido de um porvir da superfície. Ela deserta a profundidade, a intimidade substancial, o volume. Entretanto, é sobretudo à imaginação íntima dessas forças vegetantes e materiais que gostaríamos de dedicar nossa atenção nesta obra. Só um filósofo iconoclasta pode empreender esta pesada tarefa: discernir todos os sufixos da beleza, tentar encontrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam, ir à própria raiz da força imaginante. No fundo da matéria cresce uma vegetação obscura; na noite da matéria florescem flores negras. Elas já têm seu veludo e a fórmula de seu perfume.”[49]
O fundamento ocularista, como foi demonstrado, conduz a imaginação para a abstração e o formalismo, fazendo do homem mero espectador e do mundo mero espetáculo. À imaginação cuja índole é visual, Bachelard chama de imaginação formal. Idealizando a matéria ou a materialidade das coisas para reduzi-las às figurações, por exemplo, lógico-matemáticas, a imaginação formal faz do mundo objeto de contemplação ociosa, escamoteando a matéria viva das coisas e das próprias imagens.
Uma doutrina filosófica da imaginação deve, pois, estudar as relações da causalidade material das imagens, mesmo as imagens poéticas, que têm, do mesmo modo que a escultura, uma matéria. A imaginação material é o conceito basilar de toda a poética bachelardiana.
4º Capítulo
A Imaginação Material segundo Bachelard
Não há uma tentativa de uma teoria unificada da imaginação nas obras de Bachelard sobre a criação literária. Não é seu objetivo responder a questões do tipo: o que é imaginação? o que é imagem? Antes disso, ele perguntaria: qual é nossa compreensão das imagens? Para fixar esta questão mais precisamente, devemos examinar como ela tornou-se um problema importante para o próprio Bachelard e seguí-la em seus vários estágios de estudo.
Devemos retornar ao livro A Formação do Espírito Científico, para compreender o fato de que a entusiástica reabilitação da imaginação não é claramente empreendida; possui esta uma “força convincente”, quando analisada por um filósofo que explorou completamente todos os perigos que a imaginação traz ao conhecimento objetivo. O subtítulo da obra, Contribuição para uma Psicanálise do Conhecimento, indica de que modo a função da psicanálise é separar a objetividade da subjetividade individual e denunciar “as tentações que distorcem as induções”[50]. Bachelard mostra que o erro sempre ocorre primeiro. A verdade é uma conquista progressiva; e, mais importante, o erro tem uma estrutura positiva. Sua intensa resistência à correção prova não ser um mero defeito do conhecimento, mas a expressão de interesses profundos e instintos que possuem uma “estranha estabilidade”. Estes impulsos produzem imagens aberrantes e linguagem prolixa. “O menos que sabemos, mais denominamos”.[51]
Por natureza, as projeções subjetivas que obstam o progresso da ciência são similares aos impulsos que produziram as primeiras teorias pré-científicas; ciência e poesia devem ter a mesma fonte. Por um lado, a ciência efetua uma análise espontânea através do uso extensivo da matemática, que despersonaliza e purifica a linguagem científica. Tal como o “Aprendiz de Feiticeiro”[52], Bachelard descobre, por outro lado, que as imagens rejeitadas pela ciência possuem uma força irresistível, e ainda o seduzem a estudá-las mais adiante. O impulso imaginativo – nossa “fome por imagens” – é tão básico quanto nosso desejo por conhecimento objetivo. A “lei” da primazia dos erros conduziu Bachelard à sua psicanálise dos elementos.
A Psicanálise do Fogo marca uma nova direção na aplicação pessoal de Bachelard da visão freudiana e pós-freudiana. Nessa obra, a função da psicologia da profundidade não é mais purificar a objetividade, mas explorar a estrutura subjetiva das imagens materiais.
Dentre os elementos preferidos pelos alquimistas[53] do passado (fogo, ar, água e terra), o primeiro a comandar a atenção de Bachelard é o fogo, devido à sua obstinada persistência na pesquisa pseudo-científica e sua resistência à conceituação. Ele descobre que a natureza do fogo é expressa nos tratados científicos do século XVIII com a mesma objetividade que nas obras poéticas de D’Annunzio, Chateaubriand, Novalis e Hoffman. Ao nível da relação elementar entre objeto e sujeito, “o sonho é mais forte que o experimento”[54]. Os textos acerca do fogo dizem mais sobre nós mesmos que sobre o mundo exterior. “O fogo é mais apropriado a arder dentro da alma que sob cinzas”[55]. Ao final do livro, Bachelard completou sua conversão à imaginação: “é o devaneio que delineia os mais longínquos confins de nossa mente”[56].
Nesse ponto de seu estudo, Bachelard insiste que a singularidade das imagens não é uma fantasia gratuita, o “passatempo de um momento fugaz”. Mais além, “as metáforas evocam umas às outras e são coordenadas sem imposição das sensações, de tal modo que o espírito poético é pura e simplesmente uma sintaxe de metáforas”[57]. Esta “inspirada monotonia” de imagens aponta para uma possível estrutura da vida onírica, orientada pelos elementos materiais.
