terça-feira, 19 de junho de 2012

BERGSON E A VIDA: CRIAÇÃO E MEMÓRIA : Regina Schõpke




Bergson e a vida: criação e memória
Textos selecionados do filósofo ajudam a entender seus labirintos do tempo

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCPKIazlvTksVWE2PMmYD8xNK70jVqGi9u16S7aHZhBAxmyl-e-N_h2ln9PpYefjQUQf-x7F-YEDNqPwsc9bz1ZLorIDrQTgI-BnovS28UNuZ6rLjcoSmOemGhaI4q48SttgouJxhcJfHC/s1600/@raminhoPicasso..bmpRegina Schõpke

O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) ficou conhecido, entre outras coisas, por se opor à teoria da relatividade de Einstein. Digamos que a noção de "espaço-tempo", trazida pelo físico alemão, foi posta em xeque de um modo muito profundo, ainda que a polêmica não tenha sido levada muito a sério pelos cientistas (que desde o século XIX vinham desautorizando a filosofia como saber).

 De qualquer modo, não é equivocado supor que essa discussão tenha influenciado o químico contemporâneo Ilya Prigogine que, como Bergson, se opõe à idéia de um tempo submisso à matéria ou associado a ela, defendendo a existência plena de um tempo em si, que corre sem cessar e é responsável pelo fenômeno da irreversibilidade (que quer dizer, em poucas palavras, que nada pode voltar ao seu ponto inicial, que nada pode andar para trás).

Sem dúvida, a filosofia de Bergson tem um valor inestimável, não apenas pelas questões que coloca sobre o tempo (entendido como duração contínua e ininterrupta), mas também por sua reflexão em torno da memória, da consciência e, sobretudo, da matéria. Defendendo a existência de um "élan vital" que cria incessantemente todas as coisas, Bergson acredita, tal como Darwin, na evolução do universo, embora no caso do filósofo francês essa evolução seja resultado da ação do élan ou impulso vital sobre a matéria bruta. 

Trata-se, na verdade, de uma "evolução criadora", onde tal impulso, ainda que seja uno, cria continuamente, a partir de séries divergentes, a novidade e a diferença. É nesse sentido que Bergson diz que "a vida é pura zona de  indeterminação".

É claro que as semelhanças entre Bergson e Darwin restringem-se apenas à idéia de evolução, já que para o primeiro existe uma teleonomia no interior da natureza, ou seja, uma intenção "a priori", uma finalidade que determinaria a evolução.

 Para Darwin, ao contrário, o acaso é o elemento determinante (ou um misto de "acaso e necessidade", como diria o biólogo Jacques Monod). Em poucas palavras, a evolução em Bergson tem um caráter progressivo, isto é, evoluir significa aperfeiçoar-se e, nesse caso, trata-se de um aperfeiçoamento da própria vida (que é entendida como um "em si", como um princípio vivificador, ou seja, ela é o próprio élan, o impulso vital). Sem dúvida, a filosofia de Bergson é dualista (como ele mesmo reconhece). 

Temos, de um lado, o élan e, de outro, a matéria bruta, ou seja, dois princípios: um espiritual e outro material. De qualquer modo, seja lá como for, a verdade é que suas noções de matéria e de espírito são bem pouco convencionais.
Pois bem, os que desejam compreender melhor a filosofia de Bergson, o livro Memória e Vida (lançado, recentemente, pela editora Martins Fontes) é uma excelente oportunidade. 

Trata-se, na verdade, de uma seleção - feita pelo filósofo Gilles Deleuze - de textos extraídos de suas principais obras. Um dos temas mais abordados no livro é exatamente o da duração. Inseparável da questão da memória, que deve ser entendida não apenas como uma faculdade individual (que pode ser acessada ou não), mas como uma dimensão específica do ser, como uma espécie de passado que aumenta sem cessar a cada presente que acumula, a duração pode ser definida como a continuidade indivisível da mudança. Em outras palavras, durar é existir de forma ininterrupta, do início ao fim, mas é também mudar incessantemente.

Dito de outra maneira: tudo para Bergson é movediço. Não existe, como para Aristóteles, uma substância que permanece a mesma, inalterada, por baixo das aparências e a despeito das mudanças. O próprio ser é devir, é movimento, é sempre outro, ainda que se mantenha coeso em seu contínuo caminhar pela existência. "Coesão" aqui não quer dizer que algo permanece igual, mas, sim que a duração é ininterrupta, como já dissemos.

Durar é sentir-se mudar a todo instante, é perceber os estados que se sucedem em nós. É por isso que quando Bergson trata da diferença entre lembrança e percepção, sua intenção é mostrar como o presente (que é aquilo que percebemos) não é algo que passa e apaga os anteriores, como pensam os defensores de um devir absoluto, mas é um "continuum", algo que se prolonga e que faz crescer o passado, tal como uma bola de neve. É isso que carregamos atrás de nós, é isso que constitui o nosso ser, o que já vivemos, o que já passou, visto que - no fundo - ele não passa jamais.

 Na verdade, o passado é o verdadeiro tempo em Bergson. É nesse sentido que é preciso entender que o passado não vem depois do presente ou a lembrança depois da percepção, mas que o instante ou o próprio presente não se dá sem se dividir em dois: em passado e em porvir. É como se fosse arrastado em direções opostas. Ele é presente no mesmo momento em que se torna passado (ou não haveria prolongamento e duração, mas sim descontinuidade e dissolução). Dessa forma, a lembrança não é uma percepção enfraquecida, mas algo de outra natureza, daí porque permanece viva enquanto a
A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa: “Pode o cogito ser o ponto de partida?”[1]

Cleiton Zóia Münchow
Mestrando em Filosofia-UFPR - CAPES
cleitonzm@pop.com.br

Nossa comunicação se insere no contexto daquelas que procuram traçar pontos de aproximação e/ou de afastamento da filosofia bergsoniana e outras filosofias. Propomos-nos a pensar Bérgson a partir de Espinosa e vice-versa. O que sugeriria por si só um título como: A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa. No entanto, esse título, antes de ser lido afirmativamente, deveria ser lido como interrogativa: A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa? Porque lê-lo como interrogativa?

 Não pelo simples fato de ser uma questão a qual deveremos responder ao longo do texto, mas sim pelo motivo de que há um conectivo e ligando os dois substantivos próprios. 

Portanto,
 antes de nos perguntarmos sobre a questão
 da pré-subjetividade, é preciso que nos perguntemos 
sobre as condições de possibilidade 
do e que liga Bérgson a Espinosa.
Esse e pressupõe duas possibilidades, com ele pode-se querer indicar: (a) que ambos os autores, cada um ao seu modo concebeu uma instância pré-subjetiva, e a única ligação entre eles seria o fato de que ao conceberem esta instância, suas filosofias romperam com a noção de subjetividade inaugurada por Descartes, e, portanto, o que validaria o conectivo entre Bérgson e Espinosa seria o fato de que ambos se viram diante da filosofia cartesiana, ou (b) esse e pode significar que há uma relação entre os dois filósofos, que ultrapassa o simples fato de que ambos negam a subjetividade cartesiana, ou seja, há uma aposta de que o modo pelo qual se dá essa negação, essa crítica, possui algo em comum, se assim for poderíamos afirmar certa familiaridade, no sentido de pertencer à família, entre Bérgson e Espinosa.

A questão que colocamos, a qual tentamos agora justificar as condições de validade, nos foi sugerida por Prado Junior, que em seu Presença e Campo Transcendental, institui certa familiaridade entre os autores. Na conclusão do referido livro Prado Junior nos diz que é a própria recusa do cogito, como ponto de partida radical, que aparece, assim, como projeto de finalidade do pensamento à sua finidade[2].

