Linguagem e criação:
considerações a partir da pragmática
e da filosofia de Bergson
Silvia Helena TedescoI;
Karla Soares Pereira ValviesseII
RESUMO
O trabalho defende novo encaminhamento para os estudos da Psicologia da Linguagem, comumente orientados por uma abordagem representacionalista. Na interface entre estudos da Linguística, Filosofia da Linguagem e as filosofias de Bergson, Deleuze e Guattari, assim como o pensamento de Foucault, uma perspectiva pragmática acerca da linguagem ganha realidade. A linguagem deixa de ser considerada instrumento de conhecimento do mundo e, compreendida como ato, assume o poder de intervenção sobre o mundo. Inicialmente, apresentam-se as práticas linguageiras que atuam como marcadores de poder, que realizam transformações na realidade orientadas pelas circunstâncias histórico-políticas vigentes. Em seguida, discute-se a força pragmática das palavras na invenção de novas realidades. Conclui-se pela necessidade de estender o poder inventivo da linguagem para além dos limites da Literatura, e, a partir de releitura da filosofia de Bergson, propõe-se a inseparabilidade entre linguagem e criação.
Palavras-chave: Linguagem; Cognição; Criação.
O advento do pensamento estruturalista a partir do início do século XX levou as Ciências Humanas e a Filosofia a voltarem sua atenção ao tema da linguagem (DOSSE, 1993, 1994; RECANATI, 1979). Nesta trajetória, encontram-se os estudos da Psicologia que elegem este processo como um dos determinantes-chaves da atividade cognitiva. Não podemos deixar de reconhecer que as proliferações destas investigações nos disponibilizam numerosas propostas de entendimento do tema, pluralizando nossos olhares e práticas. Sobre isso nos esclarece Bronckart (1977, p. 5, tradução nossa), ao afirmar que
As teorias da linguagem estão na ordem do dia. Já há muitos anos, psicólogos, fonoaudiólogos e educadores encontram em suas práticas quotidianas novas formulações teóricas, novas metodologias ou novos programas que se inspiram nas teorias contemporâneas da linguagem.
Este texto dirige-se àqueles que, preocupados com o tema da linguagem no domínio das Ciências Humanas, interessam-se pelo debate estabelecido na interface entre diferentes disciplinas como estratégia de fomento à continuidade e avanço da pesquisa. Isto porque acreditamos que é na interferência entre saberes diversos, na desestabilização que o contato com outras formas de pensar nos provoca, que a potência de diferir atinge nossas ideias.
Mais especificamente, nosso objetivo é trazer para este debate a interface entre Filosofia, Linguística e Psicologia. Esta última, tomada em sua vertente da Psicologia da Linguagem, estaria preocupada com a inserção do processo da linguagem na cognição e, consequentemente, o reconheceria apenas em sua função representativa, enfatizando nos estudos o estabelecimento dos princípios gerais de regulação. Em quase todas as perspectivas em questão, apesar das diferenças de propostas, percebe-se um ponto em comum: tratar a linguagem como mediador entre a ordem da realidade e a ordem das atividades abstratas do pensamento1.
Ao contrário, a novidade que nos afeta a partir de outros domínios de pesquisa e nos faz pensar diferentemente a linguagem é aquela que atribui a esta o poder de criação de novos sentidos e novas realidades. Em suma, a proposta é buscar alianças conceituais como base de apoio para a argumentação em favor da reformulação do conceito de linguagem. Com tal objetivo, visitaremos autores da vertente pragmática da linguagem, assim como a filosofia de Bergson, na busca de subsídios teóricos para repensarmos a linguagem em sua potência inventiva.
A PRAGMÁTICA DA LINGUAGEM
A pragmática construída na trajetória inspirada nos estudos de Austin, Deleuze e Guattari, passando por Foucault, vai ressaltar, no processo da construção do sentido, a presença de pressupostos implícitos às palavras, gerados na exterioridade do que tradicionalmente denominou-se linguagem. Ou seja, para bem mais além do âmbito do léxico e da sintaxe, existe todo um conjunto de fatores que, embora não se confunda com a palavra em si, tem o poder de participar da construção de seu sentido.
A partir de Austin (1990), passa-se a considerar determinações pragmáticas provindas de convenções sociais na composição do sentido das palavras, o que confere a este o poder de transformar fatos do mundo. Os clássicos exemplos “declaro o réu culpado” ou “batizo esta criança” são ditos que não se limitam a expressar em signos fatos exteriores à palavra. Não existe um ato de batismo, uma sentença atribuída ao réu, anterior ao dizer. É a própria enunciação que realiza o ato.
Tais exemplos servem ao argumento de que o sentido destas enunciações não pode ser atribuído apenas à gramática e à sintaxe; a força de intervenção provém, segundo Austin, das convenções sociais, externas à linguagem e resultantes de acordos estabelecidos pela comunidade falante que, então, atribui ou não a estas frases o sentido pragmático, ou seja, o poder de julgar, transformar o suspeito em culpado, ou de legitimar a inclusão de novos membros na comunidade religiosa. Enfim, com Austin a linguagem não descreve coisas e estados de coisas, mas age sobre estes, ou seja, torna-se uma prática especial que, distinguindo-se das ações que atuam no silêncio dos signos linguísticos, se exerce no interior da palavra. O sentido pragmático dos signos constrói-se no contato com o mundo dos fatos e confere-lhes o poder de intervenção na realidade.
Mas, se o sentido pragmático reside nas palavras, também não se confunde com estas. Ora, se o poder de intervenção do sentido no real não se localiza na sintaxe ou na gramática, onde detectar mais especificamente os determinantes do sentido pragmático?
