segunda-feira, 2 de maio de 2011

A EVOLUÇÃO CRIADORA - HENRI BERGSON - Sua atualidade 100 anos depois



A evolução criadora, de Henri Bergson
Sua atualidade cem anos depois
Editorial
No ano em que se comemora o centenário de publicação de A evolução criadora (Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971), indiscutivelmente a obra de maior impacto do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), a IHU On-Line propõe-se a discutir e analisar seu legado.

Ao examinar as idéias de Bergson sobre o cinema, o argentino Adrián Cangi (Universidade de Buenos Aires) diz que, “em certo sentido, o mito da caverna exposto em A república, como tensão entre a idéia e o simulacro, pensada como projeção indireta, está no fundo da imagem dogmática do pensamento que Bergson critica”. No ponto de vista da filósofa brasileira Débora Morato, da Universidade Federal de São Carlos, “em A evolução criadora, Bergson defende que a função do intelecto é adaptativa e assim naturaliza a inteligência”, e completa: “Para viver, é preciso recortar o real em função das nossas necessidades”.

Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, da Universidade de Paris VIII, uma das proposições mais importantes contidas em A evolução criadora é “desvendar a consciência que nos habita”, o que “nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo”. O também francês Pierre Montebello da Universidade de Mirail, Toulouse, saúda a filosofia bergsoniana como uma filosofia do futuro: “Bergson faz-nos entrever nossa participação num movimento criador do universo, do qual nós não somos nem a origem nem o fim. Esta idéia de um universo aberto, criador, que em nada corresponde àquele que a metafísica grega ou clássica descreveu, exerce hoje uma grande influência. O bergsonismo é uma filosofia do futuro, do tempo, da transformação”. 
Completando as ponderações de nosso tema de capa, colaboraram, ainda, as filósofas Paola Marrati, da Universidade John Hopkins, italiana de nascimento e radicada em Baltimore, EUA, e a brasileira Maria Cristina Franco Ferraz, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Ana Maria Bianchi, professora da USP, discute o pensamento de Albert Hirschman. Ela apresentará e debaterá, nesta semana, no IHU, o livro As paixões e os interesses, de Hirschman. Por sua vez, Afonso Maria Ligorio Soares, presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter), chefe do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, debate os rumos da Teologia no Brasil, hoje.
Santiago, de João Moreira Salles, é o filme da semana. A todas e todos uma ótima semana e uma excelente leitura!

Henri Bergson  ( 1859 - 1941)


Henri Bergson (1859-1941) nasceu em Paris, filho de mãe inglesa e pai judeu-polonês, e cresceu tendo o francês como língua materna. Passou sua vida ativa como professor universitário de filosofia, mas era um escritor tão cativante que foi lido amplamente e teve influência fora das universidades. Em 1927, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre seus livros mais conhecidos, estão Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), Matéria e Memória (1896) e A evolução criadora (1907).

Nos últimos anos de vida, seu pensamento tomou um rumo religioso, e é possível que tenha sido recebido na Igreja Católica romana pouco antes de morrer; se assim foi, o ato foi deliberadamente protelado e mantido em segredo, porque não queria parecer estar abandonando os judeus enquanto estavam sendo perseguidos pelos nazistas e enquanto a França estava sob ocupação alemã.

“Elã vital”
Bergson acreditava que os seres humanos devem ser explicados primordialmente em termos do processo evolutivo.

Parecia-lhe que, desde o início, a função dos sentidos nos organismos vivos tem sido não fornecer ao organismo “representações” de seu ambiente, mas estimular reações de caráter preservador da vida.

Em primeiro lugar, os órgãos sensoriais; em seguida, o sistema nervoso central, e, depois, a mente desenvolveram-se durante eras incontáveis como parte do equipamento do organismo para a sobrevivência, e sempre como auxiliares do comportamento; e até hoje aquilo que nos fornecem não são pinturas objetivas do nosso ambiente, mas mensagens que nos levam a nos comportar de determinada maneira.

Nossa concepção de nosso ambiente não é nada parecida com um conjunto de fotografias detalhadas: ela é altamente seletiva, sempre pragmática, e sempre a serviço de si mesma. Damos atenção quase exclusiva àquilo que importa para nós, e a concepção que formamos de nosso ambiente de constrói em termos de nossos interesses, sendo o mais premente deles nossa própria segurança. Apenas quando se percebe isso é que a verdadeira natureza do conhecimento humano para ser entendida.

Quanto à evolução, Bergson acreditava que os processos mecânicos de seleção aleatória são inadequados para explicar o que acontece. Parece haver algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior individualidade e todavia, ao mesmo tempo, maior complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma crescente vulnerabilidade e risco. A esse impulso Bergson deu o nome de “elã vital”, que podemos traduzir por “impulso vital”.

Bergson acredita que, dado que tudo está mudando o tempo todo, o fluxo do tempo é fundamental a toda realidade. Nós realmente vivenciamos esse fluxo dentro de nós mesmos da maneira mais direta e imediata, não por meio de conceitos, e não por meio de nossos sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento não-mediado de “intuição”. Ele acredita que também temos conhecimento intuitivo a respeito de nossas decisões de agir, portanto conhecimento imediato de nossa própria posse do livre-arbítrio. No entanto, esse conhecimento imediato da natureza íntima das coisas é bastante diferente em caráter do conhecimento que nosso intelecto nos dá do mundo externo a nós mesmos.

A realidade flui
O que nosso intelecto nos fornece são sempre os materiais exigidos para a ação, e o que queremos é poder prever e controlar os eventos, por isso nosso intelecto nos apresenta um mundo que podemos apreender e usar, um mundo repartido em unidade manejáveis, objetos separados em medidas delimitadas de espaço e também em medidas delimitadas de tempo. É o mundo dos afazeres e negócios diários, do senso comum, e também da ciência. Sua extraordinária utilidade para nós se exibe nos triunfos da moderna tecnologia. Mas tudo isso é um produto de nossa maneira de lidar com o mundo, exatamente da mesma maneira (e pelo mesmo tipo de razão) como um cartógrafo representará uma paisagem viva em termos de uma grade geométrica quadriculada.

Isso é inegavelmente útil, prodigiosamente útil, e nos permite fazer toda sorte de coisas práticas que queremos; mas não nos mostra a realidade. A realidade é um continuum. No tempo real não existem instantes. O tempo real é um fluxo contínuo, sem unidades separáveis, não delimitado por extensões mensuráveis. O mesmo com o espaço: no espaço real não há pontos, nem lugares separados e específicos. Tudo isso são mecanismos da mente.

Ser e tempo
Assim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo íntimo de nosso conhecimento imediato tudo é continuum, tudo é fluido, fluxo perpétuo. No mundo externo apresentado a nós por nossos intelectos há objetos separados ocupando determinadas posições no espaço por períodos mensuráveis de tempo. Mas, é claro, esse tempo externo, o tempo dos relógios e do cálculo, é um construto intelectual, e não é de modo algum o mesmo tempo “real” de cujo fluxo contínuo temos experiência íntima direta.

No ponto culminante de sua filosofia, Bergson identifica esse fluxo de tempo vivenciado internamente com a vida mesma e com o impulso vital, o elã vital que leva o processo da evolução constantemente para a frente. Lembraremos que a filosofia de Heidegger também culminava na identificação de ser e tempo, embora os dois filósofos tenham chegado à mesma conclusão independentemente e de pontos de partida completamente diferentes.
Em sua própria época, Bergson teve alguns críticos eminentes entre seus contemporâneos, como Bertrand Russell[1].

A principal queixa deles era que Bergson, embora tornasse suas idéias atraentes com vívidas analogias e metáforas poéticas, não as sustentava muito com argumentos racionais. Confiava-os à intuição dos leitores. Além disso, queixavam-se seus críticos, suas idéias não resistiam muito bem à análise lógica. Seus defensores replicavam dizendo que ele possuía todas essas características em comum com os mais criativos escritores, e assim era porque estava oferecendo insights, mais do que argumentos lógicos. Em todo caso, é certo que seu pensamento teve apelo amplo e permanece como um elemento distintivo da filosofia do século XX.

Fonte: MAGEE, Bryan. História da filosofia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001.

Desvendar a consciência que nos habita  

entrevista  com Eric Lecerf

Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, uma das proposições mais importantes contidas em A evolução criadora, obra que neste ano completa um centenário de lançamento, é o convite a “desvendar a consciência que nos habita” Para Lecerf, “isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência.
Trata-se de uma virada radical no seio da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância”. Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.


Lecerf é professor de Filosofia na Universidade Paris VIII, Saint-Denis e autor de inúmeros livros, entre os quais Le sujet du chômage (Paris, Budapest, Torino: Harmattan, 2002) e La famine des temps modernes: es sai sur le chômeur (Paris: Harmattan, 1992). Obteve diploma em História Contemporânea pela École des Hautes Études en Sciences  Sociales (EHESS) e foi diretor de programa no Collège International de Philosophie (Colégio Internacional de Filosofia). Publicou vários artigos sobre o trabalho de filósofos como Henri Bergson, Simone Weil e Georges Sorel. Lecerf concedeu entrevista, por e-mail, à IHU On-Line, publicada nos Cadernos IHU Em Formação, edição 13, intitulada Michel Foucault. 


 Sua contribuição para a educação, a política e a ética e encontra-se disponível para download no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu. O título da entrevista é Foucault e a genealogia da modernidade.

Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, uma das proposições mais importantes contidas em A evolução criadora, obra que neste ano completa um centenário de lançamento, é o convite a “desvendar a consciência que nos habita” Para Lecerf, “isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência.
 


IHU On-Line - No contexto da filosofia de Bergson, como se explica a valorização que ele deu à intuição, deixando a inteligência em segundo plano? Qual é a explicação filosófica para esta opção? 

Eric Lecerf - Em primeiro lugar, não me parece correto dizer que Bergson teria colocado a inteligência em segundo plano em relação à intuição. Na verdade, ele se esforçou em marcar os limites de uma inteligência implicada pela lógica num momento em que a filosofia era compartilhada entre positivismo e irracionalismo. Bergson explica que ele próprio hesitou por muito tempo antes de utilizar o termo intuição. 

Em seu primeiro livro, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, publicado em francês em 1889, a intuição como conceito só aparece nos usos correntes da filosofia clássica. Ele faz mesmo referência, nesta obra, a uma “intuição matemática” que não corresponde em nada à intuição bergsoniana. Portanto, o que Bergson chamará mais tarde de intuição está no centro deste ensaio, mas sob a forma de um sentido particular totalmente voltado para a percepção pura e a compreensão da duração. 

