quarta-feira, 27 de junho de 2012

CONTINGÊNCIA E LIBERDADE EM HENRI BERGSON


CONTINGÊNCIA E LIBERDADE EM HENRI BERGSON

Wellington Lima Amorim1
Valdemar Habitzreuter2

RESUMO
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa bibliográfica com o intuito de
demonstrar que o método intuitivo de Bergson é um contato com a força criadora divina que se expressa pela experiência da contingência. Num primeiro momento fazemos um apanhado geral dos elementos fundantes de sua filosofia que nos dão já uma indicação de como sua filosofia está envolvida pelos conceitos de necessidade e contingência. Em seguida será esclarecido o que Bergson entende por élan vital, que é uma força dinâmica que cria, projetando-se em direções múltiplas, na ânsia de se manifestar em seres viventes, numa progressão evolutiva de autoconsciência e de liberdade.

INTRODUÇÃO
Ao longo da História da Filosofia sempre apareceram pensadores de grande
envergadura que procuraram penetrar no mistério da vida. Dentre eles podemos destacar o filósofo Henri-Louis Bergson1 pela importância em fundamentar a realidade num princípio contingencial, ou seja, no impulso da vida. Se opôs ao cientificismo exagerado de sua época que considerava a ciência mecânica como única abordagem capaz de explicar os fenômenos existenciais.

Quando se aborda o tema da contingência, geralmente fazemos idéia de um assunto exclusivamente abstrato, e que estaria excluído de um questionamento filosófico claro.

Mas, Bergson nos mostra o contrário. Ele faz da contingência um tema filosófico. O auge de filosofia é a posse de um conhecimento absoluto da realidade, uma realidade supra-humana experienciada pelo conhecimento intuitivo. Trata-se de um conhecimento positivo ou experiencial, embora esse conhecimento se cunhasse mais por simpatia ou intuição do que por uma compreensão intelectual. A contingência para Bergson é ultrapassar o entendimento intelectual e elevar-se ao conhecimento intuitivo, proporcionando ao ser humano o contato com o ato gerador da vida.

Ao aplicar um método novo de filosofar e de abordar a vida, Bergson tem como
princípio gerador o élan vital que é uma força criadora. Bergson traz à luz da razão uma perspectiva nova de como a vida se processa e evolui na duração (durée), com a tendência a nos espiritualizar, um estágio de vida ideal, ou melhor, real, que a experiência contingencial é expressa como sendo divina. Por isso mesmo, este trabalho, que ora se desenvolveu, é o resultado de uma pesquisa que busca entender a contingência na obra filosófica de Bergson, cujo alicerce é esse élan vital, projetando a vida para além do necessitarismo que, no dizer de Bergson, é uma forma de vida radiante, “gozo no gozo, amor do que é só amor” (BERGSON, 1971, p. 175-176). Pode-se dizer que todo seu pensamento filosófico converge para a temática da contingência.

1 OS ELEMENTOS FUNDANTES DA FILOSOFIA DE BERGSON
A abordagem filosófica que Bergson faz para fundamentar sua metafísica ou
filosofia positivista espiritualista constitui-se de quatro elementos essenciais: impulso vital, evolução criadora, duração e intuição. Sintetizando seu pensamento filosófico pode-se dizer que há um impulso de vida que cria e que se desenrola num tempo real, culminando no aparecimento do ser humano constituído de consciência, memória e liberdade. Bergson entende que a realidade dura, ou seja, existe um movimento dinâmico de ininterrupta criação. Essa duração se percebe, intuitivamente, em primeiro lugar, em nós mesmos como um eu. Por isso, ela é essencialmente consciência, memória e liberdade, testemunhada por esse eu.