Os elementos materiais refletem nossas almas; mais do que formas, fixam o inconsciente, provendo-nos de uma espécie de leitura direta do nosso destino. A idéia audaciosa de psicanalizar os elementos, chamou atenção imediata à originalidade do trabalho de Bachelard[58]. E também o colocou numa posição ambígua em relação à psicanálise, razão pela qual devemos precisar melhor a zona inconsciente que interessa a Bachelard.
O filósofo da imaginação é tomado com freqüência e simplesmente como um crítico psicanalítico. Entretanto, alguns psicanalistas reprovam-no por não ser fiel às suas doutrinas. É preciso distinguir entre o uso dessa disciplina e sua crítica a ela. Há um entusiasmo genuíno em sua descoberta: as referências ao inconsciente provêm os meios de uma explanação correta e realística das imagens. Isto é óbvio em A Psicanálise do Fogo, provavelmente seu livro mais freudiano.
É patente a mudança bachelardiana no padrão de seus títulos, a começar com o segundo livro sobre os elementos: L’Eau et les Rêves. De agora em diante, o termo psicanálise está associado quase exclusivamente à ortodoxia freudiana e sempre referido de modo crítico e negativo, enquanto as referências positivas são feitas aos sucessores mais ou menos dissidentes de Freud, em particular Carl Gustav Jung.
Em L’Eau et les Rêves, Bachelard explica sua recusa em considerar as imagens em termos de impulsos orgânicos em decorrência de seu precário conhecimento médico, alegando que esta limitação o impede atingir a mesma profundidade da psicanálise. A verdadeira razão é que ele quer captar a específica originalidade do símbolo sem reduzi-lo às suas causas. Por isso, prefere o conceito junguiano de arquétipo, que oferece a vantagem de incluir o simbolismo no inconsciente. Falando estritamente, um arquétipo não é uma imagem. Para Jung, é energia psíquica condensando espontaneamente o resultado de experiências orgânicas e ancestrais em imagens; pode ser designado como o paradigma de uma série de imagens. Quando Bachelard usa qualquer conceito psicanalítico, limita sua investigação à vida presente das imagens, desconsiderando o fundo histórico e antropológico dos arquétipos, para, em vez disso, empreender uma “arqueologia da alma humana”.
Bachelard prefere, em particular, o devaneio ao sonho noturno. O último é capaz de belas visões, de espantosas fantasmagorias, mas elas não são verdadeiramente experimentadas. É um pensamento que outro sujeito esteve sonhando em nós. A identificação do eu com o sonho pode apenas ser alcançada após o acontecimento, quando o sonho é relatado. O psicanalista resolve o mistério ontológico do sonho, observando nele os símbolos de todos os homens. Para Bachelard, tal simbolismo comum é incapaz de iluminar as variações das imagens estéticas, rejeitando, consequentemente, o conhecimento do sonho como irrelevante ao estudo da imaginação. Prefere concentrar-se no devaneio, que não é, como freqüentemente se acredita, uma dispersão da consciência ou a perda de contato consigo mesmo ou com a realidade. A própria etimologia de devaneio (de + vanus, “em vão”) sugere a fútil fantasia, o ato de imaginar coisas vãs. Não será esse o sentido bachelardiano.
A meditação solitária em contato com o mundo é “este estranho devaneio escrito, que se forma, de fato, no ato de escrever[59]. Une, de modo paradoxal, as alegrias da evasão e a presença de um cogito, que emerge das sombras para a superfície e é “imediatamente fixado ao seu objeto, à sua imagem”[60]. O capítulo “Cogito du Rêveur”[61] atinge seu ápice quando estabelece a relação entre os devaneios e o(s) cosmos que ele cria. O devaneio assume o inteiro universo em suas imagens. Simultaneamente criativo e natural, seu valor é indissoluvelmente estético e ontológico.
Por essa razão, Bachelard destina o aparato de testes e experimentos sobre os sonhos noturnos à psicologia da profundidade, escolhendo aplicar deliberadamente sua psicanálise às obras literárias. “Posso apenas conhecer o homem através da leitura, maravilhosa leitura, que me permite julgar o homem pelo que ele escreve”[62]. Esta predileção indica a total confiança na emergência do homem através da linguagem. Bachelard quer manter suas análise ao nível por ele descrito como um “enxerto botânico”. Recusa-se a explorar origens orgânicas da imaginação e, em particular, complexos sexuais. Em vez disso, busca o homem para além do enxerto, onde a cultura deixou seus traços na natureza. O psicanalista, por fim, ao procurar a realidade sob a fábula, destrói a primazia da imagem. Fornece ao símbolo uma redação conceitual, “explicando a flor pelo estrume”[63]. O enxerto é uma marca verdadeiramente humana. Aliás, é através desses “sinais culturais” que Bachelard identifica os complexos, que não são, para ele, fixações patológicas, mas orientações espontâneas da imaginação educada pela leitura. Podem ser designações úteis às fusões entre sonhos naturais e tradições adquiridas. Bachelard forja, então, a expressão “complexos culturais”, e os nomeia segundo os autores ou heróis literários: Novalis, Ophelia, Swinburne, dentre outros.