Em Matéria e memória, seu segundo livro, publicado sete anos mais tarde, a intuição só aparece verdadeiramente no terceiro capítulo e é deduzida da experiência de re-apreensão colocada na introdução do livro (eu nada sei da matéria, nem do corpo e do espírito... o que é que me aparece: imagens).

Só é realmente em A introdução à metafísica, artigo publicado em 1903, que Bergson conjuga uma relação específica entre intuição e método, cujos fundamentos ontológicos ele retomará cerca de dez anos mais tarde, numa conferência intitulada “A intuição filosófica”. Seu objetivo não é o de condenar a inteligência nem mesmo rebaixá-la, mas simplesmente o de notar que a inteligência, estando interessada pela ação e levada por uma necessidade de espacializar sua duração, não pode de forma alguma tocar na essência da vida que é móvel.

A inteligência constrói mundos,
instrui artífices, produz sistemas,
ela é uma potência ativa.
 (mas Inteligência é apenas uma ferramenta)

Mas captar a vida implica, para Bergson, renunciar a esta potência e retomar aquele sentido íntimo, ao qual, por não dispor de um termo novo, ele dará o nome de intuição.
        
IHU On-Line - De que modo as esquerdas se apropriaram do bergsonismo? Qual é o uso que elas fizeram do conceito de “elã vital”? 

Eric Lecerf - Para responder a esta questão, seria preciso estar em condições de redimensionar o que constituía, então, a paisagem política no seio da qual uma parte da esquerda apelaria ao bergsonismo. De que se trata? De modo geral, de dissidentes ou de intelectuais que levavam a peito fazer evoluir o marxismo fora dos dogmas nos quais suas determinações científicas o inscreveram. Para ser mais claro, no momento em que uma maioria dos intelectuais de esquerda aderia a um positivismo implicando uma série de determinismos históricos. 

Aqueles que se declaravam adeptos do bergsonismo procuravam precisamente defender noções de virtualidade e espontaneidade para explicar os movimentos revolucionários. Os nomes que se impõem são os de Georges Sorel[2], Edouard Berth[3] e Charles Péguy[4]. Sorel ocupa efetivamente, nesta história, um lugar essencial. Autor das Reflexões sobre a violência (Petrópolis: Vozes, 1993), nelas ele faz explicitamente referência à conexão bergsoniana entre inteligência e intuição, para opor o socialismo teórico das seitas marxistas ao sindicalismo revolucionário.

Associando o nome de Bergson aos de Proudhon[5] e de Vico[6], ele explica que é nesta percepção intuitiva da história que se produz o novo. As teses de Sorel terão influência particularmente importante na Itália. Antonio Gramsci[7] escreverá, então, um artigo em 1921, intitulado “bergsoniano!”, onde ele reivindicará a participação nesta herança. Na França, Bergson será, no entanto, objeto de críticas importantes da parte dos jovens filósofos marxistas, e notadamente da parte de Politzer (O bergsonismo, o fim de uma impostura) e de Paul Nizan[8] (Os cães de guarda[9]). 

As posições “patrióticas” tomadas por Bergson durante a Primeira Guerra Mundial, e depois a publicação das As duas fontes da moral e da religião (Rio de Janeiro: Zahar, 1978), desempenharam papel determinante nessas críticas que explicam porque, em 1947, Sartre[10] se creia em condições de dizer que o bergsonismo era uma “filosofia ultrapassada”.

IHU On-Line - No contexto da Filosofia contemporânea, qual é o lugar ocupado por Bergson? 
Eric Lecerf - O nome de Gilles Deleuze[11] se impõe aqui, e eu poderia mesmo dizer que por vezes ele tende a ocupar todo o espaço, como se Bergson tivesse tido por principal interesse ser um “pré-deleuziano”. Mais seriamente, a leitura que fez Gilles Deleuze de Bergson é verdadeiramente muito forte. Desde 1956, ele publica dois artigos (republicados em Iles desertes), que permitem compreender o que Deleuze veio procurar em Bergson, a saber, um método implicando uma teoria do conhecimento que associasse o empirismo e a busca de um absoluto. Desde esses artigos, Deleuze define a filosofia como criação de conceitos e é, no entanto, em Bergson, que explica que convém para a filosofia pensar por imagens antes do que por conceitos, que ele vem procurar seus predicados teóricos.

De fato, o conceito deleuziano 
 é primeiramente derivado da imagem bergsoniana, 
desta imagem da qual Bergson dizia 
possuir três qualidades.

Em primeiro lugar, ela induz uma pluralidade de sentidos lá onde o conceito procura destacar uma univocidade; em segundo lugar, ela é concreta lá onde o conceito é por essência abstrato; em terceiro lugar, sua imprecisão constrange a um exercício da atenção que se aproxima bastante da intuição, lá onde o conceito tende à expressão de uma certeza. E são estas qualidades que permitem a Deleuze situar a invenção de um novo valor do conceito como foco de indeterminação entre o que ele chama de articulações do real e de linhas de fatos; entre a coleção de qualidades que induz uma categoria e o nome etiqueta que se desdobra numa multidão de aventuras lingüísticas. 

Vinte e cinco anos mais tarde, Deleuze retomará a imagem bergsoniana para pensar, desta vez, não o cinema[12], mas antes as condições de possibilidade de uma filosofia na era do cinema. E é então que, seguindo um caminho inverso, Deleuze repensa uma imagem bergsoniana, inteiramente enriquecida por jogos, nos quais o conceito se desdobrou como virtualidade gramatical e existencial.

IHU On-Line - Como pode a obra A evolução criadora ajudar-nos a reler e compreender a pós-modernidade em sua complexidade? 

Eric Lecerf - Eu jamais compreendi o que se poderia designar pelo termo de “pós-modernidade”. Basta, aliás, reler a introdução de La pensée et le mouvant (O pensamento e o movente[13]), notadamente a parte intitulada “a lógica retrospectiva do verdadeiro”, para constatar até que ponto este conceito é vazio de sentido.

IHU On-Line - Quais são as proposições filosóficas desta obra que o senhor considera as mais importantes?
 
Eric Lecerf - A evolução criadora é um livro fascinante no seio do qual Bergson se dedica, não só a defender uma tese, mas também a ilustrar e adaptar um estilo de escritura suscetível de trazer nele essas linhas de virtualidades, pelas quais a vida se desenvolve sem cessar. Eu retomaria, pois, uma tese que me parece decisiva, isto é, sem a qual a obra de Bergson seria ilegível. Bergson nos engaja, em A evolução criadora, num trabalho de recompreensão da vida em nós. De que se trata?

De um conhecimento psicológico de nossa personalidade? Absolutamente. Para Bergson, trata-se de bem outra coisa do que do inconsciente. Pelo contrário, o que ele nos engaja mesmo a redescobrir em nós é precisamente aquilo que ele chama de consciência. Mas de que consciência se trata? De uma consciência que perpassa todo ser vivo, que está em cada um de nós em ato e que, no mundo vegetal, permanece em posição de torpor. De uma consciência que é a vida. 

Desvendar a consciência que nos habita, isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência. 

Trata-se de uma virada radical no seio da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância.

IHU On-Line - De que forma o ser humano consegue mover-se na dicotomia dos dois mundos nos quais ele vive: o do conhecimento imediato (onde tudo é “continuum”) combinado com o do tempo, concebido como construção intelectual? 

Eric Lecerf - A resposta a esta questão me parece estar em parte respondida na precedente. A verdadeira questão não é a de saber como o humano consegue mover-se, mas antes, como ele chega a crer que ele construiu uma estabilidade. Assim, poder-se-ia dizer que toda a história intelectual se declina como uma perseguição ao infinito desta busca de estabilidade. Isso é verdade na produção de instituições, bem como nesse cuidado de ordem que, mesmo quando nos damos um destino de revolucionários, configura uma parte decisiva de nossos atos.

A filosofia de Bergson não procura, de nenhum modo, afastar-nos das formas graças às quais nós tentamos congelar o movimento. Ele procura simplesmente lembrar-nos que estas formas são apenas ilusões e que o conhecimento da vida, que deve fundar toda metafísica, não saberia satisfazer-se com essas formas. Não é menos verdade que há em Bergson uma verdadeira análise daquilo que o marxismo chamará de coisificação. 

Em Bergson, 
tratar-se-á antes de um tornar-se autômato,
do repetitivo que tende a rejeitar 
toda intrusão do inédito. 

De fato, como o mostra Deleuze em Diferença e repetição (2 ed.: São Paulo: Graal, 2006), mesmo lá onde tudo parece congelado, o movimento se insere na própria repetição como elemento de diferenciação. Em Bergson, encontra-se isso efetivamente, mas sem esse otimismo desesperado que caracteriza a filosofia de Deleuze. De fato, ninguém escapa à vida, afora aquele que a teoriza. Dito de outra forma, se há um autômato absoluto em Bergson, este não é o operário que trabalha em série, mas o filósofo que crê que a vida seja uma questão de leis e de sistemas lógicos.

Matéria e memória, uma obra-prima

entrevista com 

Maria Cristina Franco Ferraz

 

IHU On-Line - Quais foram as maiores descobertas e inovações que Bergson propõe em Matéria e Memória?

Maria Cristina Franco Ferraz – Matéria e memória, publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-prima, não apenas por conta da potência dos conceitos criados, mas igualmente pelo vigor, inteligência e generosidade de um pensamento verdadeiramente em movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada nova leitura, mesmo passado mais de um século. Na brevidade de uma entrevista, a resposta à pergunta proposta pode ser no máximo alusiva. Nesse sentido, gostaria de chamar a atenção, inicialmente, não apenas para a construção de conceitos radicalmente novos (como o de imagem e de memória), em um duplo gesto que envolve também a discussão precisa e aprofundada das perspectivas das quais Bergson se afasta. 

Em primeiro lugar, investigando as premissas comuns presentes nas duas correntes aparentemente antagônicas então predominantes, no que diz respeito à percepção – idealismo subjetivista e realismo materialista -, Bergson perspicazmente mostra de que modo as duas de fato se aproximam e, passando “por trás” de ambas, constitui um novo solo a partir do qual não mais serão respondidas as mesmas questões, mas o próprio problema da relação interioridade/exterioridade será recolocado (e ultrapassado). De fato, ambas as correntes supõem certas visadas comuns: por exemplo, o vínculo entre percepção, representação e especulação, bem como a cisão (tornada irremediável) entre “eu” e “mundo”.

Como Bergson demonstra, nas duas visões concorrentes, tudo o que vemos não passaria de “alucinações verdadeiras”. Ao postular uma relação de grau, e não de natureza, entre percepção e matéria, Bergson já coloca nossa percepção nas coisas, que nada mais seriam do que imagens de nossa ação (e não contemplação) possível. Entre matéria, entendida como um conjunto de imagens interligadas e interdependentes, e percepção (certas imagens que se “revelam” em função de nossa “atenção à vida”, promessas e ameaças que nos cercam), haveria assim uma diferença de grau, isto é: perceberíamos de fato a matéria, mas não em sua totalidade. Perceberíamos uma parte da matéria, o que permite afirmar que nossa percepção está nas coisas.

