PROJETO DE PÓS-DOUTORADO – FAPESP
Psicologia e metafísica em Bergson e William James
I – Resumo
Este projeto pretende examinar a relação entre psicologia e metafísica à luz da última obra de
Bergson – As duas fontes da moral e da religião. Julgamos que, nessa obra, o autor concebe uma nova
direção para a filosofia, onde confluem as suas análises psicológicas sobre a duração, a sua teoria
pragmática do conhecimento, o seu método de intuição e a sua metafísica da vida. Essa direção,
marcada por uma preocupação essencial do pensamento bergsoniano com a espiritualidade, é a que põe
em relevo a experiência mística; e poderia explicar, ainda, a simpatia intelectual entre Bergson e
William James. Estudar a última obra de Bergson em cotejo com As variedades da experiência
religiosa, de James, nos permitirá compreender melhor o caráter fundamental do místico, aquele que
conjuga contemplação, ação prática e verbalização dos sentimentos derivados da experiência. O livro de
James, porquanto fornece o arcabouço experimental da noção de estado místico de consciência, se
configura como um complemento substancial desta pesquisa e delimita, ao mesmo tempo, o nosso
objeto de estudo. Tomando por base estas duas concepções de misticismo, que balizam a diferença entre
uma abordagem ontológica e uma abordagem psicológica da subjetividade, pretendemos avaliar até que
ponto se pode conciliar a especulação metafísica com as experiências no campo da psicologia,
mostrando o que elas partilham e o que as distingue.
II – Introdução e justificativa 1. Verdade e ação: Bergson leitor de William James
Nossa tese de doutorado (financiada pelo CNPq) distinguia o conceito de ação como um critério
pragmático através do qual Bergson procurava dissolver alguns problemas clássicos da história da
filosofia, tal como o problema da união da consciência e o corpo. Essa hipótese assume agora uma
relevância completa, na medida em que nos encaminha para o aprofundamento de um aspecto-chave da
filosofia contemporânea, a dimensão da ação, onde tudo está se fazendo, onde o que importa não é o ser
ou o não-ser, mas o vir-a-ser. Seria esta dimensão da ação aquilo que permite englobar, sob um mesmo
nome, certas tendências que careciam de um nome geral? Ao que parece, é precisamente assim que
William James concebe o pragmatismo:
“O termo deriva da mesma palavra grega pragma, que significa
ação, do qual vêm as nossas palavras ‘prática’ e ‘prático’”.1
ação, do qual vêm as nossas palavras ‘prática’ e ‘prático’”.1
Assim sendo, poderíamos sugerir que das
influências recíprocas entre bergsonismo e pragmatismo não se desprende apenas um pensamento que
nos incita à ação, senão também uma concepção de filosofia como prática. Cabe destacar que esse
entrecruzamento de idéias entre Bergson e James está parcialmente registrado na enérgica
correspondência que se estabeleceu entre eles durante a primeira década do século XX.2
Na obra A pluralistic universe (1909), James cita a teoria de Fechner, que concebe a Terra como
um ser independente, dotado de alma divina. Para Bergson, isso reflete a “psicologia do sentimento
religioso” que James desenvolve em sua obra anterior, As variedades de experiência religiosa (1902),
ao descrever o espírito do místico.
influências recíprocas entre bergsonismo e pragmatismo não se desprende apenas um pensamento que
nos incita à ação, senão também uma concepção de filosofia como prática. Cabe destacar que esse
entrecruzamento de idéias entre Bergson e James está parcialmente registrado na enérgica
correspondência que se estabeleceu entre eles durante a primeira década do século XX.2
Na obra A pluralistic universe (1909), James cita a teoria de Fechner, que concebe a Terra como
um ser independente, dotado de alma divina. Para Bergson, isso reflete a “psicologia do sentimento
religioso” que James desenvolve em sua obra anterior, As variedades de experiência religiosa (1902),
ao descrever o espírito do místico.
“As almas que preenchem o entusiasmo religioso
são verdadeiramente levantadas e transportadas”, escreve Bergson,
suspeitando que aí deve encontrar-se a “idéia inspiradora” do pragmatismo,
pois para o pensador americano o que realmente importa é
conhecer aquelas verdades que foram “sentidas e vividas antes de serem pensadas”.
conhecer aquelas verdades que foram “sentidas e vividas antes de serem pensadas”.
Cabe sublinhar aqui
a diferença entre “constatar friamente uma coisa que se passa fora de nós” e o sentido exato do verbo
experimentar, que implica “sentir em si mesmo, viver por si próprio tal ou qual maneira de ser”.3 Isso
autoriza Bergson a pensar que as verdades podem ser reveladas tanto pelo sentimento quanto pela razão,
detectando nessa pluralidade da verdade a “tese mais importante do pragmatismo”. Quando o critério
da verdade passa a ser o gênero de utilidade visado, cuja direção depende da própria realidade, se
inverte a ordem na qual estamos acostumados a colocar as diversas “espécies de verdade”. Se
concebermos a verdade como uma invenção, a diferença entre as “verdades de sentimento” e as
“verdades cientificas” poderá ser comparada à diferença que existe entre um barco à vela e um o barco a
vapor, que são duas invenções humanas: na primeira, se utiliza eficazmente a força natural do vento, ao
passo que; na segunda, se recupera a força gerada por um mecanismo artificial, possibilitando assim
escolher a direção.
a diferença entre “constatar friamente uma coisa que se passa fora de nós” e o sentido exato do verbo
experimentar, que implica “sentir em si mesmo, viver por si próprio tal ou qual maneira de ser”.3 Isso
autoriza Bergson a pensar que as verdades podem ser reveladas tanto pelo sentimento quanto pela razão,
detectando nessa pluralidade da verdade a “tese mais importante do pragmatismo”. Quando o critério
da verdade passa a ser o gênero de utilidade visado, cuja direção depende da própria realidade, se
inverte a ordem na qual estamos acostumados a colocar as diversas “espécies de verdade”. Se
concebermos a verdade como uma invenção, a diferença entre as “verdades de sentimento” e as
“verdades cientificas” poderá ser comparada à diferença que existe entre um barco à vela e um o barco a
vapor, que são duas invenções humanas: na primeira, se utiliza eficazmente a força natural do vento, ao
passo que; na segunda, se recupera a força gerada por um mecanismo artificial, possibilitando assim
escolher a direção.
Articulando a relação entre verdade e realidade, Bergson mostra que se
abandonamos a concepção de “universo sistemático” decorrente da nossa lógica habitual,
compreenderemos a verdade intelectual como uma “invenção humana, que tem por efeito utilizar a
realidade antes que introduzir-nos nela”.4 Ao contrário, numa realidade “múltipla é movente”, a verdade
deve ser sentida antes de ser concebida. Por conseguinte, a tomada de contato com alguma das correntes
que se entrecruzam para formar essa realidade pode ser mais eficiente que a verdade pensada com o
intuito de apreender e armazenar a própria realidade. Aos olhos de Bergson, essa teoria da realidade
tem como conseqüência imediata um rebaixamento da verdade, uma vez que esta se subordina à
utilidade material. Essa conclusão, além de desencorajar a pesquisa científica desinteressada, pode ser
significativa para uma filosofia que pretende reaproximar-se da arte e do misticismo. Ao nosso ver, essa
é a direção que nos parece indicar o filósofo.
3
Ora, porque um filósofo francês que defende a possibilidade da metafísica aceitaria de bom
grado a adesão de James ao utilitarismo? Em outras palavras: Como admitir a compatibilidade entre
uma filosofia que concebe o tempo como Absoluto e a intuição como um contato inefável com a
totalidade e uma epistemologia que vincula a verdade à evolução das práticas humanas em sua relação
com as coisas?5 Uma possível resposta para essa questão é que a intuição metafísica perseguida por
Bergson não deve confundir-se com os sistemas metafísicos clássicos. Numa carta a William James de
15 de fevereiro de 1905, Bergson reconhece uma “comunidade de direção” entre suas respectivas idéias,
manifestando o desejo de que seus “esforços convergentes” culminem na constituição de “uma
metafísica positiva, isto é, suscetível de progresso indefinido, em lugar de ser totalmente ‘a pegar ou a
largar’, como os antigos sistemas”.6 E, na segunda parte da introdução à obra O pensamento e o
movente, o filósofo acrescenta:
abandonamos a concepção de “universo sistemático” decorrente da nossa lógica habitual,
compreenderemos a verdade intelectual como uma “invenção humana, que tem por efeito utilizar a
realidade antes que introduzir-nos nela”.4 Ao contrário, numa realidade “múltipla é movente”, a verdade
deve ser sentida antes de ser concebida. Por conseguinte, a tomada de contato com alguma das correntes
que se entrecruzam para formar essa realidade pode ser mais eficiente que a verdade pensada com o
intuito de apreender e armazenar a própria realidade. Aos olhos de Bergson, essa teoria da realidade
tem como conseqüência imediata um rebaixamento da verdade, uma vez que esta se subordina à
utilidade material. Essa conclusão, além de desencorajar a pesquisa científica desinteressada, pode ser
significativa para uma filosofia que pretende reaproximar-se da arte e do misticismo. Ao nosso ver, essa
é a direção que nos parece indicar o filósofo.