Não obstante, chama atenção ao duplo aspecto: os “complexos culturais” enlouquecem ou estimulam. De fato, as palavras nos são dadas carregadas de hábitos culturais e utilitários. Tendem a se tornar um código léxico no qual o signo desaparece em favor do seu significado. Os símbolos possuem um passado cultural cuja intensa repetição tende a impor à poesia uma mitologia acadêmica. Bachelard se apraz em denunciar a superficial e vã mitologia encontradas por exemplo, no cisne de Leda, de Pierre Louÿs: “o belo pássaro branco era como uma mulher, esplêndido e cor-de-rosa como a luz”. O que temos aqui, são imagens superpostas, que não enriquecem uma emoção particular. É tão somente quando são arrebatados pelos grandes poetas, que os velhos mitos e as velhas palavras reconquistam seu significado.[64] Devem, de algum modo, ser reativadas pela imaginação material, que dá vida à correspondência elementar entre o homem e o mundo. Para Bachelard, a imaginação precisa infundir uma segunda existência às imagens familiares, deve criar “metáforas de metáforas”.
Bachelard aumenta o ataque à psicanálise em seus três últimos livros. Na introdução a La Poétique de L’Espace, descreve uma importante mudança em seu estudo da poesia. Ele próprio detecta, retrospectivamente, na última parte do seu trabalho, uma persistente “obstinação racionalista”, que ele procura agora abandonar para uso completo da fenomenologia.
Resumidamente, a abordagem fenomenológica é a descrição da relação imediata do fenômeno com uma consciência particular. Bachelard retém da fenomenologia a advertência em voltar aos próprios fenômenos, pondo de lado a crença ingênua na realidade das coisas e abordando os fenômenos através da consciência intencional, que é, por natureza, sempre a consciência de alguma coisa. Isto permite a Bachelard renovar suas precauções contra a tentação de estudar as imagens como coisas. As imagens são vividas, experimentadas, re-imaginadas, num ato de consciência que restitui de uma só vez sua intempestividade e sua novidade.
Por conseguinte, a imagem poética não duplica a realidade presente e não é o eco do passado. Este pode ser provocado por circunstâncias ocasionais, mas não possui causas verdadeiras. O melhor caminho para estudar as imagens é explorar seu poder de trans-subjetividade. Elas reverberam na consciência do leitor e o levam à recriação enquanto comunica-se com o poeta.
Apesar de uma aparente oposição entre os livros psicanalíticos e fenomenológicos de Bachelard, seria artificial dividir sua obra em duas fases metodológicas. De fato, sua descrição do devaneio é fenomenológica desde seus primeiros trabalhos[65]. E Bachelard jamais repudia a função dos elementos materiais, desde que possuam energia arquetípica.
Se a inovação no campo epistemológico, no tocante ao dualismo racionalismo/empirismo, consistiu na epistemologia convergente ou concordatária do diálogo entre razão e experiência, a proposta bachelardiana em poética fundamenta-se na superação do dualismo sujeito/objeto pelo confronto energético corpo/matéria. A imaginação material resulta desse corpo-a-corpo das potências humanas com as resistências da matéria.
Ao invés da razão contemplativa, da razão ociosa, a razão trabalhadora, aliada da manualidade, o que Bachelard denomina materialismo técnico: no lugar de fenomenologia, fenomenotecnia; a ciência contemporânea é uma fábrica de fenômenos.
E além da imaginação formal, que bem cumpre seu papel nas formulações de âmbito lógico-matemático, a imaginação material, a imaginação ativa, não distanciada como pura visão, que recupera o mundo como provocação concreta e como resistência. A razão operante e a imaginação material são ambas o produto da manipulação dos obreiros da ciência e da arte.
A expressão filosófica que distingue os dois tipos de imaginação, encontra-se na introdução da obra A Água e os Sonhos. Segundo palavras do próprio Bachelard, há uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa material; ou, mais brevemente, a imaginação formal e a imaginação material. São dois conceitos indispensáveis a um estudo filosófico completo da criação poética. Além das imagens da forma, tantas vezes estudadas pelos psicólogos da imaginação, há imagens da matéria, imagens diretas da matéria. A vista lhes dá nome, mas a mão as conhece.