Como se pode observar, na contramão de uma longa tradição filosófica, imagem passa a se confundir com o que é, com a matéria, o que também configura uma nova noção de matéria, afinada com certas visadas da física de sua época. Como Bergson enfatiza, a ciência seria capaz, tal como o pensamento apto a se afastar das (bem-vindas e necessárias) ilusões que nos permitem agir no mundo, de alcançar uma intuição imediata do real, para além da curva em que ele se inflete para constituir uma experiência humana. 

Portanto, não são apenas os conceitos de percepção, matéria e memória que emprestam grandeza à obra (que pensa o movimento e efetua um pensamento movente), mas a alteração do próprio movimento do pensamento, para além do humano (demasiado humano), curiosamente aproximável de novas perspectivas científicas sobre a matéria bem como do trabalho artístico sobre a percepção e a memória que marca a o final do século XIX e o limiar do século XX (de Cézanne[14] a Proust[15]).

IHU On-Line - No contexto da filosofia contemporânea, qual é a importância dessa obra?

Maria Cristina Franco Ferraz – Uma das grandes contribuições de Matéria e memória para o pensamento contemporâneo me parece dizer respeito ao estatuto atribuído à virtualidade. A ênfase no virtual – tratado como “real sem ser atual”-, de grandes implicações filosóficas, existenciais e políticas, desfaz a crença em meros estados de coisas fixados, ressalta a movência e abertura de tudo o que há. O real deixa de se confundir com o “visível” e passa a ser pensado como contendo uma grande parcela de virtualidade. Em meu trabalho com a obra, tenho enfatizado, em geral, dois desdobramentos do tema da virtualidade. Por um lado, a partir das reflexões do filósofo português José Gil sobre dança e corpo, retomando o tema bergsoniano do “movimento total” do corpo, buscado e reativado, como mostra Gil, em certas experiências coreográficas contemporâneas.

O movimento imparável do corpo, suas tensões mesmo para manter-se aparentemente “parado”, requerem o conceito de virtualidade para revelar-se como tal. Ao mesmo tempo, a ênfase na realidade do virtual altera a própria reflexão sobre a comunicabilidade, uma vez que um corpo em movimento se desdobra em espectros virtuais que nunca “mentem”. Afinal, conforme afirma genialmente Bergson, ao trabalhar o exemplo da aprendizagem por repetição de um movimento, o corpo não comporta “subentendidos”.

Por outro lado, e em um sentido talvez mais evidente na obra, a ênfase bergsoniana na virtualidade permite não apenas construir um novo sentido para “memória” (ligada à temporalidade, à “duração”) como também para redimensionar seu vínculo (hoje tão enfatizado pelas neurociências) com o cérebro, órgão não de armazenamento de lembrancas, mas sobretudo de sua “suspensão” na virtualidade, ou seja, seu “esquecimento”. 

Em uma época em que se disseminam, nos diversos meios de comunicação de massa, novas “descobertas” sobre o cérebro e se tende a reduzir cada vez mais amplamente o fenômeno da memória à esfera bioquímica do corpo (neurônios, sinapses, hormônios), a reflexão bergsoniana sobre a memória não apenas estabelece uma plataforma crítica para se pensar as implicações da consolidação dessas novas “verdades” científicas, mas permite igualmente tematizar tanto seu papel crítico em sua época quanto o sentido da atual “desespiritualização” do curioso e rico fenômeno humano da memória. 

IHU On-Line - Que pontos de proximidade e distanciamento esse filósofo faz entre matéria e memória?

Maria Cristina Franco Ferraz – Trata-se, nesse caso, de uma distinção forte, de natureza, estabelecida por Bergson entre matéria, de um lado, e memória/espírito de outro. Só a partir dessa distinção de natureza é que Bergson pôde ultrapassar as falaciosas e falsas questões identificadas nas perspectivas presentes tanto na tradição filosófica quanto implicadas nas concepções científicas de sua época. Creio que essa questão pode ser mais bem esclarecida se articulada à que se segue.

IHU On-Line - Até que ponto essas proposições da filosofia bergsoniana aprofundam o dualismo corpo e mente?
Maria Cristina Franco Ferraz – Trata-se sim de dualismo, mas Bergson nos leva a pensar que talvez nem todo dualismo se equivalha. Curiosamente, creio que essa questão mesma – em toda a sua legitimidade e inflexão contemporânea – não deixa de também sinalizar uma suspeita cara à contemporaneidade e por vezes caricaturalmente expressa no horror “pós-moderno” a toda e qualquer forma de dicotomização. Nesse sentido, aproximar-se de Bergson requer uma delicadeza e sutileza maior do pensamento, aptas a nos tornar, também nós leitores contemporâneos, de algum modo aproximados da “extemporaneidade” da obra. Como se trata de um dualismo erigido em um novo solo, os pólos da oposição corpo/mente não me parecem poder ser facilmente “superponíveis”, redutíveis ao dualismo matéria/memória introduzido por Bergson, que, de modo explícito, procurou repensar exatamente o vínculo entre matéria e algo que, sendo de uma natureza diversa, ele chamou de memória.

Ora, o vínculo só poderia ser pensado mantendo-se a distinção de natureza entre os dois elementos. Mas esta seria apenas uma explicação “lógica”, dizendo respeito à mera (e impressionante) coerência do pensamento de Bergson. Quando matéria passa a ser entendida como um conjunto de imagens interligadas, a percepção como estando “nas coisas”, o corpo como funcionando na tensão entre esquecimento e memória – pensadas através do mecanismo da virtualização/atualização -, memória e matéria pensadas em termos de temporalidade, parece-me que o novo dualismo introduzido, além de não se reduzir a uma nova roupagem para velhos  dualismos, introduz vigorosas novas abordagens.

Mas, evidentemente (e isso está expresso desde o subtítulo da obra), Bergson está dialogando com uma longa tradição, que renova, por assim dizer, “por dentro” – o que está longe de ser pouco. A meu ver, deixar-se levar pela aversão contemporânea às dicotomias seria não um “erro”, mas, pior do que isso, uma grande desvantagem, na medida em que nos faria passar ao largo da riqueza da obra, levando a que se deixe de integrar (gesto tão bergsoniano) o que Matéria e memória nos permite pensar e discutir hoje.


Uma teoria do conhecimento é inseparável de uma teoria da vida: o antikantismo de Bergson

Entrevista com Paola Marrati


Para a filósofa italiana Paola Marrati, “ainda mais importante para nossos debates é a idéia-mestre de Bergson de que não há vão, deixadas de lado quaisquer oposições, entre vida e conceitos, entre processos biológicos e processos congnitivos”. A declaração pode ser conferida na íntegra na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Desde janeiro de 2003, Marrati é professora no Centro de Humanidades do Departamento de Filosofia na Universidade John Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos. Imediatamente antes desse período, lecionava Filosofia da Arte e Cultura no Departamento de Filosofia da Universidade de Amsterdã. Na John Hopkins dirige o programa para o estudo da mulher, gênero e sexualidade, e é membro do Advisory Board of the Film and Media Studies Program. É, também, diretora do programa de pesquisa do Colégio Internacional de Filosofia, de Paris.

É mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea, pela Università degli Studi di Pisa, Itália. Recebeu seu diploma d'Etudes Approfrondies na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, e seu PhD em Filosofia na Universidade Marc Bloch, em Estrassburgo, França. Escreveu, entre outras obras, Gilles Deleuze. Cinéma et philosophie (Presses Universitaires de France, 2003) e Genesis and trace. Derrida reader of Husserl and Heidegger (Stanford: Stanford University Press, 2005). Está prestes a ser publicado o livro The event and the ordinary: on the philosophy of Gilles Deleuze and Stanley Cavell.


IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra A evolução criadora, 100 anos após seu lançamento?
Paola Marrati – Em A evolução criadora, como em seus outros trabalhos, Henri Bergson (1859-1941) engaja-se em uma séria e bem informada discussão sobre teorias científicas e descobertas de seu tempo e, particularmente, seu conhecimento de diferentes desenvolvimentos na teoria evolucionista depois de Darwin[16]. Não é necessário dizer que, um século mais tarde, as idéias de Darwin sobre evolução foram desenvolvidas e refinadas; particularmente, a descoberta do DNA e mecanismos genéticos de evolução modificaram profundamente nosso entendimento dos processos evolutivos.

Apesar disso, os principais insights de Darwin não foram desafiados e em consideração a isso muita da análise filosófica de Bergson é pertinente ainda hoje. Ainda mais importante para nossos debates, na minha opinião, é a idéia-mestre de Bergson de que não há vazio, deixadas de lado quaisquer oposições, entre vida e conceitos, entre processos biológicos e processos cognitivos.

Contrário a uma longa tradição que opõe os misteriosos e irracionais poderes da “vida” à razão e conceitualidade, Bergson lembra-nos que todas as nossas práticas cognitivas, não importa o quão abstratas, originam-se na “vida”, e essa “vida”, o que quer que seja ou signifique, é, em primeiro lugar e em todas as suas instâncias, e não apenas em sua forma humana, uma capacidade para ajustes e resolução de problemas.

IHU On-Line - Como o conceito de “elã vital” pode nos ajudar a compreender a crescente complexidade do mundo contemporâneo?

Paola Marrati O conceito de “elã vital” [impulso vital] é definido por Bergson como uma tendência para a mudança e diferenciação. As formas vitais, para Bergson, estão constantemente envolvidas de novos e imprevisíveis jeitos, conseqüentemente não podendo ser compreendidas em termos de conjuntos de propriedades estáveis e fixas.

Devemos, pelo contrário, 
compreender a tendência específica 
que define uma forma de vida em seu processo inacabado
de transformação e diferenciá-la 
de outras formas de vida.
Bergson não nos dá chaves prontas para interpretar as complexidades de nosso mundo atual, mas sua convicção de que a vida não tem essência fixa e que, pelo contrário, é uma tendência em andamento para a mudança pode ajudar-nos na tarefa difícil de analisar os desenvolvimentos contemporâneos na biociência e na biotecnologia, e avaliar as promessas, e perigos que elas nos guardam.

IHU On-Line - Em que aspectos Bergson conserva e supera traços da teoria evolutiva de Darwin?

