sábado, 9 de junho de 2012

NO DESVELAMENTO DO FEMININO A POSSIBILIDADE DE PAZ: Azize Maria Yared de Medeiros



 No desvelamento do feminino a possibilidade de paz
Azize Maria Yared de Medeiros1

Resumo: Esta comunicação esboça um breve histórico do crescimento da racionalidade no pensamento ocidental, em oposição ao enfraquecimento das metafísicas, o que propiciou a secularização da sociedade. 

Demonstra que a experiência do sagrado é expressa por meio de sentimentos e emoções que envolvem corporalidade, sendo essas as características apontadas ao longo da história como notadamente femininas. Busca-se estabelecer uma relação entre a possibilidade de paz e a expressão do sentimento de amor e afeto que desfazem a hostilidade e estimulam as posturas fraternas e solidárias, cujos aspectos são identificados com o gênero feminino. 

O sentimento de amor 
revelado na experiência do sagrado 
instiga a transformação interior e enseja a ação social.
Palavras-chave: Feminino; Experiência do sagrado; Amor.
É amplamente sabido que a civilização ocidental se estruturou sob a égide do racionalismo. Ao longo de séculos, o saber humano foi abandonando modos de conhecimento considerados ilegítimos porque enganosos e impossíveis de comprovação ou constatação científica.

 Ciência e técnica 
lançaram no porão da história 
formas gnosiológicas alternativas, 
muitas delas relacionadas à transcendência, ao misticismo.

Retrocedendo no tempo, sabe-se que, até o início do século XIII, todo conhecimento desenvolvido pelo ser humano mantinha-se vinculado ao platonismo e ao neoplatonismo, marcado pela forte presença de Santo Agostinho. Já a partir da metade daquele século a influência aristotélica representada por Tomás de Aquino torna-se verdade incontestável. As bases científicas do Ocidente se mantiveram por longo tempo atreladas ao campo religioso e expressas mais particularmente pela filosofia aristotélico-tomista.

Para Santo Agostinho, a origem do conhecimento humano está na iluminação divina. Para o Aquinate, todo conhecimento surge da faculdade da alma chamada inteligência. Embora aqui a razão ainda apareça como uma faculdade derivada de Deus, o seu papel prioritário na aquisição do conhecimento já é enfatizado. 

A teoria aristotélica
 fornece as bases da cultura cristã
desenvolvida pela escolástica.

Portanto, a oposição Platão/Aristóteles, repetida por Santo Agostinho/Santo Tomás de Aquino, expressa a dualidade epistemológica, revelação e razão, que vai se prolongar pelos anos vindouros, atingindo seu ápice no Iluminismo

O século XVII rompe definitivamente com os mundos antigo e medieval e inaugura a Modernidade. As bases do pensamento científico são fundamentadas por cientistas e pensadores como Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes, Newton, Francis Bacon e Locke.

A divisão cartesiana do mundo em pensamento (res cogitans) e matéria (res extensa) traz, como consequência, o dualismo psicofísico e seus outros efeitos, como as dicotomias homem-natureza, sujeito-objeto. Em busca de um método perfeito para a obtenção de conhecimento, Descartes prioriza a importância do pensamento do sujeito, assim o seu método consolida o racionalismo.

Newton elabora a primeira teoria científica da ciência moderna sintetizando a filosofia mecanicista de Descartes, sua teoria da gravitação universal, as leis dos movimentos planetários de Kepler e as leis do movimento terrestre de Galileu. “A cosmologia newtoniano-cartesiana estava agora estabelecida como fundamento de uma inovadora visão de mundo” (Tarnas, 2002, p. 293).

Ao mecanicismo e racionalismo junta-se o empirismo inglês, que afirma o papel fundamental da experiência sensível no processo do conhecimento. No século XIX, o positivismo de Augusto Comte institui a observação dos fatos como critério definitivo para o estabelecimento da verdade científica.

Os critérios positivistas parecem impossibilitar que as humanidades e a filosofia sejam consideradas ciências. Mas, no início do século XX, surge a fenomenologia de Husserl, afirmando que toda consciência é intencional, que todo objeto é um fenômeno, ou seja, algo que aparece para uma consciência inaugura uma epistemologia de superação do dualismo.

E, de acordo com Habermas (1975, p. 293), “a fenomenologia capta neste momento a existência de uma subjetividade fundante do sentido [...] rompe com a vinculação ingênua, desvinculando radicalmente conhecimento e interesse”.

O filósofo francês Henri Bergson, no início do século XX, já propunha a superação dos dualismos incorporados ao pensamento ocidental pelo intectualismo racionalista e pela tradição positivista.

Apresentamos, assim, um breve histórico da evolução do pensamento ocidental para situarmos a relação da racionalidade, da inteligência e da cientificidade com o sagrado.