As imagens da matéria são sonhadas substancialmente, intimamente, afastando as formas e o devir das superfícies. Há obras em que as duas forças imaginantes atuam juntas, sendo até mesmo impossível separá-las completamente. Para demonstrar a existência da imaginação material, Bachelard busca “ir à própria raiz da força imaginante”[66], ou seja, à imaginação íntima das forças vegetantes e materiais.
A imaginação material resulta do comprometimento do corpo com a concretude das coisas. O poeta da mão é o demiúrgo a serviço das forças felizes. Os operários da cidade científica, povoada pelos trabalhadores coletivos da descoberta e da demonstração, avizinham-se dos operários da cidade poética, habitada pelos trabalhadores solitários da celebração. A filosofia bachelardiana é propriamente não uma ontologia (Filosofia do Ser), mas uma ontogenia, uma filosofia da obra, da ontogênese, conforme mostramos no primeiro capítulo.
A imaginação material vincula-se às “quatro raízes de todas as coisas” apontadas por Empédocles de Agrigento (Fragmento 6): o fogo, o ar, a terra e a água. Os quatro elementos da física pré-socrática são fontes inesgotáveis para os devaneios criadores, permanecendo como essências materiais recorrentes, como substâncias elementares que alimentam a criatividade interminável da arte.
Ainda na introdução de A Água e os Sonhos encontramos a proposta bachelardiana de uma lei dos quatro elementos [67]. O filósofo estabelece, no reino da imaginação, uma classificação das diversas imaginações materiais conforme elas se associam ao fogo, ao ar, à água ou à terra. Se toda poética deve receber componentes de essência material, é ainda essa classificação pelos elementos materiais fundamentais que se deve aliar mais fortemente as almas poéticas. É preciso que um devaneio encontre sua matéria, é preciso que um elemento material lhe dê sua própria substância, sua própria regra, sua poética específica.
A fidelidade aos elementos nasceu, na antigüidade, com os primeiros sistemas metafísicos dos pré-socráticos. A doutrina dos quatro elementos é uma das idéias mais persistentes da cultura ocidental. Perpassa a antiga medicina hipocrática, cujos fluidos corporais são humores associados aos elementos, e ainda informa doutrinas esotéricas que persistem em nossos dias.
A formulação básica vem de Empédocles, fragmento 6:
“Tessara gar panton rizomata proton
akoue Zeus argues Hera te jeresbios
ed Aidoneus Nestis q e dakriois
teggei kroynoma broteion.”
“As quatro raízes de todas as coisas
ouve primeiro: Zeus brilhante, Hera
portadora da vida, Edoneu e Néstis,
que com suas lágrima umedece a
fonte dos mortais.”[68]
Depurando a linguagem mitológica de Empédocles, Zeus corresponde ao fogo, Hera ao ar, Edoneu à terra e Néstis à água. Há quatro elementos materiais, sujeitos a mudanças alternadas, ora misturados pela força agregadora (Philias, o amor), ora separados pela força desagregadora (Neikous, a discórdia).
Não é à toa, diz Bachelard, que os primeiros filósofos associavam seus princípios formais a um ou aos quatro elementos fundamentais, que se tornavam assim as marcas de “temperamentos filosóficos”. Nesses sistemas filosóficos, o pensamento erudito está ligado a um devaneio material primitivo, a sabedoria tranquila e permanente se enraíza numa constância substancial. E, se essas filosofias simples e poderosas conservam ainda fontes de convicção, é porque ao estudá-las encontramos forças imaginantes totalmente naturais.
Mais ainda que os pensamentos claros e as imagens conscientes, os sonhos e os devaneios estão sob a dependência dos quatro elementos. Uma psicologia das emoções estéticas deveria incluir o estudo dos devaneios materiais que antecedem à contemplação. Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho. É preciso restituir ao pensamento sua “avenida de sonhos”.
Desse modo compreendemos que a um elemento material como o fogo se possa associar um tipo de devaneio que comanda as crenças, as paixões, o ideal de toda uma vida. Há um sentido em falar da estética do fogo, da psicologia do fogo e mesmo da moral do fogo. Uma poética e uma filosofia de fogo condensam todos esses ensinamentos. Ambas constituem esse prodigioso ensinamento ambivalente que respalda as convicções do coração pelas instruções da realidade e que, vice-versa, faz compreender a vida do universo pela vida do nosso coração.
Todos os elementos prodigalizam certezas ambivalentes, confidências secretas e mostram imagens resplandecentes. Todos os quatro têm seus fiéis seguidores, que acreditando serem leais a uma imagem favorita, estão, na verdade, sendo fiéis a um sentimento humano arcaico, a uma realidade orgânica primordial, a um temperamento onírico fundamental.
Cada elemento é profundamente um sistema de fidelidades poéticas. Na essência do pensamento das águas, por exemplo, temos o psiquismo hidrante. E dois complexos culturais, isto é, atitudes irrefletidas que comandam o próprio trabalho da reflexão: o Complexo de Caronte – as águas como símbolo da nossa última viagem – e o Complexo de Ofélia – a água como elemento da morte jovem e bela.