No esclarecimento da força pragmática das palavras, Deleuze e Guattari (1995) vão além de Austin e buscam na noção foucautiana de formações discursivas a ampliação e o fortalecimento da abordagem pragmática da linguagem. Segundo Foucault (1998), é preciso ir além das convenções sociais e atingir o plano das condições do dizer para melhor entender a relação intrínseca existente entre o enunciado e poder. São as circunstâncias históricas, os jogos de poder de cada época, que decidem o que pode ser dito. Assim, a noção austiniana de sentido pragmático é ampliada, ultrapassa as instituições sociais constituídas e estende-se às forças, vetores políticos produtores das condições de possibilidade do dizer. A produção do sentido resulta de formações históricas, processos que emergem de dois diferentes planos de práticas políticas (jogos de poder) que jamais se separam e que atravessam toda a empiricidade. São as práticas de dizibilidade e de visibilidade interferindo no dizer:
A realidade divide-se em duas modalidades
de produção de realidades.
No primeiro, plano de dizibilidade, localizam-se as práticas centradas no uso de signos, isto é, toda e qualquer atividade envolvida com a expressão. No outro, as práticas empíricas que envolvem corpos e coisas. É o plano das ações, das visibilidades. De um lado, os atos, realizações vinculadas às enunciações, de outro, as ações mudas. Da gênese empírica das formas de visibilidade criam-se modos de ver e fazer ver; já da produção das formas de dizibilidade, surgem maneiras específicas de falar, regimes de discursos ou de signos (...)(TEDESCO, 2003, p. 86).
Contínuas intervenções mútuas marcam as relações entre esses dois planos, que agindo reciprocamente um no outro efetivam aquilo que acreditamos como realidade, ou melhor, nosso saber sobre a realidade, desde a construção dos objetos de conhecimento até ações corriqueiras de nosso cotidiano. No processo de produção de sentido está compreendida, portanto, a produção de realidade.
As formações históricas foucaultianas, tomadas como pressupostos implícitos das palavras, regulam a construção do sentido e nos permitem afirmar a existência de uma outra dimensão da linguagem. Coexistente com o plano linguístico, afirma-se a existência da dimensão extralinguística da linguagem, uma espécie de ‘lastro histórico-político’ das palavras e, portanto, do sentido que veiculam (TEDESCO, 2003, 2005).
Vale notar que se deixa para trás o estruturalismo e a exclusividade oferecida ao plano do linguístico pela montagem do sentido. Não deixar coincidir inteiramente a construção do sentido com o que denominamos dimensão do linguístico ─ especificada pela gramática reguladora dos componentes lexicais e pela sintaxe, responsável pela relação entre estes ─ amplia os contornos da linguagem e nega o caráter puramente representativo dos signos para afirmar uma política do dizer.
O novo contorno da linguagem questiona a concepção tradicional da Linguística que realiza o fechamento da linguagem sobre si mesma e a resume a regulações e a invariantes. Consequentemente, a nova configuração elimina também a clássica dicotomia que separa expressão e conteúdo. De um lado existiria o plano da expressão, da ordem implementada pela linguagem, de outro o plano confuso dos conteúdos factuais. Nesta concepção, a linguagem, restrita ao plano da expressão serviria exclusivamente para dar forma, para organizar os fatos contingentes, instáveis.
Apenas ao serem expressos em signos,
ou seja, exclusivamente ao serem tomados
como conteúdos dos ditos,
os fatos do mundo ganhariam clareza.
A linguagem consistiria em um veículo adequado à pura expressão ordenada de conteúdos factuais. Esta concepção binarizante apresenta-se com pequenas variações na vertente clássica da Filosofia da Linguagem e no Estruturalismo Linguístico, para os quais linguagem restringe-se a uma estrutura formal, capaz de emprestar limites claros às ocorrências empíricas, sempre confusas (DOSSE, 1993, 1994; FRANK, 1989). Para melhor esclarecimento, cabe explicitar esta concepção representacionalista que deixamos para trás.
A Concepção Representativa da Linguagem
No modelo de pensamento orientado pela dicotomia expressão-conteúdo, o plano do conteúdo ou plano do mundo sensível seria como uma nebulosa resultante do infinito número de relações estabelecidas entre os objetos. E nosso pensamento assim apreenderia o mundo, como um conglomerado ininteligível. Sobre isto, Saussure (1973, p. 130) nos esclarece que
Filósofos e lingüistas sempre concordaram em reconhecer que, sem recurso dos signos, seríamos incapazes de distinguir duas ideias de modo claro e constante. Tomado em si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da linguagem.
Por exemplo, um corpo em contato com outro produz variações, pode mudar suas dimensões, sua tonalidade, seu formato, enfim, parece ter suas características mudadas a cada instante. Do mundo, em seu contínuo de transformações, só teríamos ideias confusas que não conseguiriam apreender permanências e nem as fronteiras constantes, delimitadoras dos objetos. Como consequência deste caráter amorfo, os fatos corresponderiam a contingências e o pensamento estaria fadado a aceder apenas à pura aparência confusa.
Como nesta concepção dualista da linguagem o privilégio recai sobre a ordem, a variabilidade aqui apreendida é definida negativamente, em referência à organização que lhe falta. A linguagem, como plano da expressão, viria em socorro do pensamento, classificaria as ideias confusas em signos, organizando, por meio de sua ordem interna, as ideias e, com elas, a realidade dos fatos. Substitui-se por signos bem delimitados a realidade fugidia, conferindo-lhe ordem e permanência.
É o paralelismo entre os dois planos (expressão e conteúdo) que vai garantir a preservação das fronteiras da ordem linguística e mantê-la refratária à variabilidade do plano do conteúdo. Como sistema invariante, a linguagem pode, então, dedicar-se à mediação organizadora da diversidade empírica. O exercício da representação ou de ordenação do real, presente em toda atividade cognitiva, apoia-se necessariamente no paralelismo entre os dois planos. Entende-se o apego dos teóricos da representação pelo isolamento dos universos linguístico e extralinguístico, pois assim se preservam os principais efeitos desta dicotomia: a invariância da linguagem, seu caráter geral e intocável como plano ordenador do mundo.