 No parágrafo imediatamente seguinte o comentador afirma que há duas maneiras de negligenciar o cogito, a saber, regredindo a uma esfera mais primitiva, onde ainda não se estabeleceu a distinção entre sujeito e objeto. Mas é possível abandoná-lo por encontrar, acima dele, uma instância absoluta que o relativiza: tal é a maneira de Espinosa e de Malebranche. E completa, e é a própria leitura de Bérgson que nos obriga a uma inversão de perspectiva e que nos conduz à segunda maneira de recusa do cogito[3].

Embora seja de suma importância uma justificativa da cópula que compõe o título, ainda mais no caso dos filósofos em questão – pois para um o verdadeiro conhecimento é o conhecimento do singular, enquanto o outro concebe a filosofia como se fosse o desenrolar, por meio da linguagem, de uma intuição – não a daremos aqui, afinal isto ultrapassaria o escopo de nosso trabalho.

 Portanto, para passarmos direto ao ponto, aceitaremos que há uma relação entre as filosofias de Bérgson e Espinosa, e para não sermos totalmente arbitrários cabe lembrar que o primeiro afirma em A intuição filosófica que pôde durante vários anos consecutivos, trabalhar longamente Berkeley, depois Espinosa (…)[4]. Mesmo que tenhamos, de modo insuficiente, simplemente apontado os possíveis problemas desse tipo de aproximação, deixemo-los de lado e passemos à questão da pré-subjetividade.

Com a noção de pré-subjetividade pretendemos indicar que antes mesmo do sujeito que descobre sua existência, por meio da dúvida, e junto com ela descobre-se como subjetividade, ou seja, como consciência individual isolada no interior de si, há um anterior que é condição de possibilidade do mesmo.
Certamente Descartes não negava a existência de um Deus como condição e fundamento para existência do sujeito finito, a confirmação disso é ter ele recorrido na terceira meditação à prova ontológica. No entanto, mesmo que não negue tal existência fundadora e anterior à subjetividade, o percurso por meio do qual ele chega a essa idéia de Deus só é possível porque toma essa subjetividade como ponto de partida.

Mais grave do que tomar esse sujeito subjetivo como ponto de partida, é fazer dele o critério de certeza e evidência. Ao fazer isso Descartes pensa efetuar a fundação do conhecimento em bases seguras porque transparentes. Esquece ele que sob a capa dessa transparência reside uma série de elementos. Não se trata aqui de procurar mostrar que o cogito, e essa é a acusação de Nietzsche, é uma espécie de silogismo incompleto[5], mas sim mostrar que esse sujeito puro, na verdade só o é aparentemente. E sendo sua pureza somente aparente, tomá-lo como ponto de partida da reflexão filosófica é um equívoco.

Bérgson, no primeiro parágrafo da Evolução Criadora, afirma que 

“a existência 
da qual estamos mais certos 
e que melhor conhecemos 
é incontestavelmente a nossa (…)” [6].
 
 Haveria aqui um acordo com o cartesianismo? Num primeiro momento, parece que poderíamos responder positivamente a esta questão, afinal o texto bergsoniano chega a reconstituir os passos cartesianos: descoberta a indubitabilidade de nossa existência cabe efetuar o exame dos dados de nossa consciência. De fato, tanto Bérgson quanto Descartes fazem tal exame, mas contrariando o segundo, o exame efetuado pelo primeiro mostrará que a consciência do homem, e, portanto, a certeza de sua existência, junto com ela, tem uma história que a envolve e a ultrapassa.

Neste sentido, se podemos ter certeza de nossa existência e isso é incontestável - essa incontestabilidade da nossa existência carrega consigo a exigência de estar inserida no mundo - a própria descoberta do cogito, possível somente por um ato de inteligência, teria de levar em conta uma história, a história da própria inteligência “que foi amoldada pela evolução ao longo do trajeto” [7] .

Não há possibilidade para a existência de um sujeito abstrato, fechado em si. Esse sujeito se constitui a todo instante em algo que lhe contém. A subjetividade cartesiana esconderia, portanto, uma pré-subjetividade, ou seja, o seu possível. O eu cartesiano será visto como um produto, como um “eu amorfo, indiferente, imutável, sobre o qual pudessem desfilar ou no qual pudessem enfileirar-se os estados psicológicos (…) é uma imitação artificial da vida interior, um equivalente estático que se prestará melhor ás exigências da lógica e da linguagem, justamente porque o tempo real terá sido eliminado dele”. [8]

Todas estas considerações sobre o primeiro parágrafo da Evolução Criadora organizam-se em torno de uma tentativa de mostrar que mesmo sendo nossa existência aquilo de que estamos incontestavelmente mais certos, isso não significa que há aqui parentesco com Descartes. Bento Prado Júnior se defronta com a mesma passagem, da qual agora nós tratamos de tecer considerações, a respeito dela o comentador nos diz que:

(…) não temos aí a determinação de um ponto de partida necessário do filosofar e, muito menos, a definição de uma evidência particular que constitua não somente a primeira verdade de uma cadeia de razões, mas também um critério de todo conhecimento, isto é, fundamento de um método universal. Temos, pelo contrário, um tipo peculiar de experiência que nos revela uma dentre as regiões do ser e que nada nos informa a respeito da arquitetura das demais regiões do real. [9]

Prova disso é que não há dissociação entre a investigação filosófica e os critérios de verdade ou um método para conhecer as coisas a conhecer, assim sendo, não seria justificável a busca de um fundamento, ou primeira certeza, que possibilitasse o desenvolvimento do pensamento filosófico. Há um deslocamento, em Bérgson a consciência não será o ponto de partida, aquilo que permitiria o desenvolvimento subseqüente da investigação filosófica, ela sequer é descoberta por meio de um método apartado do conhecimento.

A consciência, portanto, e junto com ela a certeza incontestável de nossa existência tem função muito distinta daquela que recebe na filosofia cartesiana. Isso fica claro não só pela economia do texto bergsoniano, que tal como Malebranche em suas Entretiens, nega todo processo da dúvida na descoberta do cogito. Em Bérgson, tal como em Espinosa, não há método apartado do conhecimento[10].

Essas considerações ganham luz se nos voltarmos para conferência sobre A consciência e a vida. Nesta conferência Bérgson abre algumas questões e fala sobre a possibilidade de responder a elas. Seria exigido, por uma filosofia sistemática, que antes de respondermos tais questões, nos diz Bérgson, puséssemos as condições de possibilidade da própria questão, no sentido de efetuar uma investigação sobre como buscar as soluções, por outras palavras, deveríamos tecer considerações tais como: porque temos tal e tal instrumento de conhecimento, deveremos buscar a resposta com tais e tais métodos. Assim, todo e qualquer tentativa de filosofar deveria levar em consideração as possibilidades do próprio conhecimento.

A posição de Bérgson é próxima da de Espinosa, ambos partem já para própria investigação sobre as coisas. 

Diz-nos o primeiro: “Só vejo um meio de saber onde ir: é colocar-se em marcha”.[11] Da mesma forma Espinosa, no Tratado da Correção do Intelecto,afirma não ser necessário efetuar uma investigação sem fim, ou seja, que:

para se descobrir qual o melhor método de investigar a verdade, não é necessário outro método para investigar qual o método de investigar a verdade; e para que se investigue este segundo método, não é necessário um terceiro, e assim ao infinito: por esse modo nunca se chegaria ao conhecimento da verdade, ou, antes, a conhecimento algum.[12]

Para os dois trata-se de mergulhar, antes mesmo de se tecerem considerações sobre as possibilidades do conhecimento, “no próprio objeto por um esforço de intuição”. [13] Talvez seja aí que mora o parentesco entre os dois filósofos. Essa impossibilidade de distinção entre método e filosofia – uma vez que é no processo de filosofar, nessa tentativa de se colocar no próprio objeto, que se dá a descoberta do modo pelo qual o conhecemos – é conseqüência da idéia de que as próprias formas de conhecer estão atreladas a um todo maior que lhe contém, de tal forma que a metafísica sempre deverá anteceder a própria investigação sobre as possibilidades do conhecimento, pois é no horizonte de uma ontologia que o próprio conhecimento - ou instrumentos de conhecimento – é formado.