Isso porque o inevitável avanço das ciências e da técnica mostrava traços de secularização em uma sociedade compromissada com o progresso, com o novo. A clareza das explicações científicas, acompanhada das benesses do progresso, ofuscou as religiões e seus dogmas. Ética e moral inteiramente individualistas passaram a vigorar na sociedade ocidental.

No entanto, embora a própria ciência tenha contribuído para o distanciamento das religiões e um crescente individualismo na sociedade moderna, a busca de um sentido ontológico teimava em permanecer como parte intrínseca nas caminhadas humanas.

 Logos e mithos
 não se desenvolveram 
como duas linhas paralelas 
que jamais se encontram. 
Ao contrário, manifestaram-se na história da humanidade como duas fontes de conhecimento que permanentemente entrelaçavam seus achados e afirmações influenciando-se mutuamente.

A expansão da liberdade individual proporcionada pelo progresso e intensificada no período da chamada Pós-Modernidade ofereceu ao ser humano a possibilidade de buscar o sagrado de forma alternativa fora dos espaços da religiosidade oficial. Algo que já acontecia no final do século XIX e primórdios do século XX nas reuniões da Sociedade Teosófica2 e ocorre no mundo contemporâneo em aulas de meditação, cursos e vivências

2 Sociedade Teosófica: entidade de orientação espiritual cujo objetivo era alcançar a sabedoria relacionada ao divino. Foi criada pela russa Helena Blavatsky (1831-1891) no ano de 1875, com sede (ainda hoje) em Madras, na Índia. Influenciada pelo neoplatonismo, pelo gnosticismo, pelo xamânicas, nas aulas de ioga ou de tai chi chuan, entre outras das chamadas práticas espiritualistas. Esse intenso movimento é parte integrante da persistente necessidade de buscar um sentido para a vida em meio à correria consumista das sociedades urbanas ocidentais – um sentido de ordem ontológica.

É compreensível que essa busca se volte para práticas que neutralizam a racionalidade e a inteligência e priorizem aspectos corporais e intuitivos. Lembramos aqui de Marcel Mauss, que, concluindo seus estudos sobre técnicas corporais, afirma:

No meu entender, no fundo de todos os nossos estados místicos há técnicas de corpo que não foram estudadas, e que foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia desde épocas muito remotas. Esse estudo sócio-psico-biológico da mística deve ser feito.
 Penso 
que há necessariamente meios biológicos 
de entrar em “comunicação com o Deus”. 
E, embora a técnica de respiração etc. seja o ponto de vista fundamental apenas na Índia e na China, creio, enfim, que ela é bem mais difundida de um modo geral. Em todo caso, temos sobre esse ponto meios de compreender um grande número de fatos até aqui não compreendidos. (2003, p. 422)

Essa necessidade de viver o sagrado resgata o ser humano moderno da inquietante sensação de desencanto e desamparo, já prenunciada por Weber, e reafirma “a fuga para o império da mística” (Mata, 2007, p. 7), conforme expressado por Troeltsch no início do século XX.

Sanchis (1999, p. 236) também afirma que as experimentações em busca do sagrado resultam da sensação de uma certa “desordem” no mundo, que se apresenta, dentre outras manifestações Pós-Modernas, “[…] como protestos implícitos contra uma excessiva deriva racionalizante das grandes religiões do Ocidente”.

A racionalidade científica alterou profundamente a manifestação simbólica dos indivíduos modernos, dificultando a expressão de verdades subjetivas, limitando sua capacidade de atribuir significados à vida.

Mas, diz-nos Bartolomé Ruiz (2004, p. 130), a chamada 

“dessacralização do mundo
 é sempre relativa [...]. 

Sempre existe 
uma certa dimensão de sacralidade
na forma como o ser humano se relaciona com o mundo”.
 E essa sacralidade é expressa pelos sentimentos, pelas emoções.
Hinduísmo, pelo Budismo e pelas escolas de mistérios da Antiguidade clássica, durante muitos anos congregou intelectuais, poetas, escritores e artistas do mundo europeu e americano.Humano se relaciona com o mundo”. E essa sacralidade é expressa pelos sentimentos, pelas emoções.

A única maneira de descrever o conhecimento interno vivido na experiência do sagrado se faz, assim como na experiência estética, por meio da linguagem metafórica, poética, corporal e afetiva, repleta de múltiplas imagens e sentimentos. 

A comunicação racional 
é limitada e só oferece recortes fragmentados 
da verdadeira experiência da sacralidade vivida.
A experiência do sagrado, vivida enquanto experiência mística, apresenta profundas sensações corporais, sensoriais e emocionais incapazes de serem claramente captadas e esclarecidas pela racionalidade intelectual. Muitas vezes, somente o silêncio e a quietude, seguidos de prolongada reflexão, resultam do encontro com o sagrado.

Razão e emoção sempre foram consideradas faculdades humanas que se opõem. 