Em resumo, haveria um plano de pura inconstância, no qual prima a heterogeneidade, e outro capaz de traduzi-lo por meio da sua própria ordem permanente. Sublinhamos que representar, portanto, não implica doar signos particulares, correspondentes a cada ocorrência factual, e sim classes gerais que subsumem a diversidade do plano de conteúdo a unidades. O signo ou conceito geral ‘mesa’, por exemplo, inclui variadas experiências particulares, inúmeros exemplares empíricos aí alocáveis, independente de suas variações como cor, tamanho ou forma. A função representativa é, neste sentido, essencialmente ordenadora, constrói signos-regras que subsumem experiências/pensamentos particulares a classes e subclasses gerais.
Na concepção representacionalista, falar do mundo é subordinar a contingência dos fatos e seu constrangimento espaço-temporal à atemporalidade dos signos. Mas justamente aí residiria a fragilidade deste pensamento. Ao isolar a linguagem do mundo dos fatos, define-se de modo insuficiente o sentido, excluindo dele sua potência de intervenção na realidade. Sobre isto nos advertem Deleuze e Guattari (1995, p. 21)
[...] enquanto a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um 'elemento suplementar que permanece inacessível a todas as categorias ou determinações lingüísticas', embora seja completamente interior à teoria da enunciação ou da língua.
POR UMA POLÍTICA DO DIZER
– A PALAVRA DE ORDEM
Voltemos à concepção pragmática da linguagem na qual esta deixa de lado a função de representação, ou seja, de organização do mundo sensível, para constituir-se em um mando cuja unidade elementar é a palavra de ordem. Para Deleuze e Guattari (1995, p. 16), palavras de ordem constituem não só
[...] uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, o imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele.
O termo “palavra de ordem” pode ser originalmente encontrado em Elias Canetti (1995). Para este autor, mais antiga que a fala é a ordem, ou seja, antes mesmo de poder articular a linguagem, o homem já exercia atividades de comando. Toda palavra conteria uma ordem, composta por um impulso e por um aguilhão. Uma vez que a palavra realiza-se em um ato, seu pronunciamento produz espontaneamente, imediatamente, um efeito sobre o empírico, resulta em uma marca executada sobre o corpo daquele que a recebe.
Desse modo, o aguilhão é o que incita a geração de mandos ou, como denominam Deleuze e Guattari (1995), as palavras de ordem, a ponto de compor uma memória instrutiva exemplar, um arquivo que se assemelharia ao conteúdo de uma biblioteca composta tão somente de veredictos, ordens inexpugnáveis2.Na mesma direção, os autores afirmam a quase instantaneidade na emissão, percepção e transmissão de palavras de ordem.
Se a palavra porta o aiguillon, se é competente para intervir sobre o real, é porque esta se compõe de veredictos, de pequenas sentenças. As regras gramaticais, misturadas aos componentes extralinguísticos (as formações históricas foucaultianas), são marcadores de poder, assinalando posições hierárquicas, definindo obediências e, deste modo, interferindo na produção da realidade. Afirma-se a relação imanente entre enunciado e ato, ou seja, o mando como pressuposição implícita de cada fala. Todo e qualquer enunciado está ligado à instauração de obrigações de ordem social, de modo que uma pergunta, uma promessa, segundo Deleuze e Guattari (1995), são palavras de ordem. Longe de pertencer somente à esfera dos comandos explícitos, como no caso dos imperativos, a palavra de ordem figura como pressuposto implícito inerente à linguagem. Incorporar o mando à linguagem implica ampliar seus limites para além do léxico, da sintaxe ou da lógica.
A dimensão do extralinguístico seria a que melhor promove acesso à própria condição da linguagem – sua competência na produção de sentidos ─ e que também decide pela seleção e modo de utilização dos elementos da dimensão linguística. É a reciprocidade entre os dois planos que assegura os atos de linguagem. A conjugação entre os domínios linguístico e extralinguístico da linguagem fere a clássica dicotomia expressão e conteúdo, pois a linguagem, ou seja, o plano de expressão, é determinado, ao mesmo tempo que determina o plano dos corpos, o plano do conteúdo, em uma relação de pressuposição recíproca. Enfim, os autores ressaltam que no ordenar, interrogar, prometer ou afirmar está contido um ato que se efetiva de modo implícito na própria emissão dos enunciados.
A LINGUAGEM-ATO,
ATO DE CRIAÇÃO
E OS INCORPORAIS DO ESTOICISMO
Porém, o caráter pragmático do dizer não se esgota na palavra de ordem, nestes comandos ordenadores do socius. Deleuze e Guattari (1995) encontraram também na aliança com a filosofia estoica ferramentas para pensar a linguagem como ato, ato de fala. No entanto, também encontram no estoicismo argumentos para a afirmação de outro plano do dizer, ainda mais surpreendente que o do extralinguístico. Pela noção estoica de transformação incorporal, a linguagem passa a ser reconhecida não só em sua função ordenadora da realidade, mas também em sua potência de criação de sentidos e de mundo.
Vale notar, portanto, que além da relação de reciprocidade restabelecida entre linguagem e mundo, base de apoio para qualquer pragmática da língua, outra novidade ainda mais importante é introduzida pela aliança com os estoicos. Esta se apresenta na conjunção de duas afirmações: a primeira nos aponta Bréhier (1997, p. 12, tradução nossa) ao dizer que“o acontecimento é um incorporal que expressa a singularidade do corpo”, ou seja, aquilo que lhe ocorre como inantecipável e irrepetível. Em seguida temos a afirmação de Deleuze (2003, p. 13) de que “é próprio aos acontecimentos o fato de serem expressos ou exprimíveis, enunciados ou enunciáveis por meio de proposições pelo menos possíveis”.Ou seja, as duas afirmações nos conduzem a afirmar ser o acontecimento, ou a emergência do novo, a própria condição da linguagem.