O próprio ato de pôr em dúvida, de suspender o juízo para que cheguemos à verdade do cogito sempre carrega consigo um elemento impossível de ser descartado, a saber, a dúvida só pode ser posta porque já temos um critério do que vem a ser aquilo que não é duvidoso, há uma verdade dada. 

O poder pôr as coisas em dúvida nos remete sempre a uma anterioridade, a um pré-conhecimento. A dúvida não é vazia, e, portanto, o cogito, que por meio dela descobrimos, sempre esteve presente com todos os elementos que lhes são constitutivos. Não há passagem de um não saber absoluto para o saber, não há subjetividade absoluta que busca se lançar para fora de si na busca de uma objetividade, de um mundo real que possa ser conhecido com clareza e evidência. O que há sempre é um sujeito inserido no mundo.
 As filosofias de Espinosa e Bérgson
 constituem um campo de imanência,
e é sempre neste campo que nos atravessa e nos ultrapassa,
 onde não há um fora nem um dentro, mas plenitude de ser, 
que constituímos nossa liberdade,
 Da mesma forma como Joseph K., em O Processo de Kafaka, que busca descobrir-se no interior de um mundo constituído e que ele também constitui, o homem nas filosofias de Bérgson e Espinosa é também um ser-no-mundo. E por assim o ser, não consegue nunca se apartar deste, não há como pensar fora do mundo.

Não há mais espaço para esse eu puro, espécie de núcleo duro, para esse sujeito que permanece idêntico na diversidade de seus atos. O que há é um sujeito que se relaciona com o mundo, descobre-se nesse, o afeta e é afetado por ele. Em Espinosa isto fica claro se voltarmos nossa atenção para duas de suas obras, uma delas já referida aqui, o Tratado da Correção do Intelecto[14], no qual temos como ponto de partida do discurso o homem inserido no mundo procurando selecionar seus afetos para tentar encontrar o Bem Supremo. Na Ética temos Deus como o ponto de partida do filosofar, somente no segundo livro da mesma é que teremos considerações sobre como conhecemos as coisas, e isso por um motivo muito simples, a saber, tal compreensão só pode se dar depois que soubermos que lugar o homem ocupa na natureza.

Mesmo a consciência, consciência de si, ponto de partida da filosofia cartesiana, encontra em Espinosa sua derivação. Ela não é um conceito primitivo, mas derivado. Se nos voltarmos para o Apêndice ao primeiro livro da Ética, veremos que a ignorância dessa derivação causa muitas ilusões. A consciência que ignora o que a antecede, que ignora ser efeito e não causa, pensa ser dotada da capacidade absoluta de decidir, em outros termos, acredita ser detentora de livre arbítrio.

Espinosa apresenta duas teses que ilustram o motivo pelo qual são engendradas as idéias imaginativas, a saber, (a) todos os homens nascem ignorantes acerca das causas das coisas, e (b) todos desejam alcançar o que lhes é útil e disso têm consciência. Ser ignorante das causas das coisas e consciente dos desejos é o motivo pelo qual a idéia de livre arbítrio, entre outras, é engendrada. Quando agimos com base na consciência das volições e desejos que temos, ignorando que estas são efeitos de causas que nos “dispõem a apetecer e a querer”, [15] agimos tal qual a pedra que recebe o movimento de uma causa externa, e a continuação do movimento depende sempre dessa causa externa:

Concebes agora, se quiseres, que a pedra, enquanto continua a mover-se, saiba e pense que se esforça tanto quanto pode para continuar a mover-se. Seguramente essa pedra, visto que não é consciente senão de seu esforço, e não é indiferente, acreditará ser livre e que persevera no movimento apenas porque quer. É esta a tal liberdade humana que todos se jactam de possuir e que consiste apenas em que os homens são conscientes de seus apetites, mas ignorantes das causas que os determinam.

 É assim que uma criança crê desejar livremente o leite, um menino vingar-se, se irritado, mas fugir, se amedrontado. Um ébrio crê dizer por uma livre decisão aquilo que, sóbrio, desejaria ter calado. Da mesma maneira, um delirantes, um tagarela e muitos de mesma farinha acreditam agir por um livre decisão de sua mente e não levados por impulsos.[16]

O exemplo acima ilustra bem a razão pela qual a consciência não pode ser o ponto de partida da reflexão filosófica. Objetar-se-á que se assim o é porque no TIE Espinosa parte da perspectiva do homem que está envolvido em uma série de causas que entravam o processo na busca do Bem Supremo?

 Não seria isso a prova de que a filosofia poderia partir do ponto de vista da consciência? É certo que no TIE o ponto de partida são os dados da consciência do homem inserido no mundo e que há um aprofundamento da mesma, uma reflexão sobre esses dados com vistas a atingir o Bem Supremo e a idéia de um Ser perfeitíssimo. No entanto, não podemos esquecer que Espinosa não considera esse texto como sendo a sua filosofia, esta se encontra na Ética e lá o ponto de partida é já a idéia desse Ser perfeitíssimo causa de todas as coisas.

Portanto, nunca há essa interioridade na qual o sujeito seria senhor de seus estados, pelo contrário, ele é invadido, tomado pelas afecções e pensa que tem livre arbítrio, porque ignora a causa de suas determinações, mas tem consciência das afecções. Mesmo o processo da dúvida, essencial para que se chegue, na filosofia cartesiana, a certeza do cogito é recusado por Espinosa, porque há uma idéia verdadeira dada, cabendo ao verdadeiro método efetuar uma reflexão sobre tal idéia.

Não pensemos, entretanto, que há total recusa da consciência na filosofia de Espinosa, o que ele recusa é simplesmente tomar a consciência como conceito primitivo que possibilite fundar a filosofia. Prova de que não há total recusa é que no final da Ética quando estabelece uma distinção entre o sábio e o ignorante, essa distinção reside no tipo de consciência que cada um deles possui:

O ignorante, com efeito, além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas exteriores e de nunca gozar do verdadeiro contentamento íntimo, vive, ainda, quase sem consciência de si mesmo, de Deus, das coisas e ao mesmo tempo que ele deixa de sofrer, deixa também de ser. Enquanto que, pelo contrário, o sábio, na medida que se considera como tal, dificilmente se perturba interiormente, mas, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma certa necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas goza sempre do verdadeiro contentamento interior.[17]

A consciência do sábio leva em conta não só a si mesma, mas é também consciência de Deus e das coisas. Só esse tipo de consciência sabe pensar a partir do lugar que ocupa. Da mesma maneira que em Espinosa, a consciência remete a uma anterioridade em Bérgson, essa anterioridade a que nos remete a consciência individual é a Consciência em Geral. Nos dirá Silvestre que na filosofia bergsoniana não temos uma visão “psicologizante do real, desprovida de pressupostos metafísicos, onde a realidade toma a forma do objeto psicológico, como se fosse sua simples e pura ampliação …” na filosofia de Bérgson, segundo o comentador, se dá o contrário disso, “trata-se de uma filosofia onde o tempo psicológico e a consciência individual se apresentam como um caso específico do Tempo Ontológico e da Consciência em geral, respectivamente”.[18]

Obviamente que as aproximações entre Bérgson e Espinosa têm seus limites. 

