domingo, 15 de maio de 2011

CANÇÃO É EXISTÊNCIA: Bergson , RILKE e Guimarães Rosa

 Uma interpretação de “Sorôco,
sua mãe, sua filha”, de Guimarães Rosa

Maria Lucia Guimarães de Faria 

A loucura pode ser um contato direto 
com as fontes primordiais da vida, 
sem os limites impostos pela razão 
e as interdições opostas pelo 
“princípio de realidade”. 

Em vez de empobrecimento, a loucura pode manifestar-se como um enriquecimento, mediante o qual a vida revela um sentido antes desconhecido. 

Neste caso,
o louco não é penalizado por uma carência,
mas, ao contrário, é brindado 
por um “excesso de espírito”.
Este excesso se traduz num transporte, 
num delírio, em que a alma se deixa arrebatar 
pelo entusiasmo, concebido em sua acepção etimológica 
como um “estar em Deus”.

A canção, incorporada pela filha, compartilhada pela avó, assimilada por Sorôco e estendida a todos os que se disponibilizaram animicamente a segui-la, é fruto de uma intuição profunda da durée, tal como a concebe Bergson. 

O universo é perpassado pela criação
contínua de imprevisível novidade. 
A realização traz consigo
um inesperado nada que muda tudo  
(BERGSON, 1946: 99).

O ser humano dura  
porque incessantemente elabora o novo,
e não há elaboração sem busca, 
nem busca sem um certo tatear nas trevas 
 (BERGSON, 1946: 101). 

Poeticamente apreendido, o tempo é o sentimento de sermos criadores de nossas intenções, de nossas decisões, de nossos atos, e, portanto, de nossos hábitos, de nosso caráter, de nós mesmos. 

Artistas de nossa própria vida,
trabalhamos continuamente a modelar, 
com a matéria que nos é fornecida 
pelo passado e pelo presente,
pela hereditariedade e pelas circunstâncias,
uma figura única, nova, original, imprevisível,
como a forma dada pelo escultor ao barro 
(BERGSON, 1946: 102). 

A intuição da duração 
como fenômeno da interioridade mais funda 
nos coloca em sintonia com a movente
originalidade das coisas. 
Da grande obra de criação da vida 
que se desenrola sem cessar no universo
nós nos sentimos participar, criadores de nós mesmos.
(BERGSON, 1946: 116). 

A duração é como uma melodia 
infinitamente deveniente, 
na qual não há estados inertes 
nem coisas mortas, mas a pura mobilidade 
da qual é feita a estabilidade da vida. 

Tão logo nos habituamos a ver a vida  
sub specie durationis
tudo adquire profundidade.

A continuidade e a variabilidade transparecem. 
O rígido se distende, o adormecido desperta, 
o morto ressuscita e o tempo, deixando de ser o inimigo
contra o qual nos ressentimos, 
revela-se a matéria plástica da criação 
 (BERGSON, 1946: 140/1/2). 
 Sinfonia N* 40 de Mozart - por Smalin

A percepção concreta da duração 
permite discernir, para além da aparência
estática da realidade, o intenso dinamismo que a faz palpitar.
Para quem está afinado com o irreprimível impulso vital,
a realidade se mostra como puro movimento 
e metamorfose contínua. 
 
Um grande elã impele
os seres e as coisas. 

Por ele, nós nos sentimos solevados, 
compelidos, arrebatados. 
Vivemos mais à larga, e este acréscimo de vida 
traz consigo a convicção de que podemos nos afirmar 
e criar em quaisquer condições 
e contra todas as circunstâncias
(BERGSON, 1946: 175/6). 


A durée bergsoniana é o pano de fundo 
que ajuda a compreender e permite
acompanhar a canção, que constitui a alma 
da estória de Sorôco.

A música transcende limites e suscita
uma harmonização 
com a melodia que rege o universo. 