3
Ora, porque um filósofo francês que defende a possibilidade da metafísica aceitaria de bom
grado a adesão de James ao utilitarismo? Em outras palavras: Como admitir a compatibilidade entre
uma filosofia que concebe o tempo como Absoluto e a intuição como um contato inefável com a
totalidade e uma epistemologia que vincula a verdade à evolução das práticas humanas em sua relação
com as coisas?5 Uma possível resposta para essa questão é que a intuição metafísica perseguida por
Bergson não deve confundir-se com os sistemas metafísicos clássicos. Numa carta a William James de
15 de fevereiro de 1905, Bergson reconhece uma “comunidade de direção” entre suas respectivas idéias,
manifestando o desejo de que seus “esforços convergentes” culminem na constituição de “uma
metafísica positiva, isto é, suscetível de progresso indefinido, em lugar de ser totalmente ‘a pegar ou a
largar’, como os antigos sistemas”.6 E, na segunda parte da introdução à obra O pensamento e o
movente, o filósofo acrescenta:
“Nossa metafísica será aquela do mundo em que vivemos, e não de todos os mundos possíveis.
Ela abraçará as realidades. (...) Nada de grande sistema que abarca todo o possível e, por vezes,
também o impossível! Contentemo-nos com o real, matéria e espírito. Mas peçamos a nossa
teoria que o abrace tão estreitamente que entre ela e ele nenhuma outra interpretação possa se
imiscuir”.7
Segundo Bergson, a filosofia de James se caracterizaria pela recusa de um “sistema de
realidade” como aquele que se encontra na noção tradicional de “Cosmos”. As partes são todas
relacionadas umas às outras e os elementos coordenados ao Todo, mas não se trata dos atributos da
realidade, já que esse aspecto não constitui um contato imediato com as coisas e sim uma exigência de
nosso intelecto, um desejo da nossa razão. Preferimos supor que há uma totalidade e uma unidade que
rege a experiência e que existe uma estrutura a priori. A atitude teórica da tradição racionalista
empobrece experiência, na medida em que retira dela a novidade, a imprevisibilidade, a criação de
formas, em suma, a abertura que a caracteriza. Em contrapartida, o “empirismo radical” de James se
apresenta para Bergson como uma atitude anti-dogmática, que procura seguir as linhas da experiência,
sem interpor pressupostos categoriais:
“Dando as costas para os procedimentos habituais de abstração, evitando soluções verbais,
afastando-se dos raciocínios a priori, dos princípios fixos e dos sistemas fechados que visam
pretensos absolutos e causas primeiras, o pragmatismo se debruça sobre o concreto, adequandose
aos fatos e à ação”.8
O pragmatismo, sendo uma radicalização do empirismo, abandona a tendência imediata de
relacionar o uso das palavras ao conhecimento das coisas. Nisso coincide com a crítica de Bergson à
psicologia associacionista.
Essa psicologia pretende recortar o fluxo continuo e heterogêneo da duração
em elementos descontínuos de caráter espacial (idéias, estados de consciência), que podem ser
apreendidos por meio de procedimentos analíticos. Esse é o sentido da crítica de Bergson ao
conhecimento que provem da abstração conceitual.
em elementos descontínuos de caráter espacial (idéias, estados de consciência), que podem ser
apreendidos por meio de procedimentos analíticos. Esse é o sentido da crítica de Bergson ao
conhecimento que provem da abstração conceitual.
O pensamento conceitual também é um produto desse fluxo continuo que caracteriza à temporalidade. Ao menos é assim que Bergson compreende a gênese da inteligência no contexto da teoria da evolução. Um impulso primitivo se dividiu em duas direções, dando origem a dois instrumentos de sobrevivência distintos: o instinto no animal; a inteligência no homem. O caráter pragmático dessa explicação reside no fato que se considera, em primeiro lugar, a satisfação das necessidades vitais, pautando-se a estrutura da realidade em critérios utilitários. Nesse sentido, o conhecimento para Bergson estaria subordinado às prerrogativas da ação, visto que conhecer e agir estão inseparavelmente unidos. Se o instinto é um instrumento para a
sobrevivência, a inteligência é um instrumento que permite fabricar instrumentos. Assim, valendo-se
desse caráter instrumental da inteligência, o homem amplia sua capacidade de ação, no sentido de
dominar a natureza em benefício próprio. Talvez seja nesse ponto onde o pensamento de Bergson
encontra o de James, visto que para este último, uma idéia verdadeira é sempre instrumentalmente
verdadeira.
sobrevivência, a inteligência é um instrumento que permite fabricar instrumentos. Assim, valendo-se
desse caráter instrumental da inteligência, o homem amplia sua capacidade de ação, no sentido de
dominar a natureza em benefício próprio. Talvez seja nesse ponto onde o pensamento de Bergson
encontra o de James, visto que para este último, uma idéia verdadeira é sempre instrumentalmente
verdadeira.
Bergson atribui a James a tese de relatividade da verdade, baseando-se no fato de que a verdade
é sempre uma construção humana. Provavelmente, esta concepção de verdade fosse para ele mais
coerente que a teoria da correspondência entre representação e realidade, sobretudo quando se pensa
nessa correspondência como uma cópia. Como é possível admitir que o nosso instrumental cognitivo
seja uma cópia da realidade? Se aceitarmos que a realidade é um aglomerado de elementos fixos, talvez
se possa estabelecer alguma espécie de correspondência entre as “partes” do real e as supostas “idéias”
que copiam essas partes em nosso pensamento. Entretanto, uma apreensão dinâmica da realidade, na
qual não há mais justaposição de partes exteriores, senão fusão internamente organizada, exclui
completamente essa possibilidade. No limite, o problema que se coloca é o de saber como seria possível
copiar o movimento, qual seria a representação de algo que se move? Se a realidade concreta dos fatos
particulares está subordinada à mudança e à alteração continua, deveremos procurar a coincidência entre
o sujeito e a realidade, sem apelar para a estabilidade lógica do objeto e do conceito.9 Como a verdade
não precede ao ato humano de conhecer, não faz sentido esperar por uma verdade eterna ou procurar um
sistema de inteligibilidade pré-existente ao nosso contato com o mundo.
Nós inventamos a verdade prática
porque ela nos permite interagir com a realidade.
Assim, na leitura de Bergson, James se sobrepõe a Kant, uma vez que em lugar de uma estrutura geral da mente à qual se incorporam verdades teóricas, o filósofo americano supõe uma estrutura produzida a partir do processo de invenção da verdade. A interpretação bergsoniana de James, portanto, é movida pela idéia de que não há verdades esperando serem descobertas nem problemas esperando soluções, por isso a articulação entre verdade e utilidade tem um resultado metodológico relevante. Pois, se a verdade é uma invenção humana pautada em critérios de utilidade, ou seja, o seu reflexo na prática, muitos problemas da história da filosofia se
dissolvem imediatamente. Pensemos nas seguintes questões: Existe um mundo ou vários? Há destino ou
liberdade? O universo é material ou espiritual?
dissolvem imediatamente. Pensemos nas seguintes questões: Existe um mundo ou vários? Há destino ou
liberdade? O universo é material ou espiritual?