Os quatro elementos da física pré-socrática, portanto, são fontes inesgotáveis para os devaneios criadores, as fantasias poetificantes dos grandes artistas. Permanecem essências materiais recorrentes, substância arquetípicas que alimentam a novidade interminável da arte.
O elemento fogo e suas imaginações materiais produzem o temperamento poético do psiquismo ígneo. O elemento ar, o psiquismo aéreo. O elemento terra, o psiquismo terrestre. O elemento água, o psiquismo hidrante ou hídrico. A imaginação material demonstra a objetividade poética de nossa ancoragem no mundo.
Assim como falamos, na química, na tetravalência do carbono, ou seja, na propriedade do átomo de carbono em estabelecer ligações quadrivalentes, podemos identificar, a partir da poética bachelardiana, uma tetravalência da imaginação. No embate homem e mundo, na dinamologia da mão e da matéria, a imaginação material liga-se de pronto aos quatro grandes reinos cósmicos: o fogo, o ar, a terra e a água.
A imaginação constelar dos quatro elementos nega o mundo enquanto mero espetáculo e faz dele a sua provocação. A matéria oferece resistências, enquanto a mão humana luta e supera os obstáculos. Há implícita na poética bachelardiana uma defesa constante do trabalho, caracterizado especialmente pela maravilha anatômica que vem a ser a mão humana.
A mão ociosa e acariciadora que percorre linhas perfeitas, que inspeciona o trabalho depois de concluído, deixa-se encantar com uma geometria fácil. A mão ociosa conduz à filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No domínio da estética, o predomínio dessa visualização do trabalho acabado conduz, de modo natural, à supremacia da imaginação formal.
Na direção contrária a mão trabalhadora e imperiosa apreende a dinamogenia da realidade, trabalhando uma matéria cujo dinamismo e resistência assemelham-se a uma “carne amante e rebelde”[69].
Ao insistir na distinção entre a imaginação enquanto simples registro passivo de experiência e a imaginação material que, aliada à vontade, é poder e criação, Bachelard endereça críticas à Freud e Sartre. A psicanálise nascida em meio burguês, negligencia o aspecto materialista da vontade humana. O psicanalista não percebe que o trabalho sobre os objetos, contra a matéria, é uma espécie de psicanálise material. Sartre, também marcado pelo “vício da ocularidade”, tende a traduzir em seus romances, imagens em termos racionais, desconhecendo, entretanto, as peculariedades da imaginação material e dinâmica. As imagens sartreanas do pastoso e do viscoso para simbolizar a irracionalidade que suscita a experiência da náusea, são equívocos de quem ignora o corpo-a-corpo com a matéria.
A razão laboriosa e operante, a imaginação material e dinâmica, ambas são o produto da manipulação dos obreiros do laboratório científico e do laboratório poético. Em textos esparsos, recolhidos num volume sugestivamente intitulado Le Droit de Réver, Bachelard escreve elegias à mão laboriosa.
Alguns exemplos:
1. Elogio da mão – “O mundo trabalha. Na imaginação do gravador trabalhador, tudo que possui forma tem força, tudo que tem forma de mão adquire valor de ferramenta.”[70]
2. Matéria e mão – “Para o gravador a matéria existe. E a matéria existe imediatamente sob sua mão obrante. Ela é pedra, ardósia, madeira, cobre, zinco… O próprio papel, com seu grão e sua fibra, provoca a mão sonhadora para uma rivalidade da delicadeza. A matéria é, assim, o primeiro adversário do poeta da mão. Possui todas as multiplicidades do mundo hostil, do mundo a dominar. O verdadeiro gravador começa sua obra num devaneio da vontade. É um trabalhador. Um artesão. Possui toda a glória do operário. Essa consciência da mão no trabalho renasce em nós na participação no ofício do gravador. Não se contempla a gravura; a ela se reage, ela nos traz imagens de despertar. Todos os sonhos dinâmicos, dos mais violentos aos mais insidiosos, do sulco metálico aos traços mais finos, vivem na mão humana, síntese da força e da destreza.”[71]
A compreensão do devaneio dinâmico clarifica o processo de materialização das imagens. Descobrimos, estudando os elementos materiais, que “a imaginação é mais determinada do que pensamos ser”[72]. Há um modo de sonhar bem, de sonhar aceitando o mais adequado a um elemento. Cada elemento sonhado com propriedade é uma lição de maturidade: “Ninguém trata o granito com agressividade infantil”[73].
Bachelard critica as escolhas de Sartre – a suavidade, a viscosidade e a informidade – como símbolos diretos da apreensão do mundo concreto pela consciência humana. Para Bachelard, atribuir ao ser estas qualidades é uma atitude pejorativa, em decorrência das imagens fixadas no momento de seu nascimento material. As imagens de Sartre são um tropismo material do passado congelado. Comentando as imagens de “La Nausée”, Bachelard escreve que a doença do personagem Roquentin está no mundo das imagens materiais, isto é, na sua inadaptação ao dinamismo mais próprio da matéria.