Poderoso agente integrador no movimento incessante que produz a continuidade cósmica, ela rapta, arrasta e conduz quem se dispõe a ouvir e a seguir algo que ultrapassa o senso comum e contraria a lógica das ações. O cantar que importa é aquele que brota de dentro e assoma como uma grande vaga, respondendo a um chamado que visa inserir o homem em alguma coisa muito maior do que ele. 

Quem canta está ouvindo:
“A filha – a moça – tinha pegado a cantar, 
levantando os braços, a cantiga não vigorava certa,
nem no tom, nem no se-dizer das palavras – o nenhum. 
A moça punha os olhos no alto, que nem os santos 
e os espantados, vinha enfeitada de disparates, 
num aspecto de admiração” 
 (ROSA, 1978a: 14). 
 O Coral: Radeir- 1995
 
“Pegar a cantar” 
é simultaneamente ativo e passivo. 
É ativo, porque exprime um ato espontâneo 
e voluntário de um sujeito que começa a ser, 
e é passivo porque esse ato reflete a inserção 
em algo que nem se compreende bem, 
mas que atua como um apelo imperioso 
ao qual o sujeito se rende e se entrega.  
Explica Manuel Antonio de Castro:
“O apelo vem de uma força que radica no que há de mais profundo e interior a nós, e que pede uma abertura: a Escuta. Ou seja, há uma disposição constitutiva do homem para ser, mas temos que realizar essa disponibilidade. Certamente cada um de nós deve (...) escutar a palavra cantada que encanta, brotando de nosso âmago. Em algum momento, sempre diferente para cada um de nós, haverá o apelo para que nos disponhamos para a Escuta da fala da palavra cantada” (CASTRO, 2003: 78).
O canto é a comunhão 
entre o homem e o mundo. 
Pegar a cantar é entrar em consonância 
orquestral com a canção que a si mesma se canta
e se entoa para além do homem, 
transcendendo o espaço e o tempo habituais

e criando uma nova dimensão espacio-temporal, na qual tudo é inaugural. “Quando a música se apresenta, ela exige que quem a está ouvindo seja todo ouvidos”, afirma o músico Antonio Jardim (JARDIM, 2003: 4). 

A moça “pega a cantar” porque “é pega” 
por um cantar que a encanta 
e arrebata, dando-a à luz.

Quando ela levanta os braços e põe os olhos no alto, ela está exprimindo o caráter votivo desse canto de louvor que celebra a vida como força insofreável capaz de superar qualquer obstáculo. A sua postura, a sua atitude, o seu aspecto, tudo conspira para converter um momento de luto numa ocasião de festa, e driblar a passividade compungida de todos com a mais inesperada afirmação.

A cantiga não vigora certa, 
porque não há mediação do intelecto: 
o canto é puro impulso criativo, 
extático, religioso, em estado bruto.

A falta de nexo das palavras atesta
a sua primordialidade e a proximidade 
com as forças elementares que engendram a vida. 

É do caos que sopra o alento, 
que insufla o canto, que acorçoa a moça.
Do abismo se eleva a música que conduz aos cimos. 
“O nenhum” é o berço do ser. 
“O silêncio dá a maior possibilidade de música” 
(ROSA, 1979: 12).

A primeira a se aperceber da grandeza daquele canto é a outra louca, a avó. Entre as duas, a sintonia é imediata. Aproxima-as, não apenas o parentesco de sangue e a loucura que compartilham, mas o fato de representarem os dois extremos da vida, reunidos e aparentados por um cantar que antecede a juventude e excede a velhice: “Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam” (p. 14). 

 Cantores: Radeir - 1991

O canto é um sopro de origem,
da origem que se situa muito antes do tempo 
e muito aquém do espaço, e que,
por não ser comprometida com o tempo 
nem encarcerada no espaço,
pode sempre continuar originando. 
Com o poeta Manuel de Barros, a moça poderia dizer:
“Minha voz tem um vício de fontes”.