Ao lado do corpo que está confinado ao momento presente no tempo e limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se conduz como autômato e reage mecanicamente às exigências exteriores, apreendemos algo que se estende muito mais longe que o corpo no espaço e que dura através do tempo, algo que solicita ou impõe ao corpo movimentos não mais automáticos e previstos, mas imprevisíveis e livres: isto que ultrapassa o corpo por todos os lados e que cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o “eu”, é a “alma”, é o “espírito”- o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si mesma mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui (BERGSON, 1984, p.84).

Assim, é preciso compreender o que Bergson entende por tempo como duração, que é consciência, memória, liberdade, e o método intuitivo que ele emprega para fazer uma
autêntica filosofia.

1.1 O método intuitivo.
Na época de Bergson reinava a filosofia kantiana. A metafísica era desprezada por não conseguir um conhecimento do absoluto ou da coisa em si. Bergson não aceita essa condenação para a metafísica. Para ele a metafísica é uma experiência interior que dá conta do absoluto. Bergson estabelece uma nova metafísica. Distingue ele dois modos de conhecimento. O conhecimento intelectual ou analítico, que tem como característica a necessidade, e o conhecimento intuitivo, que é a expressão máxima da contingência superior ao conhecimento intelectual por chegar à coisa em si, ou seja, ao Absoluto.

O conhecimento intelectual diz respeito às necessidades da vida humana em seu ambiente natural e social. Ele se presta à utilidade das coisas enquanto apreensíveis na imobilidade. O único método para este tipo de conhecimento é a classificação e a manipulação. É um conhecimento que busca a realidade concreta. Por exemplo: a técnica, a linguagem, o mundo cotidiano, enfim, todo conhecimento científico. É um conhecimento que se ocupa da exterioridade prática e estática. Não consegue estabelecer-se no movimento ou no dinamismo da vida, uma vez que tudo se transforma tudo é um devir.

 O intelecto só consegue conceber o movimento na imobilidade. Ele pára e o secciona em partes para catalogá-lo como momentos justapostos, e toma, assim, a realidade como sendo estática.

 Assim, pois, o movimento ou a dinamicidade foge do entendimento do intelecto, pois aquilo que é agora, já não o é mais, é algo novo. É esse o movimento contínuo e dinâmico que a inteligência não capta, porque é um movimento vivido pela consciência, ou pelo espírito.

Já o conhecimento intuitivo é interior, é contemplativo, mas ao mesmo tempo é criador. Neste sentido ele se realiza na duração que é movimento. Não se detém ao útil da vida prática que é concebido na fragmentação espacial e temporal. O conhecimento intuitivo não classifica as coisas para satisfazer as necessidades do cotidiano. Não as divide nem as mede como o conhecimento analítico. Portanto, não é um conhecimento relativo, que é próprio do conhecimento intelectual ou científico. 

Em suma, é um conhecimento do espírito que se eleva acima do conhecimento intelectual e apreende a realidade como sendo um movimento criativo dinâmico. Não se fixa no simples fenômeno estático físico do mundo exterior, ele percebe o movimento que age no interior das coisas.

Bergson, portanto, adota um método que ultrapassa a condição humana de inteligir simplesmente, ou de saber manipular o mundo material para sua comodidade e conveniência.

 “A filosofia deveria ser
 um esforço para ultrapassar a condição humana
(BERGSON, 2001, p. 1425). 

A busca de Bergson 
é ir além da inteligência e intuir a realidade. 
Na análise de Mossé-Bastide, Bergson procura seguir os moldes da ciência positiva que se baseia na experiência para demonstrar suas verdades. Impõe como método para a filosofia, uma metafísica positiva. Positivo quer dizer posto aí, às claras, verificável, controlável por alguém que busca um resultado científico. Portanto, é preciso conduzir a metafísica no terreno da experiência, fazendo um estudo tão preciso quanto o da ciência positiva.