Sabemos que elas deram origem a disputas intermináveis. O pragmatismo vai prestar atenção nas conseqüências práticas desses dilemas. Se não há uma diferença prática entre as alternativas, se elas são praticamente as mesmas, a querela será inútil.10
Não ignoramos a crítica de Berkeley à idéia geral abstrata11: da reificação dos termos se desprendem
inúmeros debates filosóficos. Alinhando-se com ele, James cita o princípio de Peirce, segundo o qual “o
significado de um pensamento é dado pela conduta que se produz”.12 Chamaremos a isso de
“significância” para exprimir o efeito prático que as condutas, objetos e relações exercem sobre nós. Em
relação às questões metafísicas, devemos considerar, em primeiro lugar, o que é que cada um dos pólos
da alternativa produz praticamente. Se não há diferença prática entre a unidade ou a multiplicidade do
mundo, de nada nos servirá discutir se o mundo é um só ou muitos. Esse é o ganho metodológico do
princípio do pragmatismo, que James retoma em As variedades de experiência religiosa, endossando as
palavras de Peirce.13 E a célebre fórmula “pensar intuitivamente é pensar em duração”, com a qual
Bergson descreve seu método filosófico, se aproxima desse princípio pragmatista na medida em que a
intuição também procura uma coincidência com o movimento, que se perde em virtude dos nossos
hábitos intelectuais calcados na ação:
“A intuição parte do movimento, põe-no, ou antes, percebe-o como a própria realidade e não vê
na imobilidade mais que um momento abstrato, instantâneo que nosso espírito tomou de uma
mobilidade. A ação exige um ponto de apoio sólido e o ser vivo tende essencialmente para a
ação eficaz. É por isso que vimos numa certa estabilização das coisas a função primordial da
consciência”.14
Bergson quer elucidar certa “lógica da inteligência” que estaria baseada no discernimento de
antinomias e paralogismos.15 Por isso, não reduz o conhecimento ao “conhecimento intelectual” que
parte da formulação conceitual dos problemas, criando a expectativa de uma resposta analítica. Além
desse aspecto teórico da inteligência, haveria uma parte prática da inteligibilidade, passível de uma
aproximação intuitiva. Se bem a função primária da inteligência responde a uma destinação prática da
vida, é possível, todavia, subverter a tendência natural ao conhecimento desinteressado da matéria. Para
que isso ocorra, a inteligência deve inverter a marcha habitual do pensamento16 e voltar-se sobre si
mesma, propiciando um conhecimento espiritual que é precisamente o que Bergson chama de intuição:
“Essa visão direta do espírito pelo espírito é a função principal da intuição. Nossa intuição é
reflexão. É preciso todo um trabalho de desobstrução para abrir o caminho para a experiência
interior. A faculdade de intuição realmente existe em cada um de nós, mas recoberta por
funções mais úteis à vida”.17
Um conhecimento que se aplica à prática deverá focalizar, em primeiro lugar, a noção de
experiência integral; não como o empirista tradicional, que reconhece a experiência como fonte do
conhecimento, mas permanece teórico. A valorização da experiência é aquilo que aproxima Bergson do
“empirismo radical” de James, cuja proposta é dar atenção a toda a experiência e não apenas à teoria.18
James vai aplicar a filosofia do movimento pragmático à religião, fazendo uma espécie de
fenomenologia da emoção religiosa. Não obstante, essa experiência individual não coincide
necessariamente com a prática da religião, isto é, com a religião institucionalizada. Os relatos de James
contribuem para uma elucidação do estatuto da experiência psicológica, mas não se situam no patamar
metafísico ao que Bergson eleva a intuição mística.
O místico cristão, segundo Bergson, é um indivíduo que pertence a uma instituição solidamente estabelecida, mas ele precisa romper com esses valores para instituir novos modos éticos e religiosos de vida. Por isso, Bergson não se restringe às vivências psicológicas do sujeito e abre o dialogo com a sociologia: com Max Weber, quando este afirma que as instituições eliminam a magia do mundo19; com Émile Durkheim, porque na perspectiva dos elementos que reforçam a coesão social, as formas da religiosidade justificam a instauração das obrigações sociais.20 Se James pode permanecer no âmbito da psicologia, porquanto trata de todo tipo de
experiência, Bergson deverá ampliar esse horizonte, uma vez que pretende ultrapassar os pontos de vista
do religioso comum e da religião fechada. Contudo, a avaliação positiva de Bergson detecta na teoria da
verdade que examinamos nas páginas precedentes uma filosofia humanística que admite o pluralismo da
experiência e o valor humano das crenças como condição de abertura à criação do seu vir a ser.
experiência, Bergson deverá ampliar esse horizonte, uma vez que pretende ultrapassar os pontos de vista
do religioso comum e da religião fechada. Contudo, a avaliação positiva de Bergson detecta na teoria da
verdade que examinamos nas páginas precedentes uma filosofia humanística que admite o pluralismo da
experiência e o valor humano das crenças como condição de abertura à criação do seu vir a ser.
19 Bergson examina a questão da magia em As duas fontes da moral e da religião: “Existe certa magia natural, muito simples, que se resumiria a um pequeno número de práticas. A reflexão sobre essas práticas, ou talvez simplesmente sua tradução em palavras, é que permitiu que se multiplicassem as mágicas em todos os sentidos carregando-se de superstições, porque a formula ultrapassa sempre o fato que exprime” (BERGSON. DF, p. 140). Daí o papel das instituições, que consiste em “fornecer um quadro relativamente estável para a diversidade e a mobilidade dos desígnios individuais”. Ao porem imperativos, acrescenta o filósofo, “elas continuam, no domínio da ação, a obra de estabilização que os sentidos e o entendimento realizam no domínio do conhecimento” (Cf. BERGSON. PM, p. 100).
20 Desde Les formes élémentaires de la vie religieuse, Durkheim reconhece, alinhando-se com Bergson e James, um “estreito parentesco entre as três noções de instrumento, de categoria e de instituição” (Ibid., p. 27n), mas num curso sobre o pragmatismo pronunciado na Sorbonne, o sociólogo mostra que a tese jameseana da heterogeneidade radical entre realidade e pensamento encontra seus melhores argumentos nas obras de Bergson, considerado pelo próprio James como o “destruidor do intelectualismo” (Cf. DURKHEIM. Pragmatisme et sociologie. Paris: Vrin, 1955).
2. Elementos pragmatistas em Bergson
Se tomarmos o pragmatismo de James como uma teoria do conhecimento na qual a oposição
entre a verdade e o erro se define pela oposição entre aquilo que é útil e aquilo que é nocivo à vida,
talvez possamos compreender melhor algumas idéias de Bergson. Pois, para o filósofo francês, a
oposição entre aquilo que a inteligência julga verdadeiro e aquilo que ela julga falso é determinado pelas
condições da utilidade vital. Embora o próprio Bergson nunca tenha usado o termo pragmatismo, alguns
estudos sugerem que suas afirmações constituem um “pragmatismo parcial”.21 Tributário da tradição
espiritualista inaugurada por Victor Coussin e renovada por Félix Ravaisson, o pensamento de Bergson
procura pôr em relevo a atividade do pensamento e a liberdade do eu. A primeira obra de Bergson –
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência –, que era sua tese de doutorado, emerge como uma
luta contra as tendências associacionistas e deterministas da nova psicologia. Esse quadro não estaria
completo sem uma referência à Estética transcendental, explicitamente citada por Bergson como o
grande alvo da sua argumentação.22 Com efeito, a distinção radical entre tempo e espaço se funda numa
concepção da duração como fluxo temporal, que não se confunde com a representação espacializada do
tempo como uma linha. A epistemologia kantiana sustentava uma noção de tempo homogêneo sobre o
qual se podiam desenrolar nossos estados de consciência como partes extra partes. A essa paisagem da
consciência, a psicologia podia aplicar a lei de causalidade, tal como a física a aplicava aos objetos
materiais. Bergson vai mostrar que a línea ideal, suposta pelo tempo homogêneo como um
encadeamento de pontos independentes, é um fantasma do espaço. Como é que essa ilusão se produz?
Eis a grande questão que Bergson terá que responder nessa primeira obra, semeando as formulações
subseqüentes da sua filosofia em direção a uma filosofia da ação23 que, para nós, o aproxima do
pragmatismo de James.
Se bem o Ensaio nos encaminha para uma distinção entre as dimensões quantitativa e qualitativa
do real24, essa oposição não constitui um dualismo de substâncias como a separação radical entre corpo
e mente que se atribui a Descartes.25 É por isso que em Matéria e memória26, Bergson examina a relação
acentua o dualismo bergsoniano, não mais como um dualismo ontológico, mas sim como um “dualismo prático”, isto é, duas maneiras de agir na realidade: uma temporal, que leva em conta a interpenetração característica do mundo psicológico e a tensão da duração pela qual exprimimos nossas ações; e outra espacializada, marcada pela descontinuidade e pela justaposição dos objetos materiais. entre o ato da consciência e o organismo, indicando o ponto de contato entre o espírito e a matéria.27
Enquanto a tradição alojava o espírito no corpo “como o piloto em seu navio”, metáfora que apresenta
uma “relação completamente exterior”28 e que apela para um homúnculo interior, estabelecendo a
separação radical entre corpo e alma (dualismo substancial), a versão bergsoniana da metáfora exprime
antes uma tese sobre a função do cérebro que aponta para a continuidade funcional do organismo em
vista da ação sobre o seu meio: “O cérebro é algo como a proa na qual o navio se estreita para cortar o
oceano”.29 Em outra dessas cartas, Bergson reformula o argumento, imprimindo-lhe agora o movimento
temporal que supõe uma tensão, um “esforço de atenção” assimilado à própria essência da vida. O
conceito de “tensão psicológica” explica a unidade do sujeito em linhas similares àquelas que
consagraram a metáfora do “cone” em Matéria e memória: “Me apercebo como a totalização de meu
passado, este passado estando contraído em vista da ação. A ‘unidade do eu’ de que falam os filósofos
me aparece como a unidade de uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a mim mesmo por
esforço de atenção”.30
Aqui se encontram em germe as principais teses que justificam a nossa aproximação entre
Bergson e James, ou seja, as tendências pragmatistas do pensamento bergsoniano. Essas tendências, na
verdade, procedem de uma mudança de atitude em relação à tradição. Racionalistas e empiristas
atribuem à percepção uma função que se destina ao conhecimento desinteressado; é ela que nos traz o
conhecimento do mundo e nos permite especular sobre a existência de objetos e de nós mesmos, em
termos de idéias. Se assim for, os atos da consciência, da percepção e da memória permanecerão
incompreensíveis.