A canção é o pressentimento 
da propulsão transcendente da alma:
“A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar” (p. 15).
Ao intuir a magnitude daquele canto, 
que religa a vida individual a realidades 
suprapessoais antiqüíssimas, 
incluindo-a na própria amplitude do cosmos,

a velha também “pega a cantar”, imbuindo-se do arrebatamento de ser. Quando cantam juntas, o canto adquire vigor e se impõe como um “acorçôo”, uma “chirimia, que avocava” (p. 15).

Acorçoar significa trazer ao coração, 
em outroras épocas concebido como o centro vital,
matriz do pensamento e da emoção, sede da criação.

A palavra tão musical “chirimia”, de antigos sopros, cujo significado é “banda de música composta de instrumentos de sopro” (FREIRE, 1954), talvez tome rosiano alento a partir do vocábulo inglês chirm, que exprime o som de um chilreio, de um gorjeio, de um cantarolar melodioso de maneira trêmula e vibrante, como o trinado modulado dos pássaros (WEBSTER, 1983, verbetes chirm, twitter, warble e trill). 

A canção “avocava” 
por ser um canto da transcendência, 
provocando e convocando como uma vocação
para existir e um mandado para superarem-se
os limites do humano.
 
O próximo a escutar o chamado dispensado pelo canto é Sorôco. A característica mais aguda deste homem singular é a solidão, impressa na primeira sílaba de seu nome. 

O seu absoluto isolamento transparece de forma pungente, quando, após o canto conjunto da mãe e da filha, ele aparece solitário num parágrafo (p. 15), que nada comunica além de seu nome. Situado entre as duas, próximo de ambas pelo afeto, mas de ambas apartado pela loucura, ele habita o “oco sem beiras” (p. 16), que o constitui intrinsecamente como divulga o seu nome.

Hóspede do nada, ele se porta,
contudo, “sem queixa, exemploso” (p. 16), 
como se viver fosse carregar um peso “decretado”
que nem se pudesse compreender. 

A partida das duas é a orfandade. Sem laços, sem lar, sem ser, “desacontecido”, ele retornava para lugar algum: “Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta” (p. 16). Mas, inesperadamente, ele “acontece”. 

Quando o nada o engolfa a tal ponto 
que ele ia “parar de ser”, 
a canção ressoa em sua intimidade,
outorgando-lhe um “excesso de espírito”, 
que transforma o nada em tudo:
“Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando” (p. 16)
Com a partida da mãe e da filha, Sorôco se fizera surdo: “Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava” (p. 16). Explica o músico Antonio Jardim que

“a surdez é ao mesmo tempo 
componente da música e condição de possibilidade 
para que ela se apresente. 
Você está surdo para o resto 
e você abre os seus canais para a música”
  (JARDIM, 2003: 4). 

Num “rompido”, Sorôco escuta
o que viera surdamente ouvindo.
O rompido é fruto de uma ruptura com o siso,
da irrupção de algo represado que jorra 
como uma fonte e de uma erupção semelhante 
a de um vulcão inativo que subitamente entra em atividade.

A aquisição de um rumo pode provir de um “desarrumo”, pois entre o destino e o desatino medeia apenas um singelo “a”. Desautorizando o velho e desgastado tino, o desatino abre o horizonte para um tino diverso diferente. Somente numa ruptura com o comum, lugar de todos e de nenhum, irrompe a intuição promissora que traz em seu bojo o tino do autêntico destino.
.....
...um canto que “tatala como uma bandeira branca” (ROSA, 1979: 84), semelhante ao ruído do ar vibrado pelo bater de asas, confirmando o impulso de transcendência propiciado pelo cantar. 

A ondulação reiterada das nasais, por sua vez, intensifica o sentido do “tanto”, de um canto demasiado, e comunica a sensação de uma vaga avassaladora que assoma muito de dentro, de uma longínqua intimidade esconsa que se abre, se oferece, se esbanja e se prolonga em continuação infinita, como o incessar das ondas do mar.