Nossa intenção nessa breve exposição era simplesmente a de apontar para o fato de que há certa relação entre ambos, relação esta que pode ser pensada a partir da crítica ao conceito de consciência.

 Obviamente o alvo da filosofia de Bérgson, ao contrário de Espinosa, muito mais do que Descartes e sua concepção de consciência, era a psicofisiologia, ou aquilo que Merleau-Ponty, mais tarde, chamará de pequeno racionalismo. No entanto, esse pequeno racionalismo, como é apontado por Merleau-Ponty, esquece que carrega consigo pressupostos metafísicos e justamente por isso é pequeno e não grande racionalismo. Muitos dos pressupostos que esse pequeno racionalismo comporta provém, sem que o saiba, do Grande racionalismo. 

O que queremos dizer é que no limite, a psicofisiologia do XIX é caudatária da distinção entre corpo e alma efeutada por Descartes no XVII, portanto, o alvo de Bérgson acaba sendo o mesmo de Espinosa, a saber, Descartes. Bérgson na conferência sobre A alma e o corpo afirma que:

De fato, através de todo século XVIII podemos seguir os traços desta simplificação progressiva da metafísica cartesiana. Na medida em que ele se estreita, mais se infiltra numa fisiologia que, naturalmente, encontra nela uma fisiologia muito apropriada para dar a confiança em si própria que ela necessita. É assim que filósofos (…), cujas ligações com o cartesianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do XIX o que ela poderia melhor utilizar da metafísica do século XVII.[19]

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Não podemos esquecer, no entanto, que se por um lado Bérgson efetua está crítica à ciência do XIX - o que nos permitiu mostrar que há uma discussão com Descartes - por outro lado, nesse mesmo texto, Bérgson, é muito mais amistoso para com Descartes do que para com Espinosa, isso se deve ao fato de que o primeiro preferia, segundo Bérgson, “a despeito do rigor da doutrina, deixar algum lugar para vontade livre”, esse espaço para vontade livre desapareceu na filosofia de Espinosa, a vontade livre foi “varrida pela lógica do sistema”.[20] Espinosa juntamente com Leibniz abriu espaço para instauração de um “paralelismo constante entre estados do corpo e os da alma”.[21]

Agora, podemos retomar as perguntas que fizemos, no início de nosso trabalho, sobre o parentesco entre Bérgson e Espinosa. O parentesco parece residir simplesmente na negação de uma consciência individual entendida como conceito primitivo da filosofia. Limite preciso, e estabelecido pela acusação de que Espinosa e Leibniz “preparam o caminho para um cartesianismo diminuído”, talvez devêssemos inverter agora, negando o que havíamos dito antes, não é Descartes com quem Bérgson está discutindo, mas com os responsáveis pela formulação desse cartesianismo diminuído, afinal, estes que foram responsáveis pelo início da “simplificação progressiva do cartesianismo”.[22]

Todo trabalho de comparação entre os autores em questão, deveria antes passar pelo estabelecimento do modo pelo qual Bérgson leu Espinosa. Talvez sem o saber, ele seja mais espinosano do que pensa. É certo que não há em Espinosa liberdade da vontade, mas há liberdade, liberdade está que se dá a partir de uma relação contínua do infinito ao finito. É certo que Espinosa estabelece na proposição 7 do segundo livro da Ética que a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas, mas não é certo que isso seja de fato um paralelismo.

Uma leitura de Espinosa, sem os vícios gerados pelo rótulo “filosofias da representação”, talvez revele o significado profundo daquela passagem, conhecida entre os estudiosos de Espinosa, na qual Bérgson afirma que todo filósofo tem duas filosofias, a sua e a de Espinosa. Marilena Chaui, referindo-se a esta afirmação de Bérgson, nos diz que com ela o filósofo pretende significar que “o espinosismo é a tendência natural da inteligência a fixar-se na imobilidade do Ser, e a petrificar-se no utilitarismo instrumental que precisa ser contrariado pela mobilidade criadora do elã vital e da intuição”. [23]

Como sabemos, pela própria interpretação da comentadora em questão, Espinosa não é Eleata,, portanto, não há imobilidade do ser, a intuição em Espinosa capta o objeto em sua geração e movimento. Talvez Bérgson seja mais espinosano do que pensa ser, e o afastamento que Bérgson crê possuir em relação a Espinosa deve ser buscado no modo como leu este último.

BIBLIOGRAFIA
BERGSON, H. A Evolução Criadora; Ed. Matins Fontes, São Paulo, 2005.
____ A Consciência e a Vida; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural, SP-1979
___ A Alma e o Corpo; Col. Os Pensadores.
.CHAUI, M. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa; Companhia das letras, São Paulo, 1999.
ESPINOSA, B. Ética; Col. Os Pensadores, Ed. Nova cultural, São Paulo, 2000.
Por fim, terminamos dizendo que, para Plotino, o tempo é a vida da alma e que, para Agostinho, ele é uma distensão do espírito, existindo apenas de um modo interior, psicológico. Para Bergson, no entanto, o tempo é - simultaneamente - inseparável da consciência e também - já que fluir é a essência do ser e de todo universo. Tempo é duração, duração é memória e memória é vida. E a vida, para Bergson, nada mais é do que criação contínua. Mas também é memória, memória de si mesma e de suas aventuras nos labirintos do tempo.

                Regina Schõpke é filósofa e autora do livro
                                      " Por uma Filosofia da Diferença:
                                   Gilles Deleuze,o Pensador Nômade."
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Bergson e a Natureza Temporal da Vida Psíquica

Resumo
Para Bergson, a vida interior é de natureza temporal e não espacial. Na psique, a multiplicidade qualitativa dos estados psicológicos se modifica o tempo todo numa sucessão contínua e solidária; se algo parece solidificar-se e fragmentar-se é porque se representa, ilusoriamente, a consciência como se existisse num tempo homogêneo e espacial.

 Na raiz do problema está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza exclusivamente temporal. A partir dessa confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multiplicidade quantitativa dos estados psicológicos como se fossem de natureza física, como o fez a psicofísica, porque se concebe a vida psíquica existindo num ilusório tempo espacial.

O filósofo Henri Bergson é um crítico dos pressupostos filosóficos da ciência de sua época, particularmente, da psicologia e da biologia. O período que compreende o final do século XIX e o começo do século XX é marcado pelo positivismo e pelo cientificismo; as ciências particulares deveriam seguir o paradigma das ciências positivas ¾ cujo modelo era a física ¾ e assim trabalhar com dados empíricos e mensuráveis submetidos à lei de causalidade. 

Nessa atmosfera científica, desenvolveram-se pesquisas que buscavam determinar um paralelismo rigoroso entre a vida psíquica e o cérebro; este fato contribuiu para que a psicologia tivesse seu ramo psicofísico reforçado: a psicologia passou a buscar no físico a explicação do psíquico e a propor a quantificação dos fenômenos psicológicos a partir de suas pretensas causas físicas. 

Neste contexto, Bergson se coloca como um crítico da psicofísica e seu determinismo psicológico, mostrando que o campo de investigação da psicologia, dada a própria natureza de seu objeto, estende-se para além do meramente material. Segundo o filósofo, a psicofísica, que entendia os fatos da consciência como se fossem de natureza física, reduziu o mental ao cerebral e pensou poder medir os fenômenos psíquicos da mesma maneira como era possível medir os fenômenos físicos. 