Paola Marrati – Bergson está totalmente de acordo com o principal insight da teoria de Darwin, de que a vida é um processo evolutivo que produz novas e imprevisíveis formas. Acredito que essa fundamental concordância é mais significativa que a crítica de Bergson a Darwin e ao neo-darwinismo em A evolução criadora. E deve-se observar que essas críticas objetivam destacar a essência temporal e mutante das formas de vida.

IHU On-Line - Partindo do pressuposto de que aquilo que nossos sentidos nos fornecem não são a realidade, mas cópias seletivas desta, podemos perceber aí uma influência platônica, como aquelas imagens refletidas no fundo da caverna?

Paola Marrati – De acordo com Bergson, nossa percepção consciente, assim como nossas ferramentas cognitivas e linguagem, são pragmaticamente orientadas para as necessidades de sustentar a vida e não para o conhecimento puramente desinteressado e vazio. Exatamente por essa razão, selecionamos e percebemos do campo todo da realidade o que é útil para nós.

Apesar disso, isso não é dizer que nos agarramos a cópias da realidade melhor que à própria realidade, sendo isso no sentido platônico ou não. É o oposto: para Bergson, estamos em contato com a realidade como tal, mesmo se percebemos e conceitualizamos apenas seleções dela, e isso é sempre possível. Essa é a tarefa da filosofia e da ciência: dar um passo atrás das necessidades presentes no sentido de aumentar nossa experiência para além dos limites do que normalmente sabemos e percebemos dela.

IHU On-Line - Ainda nessa linha de raciocínio, qual é a influência de Kant no pensamento bergsoniano, tendo em vista que o filósofo de Könnigsberg afirmava que a coisa em si é incognoscível?
Paola Marrati – O projeto filosófico de Bergson é fortemente antikantiano. Como eu disse antes, Bergson vê a razão, como qualquer outra faculdade humana, como tendo suas raízes nos processos evolutivos da vida. Como animais viventes, estamos em contato com a realidade e até mesmo com o absoluto. Como ele escreve na introdução de A evolução criadora: “A ação não pode mover-se no irreal.

Uma mente nasce para especular ou para sonhar, admito, deve permanecer fora da realidade, deve deformar ou transformar o real, talvez até criá-lo – como criamos figuras de homens e animais que nossa imaginação recorta das nuvens que passam. Mas um intelecto que dobra o ato a ser atuado e a reação que se segue, sentindo seu objeto enquanto capta sua impressão de movimento a cada instante, é um intelecto que toca algo do absoluto” (p. 11). Melhor que a busca pelo estabelecimento de condições a priori e limites do conhecimento e razão, assumindo que “a coisa como tal” é eternamente não cognoscível por nós, Bergson chama a uma tarefa diferente. Ele acredita que uma teoria do conhecimento é inseparável de uma teoria da vida: precisamos substituir nossas ferramentas cognitivas no contexto evolutivo da vida no sentido de compreendermos como nossos esquemas conceituais foram formados, como eles evoluíram, e como eles eventualmente podem ser aumentados, abertos para além de seus limites atuais.

Tal tarefa é, ao mesmo tempo, mais modesta e mais ambiciosa que a filosofia transcendental de Kant: mais modesta porque a par de que nenhuma resposta definitiva pode ser dada à questão das condições de possibilidade de conhecimento; mais ambiciosa porque sustenta que, em princípio, não há limites ao domínio daquilo que pode ser conhecido, que não estamos condenados a uma forma de conhecimento que paga suas certezas com o preço de ser um conhecimento do fenômeno diferente do conhecimento das coisas.

IHU On-Line - Como essa seleção natural de informações nos ajuda a compreender a singularidade e irrepetibilidade das concepções do sujeito moderno?

Paola Marrati Bergson não pertence à tradição da filosofia dos sujeitos no modo cartesiano, kantiano ou husserliano. O sujeito não é o exemplo original e organizado para o qual tudo aparece, o espectador para quem o mundo é dado como um objeto de contemplação. Subjetividade, ou consciência [de algo], se você prefere, é constituída em um largo campo de experiência por um processo de seleção.

Como Bergson reconhecidamente escreveu em Matéria e memória (1896), a percepção se torna consciência pela seleção de todos os campos de [da] experiência que são relevantes em um dado tempo para um dado propósito. William James, em seu Ensaios sobre o empirismo radical (1912), experimenta um projeto parecido de descrição da formação da subjetividade em um largo campo de experiência não-subjetiva. A subjetividade é constituída em um campo de experiência que a excede: a subjetividade não é nem o ponto de partida para a filosofia e nem sua meta.

IHU On-Line - De que forma as filosofias de Bergson e Deleuze se cruzam? O que têm em comum e no que diferem, principalmente?

Paola Marrati – Na minha opinião, Deleuze deve a Bergson mais que a qualquer outro filósofo. A idéia de que a filosofia necessita de precisão e deve criar conceitos singulares para objetos singulares, ao contrário de construir sistemas gerais que possam acomodar todo e qualquer mundo, como Bergson escreve no início de sua Introdução à metafísica, estabelece um padrão para o que Deleuze considera como tarefa da filosofia. Ele repetidamente reivindica, em Diferença e repetição (1969) e em algum outro lugar, que a filosofia visa a agarrar as condições de possibilidade do real e não da experiência possível, sendo uma elaboração direta de uma demanda de Bergson.

Mas a importância de Bergson para Deleuze não é apenas metodológica: todo o projeto de elaboração de uma filosofia das diferenças internas como alternativa à dialética e à fenomenologia é profundamente enraizada na interpretação deleuziana de Bergson. O mesmo segue verdadeiro para a crítica da negatividade e da ilusão retrospectiva da categoria do possível, assim como para a concepção do tempo como virtualidade.

De forma mais geral, gostaria de dizer que Deleuze leva extremamente a sério a idéia de Bergson de que a filosofia deve dirigir a si a questão da novidade, do novo no fazer, ao contrário de se voltar para o eterno. Para Deleuze, tal idéia traz aproximadamente toda transformação da filosofia e seu próprio trabalho é dedicado largamente a desdobrar as conseqüências dessa transformação. Apesar disso, como todos os grandes filósofos, Deleuze introduziu um novo conjunto de problemas e conceitos que não podem ser remetidos outra vez a Bergson somente. Deleuze tem sua própria e singular voz.

Bergsonismo, uma filosofia do futuro,

 do tempo, da transformação

Entrevista com Pierre Montebello

“Bergson faz-nos entrever nossa participação num movimento criador do universo, do qual nós não somos nem a origem, nem o fim. Esta idéia de um universo aberto, criador, que em nada corresponde àquele que a metafísica grega ou clássica descreveu, exerce hoje uma grande influência. O bergsonismo é uma filosofia do futuro, do tempo, da transformação”, assegura o filósofo francês Pierre Montebello, em entrevista exclusiva, concedida por e-mail à IHU On-Line. Outro dos aspectos atualíssimos que Montebello aponta na filosofia bergsoniana é a idéia de que “a filosofia não deve abandonar a ontologia, de que ela não deve contentar-se com a fenomenologia que só descreve o mundo a partir da consciência humana, mas que é preciso tentar descrever o mundo tal como ele é, é preciso tentar captar de que modo matéria, vida e consciência comunicam fora de nós”.

 A respeito da obra A evolução criadora, o entrevistado não poupou palavras: é um livro “assombroso”, um dos raros de filosofia contemporânea “que retoma as grandes questões deixadas em suspenso após a crítica kantiana da metafísica”. Felizmente, menciona Montebello, hoje A evolução criadora recebe seu devido valor e pode ser comparado a O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, “duas trovoadas no céu das idéias”.

Montebello leciona Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade de Toulouse-le-Mirail e dirige o departamento de Filosofia dessa instituição. É membro do Comitê científico internacional dos Anais Bergsonianos PUF Epiméthée: três tomos publicados (Annale I, 2002, 560 p., Annales II, 2004, 534 p., Annales III, 207, 540 p.) e da Sociedade Bergson, criada em 2006 na base do comitê científico internacional dos Anais Bergsonianos. Escreveu inúmeras obras, das quais citamos Vie et maladie chez Nietzsche (Paris: Ellipses, 2001); Nietzsche, La volonté de puissance (Paris: PUF, 2001); e L’autre métaphysique (Paris: Desclée de Brouwer, 2003).

IHU On-Line - Quais são os aspectos mais atuais da filosofia bergsoniana?
Pierre Montebello - O melhor representante da modernidade da filosofia de Bergson terá sido, sem dúvida, o filósofo francês Gilles Deleuze. Ele nos fez redescobrir Bergson, de cuja filosofia tirou o mais interessante e moderno: uma compreensão da relação entre consciência e universo, entre percepção subjetiva e cosmo. Bergson faz-nos entrever nossa participação num movimento criador do universo, do qual nós não somos nem a origem nem o fim. Esta idéia de um universo aberto, criador, que em nada corresponde àquele que a metafísica grega ou clássica descreveu, exerce hoje uma grande influência. O bergsonismo é uma filosofia do futuro, do tempo, da transformação. A segunda idéia é de que a filosofia não deve abandonar a ontologia, de que ela não deve contentar-se com a fenomenologia, que só descreve o mundo a partir da consciência humana, mas que é preciso tentar descrever o mundo tal como ele é e tentar captar de que modo matéria, vida e consciência se comunicam fora de nós.

IHU On-Line - Quanto à obra A evolução criadora, qual é sua representatividade na filosofia contemporânea, cem anos após sua publicação?
Pierre Montebello - Cem anos após sua publicação, A evolução criadora continua sendo um livro realmente assombroso: ele é hoje relido e estimado em seu justo valor. Este livro deslocou integralmente o questionamento filosófico. Depois que a filosofia de Husserl[17] e de Heidegger[18] dominaram o cenário francês, nos damos realmente conta de que este livro trouxe algo totalmente novo. Ele é um dos raros livros de filosofia contemporânea que retoma as grandes questões deixadas em suspenso após a crítica kantiana da metafísica: a psicologia, a biologia, a cosmologia... Este livro não se contenta em dizer que o eu, a vida, o cosmo são incognoscíveis. Esta filosofia traça um caminho, o mais próximo possível da experiência que temos de nós mesmos e do conhecimento que as ciências nos trazem, para desenhar uma imagem plausível do que querem dizer “consciência”, “vida”, “matéria”, “universo”, “evolução”... É um livro riquíssimo. Deve-se comparar esta obra ao grande livro de Schopenhauer[19] sobre O mundo como vontade e como representação (5. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1991). São duas trovoadas no céu das idéias, dois questionamentos da visão demasiado intelectualista que a filosofia nos deu do mundo.