A mudança de atitude, a atitude pragmatista, consiste em compreender essas funções
como uma preparação do corpo para a ação. Quanto mais o organismo se desenvolve, tanto mais suas
funções se dividem31, isto é, se tornam cada vez mais complexas, aumentando assim a capacidade de
ação do corpo sobre o seu entorno:
como uma preparação do corpo para a ação. Quanto mais o organismo se desenvolve, tanto mais suas
funções se dividem31, isto é, se tornam cada vez mais complexas, aumentando assim a capacidade de
ação do corpo sobre o seu entorno:
“O que o corpo explica
é a limitação da percepção e da memória individuais,
a seleção utilitária das imagens e das lembranças
que dominam nossa vida consciente”.32
Não sendo concebidas como modos de conhecimento desinteressado, a percepção e a memória nos
preparam para a ação presente, permitindo ao espírito desprender sua energia criadora. Nesse sentido, a
liberdade é aquilo que deixa o espírito agir, fazendo do organismo um intermediário.
9
A partir de essa diferenciação de funções, Bergson distingue duas espécies de memória, não
apenas em grau, mas em natureza33: de um lado, a memória hábito ou corporal, constituída pelos
mecanismos motores que o hábito montou no corpo; de outro, a memória pura ou espiritual que
conserva cada acontecimento passado naquilo que ele tem de único. Essa lembrança pura corresponde
ao plano do sonho, já que adormece enquanto não é chamada pelo plano da ação. Daí o papel
fundamental do cérebro enquanto órgão de atenção à vida:
“O cérebro não teria por função pensar, mas
impedir o pensamento de se perder no sonho”.34
impedir o pensamento de se perder no sonho”.34
Nossa vida psicológica se movimenta constantemente através de diversos e sucessivos planos de consciência, concebidos como intermediários entre esses dois extremos: a memória ontológica do passado integral e o momento pragmático da ação presente. Cabe sublinhar aqui que a teoria da memória é um aprofundamento da teoria da duração, da qual o pragmatismo bergsoniano seria a contrapartida, algo assim como o molde vazio.35
A diferença de natureza entre percepção e memória espelha a distinção entre as faculdades
irredutíveis da alma como uma “orquestração” da tese de Ravaisson: “a materialidade [põe] em nós o
esquecimento”.36 Numa carta de 15 de fevereiro de 1905, Bergson expõe a James suas considerações
acerca do conceito de “inconsciente” e do papel que este teria não só em relação à vida psicológica
como também em relação ao universo em geral: “A existência da matéria me parece ser qualquer coisa
do gênero de um estado psicológico não consciente”.37 Mas o que anima internamente as teorias
bergsonianas da percepção e da memória é, sem dúvida, a influência da psicologia de Maine de Biran,
que “considera de saída o espírito como uma atividade e mais precisamente como uma atividade que age
sobre a matéria”.38 Essas faculdades deixam de ser concebidas como modos de conhecimento quando se
pensam como preparação para a ação material, denotando assim seu caráter pragmático.
A análise psicológica da gênese da representação leva Bergson a determinar o papel da memória
nos processos perceptivos, de modo que o filósofo consegue atenuar a forte dualidade que prevalecia no
Ensaio, equacionando melhor as oposições entre quantidade e qualidade, espaço e duração, extenso e
inextenso, necessidade e liberdade. Para nós, esse salto argumentativo deve-se ao fato de que Bergson
foi particularmente atento à noção de atividade da consciência e ao caráter movente da ação. Esse é o
ponto em que o pensamento de Bergson se cruza com o pragmatismo:
“Para agir sobre as coisas, somos treinados a representar-nos claramente elementos distintos uns
dos outros, que também são distintos de nosso corpo, estabelecendo uma exterioridade recíproca 33 DELEUZE. “A concepção da diferença em Bergson”. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. A interpretação de Deleuze atribui ao método bergsoniano certas “regras”, sendo uma delas a identificação das verdadeiras “diferenças de natureza”. O desenvolvimento deste projeto pressupõe uma análise detalhada desse ponto, visando articular os “pólos” decorrentes do processo de diferenciação: espaço e tempo no Ensaio, percepção e memória em Matéria e memória, instinto e inteligência em A evolução criadora. Isso nos proporcionará uma chave de leitura para estudar a última obra de Bergson, As duas fontes da moral e da religião.
e uma descontinuidade entre os termos. Assim, forjamos a idéia de uma quantidade pura, de um
espaço homogêneo e de uma necessidade absoluta”.39
Ao afastar as “ficções da prática”, Bergson encontra a “extensão psicológica” de James. Apenas
para agir sobre as coisas, nós as exteriorizamos umas às outras, despojando-as pouco a pouco dessas
propriedades qualitativas que elas tinham antes. O espaço geométrico aparece então como o “limite
ideal de uma tendência prática”, instaurando o falso problema das qualidades desprovidas de toda
extensão: Como se opera novamente a ligação entre essas qualidades inextensas e esse espaço
geométrico que nada tem de qualitativo? Se aceitarmos que essas noções são o resultado último das
abstrações operadas pelo espírito face à influência dos hábitos contraídos na ação, a oposição radical
entre qualidade e quantidade dá lugar a uma série de graus de tensão.
Nossa vida psicológica
é uma multiplicidade qualitativa de estados que se interpenetram.
Essa interpenetração pode ser mais ou menos densa,
conforme o grau de tensão operado pela memória,
capaz de contrair “numa visão quase instantânea
uma história imensamente longa que se desenrola fora dela”.40
A esses graus correspondem também os graus da liberdade: “os graus da ação que o espírito pode exercer sobre as coisas”.41 Se a tensão memorial contrai a multiplicidade de estados, operando sua interpenetração, o movimento contrário de expansão ou distensão corresponderá à extensão dos termos entre si, processo que constitui propriamente a materialidade. Sem embargo, a intuição dessa tensão não pretende abolir o determinismo nem exaltar a liberdade absoluta, senão mostrar que o determinismo pode ser precisamente a condição da ação de nossa liberdade sobre o universo material. O espaço homogêneo e a quantidade pura são
abstrações práticas que a inteligência forjou manifestando sua tendência a estabelecer a descontinuidade
e a exterioridade daquilo que é realmente uma interioridade e uma interpenetração. Todavia, se
pensarmos no movimento do espírito vivente, ou seja, em sua liberdade criadora, teremos que admitir
um “duplo sentido” através do qual se concebe esse movimento, conforme o espírito se tencione mais
ou, ao contrário, se distenda e se automatize.
abstrações práticas que a inteligência forjou manifestando sua tendência a estabelecer a descontinuidade
e a exterioridade daquilo que é realmente uma interioridade e uma interpenetração. Todavia, se
pensarmos no movimento do espírito vivente, ou seja, em sua liberdade criadora, teremos que admitir
um “duplo sentido” através do qual se concebe esse movimento, conforme o espírito se tencione mais
ou, ao contrário, se distenda e se automatize.
Essas duas direções opostas marcam os limites práticos
entre os quais driblamos as necessidades da ação, que nos levam a exteriorizar aquilo que em si não é
radicalmente exterior e a transformar em algo estável, fixo e imutável o que, de fato, era uma passagem,
uma ação, um desenvolvimento, enfim, um movimento interno. Essa é a intuição psicológica imediata
que leva Bergson a pensar a realidade longe das formas habituais do conhecimento, seja empírico ou
intelectual. A realidade que não abandona a dimensão qualitativa conservará para sempre a mudança, na
qual se exerce a ação criativa. Essas conclusões, entrecruzando-se com o pragmatismo, formam um
cordão mais resistente que dá sustentação à tarefa proposta para esta nova etapa da investigação.
3. Misticismo e intuição
Nosso objetivo é mapear a linha de fatos que conduz à intuição filosófica, que leva em conta as
considerações sobre o misticismo e que é também o terreno onde nos parece que se podem verificar as
nossas hipóteses acerca da complementaridade metodológica entre psicologia e metafísica. Nesse
sentido, equacionamos a relação entre consciência e liberdade através da noção de ação:
entre os quais driblamos as necessidades da ação, que nos levam a exteriorizar aquilo que em si não é
radicalmente exterior e a transformar em algo estável, fixo e imutável o que, de fato, era uma passagem,
uma ação, um desenvolvimento, enfim, um movimento interno. Essa é a intuição psicológica imediata
que leva Bergson a pensar a realidade longe das formas habituais do conhecimento, seja empírico ou
intelectual. A realidade que não abandona a dimensão qualitativa conservará para sempre a mudança, na
qual se exerce a ação criativa. Essas conclusões, entrecruzando-se com o pragmatismo, formam um
cordão mais resistente que dá sustentação à tarefa proposta para esta nova etapa da investigação.