O sujeito sartreano, portanto, não completa o movimento dinâmico da imagem. Para o trabalhador que sabe como impor, através do amassamento e do cozimento, um último estado de dureza à suave farinha, a viscosidade é apenas um “insulto temporário”. O devaneio saudável e feliz prolonga a luta entre a água e a terra, e entre a água e o fogo. O padeiro que busca a proporção adequada de água e farinha, a exata coloração da côdea, é um análogo do poeta trabalhando com misturas imaginárias e dirigindo-as para a beleza das formas.
Ao exame de todas essas considerações, podemos concluir os pontos básicos da análise bachelardiana da imagem e de sua metafísica do poético. Antes de tudo, a poesia não é tradução da vida. Falar de uma poesia descritiva ou narrativa seria contradição nos próprios termos. A essência da poesia é a criação de novas imagens.
É inútil procurar pelos antecedentes de uma imagem. Qualquer tipo de explicação, seja seu tom racionalista, realista ou irônico, pode matar a imagem. De qualquer modo, a poesia expressa não as maravilhas ocasionais de uma psique solipsista, mas a constante re-criação da natureza e da experiência através da fala humana.
A sensibilidade poética pode, não obstante, ser educada. Os ensinamentos da psicologia moderna podem ajudar ao crítico a variar suas perspectivas e hipóteses, mas o melhor treinamento é alcançado através do devaneio, que nos coloca em simpatia com as palavras e as substâncias. A distinção entre bom e mau gosto não tem valor . Bom gosto é somente uma censura adquirida. Bachelard desconsidera o conhecimento de fontes históricas e influências.
As imagens instigam e expandem o devaneio do leitor. Elas repercutem nele. A felicidade poética é narcisista. Pode ser prolongada por um delicado comentário, que procura não destruir a magia sugestiva das imagens. Uma das primeiras tarefas do crítico é detectar as imagens sinceras e autênticas. Os critérios, através dos quais devemos listá-las numa classificação do superficial ao profundo, são os seguintes: recorrência e repetição, inversão das categorias lógicas, proliferação das ambivalências, irradiação com uma resultante anexação de outras imagens, e, acima de tudo, o poder de oferecer a cada leitor as mais ricas sugestões.
A concepção bachelardiana da imaginação defende a autonomia da imaginação criadora frente à tirania da percepção visual. A imaginação material é demiúrgica , criadora de novas sintaxes, de novos jogos de signos, independentes do discurso do mundo habitualmente dado aos sentidos humanos. A imagem não pode permanecer limitada ao território da imaginação formal, como desdobramento do puro ver. Toda poética possui um componente de essência material, uma constante substancial que produz a seiva dos sonhos.
A imaginação material é a faculdade de formar imagens que transcendem a realidade, que cantam a realidade e permitem ao homem ultrapassar sua própria condição humana. A materialidade das imagens decorre de uma inspiração orgânica e elementar. Da mesma forma que se diz que a vida é, no fundo, química, assim a imaginação é, no fundo, material.
Bachelard não é um filósofo da natureza, mas do cosmos. O dinamismo da criatividade cujas forças oníricas são a expressão inconsciente é de origem cósmica. Investigador das duas vertentes da imaginação – a imaginação científica e a imaginação artística – Bachelard reavalia o papel do olhar na construção do imaginário. Denuncia o ocularismo da cultura ocidental e mostra que o vocabulário básico da ciência e da filosofia está marcado pela hegemonia da visão. O “novo espírito científico” exige, porém, o reexame do pressuposto ocularista, que tendera a fazer da realidade um espetáculo a ser contemplado: o fenômeno não é mais propriamente “descoberto”, antes “inventado”, subentendendo uma fenomenotécnica, que revaloriza a noção de manualidade.
Bachelard mostra a existência da imaginação material, ao lado da imaginação formal, baseada na visão. A imaginação material resulta de nossa inserção enquanto corpo no corpo do mundo e alimenta um imaginário que transparece sobretudo nos devaneios, na arte, na filosofia. Esse imaginário resgata o valor da “mão que sonha” e produz realidades artísticas, quer movida pela vontade de criar que a leva a enfrentar a resistência do mundo, quer gerando novas realidades por meios “alquímicos” (por exemplo, na gravura e na pintura).
A imaginação material e dinâmica demonstra a objetividade material de nossa habitação poética no mundo.
Conclusão
A obra multifacetada de Gaston Bachelard abrange os campos da descoberta científica e da criação artística. O saber racional e a invenção poética não são essencialmente excludentes. Opostos em determinadas instâncias, como no homem diurno do conceito e no homem noturno da imagem, culminam ambos no momento da imaginação criadora.