IHU On-Line - Quanto ao conceito bergsoniano de intuição, qual é sua relevância para que possamos entender o livre arbítrio?
Pierre Montebello - A intuição bergsoniana é um método: ela consiste em situar-nos no próprio movimento das coisas, a pensar em duração quando temos tendência em forjar conceitos demasiado estáticos.
A intuição opõe-se à inteligência. Não que a inteligência seja inútil: ela serve para fabricar, é principalmente geométrica, técnica... O mundo tecnológico é sua obra. Mas a intuição não serve para agir, e sim para compreender. Não se compreende nada da vida quando se pensa através de conceitos que são destinados a agir sobre a matéria (conceitos matemático-físicos...), é preciso partir da intuição, da experiência “de ser vivos”, do movimento da própria vida. E isto vale para todas as coisas. A intuição é, pois, método de conhecimento, e ela é também libertação, já que sem ela somos condenados a viver apenas num mundo útil. Ora, a intuição nos desvela que o movimento das coisas é criador: o universo é um movimento de expansão, a vida é uma evolução criadora, a personalidade psíquica consiste em produzir atos livres. É este plano criador que a intuição nos faz encontrar.

IHU On-Line - Como pode a filosofia deste pensador ajudar-nos a repensar a liberdade e a eticidade no mundo contemporâneo?
Pierre Montebello - Repensar a liberdade e a ética hoje em dia é, e todo o mundo que se dá conta disso, pôr o mundo ante o homem, e não o homem ante o mundo. Os desastres de nossos dias vêm daquilo que Spinoza[20] vira tão bem: o homem se crê um “imperador num império”. Mas o homem não é o centro de nada: seu passado e seu futuro são o próprio universo. A filosofia, diz Bergson, deveria ser um esforço “para superar a condição humana”. Bergson nos faz compreender que pertencemos a um todo, e não é este todo que nos pertence. Esta tomada de consciência é fundamental, ela deve convidar-nos a reconsiderar nosso lugar no seio do todo, do universo e dos viventes. A filosofia de Jonas[21] prolongará esta reflexão, sem, no entanto, conhecer ou citar Bergson.

IHU On-Line - Se, como afirmava Bergson, o tempo real não existe, mas um continuum de tempo num fluxo constante, então o que existe são mecanismos mentais que compartimentam nossas experiências sensoriais? Ao tomar consciência disto, como pode o ser humano ter sua consciência afetada? 

Pierre Montebello - O tempo real existe para Bergson. Sua filosofia é uma filosofia da duração e, por conseguinte, do tempo. Mas não é o tempo da física, não é um tempo matematizado e dividido em instantes. É um movimento contínuo que traz o passado e gera o futuro no presente. Todas as coisas são ritmos de duração, matéria, vida, consciência, maneiras de gerar um futuro no presente recolhendo o passado. Mesmo a matéria que parece ser pura repetição é um movimento contínuo de expansão, uma transformação, uma evolução cósmica. Eu creio que a física não pode contestá-lo, ela que delineia uma história do cosmo a partir do Big Bang. 

O tempo é, pois, a própria realidade, 
o próprio estofo das coisas e do mundo. 

A filosofia de Bergson, como a de Heidegger, 
faz o tempo passar ao primeiro plano. 
Ela recusa o substancialismo 
que define as coisas por uma essência estável. 

A metafísica clássica, dirá Bergson, não se deu conta do tempo. O homem deve tomar consciência que ele também age no tempo, que a criação se faz no tempo. Não repetir, mas criar, tal é o sentido do ser que a existência humana deve reencontrar. Caso contrário, ela se fecha em sociedades estáticas, sociedades fechadas, sem criação artística, sem movimento espiritual, sem exigência de futuro.

IHU On-Line - Há nestas idéias influências de Heráclito e de Kant, embora isso possa, de certa maneira, soar de modo contraditório, já que Heráclito foi inspirador de Platão e Kant foi um aristotélico? 
Pierre Montebello - Há pouca influência de Heráclito[22] sobre Bergson. Sua concepção do tempo é moderna, ela se apóia nos conhecimentos modernos da física, embora se trate de separar-se dela, e sobretudo nas teorias da evolução (transformismo de Lamarck[23] e evolucionismo de Darwin), que são tão importantes no século XIX. Não se trata simplesmente de dizer que as coisas estão em movimento.

É preciso mostrar como elas se movimenta, e na filosofia moderna isso cruza com as questões que conduzem sobre a matéria (ciências físicas), sobre a vida (ciências biológicas) e sobre a consciência (ciências psicológicas). Heráclito teve uma intuição. Bergson dá uma consistência a esta intuição: ele trabalha com os utensílios e os conhecimentos modernos.
A influência de Kant[24] sobre a filosofia moderna é evidentemente essencial.

No entanto, desde Schopenhauer
aparece uma filosofia 
que encara Kant ao reverso.

Schopenhauer, Nietzsche[25], Bergson, tornam possível uma nova filosofia da natureza como vontade, vontade de poder, duração. Eles constroem uma nova imagem da natureza que não é mais aquela das ciências físicas. A metafísica da natureza de Kant não é senão a fundamentação do mecanicismo nas categorias de compreensão do sujeito transcendental. Estes três autores mostram, ao contrário, que o mecanicismo é insuficiente para pensar a natureza.

Aliás, não basta mais dizer que o eu, 
a alma e Deus são indetermináveis. 
É preciso compreender de que modo matéria,
vida, consciência, universo comunicam 
e estão em relação.

IHU On-Line - Ainda nesta linha de raciocínio, qual é a influência de Kant sobre o pensamento bergsoniano, considerando que o filósofo de Königsberg afirmava que a coisa é em si incognoscível?
Pierre Montebello - A relação com Kant é complexa: ele censura Kant por ter crido que a metafísica é impossível; ele quer, pois, restaurar a metafísica. Pois Bergson está convencido que nós tocamos o absoluto nele mesmo. Ele retoma mesmo a frase de São Paulo[26] em A evolução criadora: “No absoluto – são Paulo diz ‘em Deus’-, nós estamos e nós nos movemos”. 

Para Bergson, nós podemos conhecer de modo absoluto, e é por isso que sua filosofia propõe um conhecimento da matéria, da vida, do conhecimento. Enquanto somos entes materiais, vivos e conscientes, como poderia escapar-nos tal conhecimento? Mas é preciso empregar o método adequado, não se deve aplicar à realidade meios dos quais a inteligência se serve para agir sobre a matéria. Kant permaneceu num conhecimento demasiado intelectual. Ele não colocou o tempo nas coisas, e sim as tornou incompreensíveis. Ele acreditou, então, que não se podia conhecê-las, que elas eram incognoscíveis.

Mas a inteligência não é feita para conhecer, segundo Bergson, e sim para agir sobre a matéria, fixando as coisas num espaço e num tempo matemáticos. Em lugar do entendimento, foi preciso colocar a intuição que nos situa na duração e no movimento criador do universo. O projeto bergsoniano é antikantiano neste nível: restituir vida à possibilidade da metafísica.

IHU On-Line - De que modo a idéia bergsoniana de seleção natural de informações nos ajuda a compreender a singularidade das concepções do sujeito moderno? 

Pierre Montebello - Não há idéias bergsonianas de seleção da informação. Esta é uma idéia darwinista e Bergson contesta o modelo darwiniano de seleção das pequenas diferenças. É um esquema que não toma em conta as tendências da vida, segundo ele. Mas há em Bergson uma teoria do sujeito moderno reconciliado com o universo e com a natureza, e não transcendendo o universo e a natureza. É mesmo o essencial ao bergsonismo fazer-nos compreender que o sujeito não tem valor em si, que ele faz parte de um todo, que é aparentado a este todo. Ele escreverá, assim, que o “eu” é da mesma natureza que o todo. O bergsonismo luta contra esta idéia de uma superioridade da consciência humana sobre o todo. O sujeito é apenas uma parte do todo que comunica com ele.

IHU On-Line - De que maneira as filosofias de Bergson e Deleuze se cruzam? O que têm elas em comum e, sobretudo, em que elas diferem? 

Pierre Montebello - A filosofia de Deleuze é bastante inspirada pela filosofia de Bergson. Ela mantém seus aspectos essenciais: primado do universo sobre o sujeito, luta contra a fenomenologia que separa o sujeito da natureza e postula sua transcendência, crítica dos falsos problemas e das ilusões que provêm do fato de se fazer do homem “um império num império”, pensar o movimento criador como o Aberto que não cessa de criar e de transformar...

Deleuze faz passar Bergson para uma filosofia ainda mais livre, a-subjetiva em seu fundo, reservatório de hecceidades... Ele se serve disso para fazer surgir o paradoxo de um Aparecer EM SI, de uma luz/Universo que precede o sujeito. Para ele, como para Bergson, “a filosofia deve ser um efeito para ultrapassar a condição humana” (Bergson).

O universo na ausência do homem, eis o que se deve pensar, e não o universo visto pelo homem: pois o homem desfigura tudo quanto ele reconduz a si. O que é o universo quando se faz o esforço de pensá-lo sem preconceitos antropomorfos e sem dogmas teológicos, sem mim e sem Deus? Tal é a questão que Deleuze quer levantar e que se assemelha também ao questionamento de Nietzsche. Que o homem não seja o centro do todo, Deleuze o exprimirá retendo esta fórmula de Primo Levi: “A vergonha de ser um homem”.

Recortar o real em função das nossas necessidades: condição para a vida

Entrevista com Debora Morato

“Em A evolução criadora, Bergson defende que a função do intelecto é adaptativa e assim naturaliza a inteligência. A nossa ação somente se exerce sobre pontos fixos, agir é dominar a matéria procurando, na pura mobilidade que é o estofo da realidade, estabilidades cômodas. Para viver, é preciso recortar o real em função das nossas necessidades”, acentua a filósofa Débora Morato, em entrevista dada com exclusividade à IHU On-Line.

A pesquisadora, que leciona na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em São Carlos, São Paulo, afirma que A evolução criadora há “respostas a alguns desafios próprios ao pensamento contemporâneo, como é o caso do problema do dualismo mente/corpo, das relações entre instinto e inteligência, do papel do tempo na descrição dos fenômenos vitais, do sentido da evolução, entre outros. Destacam-se a crítica aos sistemas da tradição e a necessidade de compreender a dimensão histórica do real e do homem”.

Morato é graduada, mestre e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Sua dissertação intitulou-se Espaço, percepção e inteligência - Bergson e a formação da consciência empírica humana e sua tese, Consciência e corpo como memória: subjetividade, atenção e vida à luz da filosofia da duração, ambas orientadas por Franklin Leopoldo e Silva. 

É uma das organizadoras das obras Subjetividade e linguagem (São Carlos; Curitiba: Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal de São Carlos, 2006); Questões de Filosofia contemporânea (São Paulo; Curitiba: Discurso Editorial; UFPr, 2006) e A fenomenologia da experiência - Horizontes filosóficos da obra de Merleau-Ponty (Goiânia: Ed. da UFG, 2006). Confira a íntegra da entrevista, concedida por e-mail  

IHU On-Line - Cem anos após sua publicação, qual é a atualidade da obra A evolução criadora?