Lembremos que para os estoicos há três naturezas de “coisas”: o objeto, o que significa (palavra) e o significado. As duas primeiras são classificadas como corporais. Já a última, o significado, é incorporal. Foram os estoicos os primeiros a construir, a partir da noção de incorporal, uma teoria que pudesse clarificar a diferença de natureza existente entre os corpos e os efeitos das relações entre estes, sendo, também, os primeiros a elaborar uma Filosofia da Linguagem (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
Os incorporais,
como efeitos das relações entre os corpos,
não são seres, mas quase seres,
que se encarnam nos corpos sem, contudo,
preexistir a eles ou neles.
São acontecimentos, expressando um devir inantecipável, pois “o Acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (DELEUZE, 2003, p. 152).
Segundo o estoicismo, as variações ─ o inédito próprio aos incorporais ─ não são necessariamente subsumidas a classes ou signos gerais, não são absorvidas com variáveis de uma unidade, de uma identidade, como no pensamento da representação. Segundo a filosofia estoica não existe ideia geral ou conceito unificador para subsumir as variações dos seres, os devires incorporais.
Por esta razão, podem afirmar o inesperado, acreditam na descontínua realidade do ser. As quebras na regularidade, os acontecimentos produzidos como efeito dos encontros circunstanciais dos corpos, não são desprezados uma vez que consistem no mais íntimo e primordial do corpo, sua potência de deriva ou maneiras de ser. É uma dimensão empenhada em burlar as teses platônico-aristotélicas da essência, para incluir no ser modos de diferenciação. Nesse sentido, estamos diante de uma dimensão paradoxal indicada pelas quebras de linhas de continuidade que dissolvem as identidades fixas, tão necessárias à recognição, à representação (DELEUZE, 2003).
Com os estoicos, o irregular e o inesperado compõem uma das dimensões do ser. Portanto, as transformações não são reduzidas a propriedades das coisas, mas expressam modos de ser, até então, não realizados. Neste ato inaugurador de novos estados, os incorporais expressos na enunciação revelam o ser como maior que ele mesmo, sempre pronto a apresentar um novo aspecto, um novo detalhe, de modo que sua natureza transborda-o constantemente e expande-o para além dos seus limites, em um processo de produção ininterrupto, realizado pela deriva que também o define.
Émile Bréhier (1997) investiga a natureza da noção de exprimível nas proposições estoicas, nas quais verbo integra predicado e cópula. O que se exprime em um julgamento, em um enunciado que descreve, é um ato de transformação dos corpos, são acontecimentos. No exemplo da frase ‘a árvore verdeja’ (tornar-se verde), há um acontecimento, uma transformação é apreendida pela frase, o ‘verdejar’ é atribuído à árvore, mas não existe fora da proposição. As misturas dos corpos, as relações dos fatos do mundo, efetuam mudanças contínuas, mas o instante de ruptura entre o antes do verdejar e o depois é expresso na palavra.
O verbo inaugura o novo modo de ser da árvore.
O verdejar não é uma qualidade sensível
como a da cor verde.
Verdejar é uma ruptura incipiente na junção dos planos da idealidade e das coisas, da expressão e do conteúdo. Os incorporais têm no verbo ─ sobretudo o infinitivo e o gerúndio ─ seu melhor exemplo, pois estes são capazes de exprimir os momentos que novos modos de ser emergem, permitindo acesso a essa mobilidade diferenciadora. Para Deleuze, tal diferença realiza-se sobre os corpos a partir de sua expressão em signos. É a palavra que atualiza “os acontecimentos no mundo empírico [cabendo a elas] conferir existência a esses quase-seres. Se há um pressuposto em toda enunciação, este é a diferença, a transformação incorporal” (TEDESCO, 1999, p. 115).
A EXPRESSÃO DO ACONTECIMENTO:
A DIMENSÃO INTENSIVA DA LINGUAGEM
Neste sentido, o acontecimento funda a expressão uma vez que, segundo Deleuze (2003, p. 9), “é coextensivo ao devir e o devir, por sua vez, é coextensivo à linguagem”. Ao aliar a potência de intervenção na realidade ao movimento de transformação incorporal dos estoicos, proclama-se o ato de fala como processo de criação de novos sentidos e, tendo em vista que falamos de sentido pragmático, que intervém no empírico, nos encontramos ante a potência de invenção de novas realidades, outros mundos. O ato de fala é também ato de criação.
O exame da palavra de ordem à luz da parceria com os estoicos, como proposta por Deleuze e Guattari (1995), revela, portanto, outra face da linguagem e, nela, a possibilidade de escapar à sentença que porta: trata-se da palavra de ordem como fuga. Ao mesmo tempo morte e fuga se expressam, compondo os “dois tons” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 54) da palavra de ordem, distintos, mas inseparáveis. Se, para os autores, a palavra veicula comandos que podem conter obrigações regidas pela redundância dos dizeres, ela também emite linhas de variação, transformações incorporais de tal intensidade que não permitem sequer a distinção entre elementos de expressão e de conteúdo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 57). As variações introduzidas pelos incorporais estão desvinculadas de qualquer modelo ou princípio regulador e, por isso, introduzem o inesperado, tornando descontinua a realidade do ser.
Não existe ideia geral ou conceito unificador
capaz de subsumir os devires incorporais.
É uma dimensão empenhada em burlar as teses da representação e incluir no ser modos de diferenciação. Nesse sentido, estamos diante de uma dimensão paradoxal indicada pelas quebras de linhas de continuidade que dissolvem as identidades fixas, tão necessárias à recognição.
Os incorporais são coextensivos à linguagem, ou seja, só se realizam enquanto expressos. Distinguem-se da linguagem por serem sua condição e seu pressuposto implícito, mas, ao mesmo tempo lhe pertencem como outra dimensão. Deste modo quebra-se a dicotomia entre os planos de expressão e de conteúdo em nome da reciprocidade de suas ações. Em suma, o expresso da linguagem, de toda enunciação, são os incorporais, os acontecimentos que desdobram as maneiras de ser dos corpos e expõem a variabilidade fundamental destes. A presença dos acontecimentos na linguagem impõe considerar uma dimensão especial, capaz de expressar o caráter único, irrepetível, do acontecimento. Para tal, a dimensões do linguístico e o extralinguístico mostram-se incompetentes uma vez que se sustentam nas regularidades.