O efeito se repete na expressão “canta que cantando” (p. 16), que exprime a adesão existencial da pequena multidão que se deixa entusiasmar e conduzir pelo elã vital, que canta por intermédio da canção, e a todos arrebata em sua passagem: “ninguém deixasse de cantar” (p. 16). 

O cantar que a todos soleva
é a duração indestrutível da vida,
que se continua entusiasticamente 
para além de quaisquer circunstâncias. ... 

Não se trata, contudo, de uma 1ª pessoa que se pluraliza em “nós”, mas de uma “nenhuma pessoa” – “a gente” – que anonimamente representa todos de uma vez, já que se narra, precisamente, o inexplicável congraçamento proporcionado por uma emoção “que não se podia prevenir”, mas que a todos envolve e contagia. 

Inserido nesse mágico momento, empolgado, embora, pelo “canto sem razão”, o narrador é, contudo, o único capaz de dar voz àquele turbilhão e exprimi-lo em palavras, tendo, como no verso de Fernando Pessoa,
 
“a alegre inconsciência e a consciência disso” 
(PESSOA, 1974: 144). 

Emotivamente envolvido,
mas racionalmente atento, ele é o único
que atina com o desatino e percebe 
o novo tino que se descortina.
 
O canto edifica a morada do ser.
Através do canto que brota como flor pelágica, 
a existência assume a tarefa órfica 
da suscitação do real e da criação do seu próprio sentido.

O abandono,
a carência e a errância se corrigem mediante o cantar 
que harmoniza o homem com as forças criativas da vida. 

Quando o homem se encontra em sintonia com o cosmos, ele deixa de sentir-se sem teto, pois percebe que ter uma casa é habitar a própria duração:“A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade” (p. 16). 

Num dos mais belos poemas já escritos, Rilke revela o sentido mais profundo desse canto que emana da solidão do ser que converge em si mesmo como único caminho para se efetuar a comunhão com o divino transcendente: 

“Canção é existência” (Gesang ist Dasein) (RILKE, 
1943: 146). 

Quem integralmente se concentra se expande. Ex-istir é sair de si no êxtase do encontro com o sagrado. Existir é matéria de excesso, o “excesso de espírito” que advém da alegria da edificação de um si próprio, que festeja a abertura de um canal direto de comunicação com o divino. Cantar, afinal, em sua motivação mais essencial, é ouvir a voz silente de Deus e plasmar a si mesmo no rastro de um canto sem fim:
“In Wahrheit singen, ist ein andrer Hauch.
Ein Hauch um nichts. Ein Wehn im Gott. Ein wind” (RILKE, 1943: 146).
 
“Na verdade, cantar é um sopro de foz em fora.
Um sopro em torno de nada. Um voltejo em Deus. Um vento”
(tradução. de Ronaldes de Melo e Souza).
O cantar que garante a continuidade 
de um alento que a todos prodigaliza
um acréscimo de ser é um sopro em torno de nada.

Do próprio “oco sem beiras” emerge a força que afirma e constrói. No nada, mediante a canção, plasma-se o mundo, em que o humano e o divino coexistem e dialogam.

O cantar é metamorfose contínua, 
e, por isso, a estória, que se inicia
com “aquele carro”, índice de prisão 
– “Assim repartido em dois, num dos cômodos 
as janelas sendo de grades,
feito as de cadeia, para os presos” 
 (p. 13) – 

signo da inexorabilidade de um destino lutuoso,

termina com “aquela cantiga”,
símbolo da libertação, 
da superação de entraves e limites,
promessa do acorçôo de um destino no desatino
de uma canção excessiva, cujo chamamento
avocava e convocava a existir.

Fonte:
Revista Garrafa N* 6
http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa6/12.html

Sejam fewlizes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.

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