3. Misticismo e intuição
Nosso objetivo é mapear a linha de fatos que conduz à intuição filosófica, que leva em conta as
considerações sobre o misticismo e que é também o terreno onde nos parece que se podem verificar as
nossas hipóteses acerca da complementaridade metodológica entre psicologia e metafísica. Nesse
sentido, equacionamos a relação entre consciência e liberdade através da noção de ação:
“A consciência
originalmente imanente a tudo o que vive,
originalmente imanente a tudo o que vive,
se entorpece quando não há mais movimento espontâneo
e se exalta quando a vida se apóia na atividade livre.
Movimento cada vez mais eficaz, ação cada vez mais livre”.42
A pergunta que nos colocamos desde o início do doutorado era se, além da causalidade física,
mecânica, que rege a matéria, incluindo aí nosso corpo, não haveria outra maneira de entender a
causalidade. No Ensaio, Bergson vislumbra uma “causalidade dinâmica”, na qual a consciência é a
causa dos seus atos: quanto mais estes são dela, tanto mais livre é a ação praticada. Mas então, somos
todos livres, já que todos temos consciência e de uma forma ou de outra é daí que provêm nossas ações.
Evidentemente não, pois há graus de liberdade. Essa resposta já se encaminha para o estabelecimento
de um diferencial nas atitudes humanas. Se há homens mais livres que outros; homens de ação, que
deixam “sua marca” nos eventos nos quais se envolvem, é porque “sua ação, semelhante a uma flecha,
dispara com tanto mais força para frente quanto mais sua representação estava vergada para trás”.43
mecânica, que rege a matéria, incluindo aí nosso corpo, não haveria outra maneira de entender a
causalidade. No Ensaio, Bergson vislumbra uma “causalidade dinâmica”, na qual a consciência é a
causa dos seus atos: quanto mais estes são dela, tanto mais livre é a ação praticada. Mas então, somos
todos livres, já que todos temos consciência e de uma forma ou de outra é daí que provêm nossas ações.
Evidentemente não, pois há graus de liberdade. Essa resposta já se encaminha para o estabelecimento
de um diferencial nas atitudes humanas. Se há homens mais livres que outros; homens de ação, que
deixam “sua marca” nos eventos nos quais se envolvem, é porque “sua ação, semelhante a uma flecha,
dispara com tanto mais força para frente quanto mais sua representação estava vergada para trás”.43
Percebe-se agora, retrospectivamente, que as teorias bergsonianas da memória e da percepção são como
pilares sobre os quais se apóia uma tal afirmação. A diferença de tensão, ilustrada pela imagem do arco,
introduz a possibilidade de se realizar conscientemente a ação desejada. A tensão da duração de um ser
consciente é, portanto, o critério que permite medir o seu poder de agir sobre a matéria, isto é, “a
quantidade de atividade livre e criadora que ele pode introduzir no mundo”.44 Embora as referências à
medida e à quantidade nos pareçam um pouco excessivas em relação ao espírito do Ensaio, porquanto
ali Bergson prezava pelo caráter qualitativo e incomensurável dos estados psicológicos; o que nos
interessa sublinhar aqui é a concepção de consciência como força. Uma “ação explosiva” seguida de um
“trabalho de contração” estabelece uma “continuidade de criação” na duração que se configura como
“crescimento”. Desde o Ensaio, Bergson focalizara sua atenção nesse processo criador da consciência,
em que o “eu que vive e se desenvolve” experimenta o amadurecimento gradual da ação “pelo efeito das
suas próprias hesitações, até que a ação livre se desprenda como um fruto demasiado maduro”.45 A
oposição clássica entre matéria e consciência é finalmente superada por uma intuição filosófica que
consiste em fazer da ação o denominador comum de um processo de inversão, cujo resultado é uma
matéria “atravessada pela consciência criadora”. Em outras palavras, “se a consciência é ação que
incessantemente se cria, a matéria é ação que se desfaz e que se perde”.46
Ora, qual é o ganho dessa intuição? Para onde se encaminha esta teoria que opera por meio de
conceitos tão fluidos47 como “ação” e “criação”? Temos razões para acreditar que essa é a direção que
Bergson quer dar à metafísica.48 Se o homem representa um “salto brusco” em relação aos demais seres
da cadeia evolutiva é porque ele tem uma latitude de escolha maior. Nosso poder de escolha individual
não é apenas um “simples auxiliar da necessidade de viver”, porquanto a nossa ação faz de nós criadores
da nossa personalidade, “a criação de si por si”.49 Assim como os artistas, nós experimentamos certa
alegria que provém da criação: “Aquele que está certo, absolutamente certo, de ter produzido uma obra
viável e durável, este não tem mais nada a fazer com os elogios e sente-se acima da glória, porque é
criador, porque o sabe e porque a alegria que experimenta é uma alegria divina”.50
pilares sobre os quais se apóia uma tal afirmação. A diferença de tensão, ilustrada pela imagem do arco,
introduz a possibilidade de se realizar conscientemente a ação desejada. A tensão da duração de um ser
consciente é, portanto, o critério que permite medir o seu poder de agir sobre a matéria, isto é, “a
quantidade de atividade livre e criadora que ele pode introduzir no mundo”.44 Embora as referências à
medida e à quantidade nos pareçam um pouco excessivas em relação ao espírito do Ensaio, porquanto
ali Bergson prezava pelo caráter qualitativo e incomensurável dos estados psicológicos; o que nos
interessa sublinhar aqui é a concepção de consciência como força. Uma “ação explosiva” seguida de um
“trabalho de contração” estabelece uma “continuidade de criação” na duração que se configura como
“crescimento”. Desde o Ensaio, Bergson focalizara sua atenção nesse processo criador da consciência,
em que o “eu que vive e se desenvolve” experimenta o amadurecimento gradual da ação “pelo efeito das
suas próprias hesitações, até que a ação livre se desprenda como um fruto demasiado maduro”.45 A
oposição clássica entre matéria e consciência é finalmente superada por uma intuição filosófica que
consiste em fazer da ação o denominador comum de um processo de inversão, cujo resultado é uma
matéria “atravessada pela consciência criadora”. Em outras palavras, “se a consciência é ação que
incessantemente se cria, a matéria é ação que se desfaz e que se perde”.46
Ora, qual é o ganho dessa intuição? Para onde se encaminha esta teoria que opera por meio de
conceitos tão fluidos47 como “ação” e “criação”? Temos razões para acreditar que essa é a direção que
Bergson quer dar à metafísica.48 Se o homem representa um “salto brusco” em relação aos demais seres
da cadeia evolutiva é porque ele tem uma latitude de escolha maior. Nosso poder de escolha individual
não é apenas um “simples auxiliar da necessidade de viver”, porquanto a nossa ação faz de nós criadores
da nossa personalidade, “a criação de si por si”.49 Assim como os artistas, nós experimentamos certa
alegria que provém da criação: “Aquele que está certo, absolutamente certo, de ter produzido uma obra
viável e durável, este não tem mais nada a fazer com os elogios e sente-se acima da glória, porque é
criador, porque o sabe e porque a alegria que experimenta é uma alegria divina”.50
O artista
é o exemplo privilegiado por Bergson
no que diz respeito ao conceito de “criação”,
resta saber qual é o paradigma da intuição,
qual movimento da consciência devemos efetuar para atingirmos
essa intuição tão anunciada que nunca se completa.51
Bergson nos dá algumas pistas na conferência “A consciência e a vida”,porém, se quisermos apreendê-la integralmente, deveremos seguir o percurso até o fim, até As duas fontes da moral e da religião:
“Criador por excelência é aquele cuja ação, ela própria intensa, é capaz de intensificar também a
ação de outros homens, e generosamente iluminar núcleos de generosidade. Os grandes homens
de bem, e mais particularmente aqueles cujo heroísmo inventivo e simples abriu novos
caminhos para a virtude, são reveladores de verdade metafísica. Eles podem estar no ponto
culminante da evolução, nem por isso eles estão menos perto das origens, e tornam sensível para
nós o impulso que vem do fundo. Consideremo-los atentamente, tratemos de experimentar
simpaticamente o que eles experimentam, se queremos penetrar por um ato de intuição até o
próprio princípio da vida. Para penetrar nos mistérios das profundezas, é preciso por vezes visar
aos cimos. O fogo que está no centro da terra só aparece no cume dos vulcões”.52
A vida, para Bergson, deve ser compreendida como uma evolução criadora, portanto, não pode
haver cisão de seus aspectos biológicos, de um lado, e aspectos exclusivamente humanos, de outro,
como se a humanidade fosse uma dimensão separada do restante do universo por um corte abrupto.
haver cisão de seus aspectos biológicos, de um lado, e aspectos exclusivamente humanos, de outro,
como se a humanidade fosse uma dimensão separada do restante do universo por um corte abrupto.