Assim procederam porque não perceberam a distinção fundamental entre tempo e espaço ¾ e, conseqüentemente, entre interioridade e exterioridade ¾ e tentaram fazer dos estados internos da consciência uma multiplicidade quantitativa, isto é, uma justaposição numérica e espacial dos estados psicológicos, marcados pela exterioridade recíproca de seus elementos, como veremos. Não se deram conta de que a realidade psicológica é pura duração, isto é, uma sucessão indistinta da multiplicidade qualitativa dos estados da consciência que se interpenetram em constante e continua mudança. 

Ao confundirem o tempo com o espaço atribuíram extensão àquilo que somente possui intensidade pura e, assim, trataram a realidade psíquica como se fosse espacial, exterior e extensa. Já em um de seus primeiros estudos, Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889/1988), Bergson trata desses pressupostos filosóficos da psicologia de sua época, criticando seu determinismo psicofísico.

O Eu Profundo e o Eu Superficial
Para entender a natureza da vida psíquica, Bergson distingue dois eus existindo no psiquismo. Segundo o filósofo: "Haveria, pois, dois eus diferentes, sendo um como que a projeção do outro, a sua representação espacial, por assim dizer social" (Bergson, 1889/1988, p. 159); este é um eu superficial. Por outro lado, haveria também, na duração de nossa vida interior, o eu profundo, que experimentamos através de "nossos estados internos como seres vivos, incessantemente em vias de formação, como estados refratários à medida que se penetram reciprocamente e cuja sucessão na duração nada tem de comum com uma justaposição no espaço homogêneo" (Bergson, p. 159).

Trata-se de dois momentos na totalidade da vida psíquica, que nem por isto perde sua unidade: um mais superficial e outro mais profundo. Esse aspecto do eu total que aparentemente não dura, porque adere à realidade exterior, o eu superficial, é a apenas a crosta rígida da psique que encobre o verdadeiro eu. "Pode-se deduzir que a relação do eu profundo e do eu superficial não será de exclusão absoluta, mas de recobertura" (Trotignon,1967, p.103). Se escavarmos por baixo dessa superfície de contato com as coisas exteriores, penetraremos nas profundezas da consciência e chegaremos ao eu profundo, vivendo na pura duração:

"É, por sob estes cristais bem recortados e este congelamento superficial, uma continuidade que se escoa de maneira diferente de tudo o que já vi escoar-se. É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu" (Bergson, 1903/1984, p. 16).
Da mesma maneira, mas indo à direção oposta, Bergson esclarece o processo pelo qual o eu profundo superficializa-se:

"Pouco a pouco, estes estados (profundos) transformam-se em objetos ou em coisas; não se separam apenas um do outro, mas também de nós. Então só os percepcionamos no meio homogêneo em que condensamos a sua imagem e através da palavra, que lhes empresta a sua banal coloração. Assim se forma um segundo eu que esconde o primeiro, num eu cuja existência tem momentos distintos, cujos estados se separam um dos outros e se exprimem sem dificuldade, por meio de palavras" (Bergson, 1889/1988, p. 96).

O eu profundo sofre a influência do eu superficial que caminha até as profundezas da consciência dominando nossas sensações, sentimentos e idéias que, então, desprendem-se uns dos outros e justapõem-se numa duração homogênea. E isto ocorre a maior parte do tempo em que vivemos exteriormente a nós mesmos.

Por um esforço da inteligência e movidos pela necessidade de sobrevivência, representamo-nos existindo mais no tempo espacializado do que no tempo real que dura, o que torna difícil uma existência verdadeiramente livre, vivida pelo eu profundo. 

O papel da inteligência é fundamental para compreendermos a natureza desse eu superficial. Segundo Bérgson, podemos "distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que rodeemos a coisa; a segunda, que entremos nela" (Bergson, 1903/1984, p.13). A primeira é a inteligência; a segunda, a intuição; uma é conhecimento exterior; a outra, conhecimento interior. Uma surge moldada à matéria e é por ela limitada e situada; a outra é conhecimento do espírito, não tem fronteiras e pode ver a totalidade. A primeira conhece somente imobilidade; a outra é a única que pode alcançar a essência movente da realidade.

 Por ser conhecimento exterior, 
a primeira é conceitual por natureza; 
a segunda, pela sua interioridade, é inexprimível.
 Assim, a inteligência, como conhecimento exterior, é a maneira própria de conhecer que objetiva nossa ação no mundo exterior. A inteligência é sempre operacional para Bergson, e o eu que está em contato com o mundo e assim pode relacionar-se socialmente e manipular os objetos exteriores é o eu superficial, então, a inteligência é seu modo próprio de conhecer.

Em suma, numa direção da vida psíquica temos o eu superficial que toca o mundo exterior pela superfície, está em contato direto com as causas externas das sensações conservando delas algo de sua exterioridade e, ao olhar para si, divide a vida psíquica em partes distintas à imagem das coisas exteriores com as quais se relaciona. 

Este eu rígido cujos estados são bem definidos, se presta muito melhor às exigências da vida social e prática, pois tem o formato das coisas distintas e definidas com as quais tem que lidar para sobreviver. Em outra direção, temos o eu profundo, assim descrito por Bergson: 

"o eu interior,
 o que sente e se apaixona, 
o que delibera e decide, é uma força cujos estados 
e modificações se penetram intimamente"
 (Bergson, 1889/1988, p. 88). 

O eu profundo move-se livremente, 
longe da estabilidade e imobilidade da exterioridade material.
 
Nele estão os sentimentos mais íntimos, as paixões mais profundas, os pensamentos mais próprios, a vontade mais livre, porque nele os estados mais profundos duram sem a influência estabilizadora do exterior; nele as sensações, percepções e emoções se organizam de forma autêntica, viva e original.

A Natureza Qualitativa dos Estados Psicológicos
Aprofundado nosso estudo, vemos que a consciência no eu profundo é constituída por uma multiplicidade qualitativa de estados psicológicos que se sucedem, interpenetrando-se em contínua mudança. Esta multiplicidade dos estados psíquicos é qualitativa e não deve ser confundida com uma multiplicidade quantitativa, típica do eu superficial. Portanto, é necessário distinguir dois tipos de multiplicidade: uma quantitativa, outra qualitativa.

A primeira, objetiva e exterior,
 refere-se aos objetos extensos; 
a segunda, subjetiva e interior, 
refere-se aos fatos da consciência. 
. A duração interna representada como homogênea, surge exatamente desta troca entre a exterioridade e a interioridade. O que possibilita este movimento de endosmose, entre o tempo puro e o espaço puro, é a simultaneidade, que segundo Bergson: "se poderia definir como a intersecção do tempo e do espaço." (Bergson, 1889/1988, p. 78). Se não houvesse simultaneidade, entre o externo e o interno, a endosmose seria impossível. Somente porque um fenômeno exterior ocorre ao mesmo tempo em que o percebo no meu interior modificando os estados da minha consciência, é que ocorre uma troca ente o espaço exterior e a duração interior. Portanto, é a simultaneidade que possibilita a endosmose espaço-temporal que produz o tempo homogêneo. 
"Na medida em que o tempo aparece como multiplicidade numérica, medir a duração significa contar simultaneidades.
 Quando aplicamos este conceito de duração à vida psicológica, formamos um conjunto suscetível de decomposição e recomposição de elementos simultâneos. A simultaneidade é a noção-chave nesta endosmose entre tempo e espaço" (Leopoldo e Silva, 1994, p. 136).

Antes devemos entender que consciência para Bergson não é a consciência intencional da fenomenologia, ou seja, consciência de alguma coisa, isto é, a consciência que visa o objeto. Para Bergson, "a consciência é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro" (Bergson, 1903/1984, p.71). Assim, consciência é memória do passado e antecipação do futuro iminente, unidas numa continuidade incorruptível garantida pela duração que é a própria essência da consciência. Consciência é o próprio movimento de sucessão de seus estados, em interpenetração recíproca; a essa continuidade de movimentos Bergson (1889/1988, p.72) chama de duração pura. 