A filosofia bachelardiana não é uma filosofia do ser, uma ontologia, mas uma filosofia da obra, da construção, da ontogênese como criação absoluta.
A filosofia ontogenética de Bachelard é uma resposta aos novos caminhos da cultura contemporânea, seja a novidade desconcertante, por exemplo, das matemáticas não-euclidianas, seja o novo horizonte de imagens artísticas surgido com a dimensão surrealista da imaginação.
Frente a todas estas manifestações, Bachelard manteve-se atento e participativo. Em textos hoje clássicos de epistemologia, defendeu o novo racionalismo aberto, regional e operante, para dar às ciências de nosso tempo a “filosofia que elas merecem”. Foi não-cartesiano sem sofrer as tentações do intuicionismo anti-intelectualista de Bergson, sendo igualmente um não-bergsoniano, prova de visão ampla e autenticidade própria.
Nos textos sobre a imaginação dos elementos e a filosofia do devaneio, rompeu com a tradição ocularista, com a hegemonia do sentido visual que conduz à representação e ao formalismo, propondo investigar a causa material das imagens poéticas.
Na concepção tradicional, a imaginação é definida como a faculdade mental de produzir imagens, entendendo-se por imagem a representação de um objeto ausente ou a reprodução de uma sensação na ausência da causa que a produziu. A imaginação consiste tanto na evocação de lembranças, quanto na construção de imagens arranjadas livremente pela fantasia.
A imaginação, portanto, é sempre associada à percepção e à memória. Contraposta então ao conceito, a função imaginativa viveu desde a antigüidade posições antagônicas nos grandes sistemas filosóficos. Ora irá ocupar um lugar inferior, perigoso e prejudicial ao entendimento (platonismo), ora um lugar de destaque, propício, valioso, impulsor do pensamento (Apolônio de Tiana, os Românticos).
Na distinção entre imaginação reprodutora, serva da percepção e da memória, e imaginação produtora, fonte de invenção e originalidade, Bachelard filia-se ao segundo tipo. Para tal empreitada, faz uso de análises oriundas da Psicanálise e da Fenomenologia, mantendo como de hábito seu distanciamento particular.
A psicanálise freudiana, diz Bachelard, mantém uma postura intelectualista, já que trabalha no sentido de traduzir as imagens e considerá-las tão somente símbolos, esquecendo o domínio da própria imaginação. Sob a imagem a psicanálise resgata a realidade e esquece a direção inversa: sobre a realidade buscar a positividade da imagem. Por isso o psicanalista considera a fabulação como ocultando alguma coisa, uma espécie de véu, e pior, uma função secundária.
A crítica de Bachelard não poupa as origens burguesas da psicanálise freudiana, que negligencia a vontade humana, o trabalho sobre a matéria, a mão comandada pela vontade de transformar, lutar e criar. O mundo é entendido como espetáculo para a visão.
A psicanálise em sua vertente junguiana servirá melhor aos propósitos de Bachelard. Os conceitos de arquétipo, androgenia (animus/anima), imaginação dinâmica, ecoam na poética do devaneio e na estrita defesa, no respeito à realidade ontológica da própria imagem.
Ao método fenomenológico competiu um passo importantíssimo: precisar o verdadeiro caráter de independência da imagem em face da percepção. No domínio das investigações fenomenológicas, surge o trabalho de Jean-Paul Sartre, um dos diálogos críticos mais constantes da poética bachelardiana.
O acerto de Sartre, observa Bachelard, foi combater a tendência da filosofia moderna em compreender a imaginação no âmbito psicológico ou gnoseológico, que se limita ao “coisismo” da imagem. Todas as explanações racionalistas e associacionistas incorrem numa “metafísica ingênua da imagem”, que consiste em fazer da imagem uma cópia da coisa, reduzindo ela própria a uma coisa.
A imaginação, entretanto, é uma capacidade irrealizadora, capaz de tornar ausente o que está presente, ou de tornar presente o ausente. Esta função do irreal da imaginação é uma força prospectiva, essencialmente criadora. Sartre propõe, para evitar os equívocos tão consolidados em torno do conceito de imaginação, chamar essa dimensão da consciência de imaginário.
Mais uma vez reconhece Bachelard a correção de Sartre, mas o filósofo existencialista comete dois erros mortais: ignora a contribuição dos românticos através da exaltação da imaginação criadora e permanece circunscrito ao predomínio do olhar.
O pensamento ocidental tem dado preeminência à visão como o sentido inerente ao próprio pensar, costume facilmente perceptível nas inúmeras metáforas visuais relacionadas ao ato de conhecer.
Contra esta hegemonia da visão – o vício de ocularidade – Bachelard empreende seu mais insistente combate. Por expressar-se em termos de visões, a fenomenologia corre o risco de cair no idealismo, isto é, na representação e no formalismo. Uma filosofia que somente vê com os olhos ainda está presa à contemplação do espetáculo. Para ela a matéria do mundo não passa de uma metáfora e sua resistência é uma obscuridade. Daí o empenho de Bachelard contra Sartre, ainda prisioneiro da ocularidade, da forma abstrata.