Propomos, portanto, uma terceira dimensão da palavra. Falamos aqui da existência de um plano operado por componentes intensivos da linguagem. Partículas que não ostentam qualquer traço comum que faça operar sua inclusão em categorias semânticas preexistentes. A resistência destes componentes à unificação os torna hábeis a ostentar o momento de passagem ou de transformação do ser. Expõem-se como diferenças em estado puro ou devir. Provocam acontecimentos de sentido, passíveis de romper com qualquer regularidade enunciativa. Como agramaticalidades ou descontinuidades semânticas, essas intensidades assemióticas funcionam como brechas intransponíveis nas classificações representacionais, quebrando as redundâncias semânticas3.
O elo entre o linguístico e o extralinguístico nos revelou o mando implícito na palavra, efeitos e transformações empíricas, asseguradas nas redundâncias dos ritos, convenções, enfim, nas formações históricas. Diferentemente, neste momento, sublinhamos na palavra as intervenções nas quais é o inesperado que vigora. Para além da competência de produção do real pressuposta na relação entre linguístico e extralinguístico, sempre garantida pelas redes redundantes do dizer, podemos também falar da potência da linguagem para criação, para produção do novo. Outro plano da linguagem é, então, proposto. Afirmam-se três e não dois planos para a linguagem. Em conjunção com os planos linguístico e extralinguístico existe o não linguístico da linguagem, plano intensivo, das partículas assignificativas, pelo qual a palavra ganha competência para criação de novos sentidos pragmáticos, portadora de transformações incorporais inauguradoras de novas realidades (TEDESCO, 2003, 2005). O plano não linguístico está associado à face de fuga da palavra e às senhas presentes no dizer como abertura ao inédito (PEREIRA, 2006).
APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS
ENTRE BERGSON E A PRAGMÁTICA
Neste momento atingimos o ponto nodal deste artigo: o de encontrar subsídios conceituais para a concepção pragmática da linguagem, a saber, a tese sobre a dupla tendência presente nos signos.
Para tal escolhemos, entre as muitas vias de leitura existentes da obra bergsoniana, aquelas que descobrem a possibilidade de estender sua concepção de criação também à linguagem. Primeiramente, nos apoiaremos na intrínseca relação entre linguagem e sociedade, sustentada pelo filósofo do tempo, para afirmar a linguagem em sua função ordenadora da realidade e, posteriormente, por meio do conceito bergsoniano de emoção criadora, pensar a realidade movente dos signos.
Linguagem como Transmissão de Ordem:
Linguagem e Sociedade em Bergson
Na introdução ao O pensamento e o movente,Bergson (1974) explicita seu modo de compreender as relações entre a linguagem e a sociedade. Suas reflexões o levam a postular que as palavras são “depositárias do pensamento social” (BERGSON, 1974, p. 153) e a afirmar a realização de uma prática social implícita cada vez que os homens se utilizam da linguagem. Mais ainda, o autor prevê na linguagem a possibilidade de funcionar como depositária, ou seja, como aquilo que armazena ideias e crenças já cristalizadas pelas ações dos homens no mundo. Desse modo, vemos que o filósofo já pressente a estreita relação entre a linguagem e a sociedade e antecipa o tema do caráter pragmático das palavras a ser explorado nos domínios da linguagem apenas muitos anos mais tarde, na pragmática iniciada por Austin (1990) e retomada por Deleuze e Guattari (1995).
Segundo Bergson (1974), os preconceitos de ordem social seriam disseminados pela linguagem. A palavra não se destinaria à comunicação, mas à transmissão de ordens e comandos. Ainda que comunique, a linguagem o faz “com vistas à cooperação” (BERGSON, 1974, p. 151), ou seja, carregada de interesses. Sua concepção de linguagem não faz apelo às representações ou a constantes universais linguísticas, mas enfatiza o caráter utilitário da linguagem, expresso em sua natureza disciplinar:
“A linguagem transmite ordens ou advertências.
Prescreve ou decreta.
No primeiro caso é um apelo a ação imediata;
no segundo, assinala a coisa ou algumas de suas propriedades,
em vista de uma ação futura”
(BERGSON, 1974, p. 151).
Assim como na pragmática de Deleuze e Guattari, Bergson cuida da dimensão de uso da linguagem, em especial, de sua natureza utilitária e capaz de fixar, ordenar, enfim, conferir estabilidade à realidade movente do mundo. A linguagem possui, tanto para Bergson (1974, p. 151) ─ onde é o que “prescreve ou decreta” ─ quanto para a pragmática acima examinada, uma conotação que a remete à palavra de ordem, como interrupção dos fluxos. A essa acepção de linguagem Bergson responde com precisão, tal como explicita Leopoldo e Silva (1994, p. 11):
A mobilidade dos significados e o caráter convencional das palavras estão inscritos na mediação que caracteriza a atividade inteligente (...) a linguagem se desenvolve à medida que se efetiva a intencionalidade pragmática e a sociabilidade – ela envolve necessariamente uma tendência à fixidez dos significados.
Esta competência mortífera de fixar sentidos
viria atuar sobre o movimento contínuo
que caracteriza a realidade.