Débora Morato - Podemos apontar a atualidade de A evolução criadora em duas vertentes: uma referida à história da filosofia, e outra a um campo que podemos delimitar como epistemológico. Tratando de problemas comuns ao horizonte do início do século XX, o livro apresenta respostas a alguns desafios próprios ao pensamento contemporâneo, como é o caso do problema do dualismo mente/corpo, das relações entre instinto e inteligência, do papel do tempo na descrição dos fenômenos vitais, do sentido da evolução, entre outros. Destacam-se a crítica aos sistemas da tradição e a necessidade de compreender a dimensão histórica do real e do homem. 

É importante ressaltar o papel do último capítulo da obra, em que Bergson expõe o “mecanismo cinematográfico” da inteligência e mostra como a racionalidade ocidental é vítima da obsessão pela imobilidade e pela repetição – ela perde de vista a mudança e o movimento que respondem pela essência da realidade. Temos ali o desenvolvimento da crítica endereçada à história da metafísica racional, que Bergson considera sustentada por uma ilusão natural ao entendimento: a imagem ou a idéia do Nada.

Em relação a essa famosa crítica do negativo, a obra de Bento Prado Junior[27] Presença e campo transcendental (publicada pela Edusp em 1989 e traduzida para o francês em 2002, editora OLMS) tem uma importância capital. 

Ela nos apresenta uma interpretação original e instigante sobre a filosofia de Bergson, mostrando como a discussão da ilusão do Nada explicita as direções mais fundamentais de todas as análises críticas do filósofo e ressaltando a pertinência da denúncia do papel dessa ilusão na história da filosofia. O livro tem hoje reconhecimento mundial, e um de seus méritos foi ter percebido a importância da discussão do pressuposto do Nada para a filosofia do século XX.

Uma articulação entre dados da ciência e construção metafísica
A segunda vertente que atesta a atualidade da reflexão de A evolução criadora é o modo pelo qual ela articula dados da ciência e construção metafísica. Bergson leva até o limite a capacidade de meditar sobre as descobertas e inovações da biologia evolutiva, oferecendo hipóteses especulativas guiadas pelos fatos ou por sua leitura sem pressupostos.

As discussões pontuais com os cientistas da evolução explicitam um dos aspectos mais interessantes da filosofia bergsoniana, precisamente a denúncia de que existem conceitos previamente inseridos no trabalho da ciência, isto é, pressupostos latentes que dirigem a observação e a interpretação dos dados do trabalho experimental. 

Todas as obras de Bergson reforçam essa dificuldade: os dados da ciência são observados e descritos por um trabalho que é, na verdade, pura interpretação, cujos princípios os cientistas ignoram – em outros termos, usam teses e conceitos sem que o percebam. No caso das ciências biológicas, as conseqüências dessa reflexão crítica têm especial importância hoje, momento em que elas ocupam papel de protagonistas do progresso científico e dos dilemas que esse progresso impõe à humanidade.

IHU On-Line - Qual é a contribuição de Bergson para compreender a formação da consciência empírica humana?

Débora Morato - Ao procurar compreender os fenômenos vitais, Bergson considera a temporalidade ou duração. E logo percebeu que a temporalidade está essencialmente ligada à consciência. Nesse sentido, sua filosofia desenvolve-se como um estudo progressivo e profundo da consciência em geral, dos processos em que ela se manifesta. 

Ele procura superar a noção de consciência herdada das filosofias anteriores, que a limitam à sua dimensão de consciência reflexiva e intelectual, ou seja, “constituinte”, se quisermos usar o termo próprio às filosofias transcendentais. Bergson recupera o papel do estudo da consciência psicológica numa tentativa de desenvolver um empirismo verdadeiro. 

A consciência é originariamente 
uma inserção prática no mundo, 
surge na própria relação que se estabelece 
entre os corpos vivos e os seus ambientes. 

A reflexão sobre a consciência necessita do estudo das ações do corpo; é pelo critério da ação, aliás, que Bergson determina as diferenças entre as coisas e os organismos, entre a matéria e a consciência, entre o em si e o para si, os primeiros marcados pela ação necessária e automática, os segundos termos da oposição apresentando a capacidade de elaborar ações indeterminadas. 

Se a consciência é originariamente ação no mundo, essencialmente ele é progressão contínua do passado no presente invadindo o futuro – ela é duração. Encontramos no segundo livro de Bergson, Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (São Paulo: Martins Fontes, 1990), uma hipótese detalhada e complexa sobre a origem da consciência humana na percepção, a dimensão originária da consciência.

Essa obra liga o estudo sobre a interioridade e seus estados psicológicos, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (Montevideo: Cláudio Garcia, 1944), que dá conta da dimensão profunda e essencial da consciência enquanto progressão qualitativa, ao estudo da consciência em geral, uma espécie de “supra-consciência” criadora que é o centro da metafísica da vida de A evolução criadora

O trajeto que vai da primeira à terceira obra, integrando teoria do conhecimento e teoria da vida, funda-se então sobre um estudo que circula entre psicologia, biologia e metafísica e cujo centro é a noção de consciência – a duração, idéia central de filosofia de Bergson, é metafisicamente compreendida através da análise dos fenômenos conscientes em sua temporalidade concreta.

IHU On-Line - Como o espaço, a percepção e a inteligência se relacionam em sua obra e pensamento?

Débora Morato - A teoria da inteligência de Bergson foi o primeiro aspecto de sua filosofia que chamou minha atenção e dediquei a esse tema grande parte do meu mestrado. Em linhas gerais, Bergson atribui à inteligência uma forma, o espaço, e uma origem, a percepção. 

A inteligência tem um funcionamento que pode ser esclarecido pela metáfora do “mecanismo cinematográfico”: ela recorta momentos ou partes fixas dos fenômenos, como que “congelando” a dinamicidade do real, e tenta recompor a realidade através da justaposição desses instantes recortados de um todo no qual ela está inserida. Em outros termos, tudo o que a inteligência pode conhecer se dá por refração num meio homogêneo e vazio, no qual são desdobradas partes ou unidades nitidamente separadas, e isso se deve justamente ao fato de que ela é uma faculdade de ação e desenvolve-se na mesma medida do progresso da linguagem.

Em A evolução criadora, Bergson defende que a função do intelecto é adaptativa e assim naturaliza a inteligência. A nossa ação somente se exerce sobre pontos fixos: agir é dominar a matéria procurando, na pura mobilidade que é o estofo da realidade, estabilidades cômodas.

Para viver, é preciso recortar o real 
em função das nossas necessidades.

Ao desenvolver-se modelada por sua função vital, a inteligência progressivamente leva ao extremo a forma pela qual é capaz de fixar e recortar o real – o espaço, um meio vazio e homogêneo. O espaço é o meio de conservação das partes atualmente dadas por justaposição, fundamento das figuras geométricas e condição da percepção e da concepção de objetos distintos e determinados.

Se o real é pura dinamicidade
ou diferenciação (“atributos” da duração),
é evidente que a visão intelectual dos fenômenos 
será necessariamente fragmentada e estática,
ou seja, distorcida e equivocada, útil para a vida, mas completamente inadequada à compreensão da verdadeira essência dos fenômenos, o que para Bergson é ainda e sempre a tarefa da filosofia.

IHU On-Line - Como a construção da metafísica enquanto experiência integral - conhecimento interior e imediato como atributos da intuição em Bergson - pode ser explicada?

Débora Morato - A defesa e proposta de refundação da metafísica em novas bases é um aspecto do pensamento bergsoniano que provoca muito interesse e também muita rejeição no ambiente filosófico atual. Afinal, falar de metafísica em plena aurora do século XXI pode parecer provocação. Mas o fato é que Bergson tem o mérito de assumir aquilo que muitos pensadores preferem ignorar: as diversas áreas e os vários temas filosóficos, ao se aprofundarem, encontram por seu próprio desenvolvimento questões de ordem metafísica. Desde logo, ele percebeu que a filosofia evolucionista implica uma hipótese de fundo sobre a criação e o tempo, passando, então, a reformular o equacionamento de temas filosóficos pela crítica dos pressupostos metafísicos herdados da tradição. 

O desafio que Bergson procura enfrentar é justamente o de refazer a metafísica, agora pautada pela noção de experiência e, portanto, com apoio nos fatos. A título de exemplo, podemos citar o tratamento que ele confere ao problema do dualismo, estudado em Matéria e memória: a discussão e reposição do problema consiste ali em trazê-lo para o terreno dos fatos da memória, mais especificamente aos fatos da psicopatologia (os casos de afasia que estavam na ordem do dia da pesquisa científica na passagem do século XIX ao XX). 

As doenças da memória mostram uma conservação de lembranças que não se atualizam adequadamente, mas não são destruídas no córtex porque se apresentam em situações inesperadas, reforçando a tese bergsoniana de que lesões cerebrais impedem processos globais de organização, mas não suprimem as “cenas” ou as representações passadas.

O que impressiona nessas análises é a capacidade que Bergson tem de extrair conseqüências filosóficas cruciais de fenômenos simples e corriqueiros, tais como o a aprendizado de uma lição decorada ou de um exercício físico, descrevendo a formação de uma memória do corpo em que reside uma das mais belas passagens do livro.

Metafísica como “experiência integral”
A definição de metafísica como “experiência integral” tem relação direta com o método da intuição. A experiência concreta dos seres humanos é sempre uma mistura entre a dimensão temporal e a espacial. O domínio da vida por excelência é misto e, por não se darem conta desse fato, os diversos filósofos da experiência não souberam compreender e descrever a experiência concreta. 

O método da intuição trabalha 
em primeiro lugar de modo analítico, 
procurando dissociar os fenômenos 
em suas partes puras, seus limites.
Há uma definição célebre do trabalho da intuição que explicita o seu funcionamento: ele exige buscar a experiência “em sua fonte”, aquém de sua inflexão no sentido da utilidade que a define propriamente como experiência humana. 

O trabalho de purificar o misto conduz ao momento originário e, uma vez que Bergson define a realidade como tendência, e a tendência é uma mudança de direção em estado nascente, encontrar o momento nascente é então compreender o real. 

A intuição é a revelação do real como tendência através de um processo de separação analítica das tendências puras que são vividas por nós, na experiência concreta, como mistura. Além de recuperar o caráter dinâmico que subjaz a toda aparência estável dos fenômenos, a intuição da duração permite superar a própria condição humana, pensando a sua origem numa totalidade que lhe é anterior.