Quanto a sua origem, a consciência psicológica é o resultado da evolução da vida e do esforço do élan vital em introduzir na matéria uma corrente de consciência que fizesse surgir à vida. Na Evolução Criadora (1907/1964), Bergson descreve o movimento de evolução da vida desde seu impulso original de vida, o élan vital, até o surgimento do ser humano e, com ele, da consciência psicológica; através da consciência psicológica ainda atravessa a energia do élan vital que lhe garante as mesmas qualidades do movimento que a criou, dessa maneira, também, ela é criadora (artística e eticamente), una em seu movimento contínuo e múltipla em virtualidades.

Tratemos, agora, da primeira das multiplicidades referidas: a multiplicidade quantitativa ou multiplicidade numérica. Bergson (1889/1988, p. 57) chega à definição de multiplicidade quantitativa a partir de uma exaustiva análise da idéia de número. O número é construído da seguinte forma: primeiro as unidades a serem contadas devem ser consideradas idênticas entre si, distintas somente pelo lugar que ocupam no espaço; para tanto, devem ser retiradas todas suas qualidades, restando somente a extensão. Depois, para formar um número, estes objetos extensos e idênticos devem ser separados uns dos outros e justapostos num meio vazio e homogêneo ¾ o espaço. 

Tem-se, assim, o número: uma coleção de unidades idênticas. Porém, aqui se torna necessário a intervenção do espírito: para formarem uma multiplicidade numérica, é necessário acrescentar novas unidades às já existentes, que se unificarão através da soma. Tal síntese das unidades através da soma é um ato do espírito, que possibilita ao número tornar-se uno e, portanto indivisível, todavia, esta indivisibilidade é provisória porque a matéria com a qual o espírito constrói o número é o espaço e o espaço é sempre divisível. O processo pelo qual forma-se uma multiplicidade numérica dá-se pela soma de unidades justapostas no espaço e, por isso, percepcionadas simultaneamente. 

É a simultaneidade que destaca o caráter espacial, e não temporal, do número; isto porque, para que possamos contar os objetos extensos é necessário conservá-los e representá-los simultaneamente, o que seria impossível de ocorrer no tempo porque um instante não pode ser conservado para ser acrescentado a outro, logo, ela somente pode ocorrer no espaço. Podemos concluir que a idéia de espaço é aqui essencial, é a própria matéria com que o espírito constrói o número, que se torna assim, expressão do espaço. 

O objetivo de Bergson, ao formular a gênese do número, é enfatizar que todo número é espacial na origem, para então demonstrar a identidade da multiplicidade numérica com o espaço e sua conseqüente inadequação para definir os estados psicológicos que são de natureza temporal e qualitativa.
A multiplicidade numérica é clara para objetos exteriores, mas e quando se tratar da realidade interior? É inadequada. 

O erro do senso comum, elevado ao grau de ciência pela psicofisiologia, é tentar aplicar o princípio da multiplicidade numérica aos estados internos. O senso comum perguntaria: se os estados se sucedem na consciência por que não podemos então contá-los? Por vezes não dizemos: agora estou triste, depois indiferente, esperançoso e por fim radiante de alegria?

 Então é só contar... foram quatro estados diferentes que se sucederam. Raciocinam assim porque estão habituados a pensar que os fatos psíquicos à semelhança das coisas extensas formam uma multiplicidade numérica. Mas os estados da alma não estão no espaço, não possuem extensão, portanto, não podem ser justapostos nem percepcionados simultaneamente. Para estados internos é necessário que exista uma multiplicidade qualitativa.

Bergson, segundo Deleuze (1989, p. 29), chega à noção de multiplicidade qualitativa não somente por oposição à multiplicidade numérica, mas a partir da distinção entre sujeito e objeto. O objeto é aquele que pode ser dividido infinitas vezes, sem se desnaturar, conseqüentemente, um objeto ao dividir-se somente muda de grandeza, não muda de natureza. Este objeto será chamado, então, de multiplicidade numérica, porque segue o modelo do número que se divide sem mudar de natureza. Mesmo que estas divisões não cheguem a se realizar, mas somente sejam pensadas como possíveis, o aspecto total do objeto não muda, pois somente o seu grau varia. Por outro lado, podemos pensar um tipo de "divisão" da duração psicológica ocorrendo no sujeito, num sentido metafórico e não espacial de divisão. 

A vida psíquica, apesar de contínua, é múltipla em seus aspectos, portanto, e de certa forma, divide-se para formar uma multiplicidade. Entretanto, esta divisão é muito especial porque a duração ao dividir-se muda de natureza; se não mudasse permaneceria homogênea e seria, então, uma multiplicidade numérica.

 A verdadeira duração é heterogênea e a cada divisão podemos no momento considerá-la como indivisível. Nesta divisão, que na realidade é uma mudança essencial, surge "o outro" sem que com isto venham a existir "muitos" no sentido numérico, porque os "muitos" estados fundem-se num só e cada novo estado de consciência toma conta da alma inteira, resultando num mesmo e único estado que dura. Assim, a multiplicidade qualitativa consegue conciliar características aparentemente divergentes da duração psicológica: a heterogeneidade e a continuidade.

Bergson, (1889/1988, p. 63) ao revelar a noção de multiplicidade qualitativa, pôde respeitar a verdadeira natureza dos estados internos. Os estados psicológicos são qualidade pura, não tem nada a ver com quantidades; é exatamente esta sua natureza qualitativa que os impede de formarem uma multiplicidade numérica. Somente podemos empregar termos que designam quantidade quando nos referimos às coisas que ocupam lugar no espaço e podem justapor-se a fim de serem comparadas para serem medidas; essa comparação entre coisas semelhantes é o que permite sua quantificação. 

Contudo, não faz sentido buscar uma relação numérica entre qualidades, isto porque elas nunca são idênticas. Então, um estado interno, sendo qualitativo, nunca é igual a outro, sendo assim, não pode ser sobreposto e comparado, no intuito de buscar semelhanças quantitativas e de estabelecer graus de diferenciação, visando-se a construir uma multiplicidade numérica que se mostra, assim, inteiramente inadequada para representar a realidade interior.
Para estarmos a salvo de tais con(...?)

 Quando o meio é o espaço 
temos uma multiplicidade quantitativa; 
quando o meio é o tempo temos 
uma multiplicidade qualitativa.
 A primeira refere-se às coisas extensas e exteriores; a segunda refere-se aos estados intensivos e internos. Essa distinção entre multiplicidade quantitativa e multiplicidade qualitativa é assim resumida por Bergson:

"Considerados em si mesmos, os estados da consciência profundos não têm nenhuma relação com a quantidade, são qualidade pura; misturam-se de tal maneira que não se pode dizer se são um ou vários, nem sequer examiná-los sob este ponto de vista sem logo os desnaturar. A duração que assim criam é uma duração cujos momentos não constituem uma multiplicidade numérica" (Bergson , 1889/1988, p. 95).

Trata-se de uma multiplicidade de qualidades, porque os fatos da consciência são qualidade pura, penetram-se reciprocamente quando percepcionados de forma imediata. Todavia, quando representados simbolicamente no espaço tornam-se unidades homogêneas e exteriores umas às outras ocupando lugar no espaço. Tornam-se rígidas e impenetráveis formando uma multiplicidade distinta semelhante ao número e somente sob estas condições é que imaginamos contá-los, quando os projetamos no espaço. E este foi precisamente o engano de uma psicologia não atenta à constituição qualitativa dos estados psicológicos: não perceber que existem dois tipos distintos de multiplicidade, uma qualitativa e outra quantitativa.