No diálogo Fedro, Platão compara as emoções com ímpetos irracionais aos cavalos, que devem ser controlados pelo cocheiro – a razão (Jaggar, 1997). A razão, desde o período helênico, era associada ao mental, cultural, universal, público, e ao masculino. Já a emoção esteve sempre associada ao irracional, ao físico, ao natural, ao particular, ao privado, ao feminino, e também ao sagrado.

O amor, o afeto e o cuidado, embora caracterizem o gênero feminino, são sentimentos atribuídos àqueles que experimentaram um encontro com o sagrado, sejam eles artistas, sejam religiosos.

No entanto, a construção de um racionalismo dogmático, apoiado em pesquisas científicas reducionistas, fragmentadas e ideologicamente androcêntricas, colaborou para legitimar a supremacia masculina e a inferioridade e submissão das mulheres, mantendo-as sempre como cidadãs de segunda classe, cuja principal função é servir.

O exacerbado patriarcalismo que vigora na sociedade em geral contribui para que persista, no pensamento humano, a dominação masculina, conservando a própria imagem de Deus como figura masculina.

No entanto, uma reflexão sobre as características de mansidão, acolhimento e amor, demonstradas pelas mulheres e também por Jesus e São Francisco, aponta para uma contradição inerente às crenças masculinas da imagem de Deus.

O filósofo francês Henri-Louis Bergson defendeu, em seu livro As duas fontes da moral e da religião – publicado em 1932 e última produção de sua vida após vinte anos de silêncio –, que 

“a criação 
é um empreendimento de Deus
 para criar criadores, para associar-se aos seres dignos do seu amor”.
 Bergson 
mostra que na experiência mística
 o amor que consome aquele que o vivencia 

“não mais é simplesmente o amor
 de um homem por Deus,
 é o amor de Deus por todos os homens. 

Através de Deus, 
por Deus ele ama toda a humanidade
 com um amor divino”
 (1978, p. 192).
De acordo com Ribeiro, “o amor é a revelação recíproca das diferenças e essas não devem ser suprimidas, pois elas se unem e se completam: há uma igualdade nas diferenças de natureza e de espírito” (Ribeiro, 1998, p. 151).

Seguindo o argumento de Bergson, conclui-se que só há possibilidade de paz onde existe amor.

 Bergson esclarece que não se está referindo à fraternidade aconselhada pelos filósofos em nome da razão, sob o argumento de que “todos os homens participam originariamente de uma mesma essência racional” (1978, p. 193). Para ele, essa fraternidade de ordem racional resulta nos laços familiares, sociais, patrióticos, correspondentes a instintos que estimulam as sociedades a lutarem entre si, muito mais do que se unirem em nome de uma humanidade comum.

A verdade, diz-nos ainda Ribeiro, é que “o conflito vivido nas relações entre masculino e feminino perturba as relações dos seres humanos com o Transcendente” (1998 p. 151).

Completamente diferente, o amor místico é de essência metafísica, mais ainda que moral. Após a experiência mística, as questões morais se submetem a esse amor infinito e indivisível de que fala Bergson.
Não há, portanto, a menor possibilidade de existir paz onde não existe amor. 

O amor místico desvela e revela,
qualidades notadamente femininas que são, 
estas sim, comuns a toda humanidade 
independente do gênero. 
Mas que somente surgem e são reveladas àqueles que se permitem transcender o arcabouço da racionalidade lógica, da ancestralidade patriarcal e das metafísicas dualistas, e se entregam à essência infinita do Mysterium.

 Azize Maria Yared de Medeiros1

 1 Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC Goiás. Licenciada em Filosofia pela UFPR. Atualmente, é professora convidada da graduação da PUC Goiás, nas disciplinas de Ética e Teologia. E-mail: azizemedeiros21@yahoo.com.br.


Referências
BARTOLOMÉ RUIZ, C. M. M. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Unisinos, 2004. (Coleção Focus.)
Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VII, n. 35 125
BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Trad. de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HABERMAS, J. Conhecimento e interesse. In: Textos escolhidos. Trad. de Maurício Tragtemberg. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores, XLVIII.)
JAGGAR, A. M. Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista. In: JAGGAR, A. M.; BORDO, Susan R. (orgs.). Gênero, corpo e conhecimento. Trad. de Britta Lemos de Freitas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. (Coleção Gênero, n. 1.)
MATA, S. Religião e modernidade em Ernst Troeltsch. Artigo apresentado por ocasião da aula inaugural do mestrado em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás, em 2007. Inédito.
MAUSS, M. Sociologia e antropologia. Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
RIBEIRO, Z. F. A mulher e seu corpo; magistério eclesiástico e renovação da ética. Aparecida: Santuário, 1998.
SANCHIS, P. A religião dos brasileiros. Revista Teoria e Sociedade, Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG, 2o sem. 1999.
TARNAS, R. A epopeia do pensamento ocidental; para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. 5. ed. Trad. de Beatriz Sidou. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Recebido: dezembro 2010
Aprovado: fevereiro 2011


Li
 Fonte:
Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VII, n. 35 124
 http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/downloads/2011/06/Nota2.pdf
 

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