Trata-se, como vimos, de uma diferença de complexidade que faz com que a vida apresente uma
“aspiração original” à vida social, que se realiza no homem e encontra na sociedade sua plena
satisfação. O mesmo impulso (elã vital) que deu origem às espécies se prolonga na espécie humana
criando a inteligência como instrumento de ação e, assim, estabelece um diferencial em relação às outras
espécies que seguiram uma linha evolutiva distinta, onde prevaleceu o instinto.53 Isso se pensarmos em
termos de espécie, mas o que pensar da individualidade?54 Será que é possível afirmar com total
legitimidade que há indivíduos mais desenvolvidos que outros? E se for assim, em que sentido se
poderia dar tal desenvolvimento? Como se sabe, os indivíduos não se diferenciam uns dos outros pela
capacidade racional, visto que todos estão dotados eqüitativamente de razão.55 Por conseguinte, não é o
desenvolvimento da inteligência o que aqui está em jogo, senão outra faculdade humana.
“aspiração original” à vida social, que se realiza no homem e encontra na sociedade sua plena
satisfação. O mesmo impulso (elã vital) que deu origem às espécies se prolonga na espécie humana
criando a inteligência como instrumento de ação e, assim, estabelece um diferencial em relação às outras
espécies que seguiram uma linha evolutiva distinta, onde prevaleceu o instinto.53 Isso se pensarmos em
termos de espécie, mas o que pensar da individualidade?54 Será que é possível afirmar com total
legitimidade que há indivíduos mais desenvolvidos que outros? E se for assim, em que sentido se
poderia dar tal desenvolvimento? Como se sabe, os indivíduos não se diferenciam uns dos outros pela
capacidade racional, visto que todos estão dotados eqüitativamente de razão.55 Por conseguinte, não é o
desenvolvimento da inteligência o que aqui está em jogo, senão outra faculdade humana.
O que para Descartes correspondia ao método era precisamente um conjunto de regras, um caminho que podíamos seguir se quiséssemos usar a razão de maneira mais eficiente. Todavia, Bergson vislumbra outro
caminho, portanto, outro método. Como vimos, é por meio da intuição que se estabelecerá um novo
diferencial entre os homens. Se a espécie humana é a realização de uma aspiração vital, de um
movimento que se propaga em diversas direções, às vezes de maneira mais direta e eficaz, outras se
demorando e como que se retomando, é provável que esse impulso vital tenha conseguido “de longe em
longe, em determinado homem, um resultado que não poderia ser obtido imediatamente para o conjunto
da humanidade”.56 Desse modo, é possível evidenciar, por analogia, uma transfiguração da forma social
que caracteriza a espécie humana desde sua origem, “graças a indivíduos, cada um dos quais representa
um esforço da evolução criadora, como o teria feito o aparecimento de uma nova espécie”.57
Como é possível caracterizar esses indivíduos? Para responder essa questão, é preciso examinar
atentamente as idéias de Bergson sobre a religiosidade, procurando compreender a sua concepção de
misticismo, na qual desemboca toda sua filosofia, conduzida metodicamente pela intuição.
caminho, portanto, outro método. Como vimos, é por meio da intuição que se estabelecerá um novo
diferencial entre os homens. Se a espécie humana é a realização de uma aspiração vital, de um
movimento que se propaga em diversas direções, às vezes de maneira mais direta e eficaz, outras se
demorando e como que se retomando, é provável que esse impulso vital tenha conseguido “de longe em
longe, em determinado homem, um resultado que não poderia ser obtido imediatamente para o conjunto
da humanidade”.56 Desse modo, é possível evidenciar, por analogia, uma transfiguração da forma social
que caracteriza a espécie humana desde sua origem, “graças a indivíduos, cada um dos quais representa
um esforço da evolução criadora, como o teria feito o aparecimento de uma nova espécie”.57
Como é possível caracterizar esses indivíduos? Para responder essa questão, é preciso examinar
atentamente as idéias de Bergson sobre a religiosidade, procurando compreender a sua concepção de
misticismo, na qual desemboca toda sua filosofia, conduzida metodicamente pela intuição.
Essa leitura,
em cotejo com As variedades da experiência religiosa de James, poderá lançar uma luz no sentido de
confirmar ou de afastar a hipótese de uma confluência conceitual entre ambos os pensadores. Todavia, o
que poderia ser um ponto de aproximação entre suas respectivas doutrinas, ergue-se, em simultâneo,
como o grande obstáculo a ser enfrentado, haja vista que para alguns leitores e comentadores de
Bergson, As duas fontes da moral e da religião constitui um “divisor de águas” no pensamento do autor.
No ensaio “Bergson fazendo-se”58, por exemplo, Merleau-Ponty descreve um primeiro Bergson – o
maldito –, que não pode ser enquadrado em nenhuma corrente filosófica porque se mantém fiel à
mudança, à duração e à metamorfose que caracteriza seu pensamento vivo. O segundo Bergson será
aquele que ficou encoberto pelo bergsonismo escolástico e cristão. Eric Lecerf59 também percebeu essa
“guinada” no pensamento de Bergson, porque quando se esperava do filósofo uma reflexão sobre a arte,
o que viu a luz foi uma teoria moral de cunho religioso que culmina na exaltação do misticismo cristão.
14
Não podemos dar uma resposta definitiva para essas questões, mesmo porque ainda não a temos,
entretanto, podemos dar algumas pistas. Em primeiro lugar, o místico não é um ser mais racional, senão
aquele que tem mais domínio sobre a sua própria vontade. Em nosso último artigo60, sugerimos uma
interpretação para a ambigüidade constatada entre o caráter ativo e passivo da consciência que
acompanha as diversas análises de Bergson. Com efeito, a articulação dos conceitos de “vontade” e de
“ação” na esfera do misticismo introduz um tipo de experiência diferente, que motivou a elaboração
deste projeto:
em cotejo com As variedades da experiência religiosa de James, poderá lançar uma luz no sentido de
confirmar ou de afastar a hipótese de uma confluência conceitual entre ambos os pensadores. Todavia, o
que poderia ser um ponto de aproximação entre suas respectivas doutrinas, ergue-se, em simultâneo,
como o grande obstáculo a ser enfrentado, haja vista que para alguns leitores e comentadores de
Bergson, As duas fontes da moral e da religião constitui um “divisor de águas” no pensamento do autor.
No ensaio “Bergson fazendo-se”58, por exemplo, Merleau-Ponty descreve um primeiro Bergson – o
maldito –, que não pode ser enquadrado em nenhuma corrente filosófica porque se mantém fiel à
mudança, à duração e à metamorfose que caracteriza seu pensamento vivo. O segundo Bergson será
aquele que ficou encoberto pelo bergsonismo escolástico e cristão. Eric Lecerf59 também percebeu essa
“guinada” no pensamento de Bergson, porque quando se esperava do filósofo uma reflexão sobre a arte,
o que viu a luz foi uma teoria moral de cunho religioso que culmina na exaltação do misticismo cristão.
14
Não podemos dar uma resposta definitiva para essas questões, mesmo porque ainda não a temos,
entretanto, podemos dar algumas pistas. Em primeiro lugar, o místico não é um ser mais racional, senão
aquele que tem mais domínio sobre a sua própria vontade. Em nosso último artigo60, sugerimos uma
interpretação para a ambigüidade constatada entre o caráter ativo e passivo da consciência que
acompanha as diversas análises de Bergson. Com efeito, a articulação dos conceitos de “vontade” e de
“ação” na esfera do misticismo introduz um tipo de experiência diferente, que motivou a elaboração
deste projeto:
“Também neste nível de analise se observa uma inseparabilidade entre atividade e passividade:
os místicos cristãos são ‘pacientes em relação a Deus, agentes em relação aos homens’61.
Conclui-se, portanto, que a ação mais criativa é correlativa à emoção mais intensa e que a
vontade, em Bergson, é finalmente assimilada à emoção: ‘um padecer que não é a antítese de
um agir, porque é, ao contrário, a condição indissociável do agir mais eminente’62”.
Uma segunda pista, que complementa a primeira, é que a experiência mística supõe a imitação
de uma pessoa, uma união espiritual, uma coincidência mais ou menos completa com ela:
“Os verdadeiros místicos
simplesmente se abrem à vaga que os invade.