Lembremos, porém, que segundo Bergson (1988) o real é movimento, só é dado no tempo. Fora deste, o que se pode encontrar é artificial, ou seja, foi criado para dar conta da fixidez imposta pelos meandros de nossa própria inteligência. Para o autor, o tempo é interior ao psiquismo e o espaço apenas circunda essa composição. Ao tentar destrinchar os estados internos da consciência a partir de critérios quantitativos, estabelece-se a impossibilidade que advém da diferença de natureza entre estes elementos. O homem, por intermédio do uso das ferramentas da razão – sobretudo a linguagem –, finda por impor uma aparente fixidez ao real, como salienta o próprio Bergson (1974, p. 110):
Diremos o mesmo da mudança. O entendimento a decompõe em estados sucessivos e distintos, supostamente invariáveis. Considere-se mais perto cada um desses estados, perceber-se-á que eles variam; como poderiam durar se não mudassem, perguntamos? (...) O real não são os ‘estados’, simples instantâneos tomados por nós, ainda uma vez, ao longo da mudança; é ao contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança ela mesma
O entendimento, em sua impossibilidade de perceber o fluir incessante, o decompõe em estados sucessivos e distintos, que ganham então o estatuto de imobilidade. A substituição aqui considerada revela certo uso da linguagem na produção de recortes, ou seja, de conceitos estanques, que tomam o lugar da experiência móvel e plena. Para Bergson (1974, p. 111), estes são como “um extrato fixo, seco, vazio, um sistema de ideias gerais abstratas, tiradas desta mesma experiência, ou antes, de suas camadas mais superficiais”.
O universo conceitual, tomado em seu viés mais negativo,
é assemelhado ao invólucro que guarda a crisálida,
mas que também a constrange em seus movimentos
e impede sua vibração mais essencial.
A denúncia do autor aponta para a imensa trama de conceitos que, sob a forma de mera representação, se põe em lugar da experiência real, fazendo com que a primeira seja preferível, pela facilidade de manipulação, à segunda.
Para efetuar uma necessária imobilização do real movente,
o intelecto arrasta consigo, em sua jornada
em prol da adaptação, todos os elementos
que encontra em seu caminho.
Constituindo ilhas de estabilidade sobre as quais executa seu intento, a inteligência dissemina sua lógica utilitária. Desse modo, tomada como um produto da inteligência, a linguagem precisa ser um instrumento de engessamento do sentido, promotor da materialização do pensamento.
Ao apontar a existência de um real movente, ao qual a linguagem se impõe como recurso intelectivo com fins à ordenação e à fixação, Bergson (1974, p. 123) sinaliza a intenção da razão de agir sobre o real: as “noções armazenadas na linguagem” correspondem a interesses práticos do intelecto e a instrumentos de manutenção da ordem. Temos que as construções efetivadas pela linguagem têm por objetivo dar ao mundo uma conformação tal que permita sua manipulação, pela via do intelecto, a partir de uma intencionalidade que, segundo Pereira (2006), chamaríamos de pragmática. É possível então afirmar uma pragmática linguística ─ tal como a propõe Deleuze ─ também nos pressupostos da filosofia de Henri Bergson. Não há como supor a ingenuidade da palavra proferida, nem para Deleuze nem para Bergson (1974, p. 133), para quem os “conceitos inclusos nas palavras (...) elaborados pelo organismo social em vista de um objeto (...)” determinam, para todos os falantes, para toda a sociedade, modos, usos, condições e termos dos quais a inteligência humana não pode liberar-se sem um esforço consciente que subverta a lógica na qual está inserida. Desvela-se assim, na linguagem, sua função ordenadora.
Se Bergson (1974) afirma que há uma necessidade de ordenação e regularidade que perpassa toda construção humana protagonizada pela via da inteligência ou da razão, é na linguagem que esta ordenação se efetua. Desse modo, o processo de subjetivação humana, conduzido pela inteligência em detrimento da intuição, estaria enlaçado pela via da linguagem, uma vez que o homem agrupa-se e aprende a conviver socialmente, sendo que
O objetivo essencial da sociedade
é inserir uma certa fixidez na mobilidade universal.
Tantas sociedades, tantas ilhas consolidadas, aqui e ali, no oceano do devir. Esta consolidação será tanto mais perfeita quanto mais inteligente for a atividade social. A inteligência geral, faculdade de organizar ‘razoavelmente’ os conceitos e manejar convenientemente as palavras, deve contribuir para a vida social, com a inteligência, no sentido mais estrito, função matemática do espírito, preside ao conhecimento da matéria.(BERGSON, 1974, p. 152)
Esta é uma das inúmeras estratégias que a espécie humana precisou construir para garantir sua sobrevivência. Constitui e sustenta a sociedade em pressupostos ideológicos e econômicos, que são na verdade resultado do recorte efetivado por uma percepção que privilegia os interesses utilitários da inteligência. Cotejando a concepção de palavra de ordem, em Deleuze e Guattari (1995), como sentença ou veredicto, com a afirmação de Bergson (1974, p. 151) de que a linguagem é o que “prescreve ou decreta”, podemos afirmar que, para ambas as perspectivas, o estancar do movimento as paradas é próprio às palavras que se instalam nos pontos de passagem, barrando-lhes o fluxo.
A ampliação da linguagem, proposta acima, pela afirmação do plano extralinguístico, leva a considerá-la na relação com o socius e implica necessariamente compreendê-la como prática efetiva, ou seja, competente em gerar efeitos sobre a sociedade, ao mesmo tempo que também é por ela determinada4.
Encontramos no pensamento de Bergson
subsídios para considerar a linguagem
como bem mais do que um sistema de signos
apartados da realidade empírica.
Argumentamos, assim, mais veementemente pelo abandono do dualismo expressão e conteúdo (Pereira, 2006), implícito no isolamento entre linguístico e extralinguístico, que assume modalidades distintas na história do pensamento como, por exemplo, o isolamento entre linguagem lógica e realidade empírica, proposto pela Filosofia da Linguagem, ou a repartição entre língua e fala defendida pelo Estruturalismo saussuriano (TEDESCO, 2008).
LINGUAGEM E CRIAÇÃO:
BERGSON E A VIA ABERTA À FLUIDEZ DOS SIGNOS
Mas, como assinalado anteriormente, a linguagem para a pragmática possui outra modalidade de inserção no mundo, diversa da instalação de cortes e da fixação das compartimentalizações ordenadoras do real. Ou seja, a palavra, para além das paradas e estabilizações de sentido que realiza, é capaz de apreender a fluidez dos acontecimentos. Retomando o vocabulário dos estoicos, a linguagem assume sua condição de portadora das transformações incorporais, dos acontecimentos. Para o estoicismo, o verbo serve como catalisador de devires, atualizando e marcando o instante preciso da mudança dos corpos. Por um lado, a palavra intervém e organiza o socius, estabelecendo nas categorizações, a fixidez necessária ao mundo. Por outro, percebemos a outra face da linguagem, voltada à criação de novos sentidos e de mundos.