A experiência agora não se limita ao misto e não se contenta com a exteriorização prática que institui objetos: pela intuição metafísica, a consciência se volta ao puro, às tendências que originam o domínio misto e é nesse sentido que ela pode ser compreendida como experiência integral – expressão que fecha o texto Introdução à metafísica, traduzido por Franklin Leopoldo e Silva[28] para a coleção Os Pensadores.

IHU On-Line - Em que aspectos o conceito de "elã vital" nos auxilia a compreender a complexidade das sociedades pós-modernas?

Débora Morato - Não sou a melhor pessoa para responder a essa questão, mas me parece que é na definição do “elã vital” como impulso a partir do qual uma multiplicidade de tendências começa a se efetivar (em direções divergentes) que temos um bom exemplo dessa possibilidade. Bergson nos apresenta a um modo de compreender a evolução e as organizações diversas como movimento de diferenciação que guardam uma origem comum e, assim, uma memória. 

A unidade na diversidade apóia-se nessa memória da origem, nessa indistinção originária, na virtualidade de direções amalgamadas que define a duração. A noção de virtualidade e criação, assim como a de diferença interna, são trabalhadas pela filosofia de Gilles Deleuze, sobre a qual o pensamento de Bergson teve grande influência.

IHU On-Line - Partindo da afirmação bergsoniana de que aquilo que nossos sentidos nos fornecem não são a realidade, mas cópias seletivas desta, podemos perceber aí uma influência platônica, como aquelas imagens refletidas no fundo da caverna? Por quê?

Débora Morato - Parece-me que a aproximação mais adequada entre Bergson e Platão[29] reside na descrição da intuição como método das divisões que procura discernir no real suas articulações naturais. Quem trabalha essa aproximação é Deleuze, em seu livro Bergsonismo (São Paulo: Editora 34, 1999). Em relação ao conhecimento sensível, podemos dizer que a posição de Bergson é inversa a de Platão, que postula uma superação dos dados da sensibilidade pela abstração que se encaminha às idéias. 

Na verdade, em sua leitura crítica da tradição, Bergson denuncia a relação interna entre desprezo pelo movente, pela diferença e pela transformação e desvalorização da sensibilidade, vendo no platonismo um dos ápices dessa direção do pensamento racional. Bergson reiteradamente afirma que a metafísica nasceu dos argumentos de Zenão de Eléia[30] relativos à transformação e ao movimento. Ao chamar a atenção para o absurdo do movimento, o eleata levou os filósofos a procurar a realidade coerente e verdadeira naquilo que não muda. 

Ocorre que esse “absurdo” tem sua imagem fornecida pela sensibilidade, e a experiência sensível passa a significar aquilo que deve ser superado. Constrói-se, assim, uma posição teórica ou conceituação que literalmente “põe” um mundo, um mundo pensado ou ideal, revelado pelo conceito. Bergson, ao contrário, quer voltar à percepção sensível, ampliando o seu domínio e nela recuperado os índices do real por um contato com sua dimensão originária. É certo dizer que, para Bergson, os sentidos filtram o real e selecionam aquilo que interessa ao organismo, mas ele nunca abre mão da idéia de que tal seleção se efetiva sobre um ato de penetração na própria realidade. 

O corpo está no mundo e os sentidos retiram algo do mundo, não apenas nos fornecem uma cópia. As sombras de Platão seriam, para Bergson, os recortes estáveis sobre os quais agimos, e a filosofia liberta o homem dessa ilusão, a da imutabilidade, justamente aquilo que, para Platão, seria a essência do real. Nesse ponto, a filosofia de Bergson é essencialmente anti-platônica.

IHU On-Line - Russell criticava Bergson afirmando que sua filosofia não tinha muitos argumentos racionais, mas analogias e metáforas poéticas. Até que ponto essa crítica é procedente e até que ponto está impregnada de um pressuposto que filosofia boa é filosofia hermética, escrita em jargão ininteligível?

Débora Morato - Talvez haja algo nessa questão um pouco injusto com Russell, mas é certo que ele foi um grande crítico de Bergson. Penso que o verdadeiro problema aqui é a excessiva formalização da linguagem, sua extrapolação em técnica. Bergson é um crítico da capacidade da linguagem no terreno da especulação, já que sua destinação natural não é o conhecimento metafísico ou mesmo teórico.

A linguagem é instrumento de adaptação e socialização. Nesse sentido, sua função é possibilitar e desenvolver o trabalho de fixação do real que será a tarefa fundamental da inteligência. A relação entre a filosofia e a linguagem é de extrema complexidade, pois enquanto conhecimento a filosofia é discurso, mas tem que efetivar um trabalho contra as tendências naturais do discurso que não são nada filosóficas. 

O discurso é fruto da prática, nela se origina e segue assim as direções da ação, enquanto que a filosofia, de algum modo, interrompe a prática, deve inverter os sentido das representações por ela produzidas. Daí o recurso às analogias e às metáforas poéticas, com a intenção de dissolver um pouco a solidificação de significados.

IHU On-Line - Alguns afirmam que na filosofia de Bergson há um encontro com a literatura. Você concorda? Por quê?

Débora Morato - A duração criadora é o centro da filosofia de Bergson, o que acarreta inevitavelmente um problema: uma vez que a linguagem é uma ferramenta do homem para fixar o real que dura e assim fixar-se a si mesmo na realidade (ou seja, é o instrumento mais importante para a adaptação), ela é, de uma forma geral, inadequada para o conhecimento metafísico. A linguagem é um instrumento de ação e ao se constituir e se aperfeiçoar acaba ocultando gradualmente, com eficácia, os verdadeiros índices do real, a mudança, a transformação, a dinamicidade, a criação do novo. 

O grande problema que Bergson então enfrentou foi o de propor uma filosofia cujo objeto é inapreensível pela linguagem sem poder escapar de usar o discurso. A questão transforma-se assim na da possibilidade de um discurso filosófico e o caminho para resolver o problema está na aproximação entre filosofia e literatura.

A metáfora no lugar do conceito, o discurso que fala às capacidades humanas extra-intelectuais, eis a direção que o filósofo deve tomar: Bergson não só propôs esta via como a seguiu em seu itinerário, produzindo obras filosóficas de notável valor literário e vindo a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. 

Nós temos no Brasil um dos melhores estudos sobre a relação entre o método intuitivo e a discursividade: trata-se do livro de Franklin Leopoldo e Silva, Bergson: intuição e discurso filosófico (São Paulo: Loyola, 1994), publicado em 1994 pela editora Loyola. Ali podemos acompanhar em detalhe como Bergson expõe a função e a estrutura da linguagem, que é para ele a materialização em som e em signos de um sentido, de um pensamento, de uma realidade espiritual. A linguagem congela o sentido, como nos explica Franklin em seu estudo, materializando o pensamento para atender às urgências da ação, da adaptação. 

Nesse sentido, seu aperfeiçoamento caminha na direção da fixação de significados e da formalização técnica. Se parte do trabalho reflexivo que procura reabilitar a dimensão temporal dos fenômenos consiste em desfazer o que a inteligência e a linguagem fizeram no seu funcionamento natural, compreende-se a função da poesia e da metáfora: recuperar a mobilidade original dos significados, inverter a direção do trabalho da linguagem, usar a linguagem contra si mesma!

Esse é um dos temas de maior dificuldade de compreensão, mas também uma das mais ricas contribuições de Bergson ao entrecruzamento da filosofia com a literatura

A crítica bergsoniana ao cinema

Entrevista com Adrián Cangi

 Questionado se o cinema para Bergson seria uma espécie de sombra projetada no fundo da caverna platônica, o filósofo argentino Adrián Cangi não hesitou em responder: “Em certo sentido, o mito da caverna exposto em A república, como tensão entre a idéia e o simulacro, pensada como projeção indireta, está no fundo da imagem dogmática do pensamento que Bergson critica. Em Platão, a imagem está a serviço do poder que diferencia entre as cópias que se atentam ao modelo e aos meros simulacros.
A matriz platônica define, deste modo, os pressupostos de um pensamento transcendente, que tem vontade de se impor como conquista do verdadeiro através do conceito. Daqui nasce a idéia da verdade como invariante abstrata e teológica”.


 De acordo com Cangi, Bergson “não deixa de pensar o mito da caverna criticamente para desmantelá-lo como o domínio das ‘posturas’ abstratas que separam o inteligível-real do sensível-aparente. Encontra-se mais perto de pensar o universo material como cinema, ainda que como intuir ao cinematográfico como um ilusionismo mecânico”. A entrevista, exclusiva, foi concedida por e-mail à IHU On-Line.


Cangi é doutor em Sociologia, Filosofia e Letras. Leciona na Universidade de Buenos Aires (UBA), Fundação Universidade do Cinema (FUC) e Universidade Nacional de La Plata. Profundo conhecedor do pensamento de Spinoza, Nietzsche, Foucault e Deleuze, é um dos autores de Lúmpenes peregrinaciones. Ensayos sobre Néstor Perlongher (Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1996) e Glauber Rocha. Del hambre al sueño. Obra, política y pensamiento (Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Costantini, 2004), entre inúmeras outras obras.

IHU On-Line – Poderia explicar por que Bergson pensa o cinema como a perpetuação de uma antiga ilusão que consiste em crer que se pode construir o movimento mediante momentos fixos de tempo? 

Adrián Cangi - A filosofia, como apontou Deleuze, manteve, até a contemporaneidade, condições pré-cinematográficas, conferindo-lhe a percepção natural, um privilégio que faz com que o movimento siga ainda vinculado às “posturas”, sejam estas essenciais ou existenciais. A partir daí, o movimento cinematográfico é visto como imagem do pensamento, ao mesmo tempo infiel às condições da percepção e portador de um novo relato capaz de se acercar à percepção e ao mundo.

Será no capítulo IV de A evolução criadora (1907) que Bergson expôs que “a forma não é mais que uma instantânea tomada sobre uma transição”, sustentando que a percepção solidifica em descontinuidades formais a continuidade fluida. Define a forma como uma imagem instantânea que funciona como uma “imagem média do movimento”. Configura, assim, criticamente “o caráter cinematográfico do nosso conhecimento das coisas”. Conhecimento sustentado na idéia de que toda percepção, intelecção (estudo) e linguagem operam como um movimento abstrato e simples, artificialmente criado, que permitiria tornar “instantânea” como uma permutação do devir interior das coisas por um movimento geral, uniforme e invisível. Tal mecanismo estaria situado no fundo do aparato do conhecimento com o fim de imitar mecanicamente o devir.