Seguros de si mesmos, porque sentem em si algo de melhor que eles,
revelam-se grandes homens de ação, para surpresa daqueles
para quem o misticismo não passa de visão, transporte, êxtase”.63
Um terceiro elemento, introduzido a partir de uma interrogação, impregna de otimismo a teoria religiosa de Bergson. A experiência mística não é
exclusiva de alguns poucos, ela está aí, acessível a todos aqueles que se disponham a abandonar certos
prejuízos intelectualistas em virtude da abertura necessária para o exercício da fé: “Se a fala de um
grande místico encontra eco em algum de nós, não será porque há em nós um místico adormecido que
espera apenas a ocasião de despertar?”.64
Curiosamente, a inspiração desse otimismo vem de James, que
declarava não haver experimentado jamais estados místicos, mas afirmava que se ouvia alguém falar
dessa experiência, “alguma coisa ressoava nele”. Bergson também defende James das acusações de
“irreligião” que suas experiências com tóxicos suscitaram: “A intoxicação devia ser apenas o ensejo. O
estado [místico] da alma lá estava, prefigurado sem dúvida com outros, e aguardava apenas um sinal
para se desencadear”.65 Para aqueles que ainda vêem no misticismo apenas “charlatanismo e loucura”,
Bergson dispara: “Também [há] pessoas para as quais a música não passa de um ruído”.66
Por fim, o tema da causalidade recebe aqui um tratamento complementar que dá sentido à
crítica da lei de causa e efeito proferida por Bergson em suas primeiras obras. As “causas místicas” que
prevalecem na mentalidade primitiva67 não se sobrepõem à causalidade mecânica que, para nós, explica
todos os acontecimentos em termos de antecedente e conseqüente. Assim como nós, o primitivo também
“tem fé nessa causalidade [natural] e a toma por base de sua atividade” no que diz respeito aos eventos
físicos. Sem embargo, quando se trata dos aspectos espirituais de um acontecimento, aqueles que tem
uma significação humana, isto é, uma “importância para o homem, em especial, para certo homem
determinado”, ele introduzirá a causa mística como uma intenção, na qual intervêm a vontade de um
espírito. Tal significação é o que explica o conceito de “acaso”.
declarava não haver experimentado jamais estados místicos, mas afirmava que se ouvia alguém falar
dessa experiência, “alguma coisa ressoava nele”. Bergson também defende James das acusações de
“irreligião” que suas experiências com tóxicos suscitaram: “A intoxicação devia ser apenas o ensejo. O
estado [místico] da alma lá estava, prefigurado sem dúvida com outros, e aguardava apenas um sinal
para se desencadear”.65 Para aqueles que ainda vêem no misticismo apenas “charlatanismo e loucura”,
Bergson dispara: “Também [há] pessoas para as quais a música não passa de um ruído”.66
Por fim, o tema da causalidade recebe aqui um tratamento complementar que dá sentido à
crítica da lei de causa e efeito proferida por Bergson em suas primeiras obras. As “causas místicas” que
prevalecem na mentalidade primitiva67 não se sobrepõem à causalidade mecânica que, para nós, explica
todos os acontecimentos em termos de antecedente e conseqüente. Assim como nós, o primitivo também
“tem fé nessa causalidade [natural] e a toma por base de sua atividade” no que diz respeito aos eventos
físicos. Sem embargo, quando se trata dos aspectos espirituais de um acontecimento, aqueles que tem
uma significação humana, isto é, uma “importância para o homem, em especial, para certo homem
determinado”, ele introduzirá a causa mística como uma intenção, na qual intervêm a vontade de um
espírito. Tal significação é o que explica o conceito de “acaso”.
Se uma telha cai no chão, diremos tranqüilamente que foi por causa do vento, assumindo o mecanicismo. Mas quando “um interesse humano está em jogo”, por exemplo, se a telha cai na cabeça de alguém, diremos que foi por azar – ou sorte, dependendo da nossa relação afetiva com essa pessoa –, como se a telha tivesse escolhido um lugar para cair:
“Para que ocorra o acaso,
é preciso que o efeito tenha uma significação humana
que rebrote na causa e a matize, por assim dizer, de humanidade.
O acaso é, pois, o mecanicismo atuando
como se tivesse uma intenção”.68
como se tivesse uma intenção”.68
O longo relato de William James, citado por Bergson, parece confirmar esse ponto. O americano conta uma experiência que teve na Califórnia, quando vivenciara um tremor de terra: “Jamais animação e intenção estiveram mais presentes numa ação humana. Jamais, ntambém, atividade humana deu a perceber mais nitidamente por trás dela, como fonte e como origem, um agente vivo”.69
Todas essas considerações apontam não só para um “complemento recíproco” entre o método
filosófico e o estudo da “experiência mística”, senão também para o estabelecimento de um diálogo
enriquecedor entre o pensamento filosófico de Bergson e as experiências realizadas por William James
no campo da psicologia. Na dose certa, essa explosiva combinação pode mostrar em que sentido se deve
tomar o misticismo para fazer dele um “auxiliar poderoso da busca filosófica”:
“A questão era, primeiramente, saber se os místicos eram ou não simples desequilibrados, se o
relato de suas experiências era ou não pura fantasia. Tratava-se, em seguida, de saber se o
misticismo era apenas um grande ardor da fé, forma imaginativa que pode assumir em almas
ardorosas a religião tradicional, ou se, enquanto assimilando o máximo possível dessa religião,
exigindo uma confirmação e tomando a ela sua fala, ele não teria um conteúdo original, bebido
diretamente na própria fonte da religião, independente do que a religião deva à tradição, à
teologia, às igrejas”.70
No domínio dos fatos, a relação complementar entre filosofia e ciência se basta a si mesma e
pode estabelecer um consenso, ao menos durante um tempo. Algumas hipóteses levantadas no Ensaio
conseguiram abalar as concepções mais sólidas da psicofisiologia; os resultados de Matéria e memória
puderam ser verificados pela psicologia experimental e examinados à luz das patologias mentais; as conclusões de A evolução criadora tiveram sua confirmação por parte da biologia. Mas no domínio do
provável, a certeza filosófica comporta graus e apela tanto para a intuição como para o raciocínio:
“Se a intuição junto à ciência
é suscetível de ser estendida,
isso só se pode dar pela intuição mística”.71
O estudo da liberdade conduziu Bergson a uma concepção singular de “ação livre”, que fomentou a
passagem da psicologia para a teoria do conhecimento; a descrição da “ação prática”, por meio de um
exame acurado das funções da percepção e da memória, aproximou-o do pragmatismo de James e
preparou a hipótese ontológica da “ação vital”. Contudo, Bergson não se conformou com o fato de ter
concebido uma metafísica da vida, na qual o conceito de “elã vital” explica a criação imanente da vida
como um impulso que atravessa a matéria; tampouco quis dissolver tudo em Deus, mesmo sabendo que
Ele é essa “energia criadora”; por isso, identificou certos “representantes” da nossa espécie, mortais
comuns, que triunfaram sobre a materialidade e encontraram Deus. Ao que parece, essa é a direção para
a qual se inclina a metafísica bergsoniana: “Esses homens são os místicos. Eles desvendaram uma via
que outros homens poderão palmilhar. Por isso mesmo, indicaram ao filósofo o lugar de onde vinha e o
lugar para onde ia a vida”.72
passagem da psicologia para a teoria do conhecimento; a descrição da “ação prática”, por meio de um
exame acurado das funções da percepção e da memória, aproximou-o do pragmatismo de James e
preparou a hipótese ontológica da “ação vital”. Contudo, Bergson não se conformou com o fato de ter
concebido uma metafísica da vida, na qual o conceito de “elã vital” explica a criação imanente da vida
como um impulso que atravessa a matéria; tampouco quis dissolver tudo em Deus, mesmo sabendo que
Ele é essa “energia criadora”; por isso, identificou certos “representantes” da nossa espécie, mortais
comuns, que triunfaram sobre a materialidade e encontraram Deus. Ao que parece, essa é a direção para
a qual se inclina a metafísica bergsoniana: “Esses homens são os místicos. Eles desvendaram uma via
que outros homens poderão palmilhar. Por isso mesmo, indicaram ao filósofo o lugar de onde vinha e o
lugar para onde ia a vida”.72
III – Objetivos
O nosso objeto de estudo, que é o tema da experiência mística, se justifica como uma
atualização teórica no âmbito da relação entre ontologia e epistemologia, na medida em que
confrontamos a obra de Bergson com o pensamento de W. James. Este diálogo filosófico se desdobra
em duas vertentes: uma, em que prevalece a experiência individual, ou pessoal e que caracterizaria a
abordagem da psicologia; outra, que circunscreve a primeira e teria uma significação mais metafísica.
Testando as hipóteses formuladas no corpo deste projeto, poderemos verificar até que ponto esse duplo
enfoque demonstra uma convergência de perspectivas ou uma incompatibilidade de princípios. Nesse
sentido, o objetivo principal desta pesquisa é examinar a relação entre misticismo e intuição,
evidenciando as tensões conceituais que o método filosófico cria entre uma psicologia empírica e a
metafísica especulativa.