Assim, essa metafísica experimental pelo conhecimento intuitivo será capaz de um veredicto positivo. Porque, para Bergson, a intuição é uma experiência especial, distinta da experiência vulgar, ou do senso comum. Ela é capaz de tocar a coisa em si, o absoluto, sem abandonar o fio condutor da experiência. A positividade da metafísica, para Bergson, é a submissão do fato à experiência como na ciência. Para ele, a metafísica deve chegar a ser a própria experiência. Assim como o positivismo científico tem por objeto o concreto e que afirma que é impossível conhecer além do que a experiência nos revela, da mesma maneira, há uma experiência interior, também indubitável, direta e irrecusável. Essa experiência interior é a intuição (Cf. MOSSÉ-BASTIDE, 1959, p. 19).

Segundo Levesque, Bergson enfatiza que experienciar é deixar ser a realidade como ela se apresenta. É ceder-lhe a palavra. Que fale ao filósofo o que ela é, sem apoio de conceitos. O discurso filosófico deve se adaptar a essa realidade. A própria realidade deve refletir no discurso do filósofo. Não é estabelecer princípios e daí proceder à dedução do real ou intervindo nas coisas. A realidade deve falar por si. (Cf. LEVESQUE, G. 1975, p.14).

 O método intuitivo de Bergson é experimental e inova ao querer ultrapassar a experiência humana intelectiva. Porque, segundo ele, a faculdade intelectiva não deixa a realidade falar por si, ela se intromete para que essa realidade seja distorcida e se preste unicamente às suas necessidades. Por isso, Bergson quer buscar essa experiência na sua fonte mesma, se introduzindo no objeto e coincidindo com ele o que tem de único e inexprimível, convidando-nos ao esforço para superar a condição humana que se molda às exigências da inteligência.

A experiência humana ordinária do empirismo clássico se atém ao fato que
corresponde ao útil. Não é a realidade tal como apareceria a uma intuição imediata, mas uma adaptação do real aos interesses da vida prática e às necessidades da vida social. Com isso, podemos dizer que a humanidade se define pela conquista do mundo material (tecnologia) através da inteligência. Por sua vez, a sobre-humanidade se define pela conquista da realidade metafísica com o auxílio da simpatia intuitiva.

Segundo Meyer, o conhecimento intuitivo de Bergson é o conhecimento da
realidade em si. Essa realidade é o movimento que se encerra no mundo material. O mundo material não se caracteriza pela imobilidade, mas encerra-se nele o movimento criativo donde advém o novo irrepetível. Portanto, conhecimento intuitivo seria coincidir com esse movimento, que é o próprio ato gerador da realidade, o princípio de tudo. 

Nosso conhecimento já não seria relativo, mas absoluto. Embora não se capte toda realidade, ao menos se apreende uma parte dela, sem alterações, porque estamos inseridos na sua realidade e não fora dela. Há uma preocupação em Bergson, segundo Meyer, em achar uma experiência que fosse própria da metafísica. A intuição é esta experiência. A intuição abre um domínio independente da ciência: a intuição é conhecimento absoluto, conhecimento do espírito, que experiência o movimento e não a realidade estática. Neste domínio ela terá de cumprir o mesmo esforço de precisão, o mesmo trabalho de paciência que a ciência, ou seja, conhecimento científico (Cf. MEYER, 1964, p. 83).

1.2 A INTUIÇÃO
Bergson define assim a intuição: “Chamamos aqui intuição a simpatia1 pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único e, consequentemente, de inexprimível” (BERGSON, 1984, p. 14). Por essa definição, verifica-se que a intuição é um conhecimento contingencial que tem o seu acento experiencial a partir da interioridade. Pela intuição entra-se no objeto como se entra no nosso eu, vivencia-se sua vida como se vive a nossa. Não se conhece um objeto plenamente ou absolutamente vendo-o de fora, colocando-se sob vários ângulos de observação. Isso é conhecê-lo relativamente, manter relações à distância com o objeto. É necessário que se insira nele e se tenha a visão de que o objeto expressa a si próprio. Assim, esse objeto nos fala de sua realidade e não aquela que se querer que ele tenha.