O cinema, como unidade de comparação, não se sai bem na análise de Bergson. Contudo, Deleuze mostrará minuciosamente em A imagem-movimento. Cinema 1 (1983) e A imagem-tempo. Cinema 2 (1985) que Bergson estaria inventando premonitoriamente os problemas de uma linguagem, que somente pude perceber no registro amoroso e vacilante iniciais e que em seu pensamento alcançará a inquietude espiritual madura, antes que os grandes cineastas o produzam como marcas de estilo.

Imagem é igual a movimento
É no capítulo I de Matéria e memória (1896) que Bergson refletirá o cinema pensando que a imagem é igual ao movimento, que a imagem-movimento e a matéria-fluxo são estritamente a mesma coisa. De Matéria e memória a A evolução criadora, Bergson concebe um corte móvel da duração mais que um corte imóvel ou instantâneo do movimento. Deste modo, o cinema seria capaz de alcançar o universo material na imagem-movimento como identidade absoluta da imagem e o movimento. Identidade maquinista que os conceitos de Bergson nos permitem ver e que, contudo, em sua crítica explícita, nos afasta do cinema.

Podemos dizer que o cinema perpetuaria uma antiga ilusão porque Bergson crê que em um movimento que há mais que nas posições sucessivas, há mais num devir que nos cortes ou formas uma atrás da outra. O mecanismo cinematográfico da inteligência responde à representação por detenções que dominou a filosofia antiga e que atravessa – para Bergson – a filosofia moderna em certo grau. A provocação deste pensamento consistiria em se instalar na mudança e captar, ao mesmo tempo, a mudança e os estados sucessivos que a todo instante poderiam imobilizar-se.

Mas instalar-se na transição supõe “renunciar aos hábitos cinematográficos de nossa inteligência”.
Deleuze supõe clarificar a imagem do pensamento como duração em três grandes teses. A primeira provém de Matéria e memória e sustenta que o movimento é o ato de recorrer, o espaço recorrido é indivisível, ou bem não se divide sem mudar com cada divisão da natureza. Então, não se pode reconstruir o movimento com posições no espaço ou com instantes no tempo.

Uma duração concreta em movimento é uma imagem média com dado imediato. As outras duas provêm de A evolução criadora. A segunda sustenta que o movimento não é a postura regulada de uma forma a outra segunda ordem de posturas ou instantes privilegiados, como supunha a filosofia antiga, mas que este somente se recompõe segundo cortes imanentes ou instantes quaisquer, como explica a ciência moderna. 

O tempo aparece, assim, como variável independente do movimento. A terceira dirá que se o instante é um corte imóvel do movimento, ou seja, este resulta de um corte móvel da duração. O movimento expressa a mudança na duração. A criatura existe na duração como um todo que não está dado nem pode se dar. Corresponde-se com o aberto que assimila no ser vivo o ritmo do universo. Esse todo crê numa dimensão sem partes como puro devir sem interrupção que, contudo, passa por estados somente pensáveis como graus artificiais ou conjuntos relativamente fechados. 

A partir destas teses, Deleuze dirá que Bergson antecipa a criação de três tipos de imagens do pensamento. Podemos dizer que há não somente imagens instantâneas como cortes imóveis do movimento, mas também imagens-movimento como cortes móveis da duração e imagens-tempo, para além do movimento mesmo, como imagens-duração, imagens-mudança, imagens-relação. Aquele que nos conduziria pelo mecanismo cinematográfico do pensamento que fazia a ilusão mecanicista, para Deleuze havia liberado um novo modo de pensar a igualdade da imagem e o movimento, destituindo a ilusão antiga da imagem do pensamento.

IHU On-Line – Em que medida este pensamento serve como instrumento de crítica à indústria cinematográfica contemporânea em sua tendência a perpetuar o instante e o estereótipo? 
Adrián Cangi - A história do cinema tem revelado procedimentos de criação que se subtraem aos poderes estabilizadores da comunicação com sua promessa orgânica, sensorial e motriz. Cada interrupção desta lógica de ação-reação como imagem realista do pensamento gera uma anomalia, um falso movimento, um salto na continuidade perceptiva. Sempre que as lógicas orgânicas da representação são interrompidas aparece o gesto de estilo. O estilo como gesto poético que me atrai responde à sentença de Bresson[31]: “Não corra atrás da poesia. 

Ela penetra por si mesma através das junções!”. Bergson é um pensador dos intervalos, elaborando um “entre” como fonte imanente do movimento-duração do qual emerge potências criadoras. Esta posição supõe para o pensamento um salto que vai da percepção automática à percepção atenta, do movimento estruturado pelo costume associativo e estratigráfico. Deleuze vê nesta lógica um pensamento da diferença que absorve os estereótipos na repetição e os transforma no processo de criação. O cinema, como outras linguagens de criação, trabalha e elabora estereótipos e tópicos. 

Os grandes criadores os utilizam e desgastam produzindo intervalos em sua repetição. De distintos modos, Vertov[32], Bresson, Rossellini[33], Godard[34], Syberberg[35], somente para citar alguns realizadores que utilizam o intervalo para descompor a percepção do instante e do estereótipo.
O espetáculo é o pesadelo da sociedade moderna que não expressa seu desejo de infância e de sonho.

Um estilo é sempre uma indecisão que resiste à ilusão. Segundo a fórmula de Bergson, sempre vemos de menos determinados por condicionamentos psicológicos, econômicos, ideológicos. Vemos por capas: a postura de uma capa à outra é uma mudança visão do mundo. Ao começar “História(s) do cinema”, Godard disse: “guarda para ti uma imagem de indefinição!”. Essa margem é um intervalo que produz uma mirada mais para lá do instante e do estereótipo.

IHU On-Line – O cinema para Bergson seria uma espécie de sombra projetada no fundo da caverna platônica?
Adrián Cangi - A filosofia de Platão parte da forma e vê nela a essência mesma da realidade. Não obtém a forma mediante uma vista tomada sobre o devir. A duração e o devir somente seriam a degradação da eternidade imóvel. A forma independente do tempo não é unida à percepção; é uma abstração. As formas se assentam fora do espaço e em cima do tempo. Expressam uma distensão no tempo e uma extensão no espaço.  

Em certo sentido, o mito da caverna exposta em A república, como tensão entre a idéia e o simulacro, pensada como projeção indireta, está no fundo da imagem dogmática do pensamento que Bergson critica. Em Platão, a imagem está a serviço do poder que diferencia entre as cópias que se atentam ao modelo e os meros simulacros. A matriz platônica define, deste modo, os pressupostos de um pensamento transcendente, que tem vontade de se impor como conquista do verdadeiro através do conceito. Daqui nasce a idéia da verdade como invariante abstrata e teológica. Bergson não deixa de pensar o mito da caverna criticamente para desmantelá-la como o domínio das “posturas” abstratas, que separam o inteligível-real do sensível-aparente. Encontra-se mais perto de pensar o universo material como cinema, ainda que este seja visto como um ilusionismo mecânico. 

Deleuze consegue perceber que Bergson concebe um plano móvel como um conjunto de movimento que expressa uma mudança. Esse plano corresponde à idéia de bloqueio de espaço-tempo mais próximo ao cinema como igualdade da imagem e à matéria do que ao mito da caverna.

IHU On-Line – Qual é a importância de A evolução criadora dentro de sua obra? Qual é o papel ocupado pelo conceito de “elã vital” nesta filosofia? 

Adrián Cangi - Nesta obra, Bergson desenvolve a noção de seu pensamento: a duração. O que quer dizer pensar a vida como duração? Liberar-nos da falsa idéia de que a experiência do tempo é uma sucessão de instantes autônomos, quase como se o presente estivesse separado do passado e tivesse necessidade de recriá-lo de qualquer maneira, através de uma reelaboração a posteriori. Viver não é reviver o passado; entre passado e presente não há cicatriz alguma. Na experiência do tempo como duração, nada do passado se perde. 

O presente não é senão a prolongação do passado que opera incessantemente até o futuro. Se tudo muda continuamente, a forma de experiência resulta perpetuamente remodelada por um impulso de criação ininterrupto, flexível e infinito, que gera e incorpora a invasão da novidade. Bergson desdobrou em sua obra uma metafísica da vida, evoluindo os processos vitais como o impulso que nos lança até um dinamismo criativo. 
 
Em Introdução à metafísica (1903), considera o processo impulsivo que nos lança até a criação como uma identificação com a vida do mundo inteiro. Esta experiência havia sido abordada em Essai sur les données inmédiates de la conscience (1889), em relação a duas ordens de realidade: uma, homogênea, caracterizada pelo domínio da dimensão espacial como uma ordem quantitativa e múltipla; a outra, heterogênea, caracterizada por uma experiência do tempo como duração alcançada pela percepção das qualidades e pela indeterminação numérica. A primeira está conectada com a extensão e a exterioridade; a segunda, com a intensidade e a interioridade. De um lado, a ordem da continuidade, do outro, da sensação dos estratos profundos da consciência. Deste último, se desprende a intuição como um “elã vital” de uma sensação que vem acompanhada de um acontecimento diferencial. A sensação é uma experiência da vibração do devir que não pode ser alcançada abstratamente. 

A transição é contínua, mas a vibração supõe um caminho de estado. O fundo do problema consiste em distinguir as presenças puras da duração e da extensão, encontrando as articulações do real ou as diferenças da natureza. A intuição do devir é uma experiência trágica, afirmativa do múltiplo e pensável como uma alegria dinâmica.

IHU On-Line – E em que medida é possível aproximar o conceito de vida de Bergson com a vontade de potência nietzschiana? 

Adrián Cangi Por comodidade, escolho somente um aspecto para responder esta pergunta. Bergson considera a idéia do possível como uma miragem do presente no passado. O possível é um falso problema porque não é mais que o real mesmo unido a um ato do espírito que expulsa a imagem no passado uma vez que se tem percebido. Nossos hábitos intelectuais são os que nos impedem de perceber. O atual está acompanhado pela imagem virtual de maneira inseparável e ambas caras compõem o real. 

A noção da palavra virtual provém do latim medieval virtualis, no sentido de virtus, estritamente: força, potência. O virtual é aquele que existe em potência, e não o ato. O virtual tende a atualizar-se. O atual e o virtual são maneiras de ser diferentes. O virtual é como um complexo problemático, um nó de tendências das forças que acompanham uma situação, um acontecimento e que espera um processo de resolução: a atualização. A virtualização se pode definir como o movimento inverso da atualização. Movimento que consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma elevação da potencia da entidade considerada.

A virtualidade não é uma desrealidade, 
mas uma mutação da identidade,
um deslocamento do centro de gravidade ontológico
do objeto considerado. 

A vida em Bergson é pura potência virtual, 
impulso vital ou movimento da duração 
que se diferencia. 

Este seria um plano de aproximação 
do movimento da vida em Bergson
 e a vontade de potência em Nietzsche.


 IHU On-Line

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