Há, sem dúvida, uma afinidade entre Bergson e James no que concerne à relação entre verdade e
ação, uma vez que o conhecimento tem como finalidade natural estruturar a práxis. Mas é preciso notar
também que no pensamento de James a psicologia desempenha um papel quase exclusivo, bem de
acordo com a tradição do empirismo britânico e, em Bergson, a psicologia mantém sempre uma relação
com a ontologia. Essa diferença se faz notar, por exemplo, na preocupação bergsoniana de mostrar que
fazer – principalmente criar – é o próprio processo de realidade, e não apenas a dimensão da ação
humana, como parece ser o caso em James. Por isso, quando ambos tematizam a esfera do religioso,
James se atém à dimensão psicológica da experiência religiosa, enquanto Bergson estabelece uma
relação entre a experiência mística e a totalidade do processo de evolução, mostrando como a mística
envolve uma comunhão com a Vida em seu processo constante de superação de si mesma.
Mas é importante frisar que a aproximação entre o místico e o movimento criador em sua essência – que seria
no limite uma coincidência – é pensada pelo filósofo como unidade de ação, motivo pelo qual a mística,
na sua realização mais elevada, não se separa da ação, embora se distinga da ação utilitária. Isso faz com
que o pragmatismo de Bergson, na sua acepção de recorte utilitário da realidade percebida e pensada,
seja característica da relação entre a inteligência e a realidade, vinculo que prevalece, mas que não pode
ser considerado o único possível. Isto certamente deriva da diferença entre uma abordagem psicológica
e uma abordagem ontológica da subjetividade, que se faz também pela via psicológica, mas que não se
detém nos aspectos funcionais da vida psicológica, uma vez que considera metafisicamente a dimensão
da psique. Assim, no que diz respeito à primazia da ação, ambos convergem; mas há uma diferença no
que concerne ao alcance da ação e ao seu sentido metafísico de criação de realidade.
no limite uma coincidência – é pensada pelo filósofo como unidade de ação, motivo pelo qual a mística,
na sua realização mais elevada, não se separa da ação, embora se distinga da ação utilitária. Isso faz com
que o pragmatismo de Bergson, na sua acepção de recorte utilitário da realidade percebida e pensada,
seja característica da relação entre a inteligência e a realidade, vinculo que prevalece, mas que não pode
ser considerado o único possível. Isto certamente deriva da diferença entre uma abordagem psicológica
e uma abordagem ontológica da subjetividade, que se faz também pela via psicológica, mas que não se
detém nos aspectos funcionais da vida psicológica, uma vez que considera metafisicamente a dimensão
da psique. Assim, no que diz respeito à primazia da ação, ambos convergem; mas há uma diferença no
que concerne ao alcance da ação e ao seu sentido metafísico de criação de realidade.
IV – Plano de trabalho e cronograma
Conforme o período de 2 (dois) anos estabelecido pela FAPESP, dividimos o desenvolvimento
da pesquisa em quatro etapas:
PRIMEIRO SEMESTRE
Da psicologia da duração à ação prática – Análise crítica dos textos em que o conceito de ação é
desenvolvido Bergson. Esse tema recebe um tratamento inicial no Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, mediante a articulação entre duração psicológica e criação do ato livre. Em seguida, as
análises de Matéria e memória caracterizam a ação prática por meio do estudo das funções da
consciência: percepção e memória. Revisão bibliográfica com seleção das principais obras de
comentadores, que nos permitirão esclarecer eventuais pontos obscuros e dissolver possíveis
ambigüidades ao longo das etapas posteriores.
SEGUNDO SEMESTRE
A intuição como método filosófico – Análise minuciosa da descrição bergsoniana da intuição. Esse
tópico não foi desenvolvido sistematicamente em nenhuma obra em especial, mas está disseminado por
todas elas. Os ensaios e as conferências reunidas em A energia espiritual e as duas introduções que
precedem O pensamento e o movente oferecem-nos um solo fértil para essa finalidade, qual seja,
elaborar fichamentos e resenhas acerca da estratégia argumentativa de Bergson.
TERCEIRO SEMESTRE
O retorno aos dados imediatos como modelo de “empirismo radical” – Análise rigorosa dos relatos que
W. James apresenta em As variedades de experiência religiosa, de maneira a confrontar a concepção
metafísica da vida defendida por Bergson com as experiências subjetivas da psicologia. Além dessa
obra, os textos de James que pretendemos consultar são Pragmatismo, O significado da verdade,
Princípios de psicologia, Ensaios em empirismo radical e também as Cartas que ambos os pensadores
se endereçaram mutuamente.
QUARTO SEMESTRE
Tensões conceituais entre psicologia e metafísica – Avaliação geral da análise bergsoniana acerca da
experiência religiosa, o método de intuição e a questão do misticismo. O estudo da obra As duas fontes
da moral e da religião fundamenta esse tópico. Em seguida, interpretamos a distinção bergsoniana entre
religião estática e religião dinâmica, com base nas idéias de James, procedendo assim a uma ampliação
conceitual da noção de misticismo. Elaboração do relatório final.
Tensões conceituais entre psicologia e metafísica – Avaliação geral da análise bergsoniana acerca da
experiência religiosa, o método de intuição e a questão do misticismo. O estudo da obra As duas fontes
da moral e da religião fundamenta esse tópico. Em seguida, interpretamos a distinção bergsoniana entre
religião estática e religião dinâmica, com base nas idéias de James, procedendo assim a uma ampliação
conceitual da noção de misticismo. Elaboração do relatório final.
V – Material e métodos
O material de trabalho primário é constituído pelas obras de Bergson e de W. James, de acordo
com as etapas da pesquisa descritas no cronograma. O material de apoio é composto pelas demais obras
que constam na bibliografia. Também faremos uso dos recursos eletrônicos disponíveis na Internet,
procurando adequar as informações científicas ao escopo do projeto inicial, sempre com base no método
de análise crítica dos textos filosóficos. Vale ressaltar que a supervisão do Prof. Franklin Leopoldo e
Silva investe-se de um significado fundamental, não apenas por sua decisiva orientação na Pós-
Graduação, mas também porque este trabalho retoma algumas hipóteses formuladas por ele em relação à
possibilidade de se estabelecer um diálogo enriquecedor entre Bergson e James, pensadores acerca dos
quais o Prof. Franklin possui vasta e comprovada experiência. Destacamos ainda a nossa integração
junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. Recentemente, a Profª. Débora M.
Pinto nos convidou a participar dos seminários do Grupo de Estudos Bergson, que serão realizados no
período 2010-2011. Além disso, durante a realização de um estágio de doutorado sanduíche (financiado
pelo CNPq) na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, sob orientação de R. Barbaras, estabelecemos
contato com alguns dos seus colegas franceses, notadamente D. Lapoujade, ex-aluno de G. Deleuze,
especialista na obra de James e comentador de Bergson. Com ele mantivemos correspondência por email
e discutimos a idéia central deste projeto, na expectativa de uma interação futura.
VI – Forma de análise dos resultados
A avaliação deste trabalho se dará mediante a elaboração de relatórios técnicos, que serão
enviados à FAPESP para apreciação do andamento da pesquisa. A participação em congressos nacionais
como a ANPOF ou em colóquios internacionais, além de favorecer o intercâmbio de idéias com outros
pesquisadores, possibilita uma aferição parcial de resultados. Almejamos, contudo, a publicação de um
livro individual, que articule todos os resultados da pesquisa realizada durante o período de concessão
da bolsa, mas não descartamos a possibilidade de publicar artigos científicos em periódicos
especializados73 ou como capítulos de livro.74 Com relação aos prazos, as experiências anteriores
(iniciação científica, mestrado e doutorado) auspiciam um resultado promissor para mais essa tarefa.
19
VII – Bibliografia fundamental 1. Obras de Bergson
BERGSON, H. OEuvres. Édition du centenaire. Paris: PUF, 1959.
______. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
______. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Sobre o pragmatismo de William James: verdade e realidade / Introdução à metafísica. O
pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Cartas a William James / Conferências (Trad. Franklin Leopoldo e Silva a partir do original francês
Écrits et paroles, I – II. Paris: PUF, 1957). São Paulo: Abril Cultural, 1979.
______. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
2. Obras de William James
JAMES, W. Principles of psychology (2 vols.). New York: Henry Colt & Co., 1891.
______. The will to belive, and other essays in popular philosophy. Londres: Longmans, Green & Co., 1897.
______. The varieties of religious experience. A study in human nature. Londres: Longmans, Green & Co.,
1902. ( etc...)
Li-Sol-30
Fonte:
Projeto SciELO, da FAPESP.
Projeto SciELO, da FAPESP.
PROJETO DE PÓS-DOUTORADO – FAPESP
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