Se para Bergson o real movente não pode ser capturado pelas esferas intelectivas
e se a linguagem aparece vinculada à inteligência como seu produto, cabe encontrar para a linguagem uma via de saída às imposições do intelecto. Como aponta Kastrup (1999), muito embora o autor tenha separado todos os produtos da inteligência do exercício de invenção e criação, ele mesmo teria deixado aberta a possibilidade de que estes venham a misturar-se. Isto pode ser detectado em várias passagens de seus textos nas quais Bergson (1978, 1966) não cessa de afirmar que a intuição, que segundo Deleuze (1999, p. 7) já “supõe a duração”, permanece ligada à inteligência e pode contaminar positivamente a razão.
Entretanto, é em
As duas fontes da moral e da religião que Bergson (1978)
aponta a existência de uma emoção
essencialmente criadora e inaugural,
existindo antes da própria vida
e propiciando o movimento criador
que promove sua geração.
Essa emoção configura-se como uma força primordial, que, nas palavras de Kastrup (1999, p. 102), “não se reduz à transposição psíquica de uma excitação física. É como afecção, e não como sensação, que a sensibilidade é geradora de emoção”. Trata-se, na verdade, de um abalo original, um empuxo transcendente à intelecção, capaz de suscitar movimentos criativos e incitar o esforço criador, gerando o próprio movimento que a permite, acessa e perpetua, constituindo-se, segundo Bergson (1978, p. 37), na “relação do que engendra com o engendrado”, primícia da produção inventiva humana.
O conceito de emoção criadora porta,
em si mesmo, uma novidade
que funciona na complementação das ideias
desenvolvidas por Bergson ao longo de sua produção.
A partir dele, de acordo com Kastrup (1999), o autor estabelece, dentro dos quadros da intelecção, uma zona de divergência que, interior à consciência, a coloca em contato com uma energia capaz de afetá-la a ponto de transmutar sua essência. Ao tratar do conceito de emoção criadora, Deleuze (1999, p. 89) o define como aquilo que vem colocar-se no pequeno hiato existente entre a inteligência e a sociedade para operar “uma gênese da intuição, isto é, (...) determinar a maneira pela qual a própria inteligência se converte e é convertida em intuição”. Segundo o autor, somente a emoção criadora, que difere simultaneamente da inteligência e do instinto, é capaz de suscitar tal conversão, rompendo o círculo que apreende a humanidade nas cercanias que ela mesma edificou.
O efeito da emoção criadora na inteligência
é o de produzir uma mobilização no pensamento,
na linguagem, enfim,
em todas as instâncias de produção humana.
Esta emoção abala os alicerces racionais e promove a possibilidade de abandono das exigências do intelecto para, então, desprendida do engessamento da lógica utilitária, permitir à consciência experimentar a duração e ascender a uma realidade outra, ao fluxo movente da própria duração. Tal potência é capaz de deslocar a inteligência sem, contudo, prescindir dela. O próprio Bergson (1974, p. 128) faz notar que “a intuição, aliás, somente será comunicada através da inteligência”.
Assim, a liberação que a emoção criadora porta e que é capaz de inserir o homem em um plano diferenciado, disponibilizando-o à criação e à invenção, se configura como a própria possibilidade de simpatizar com elementos estranhos a si, em um campo de experiência no qual o esforço intelectivo deve voltar-se para o desenredamento de suas próprias tramas. Essa operação, como visto, não pode prescindir da própria inteligência. Ainda segundo Bergson, (1974, p. 145) “O que a inteligência espontaneamente havia feito, um esforço da inteligência poderia desfazer. E seria, para o espírito humano, uma liberação”.
A conversão intelectual atinge todas as produções da razão. Assim a linguagem também seria contaminada por essa energia original e criadora, deixando de atender à lógica racional para confundir-se com o que há de mais essencial ao próprio ser: o movimento, a duração. É por isso que Bergson (1978, p. 38) sinaliza que
[...] quem se empenhe na composição literária terá verificado a diferença entre a inteligência entregue a si mesma e aquela que consome com o seu fogo a emoção original e única, nascida de uma coincidência entre o autor e seu assunto, isto é, de uma intuição.
Deleuze (1999, p. 90) nos lembra que a emoção criadora vem postar-se no “intervalo ‘pressão da sociedade-resistência da inteligência’”, sendo que tal espaço define “uma variabilidade própria das sociedades humanas” (DELEUZE, 1999, p. 90) e se confunde com o próprio movimento criativo, com aquilo que promove a criação. O autor sustenta ainda que esta emoção “atualiza ao mesmo tempo todos os níveis (...) libera o homem do plano ou do nível que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo o movimento da criação” (DELEUZE, 1999, p. 91). Segundo Bergson (1974), essa emoção mobiliza o pensamento, a linguagem, enfim, toda produção intelectiva, abalando os alicerces racionais para permitir à consciência a inserção no tempo e no fluxo movente da própria duração, em um deslocamento que comporta vários volteios, pois é à própria inteligência que a intuição retorna, para ser expressa.
Ao postular a possibilidade de a emoção criadora vir a impregnar os quadros da intelecção, rompendo seus limites, Bergson afirma aquilo que ele mesmo vivenciou em sua produção escrita, ou seja, a conversão dos símbolos linguísticos em imagens moventes, prenhes de novidade. A produção do autor, segundo uma visão compartimentalizada da linguagem, seria unicamente filosófica. No entanto, considerada sua complexidade, a escrita bergsoniana expõe a experiência em ato de produzir o entrecruzamento de Literatura e Filosofia, de rigor conceitual e criação de novos sentidos. A atribuição do Prêmio Nobel de Literatura de 1927 à obra de Bergson serve para atestar o trançado entre as duas tendências da linguagem (PEREIRA, 2006).