Conforme foi mostrado, o vício de ocularidade reduz a imaginação à imaginação formal, que menospreza a causa material que conduz à imaginação material. A primeira, fundamentada na visão, direciona-se para a abstração e para o formalismo, nos quais se realiza plenamente. Embora necessária à construção da linguagem lógico-matemática, a construção do pensamento formal representa uma simplificação, uma ocultação da materialidade das coisas e das próprias imagens.
Outros autores já haviam apontado o fundamento ocularista da cultura ocidental, a exemplo de Santo Agostinho e a condenação cristã à concupiscência dos olhos, ou Martin Heidegger e o primado do ver como tendência do ser cotidiano da pre-sença. Embora em contextos diversos, as análises percucientes de Agostinho e Heidegger servem-nos para reafirmar a existência do vício de ocularidade e a necessidade de superá-lo para melhor compreender o fenômeno da imaginação.
A predominância da visão e das metáforas visuais produz a imaginação formal. Mas as forças imaginantes do nosso espírito possuem duas direções: uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa material: a imaginação formal e a imaginação material , dois conceitos, segundo Bachelard, indispensáveis a um estudo filosófico completo da criação poética.
Se o fundamento ocularista conduz a imaginação para a abstração e o formalismo, reduzindo o sujeito a mero espectador e o mundo a mero espetáculo, é preciso buscar as relações de causalidade material das imagens, que também possuem um peso, uma densidade material. Dai a necessidade do conceito de imaginação material.
A imaginação material vincula-se aos quatros elementos da física pré-socrática: o fogo, o ar, a terra e a água, fontes inesgotáveis para os devaneios criadores, essências materiais recorrentes, substâncias elementares que alimentam a criatividade interminável da arte. A proposta bachelardiana é de uma lei dos quatro elementos, visando estabelecer no reino da imaginação uma classificação das diversas imaginações materiais conforme estão associadas ao fogo, ao ar, à água ou à terra.
Cada elemento material é um sistema de fidelidades poéticas. O elemento fogo e suas imaginações materiais produzem o temperamento poético do psiquismo ígneo. O elemento ar, o temperamento aéreo. O elemento terra, o temperamento terrestre. O elemento água, o temperamento hídrico. A imaginação material nega o mundo enquanto puro espetáculo e faz dele a sua provocação. A mão humana luta contra as resistências da matéria, supera obstáculos e trabalha um cosmos desafiador e dinâmico.
A lei dos quatro elementos materiais, portanto, é o princípio fundamental da poética bachelardiana. Longe de ter sido aproveitada da metafísica de Empédocles ou da medicina dos humores de Hipócrates, ela é a forma arquetípica que reaparece periodicamente sob vestes físicas ou metafísicas. É assim que se deveria compreender a famosa lei dos quatro elementos: como um ordenamento dos a priori da imaginação criadora, como investigação da estrutura transcendental do imaginário.
A poética de Gaston Bachelard é rica em sugestões e direções, sempre entrecortada de inteligência e sensibilidade, um raro casamento de esprit geometrique e esprit de finesse em suas reflexões sobre os devaneios e em seus devaneios sobre imagens refletidas.
É preciso ressaltar, portanto, sua inestimável contribuição ao estudo do imaginário. Embora a senda aberta tenha seguidores no domínio da crítica literária, carecemos de análises que demonstrem a fecundidade bachelardiana para a estética filosófica. Esta é a contribuição que esperamos ter efetuado nesse trabalho.
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro para obtenção de título de
Mestre em Filosofia
de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro para obtenção de título de
Mestre em Filosofia
Orientadora:
Profª. Dra. Marly Bulcão L. Britto
Rio de Janeiro
Janeiro de 1999
Janeiro de 1999
BANCA EXAMINADORA
Profª. Dra. Marly Bulcão Lassance Britto (UERJ – Orientadora)
Profª. Dra. Maria Helena Lisboa da Cunha (UERJ)
Profª. Dra. Constança Marcondes Cesar (PUCCAMP)
Profª. Dra. Marly Bulcão Lassance Britto (UERJ – Orientadora)
Profª. Dra. Maria Helena Lisboa da Cunha (UERJ)
Profª. Dra. Constança Marcondes Cesar (PUCCAMP)
À Sheilinha, Lívia e Daniel, companheiros de vida e admiração.
Meus agradecimentos
à professora Marly Bulcão, pela orientação segura, pelo incentivo e pela paciência incansável.
à professora Marly Bulcão, pela orientação segura, pelo incentivo e pela paciência incansável.
E um agradecimento especial à minha querida Sheila Simões, portal do sonho e da realidade
http://www.consciencia.org/bachelarddisreinerio.shtml
Publicado em 18/03/2012- Licença padrão do YouTube
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