Em suma, a multiplicidade quantitativa tem por condição o espaço, é nítida, precisa, sua função é separar e distinguir a realidade sempre indistinta e fluida, dando-lhe limites e definindo-a na exterioridade. Tal multiplicidade diz respeito aos objetos externos, extensos e materiais, que podemos ver e tocar porque estão no espaço. Estes objetos, por serem exteriores uns aos outros, estão justapostos de forma definida e ordenada formando um conjunto semelhante ao número. "É representada pelo espaço... é uma multiplicidade de exterioridade, de simultaneidade, de justa posição, de ordem, de diferenciação quantitativa, de diferença de grau, uma multiplicidade numérica, descontinua e atualizada" (Deleuze, 1989, p. 30). 

A multiplicidade qualitativa, por sua vez, é interna, sucessiva e somente aparece na pura duração, porque é uma multiplicidade temporal e não espacial. Própria dos estados internos da consciência, que se sucedem fundindo-se e a cada nova fusão mudando por completo sua natureza. "Presente na duração pura; é uma multiplicidade interna, de sucessão, de fusão, de organização qualitativa ou de diferença de natureza, uma multiplicidade virtual e contínua, irredutível ao número" (Deleuze, p. 30). 

Portanto, na duração interna tudo se modifica o tempo todo porque o progresso dos estados psicológicos é dinâmico; se algo se solidifica é porque nos deixamos representar, ilusoriamente, a nós mesmos, como se existíssemos num tempo homogêneo e espacial. Nossa representação, de nossa duração psicológica como uma multiplicidade quantitativa e homogênea, se origina de uma invasão imprópria do espaço no âmbito da pura duração, como veremos.

Na Origem do Problema: A Confusão entre Tempo e Espaço
Na raiz do problema está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza temporal e não espacial. A partir desta confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multiplicidade quantitativa dos estados da consciência porque se concebe a vida psíquica existindo num tempo espacial.

Os pressupostos do determinismo psicológico, enquanto ciência, foram levantados sobre uma base filosófica comum, onde encontramos como idéia central o conceito de tempo homogêneo. Este conceito surge da aplicação imprópria de noções como quantidade, extensão e espaço à concepção do tempo psíquico, deformando o tempo-qualidade vivido pelo eu, transformando-o no tempo-quantidade representado pelo espaço. 

Tal deformação, no fundo, ocorre porque se confunde a verdadeira duração da psique com sua representação simbólica, ou seja, substitui-se o tempo pelo espaço. Este tempo homogêneo pode ser definido como um misto de tempo e espaço. A duração homogênea não é a verdadeira duração, mas um conceito híbrido, formado por meio da representação espacial que introduz seus cortes descontínuos na sucessão interna, heterogênea e contínua da duração psicológica. Bergson explica como se processa esta confusão entre tempo e espaço:

"Mas familiarizados com esta última idéia (espaço), e obsessionados até por ela, introduzimo-la sem saber na nossa representação da sucessão pura; justapomos nossos estados da consciência de maneira a percepcioná-los simultaneamente, não já um no outro, mas um ao lado do outro; em resumo, projetamos o tempo no espaço, exprimimos a duração pela extensão, e a sucessão toma para nós a forma de uma linha contínua, ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se penetrar." (Bergson, 1889/1988, p. 73)

O tempo-quantidade (ou duração homogênea) é apresentado como um meio homogêneo onde os fatos da consciência se alinham e se justapõem formando uma multiplicidade quantitativa e onde cada estado separadamente se sucede um após o outro, sendo assim, é uma representação absolutamente distinta da verdadeira duração. 

Quando definimos o tempo desta forma o que estamos definindo na realidade é o espaço e a verdadeira duração não tem a menor relação com o espaço. "Esta forma do tempo é somente uma representação da nossa intuição do tempo em termos de espaço" (Hude 1990, p. 136).
O tempo homogêneo tem sua origem numa "endosmose entre o interno e o externo" (Prado Jr., 1989, p. 99). A confusão é bilateral. De um lado, ocorre uma aparente temporalização do espaço, por meio da ilusão de que possa ocorrer uma sucessão num meio homogêneo; fato impossível porque qualquer sucessão somente ocorre no tempo e para a consciência.

 A ilusão da existência de sucessão num meio homogêneo surge porque inventamos um espaço invadido pelo tempo, sobre o qual podemos justapor quantidades, esquecendo do ato essencial do espírito que realiza esta justaposição. De outro lado, ocorre uma especialização do tempo interno invadido pelo modo de ser do que é externo, dando origem, assim, a duração homogênea. 
A duração interna 
representada como homogênea,
surge exatamente desta troca 
entre a exterioridade e a interioridade. 
O que possibilita este movimento de endosmose, entre o tempo puro e o espaço puro, é a simultaneidade, que segundo Bergson: "se poderia definir como a intersecção do tempo e do espaço." (Bergson, 1889/1988, p. 78). Se não houvesse simultaneidade, entre o externo e o interno, a endosmose seria impossível. Somente porque um fenômeno exterior ocorre ao mesmo tempo em que o percebo no meu interior modificando os estados da minha consciência, é que ocorre uma troca ente o espaço exterior e a duração interior. Portanto, é a simultaneidade que possibilita a endosmose espaço-temporal que produz o tempo homogêneo. 

"Na medida 
em que o tempo aparece 
como multiplicidade numérica, 
medir a duração significa contar simultaneidades.

 Quando aplicamos este conceito de duração 
à vida psicológica, formamos um conjunto suscetível 
de decomposição e recomposição de elementos simultâneos. 

A simultaneidade 
é a noção-chave nesta endosmose 
entre tempo e espaço" 
(Leopoldo e Silva, 1994, p. 136). 

Substituímos o espaço pelo tempo e definimos o tempo interior como um meio vazio e homogêneo preenchido por uma sucessão de fatos psicológicos, da mesma maneira que concebemos o espaço como um meio vazio e homogêneo preenchido por uma coexistência. Essa homogeneidade pode ser entendida como ausência de qualidade, assim, o tempo homogêneo é um tempo sem qualidade no qual os fatos da consciência com seus contornos definidos e exteriores uns aos outros se sucederiam.

 "A tese geral de Bergson é bem conhecida:
 nós projetamos sobre a duração verdadeira, 
infinitamente móvel, o espaço no qual 
nós vivemos visando a comodidade social"
 (Vieillard-Baron, 1991, p. 58). 

Mas o tempo homogêneo não é o tempo real porque, segundo Bergson: "os fatos da consciência, ainda que sucessivos, penetram-se, e no mais simples deles pode refletir-se a alma inteira" (Bergson, 1889/1988, p. 71). Assim, Bergson vê o tempo real como heterogêneo e qualitativo. Se o tempo fosse homogêneo e sem qualidade seria espaço; se definirmos espaço como homogêneo tudo que é homogêneo é espaço, isto porque seria contraditória a existência de duas homogeneidades distintas. A confusão entre estes "dois tempos" ocorre porque movidos por interesses úteis à ação, espontaneamente substituímos o tempo verdadeiro da existência e da consciência pela ilusão do tempo da ciência e da vida cotidiana. Assim é que, introduzindo a idéia de espaço na pura duração que se chega à idéia de um tempo homogêneo e sem qualidade, usado pela ciência determinista e pela psicofísica que acabaram por tirar do tempo o essencial, isto é, a duração.