AS DUAS TENDÊNCIAS DA LINGUAGEM:
FIXAÇÃO E CRIAÇÃO DE SI E DE MUNDO
Ao longo de nossa exposição, tentamos trazer à tona ressonâncias entre a pragmática de Deleuze e Guattari e a filosofia de Bergson no intuito de reforçar a tese do duplo funcionamento da linguagem. Para Deleuze e Guattari (1995) os pressupostos implícitos da linguagem possuem a propriedade de determinar seu sentido pragmático e atribuem às palavras uma força produtora de real. Ao mesmo tempo, boa parte do conhecimento da realidade advém dessa construção efetivada a partir da linguagem (TEDESCO, 2003). Também em Bergson (1974) pode-se afirmar a estreita relação entre linguagem e sociedade. A inteligência, como uma capacidade altamente desenvolvida de perceber e reconhecer, efetiva recortes na realidade e, por meio desta organização, torna possíveis os mecanismos de adaptação do mundo. A linguagem, nosso objeto de reflexão privilegiado, é o instrumento por excelência nessa trajetória e teria a potência de armazenar ideias, já consolidadas pelas práticas sociais, o que nos levaria a reconhecer aí seu caráter de fortalecimento e cristalização de tais práticas. Ao mesmo tempo, a linguagem mantém um rastro do impulso primordial que atravessa todo o viver, capaz de promover a liberação dessas amarras.O diálogo entre essas duas dimensões da linguagem configura um traçado contínuo, móvel e criador. Entre produção e criação não há subjugação, mas engendramento constante, no qual as formalizações são necessárias, mas não excludentes (TEDESCO, 1999). Como uma senha de passagem, sempre presente em cada palavra de ordem, a potência de criação da linguagem resiste às paradas e, instalando-se no movimento incessante, inaugura portos que descortinam novos horizontes e possibilidades, revelando o fluxo movente da vida. Esta senha é como uma saída do labirinto, o encontro com a transição que contém as chaves do inesperado e do indecidível (PEREIRA, 2006).
A afirmação de Deleuze e Guattari sobre a linguagem como portadora das transformações incorporais e, portanto, do acontecimento, ou da variação do ser, em consonância com a de Bergson sobre a afetação da linguagem pela emoção criadora, permite-nos vislumbrar a possibilidade de estender a toda produção linguística – quer linguageira, filosófica ou literária ─ a potência da criação.
A linguagem pode, tanto para Bergson quanto para a pragmática aqui proposta, capturar e amarrar o movimento próprio à realidade, decretando paradas e descontinuidades. Mas pode também estabelecer caminhos diferenciados e permitir a variação e a dança dos signos. Permitir-se essa dança, é, então, permitir-se a possibilidade de ser afetado pelos volteios que agitam e rompem as amarras do intelecto e que podem enfim liberá-lo ao movimento, ao tempo – e à própria criação.
1 Argumentação detalhada desta afirmação foi desenvolvida em trabalho anterior. Conferir Tedesco (2008).
2 O primeiro princípio da pragmática, segundo Deleuze e Guattari (1995), afirma a impossibilidade de se considerar um caráter informativo e comunicativo para a linguagem. Assim, “Os comandos não provêm de significações primeiras, não são conseqüências das informações: a ordem traz sempre e já outras ordens, eis porque a ordem é redundância” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 95). No ordenar, interrogar, prometer ou afirmar está contido um ato que se efetiva de modo implícito na própria comunicação e que não se estabelece sem uma intencionalidade ou consequência, pois “A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer” (Deleuze e Guattari, 1995, p.12). Nesse sentido, as palavras carregam em si mesmas pressupostos implícitos, articulados ao ‘socius’ estabelecido em um dado momento, e cujo fundamento é o da obrigação. O modus operandi da organização social já pressupõe a existência desses comandos, como parte da estratégia que garante a sobrevivência humana.
3Para maior esclarecimento sobre os componentes intensivos da linguagem, ver capítulo “Postulados da Lingüística” em Mil platôs (Deleuze e Guattari, 1995).
4Segundo Bergson, é o modo de utilização da linguagem que determina ser esta uma sequência de sinais que se interpõe ao encontro com o absoluto ou o próprio meio de contato com essa realidade movente. Podemos distinguir no filósofo do tempo a adoção de um critério pragmático para o raciocínio acerca das questões referidas à linguagem. Tal afirmação conduzirá à aproximação mais vertical do pensamento dos dois autores, destacando, principalmente, a leitura deleuziana da filosofia de Bergson. Para uma incursão mais verticalizada na questão, ver Pereira (2006).
ABSTRACTLanguage and creation: considerations from pragmatics and Bergson´s philosophy
The current investigation suggests a new direction for the study of psychology of language, which commonly has a representational approach. In the interface between linguistic studies, philosophy of language and the works by Bergson, Deleuze, and Guattari, as well as Foucault´s line of thought, a pragmatic perspective arises. Language ceases being considered an instrument for knowledge of the world and, understood as action, obtains the power to intervene in the world. Initially, the authors introduce language practices that serve as indicators of power and, steered by historical and political circumstances, transform reality. Next, the authors discuss the pragmatic power of words in the creation of new realities. Finally, the authors contend that there is a need to stretch the inventive power of language beyond literature and, through another examination of Bergson´s philosophy, propose that language and creation are inseparable.
Keywords: Language; Cognition; Creation.
Endereço para correspondência
Silvia Helena Tedesco
E-mail:stedesco@novanet.com.br
Karla Soares Pereir
E-mail:ksp@ig.com.br
Silvia Helena Tedesco
E-mail:stedesco@novanet.com.br
Karla Soares Pereir
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Fonte:
Apoio: UFRJ/Capes/CNPq
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Sejam feliozes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres.
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