Bergson (1889/1988), como vimos, constrói sua crítica ao conceito de tempo homogêneo espacial a partir da percepção de que existem dois tipos distintos de multiplicidade, uma qualitativa e outra numérica, que levam respectivamente a duas concepções diferentes acerca da natureza do tempo: um heterogêneo e contínuo e outro homogêneo e divisível. O erro do determinismo psicológico, denunciado por Bergson, foi o de ter aplicado o conceito de tempo espacial à compreensão do modo de ser do psiquismo. Bergson demonstra que o tempo homogêneo é uma noção híbrida de tempo e de espaço que surge porque se concebe a duração como homogênea, concepção que no fundo não passa de uma representação simbólica e inexata da verdadeira realidade psíquica.

Para Bergson (1889/1988), há o tempo real: a duração. Tempo que é mudança essencial e contínua; tempo que passa incessantemente modificando tudo e que constitui a própria essência da realidade psíquica. Todavia, não é assim que percebemos a realidade; presos aos hábitos da inteligência visando a nossa ação no mundo, percebemos a realidade como estática e passível de ser fragmentadas em partes que facilitam nosso agir no mundo. Temos, assim, uma concepção espacial da realidade, que olha o mundo do ponto de vista da extensão. 

A esta visão espacial da realidade, escapa o tempo real, que flui incessantemente em seu contínuo movimento, porque pensa o tempo nos moldes do espaço e, assim, concebe um tempo ilusório: o tempo espacializado, originado da confusão que inadvertidamente se faz entre tempo e espaço3. E a consciência, imbuída de representações espaciais, olha para si mesma e não se reconhece como duração pura, enxerga estados que se sucedem sem se penetrarem, não vê o eu no seu conjunto inter-relacionado, esquece o passado num lugar escondido sem relação com o presente, torna as sensações e os sentimentos unidades estanques sem movimento, concebe a imobilidade como substrato da realidade.

Somente da confusão entre duas realidades distintas, tempo e espaço, é que surge a idéia de tempo homogêneo, representação simbólica da verdadeira duração, sobre a qual se construiu a psicofísica e outras formas de representação do mundo que carregaram consigo este equívoco primordial. Para evitar equívocos, é necessário distinguir o tempo do espaço e pensar a vida psíquica como essencialmente temporal. Para tanto, Bergson esclarece que:

"Há um espaço sem duração, mas onde fenômenos aparecem e desaparecem simultaneamente com os nossos estados da consciência. Há uma duração real, cujos momentos heterogêneos se interpenetram podendo cada momento aproximar-se de um estado do mundo exterior que é dele contemporâneo e separar outros momentos por efeito dessa aproximação. Da comparação destas duas realidades nasce uma representação simbólica da duração, tirada do espaço. A duração toma assim a forma ilusória de um meio homogêneo" (Bergson, 1889/1988, p. 78).

Assim, não podemos reduzir a noção de tempo à noção de espaço porque são realidades distintas. Logo, é necessária a depuração do misto entre tempo e espaço, da qual surgirá, de um lado, o puro espaço e, de outro lado, a pura duração4. Esclarecer essa confusão é um dos principais objetivos do Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (Bergson, 1889/1988); trata-se, pois, de separar duas concepções diferentes de tempo, de um lado, o tempo-espacial utilizado pela ciência, de outro lado, o tempo interior, no qual vive e dura o eu. "Em verdade, o tempo da ciência é assim o tempo da linguagem, a expressão de uma espécie de 'senso comum' cuja vocação natural e de pensar visando a agir. 

O tempo da existência é, ao contrário, esse da duração interiormente vivida e, de fato, interiormente percebida" (Gouhier, 1989, p. 42). Portanto, devemos separar duas realidades distintas: primeiro, um espaço sem duração onde somente existe o presente absoluto e, segundo, uma duração pura onde encontramos o tempo real passando contínuo e heterogêneo, no qual ocorrem os fenômenos psíquicos.

Bergson (1889/1988) busca construir uma metafísica que não ignora a realidade de fato. Compreende que o primeiro acesso a essa realidade é a vida interior, constituída por nossa psique; assim, volta seu olhar a esse acesso privilegiado, buscando compreender sua natureza, antes de buscar investigar a realidade tida como exterior. Descobre que essa vida interior é de natureza temporal: o tempo, enquanto duração, é a essência da vida psíquica. Todavia, não é assim que, no geral, a psicologia de seu tempo a entendeu; marcada pelo determinismo psicofísico, acabou por não reconhecer a verdadeira natureza psíquica, ao confundi-la com o físico, entendendo-a como sendo de natureza espacial.

A contribuição de Bergson 
está em mostrar que é necessário pensar 
os pressupostos filosóficos da psicologia e,
 assim, manter um diálogo entre filosofia e psicologia, 
disciplinas que por muito tempo caminharam juntas. 



Desvendando a verdade interior do sujeito

Foram muitas as inovações históricas que surgiram nos alvores da Modernidade acompanhando essa fermentação interior da subjetividade. Uma delas é o nascimento da clínica médica, pois ela inaugurou um saber sobre o indivíduo e uma prática que focalizava a experiência de sofrimento de cada pessoa em particular – como assinalou Michel Foucault em seus estudos sobre o assunto. Reconhecendo a singularidade do pathos individual, as doenças começaram a serem compreendidas como encarnações no individuo; o foco, portanto, foi deslocado da doença para o doente. Em seguida, as doenças seriam pensadas e tratadas como desvios da normalidade, com suas raízes fincadas no interior dos corpos individuais. Assim, ao longo da era moderna foram desenvolvidas diversas tecnologias e todo um leque de saberes que legitimavam o mergulho no interior desses corpos, à procura da verdade escondida em sua intimidade obscura e visceral. 

A “técnica da confissão” 
é um desses dispositivos, amplamente disseminado
pelos mais diversos âmbitos, envolvendo das formas jurídicas
 às práticas médicas e, sobretudo, à psicanálise.


Deslocamentos na definição do eu
As novas “escritas de si”: banalidade escancarada?
Em franca oposição ao que acontecia no século XIX com o mencionado “furor de escrever” e a profusão de práticas introspectivas – solitárias e muitas vezes secretas, extremamente íntimas e privadas – que visavam ao conhecimento interior e à paciente escrita de si, atualmente a “identidade” do sujeito se torna “externa”, como assinala Richard Sennett em seu livro A corrosão do caráter. 

O lema parece ser o seguinte: 
“você é o que você mostra de si”.

Breve retorno à interrogação inicial

Paula Sibilia é doutoranda da linha de Sistemas de Interpretação do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ.
sibilia@ig.com.br
Referência   Bergson, H. (1988). Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (J. S. Gama, Trad.). Lisboa: Edições 70. (Original publicado em 1889)         [  ]Bergson, H. (1984). Cartas, conferências e outros escritos (F. L. Silva, Trad.). São Paulo, SP: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores. (Original publicado em 1903)         [  ]Bergson, H. (1964). A evolução criadora (A. C. Monteiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora Delta. (Original publicado em 1907)         [  ]Deleuze, G. (1989). Le bergsonisme. Paris: P.U.F.         [ etc,,, ]
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCPKIazlvTksVWE2PMmYD8xNK70jVqGi9u16S7aHZhBAxmyl-e-N_h2ln9PpYefjQUQf-x7F-YEDNqPwsc9bz1ZLorIDrQTgI-BnovS28UNuZ6rLjcoSmOemGhaI4q48SttgouJxhcJfHC/s1600/@raminhoPicasso..bmp
Pablo Picasso

Li
 Fonte:
 http://www.publishnews.com.br
O Estado de S. Paulo - 06/08/2006 - Regina Schõpke
UFRJ. sibilia@ig.com.br  -  cleitonzm@pop.com.br
 

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