Essa capacidade intuitiva de se transportar ao interior de um objeto e coincidir com sua realidade é privilégio dos que fazem o esforço de ultrapassar a condição humana da intelectualidade, é tornar o instinto primitivo consciente de si mesmo, capaz de refletir, enfim transformá-lo em intuição.

 A grandiosidade da experiência intuitiva é transportar-nos para dentro do movimento do élan vital que é o princípio de todas as coisas e coincidir com ele no que tem de único e inexprimível como força de vida, que se impõe a impulsionar-nos para frente e ao mesmo tempo impelindo-nos ao reconhecimento da origem do nosso próprio ser. Essa experiência intuitiva é, na verdade, nossa inserção na dinamicidade do élan vital em seu movimento criador e que é a dinamicidade divina. Tal conhecimento pertence à intuição, um conhecimento do espírito, voltado para dentro, refletindo o significado de uma realidade contingente que dura, não algo substancial, mas puro movimento criativo.

É da intuição que viria a luz, se alguma vez devesse esclarecer-se o interior do impulso vital, sua finalidade, sua significação. Porque ela estava voltada para dentro; e se, por uma primeira intensificação nos fazia apreender a continuidade da nossa vida interior, se a maior parte de nós não fosse mais longe, uma intensificação superior a levaria talvez até às raízes de nosso ser e, com isso, até ao próprio princípio da vida em geral. 

Acaso a alma mística não tinha precisamente esse privilégio?
(BERGSON, 1978, p. 206)
Ao assinalar que a intuição é um conhecimento do espírito, ou uma experiência interior da consciência, não se diminui a inteligência e nem se nega a ela nada do que lhe é próprio. Somente se constata ao lado dela a existência de uma outra faculdade, um prolongamento do conhecimento intelectivo, capaz de um outro tipo de conhecimento que capta a realidade em si, o absoluto. 

Temos, pois, de um lado a ciência e a arte mecânica provenientes da inteligência pura, e de outro lado a metafísica que faz apelo à intuição.
Cada qual tem seu campo de precisão.

A rigor, a intuição nada mais é que a percepção de um eu profundo (espírito)
traduzido em duração onde a multiplicidade, e a experiência da contingência, significa concentração, fusão, conversão e organização em contraposição ao eu superficial (inteligência) onde a multiplicidade significa dispersão, exterioridade, necessitarismo e que supõe o tempo e espaço divisíveis, deixando escapar a riqueza da vida que é duração do espírito ou consciência do movimento da vida. O eu superficial tem sua experiência no mundo espacial, no mundo físico e não entende a melodia fluida da vida interior, a realidade que dura. É nesse sentido que a intuição, no pensamento de Bergson, revela a existência de um conhecimento absoluto da duração.

2 Duração
Pela intuição assim definida, Bergson chega ao conceito de duração que é o tempo como experiência interior de duração, isto é, uma experiência viva, contingente, que dura.

Assim, o tempo como duração
 é o elemento fundante da teoria filosófica de Bergson.

Precisa-se aqui abrir um parêntesis do porquê Bergson fundamentar sua teoria filosófica na intuição da duração. Bergson formulou essa filosofia devido ao exagerado acento cientificista do positivismo que se desenvolveu nos séculos XIX e XX. Sua filosofia inserese, pois, no espiritualismo europeu como reação ao positivismo.

Entretanto, também Bergson seguiu, inicialmente, os passos do positivismo como brilhante estudante de matemática e mecânica que era. Entusiasmou-se com o evolucionismo de Spencer (1820-1903) de cunho mecanicista. Segundo Spencer, “os fenômenos cósmicos e físicos geraram os fenômenos biológicos que, por sua vez, causam os fenômenos psicológicos e sociológicos. Esse imenso movimento é ativado pela incognoscível Potência, que só conhecemos por suas manifestações” (HUISMAN, 2004, p.941). 

Para Bergson, todavia, essa Potência 
é cognoscível porque experienciável intuitivamente. 
Trata-se do impulso da vida que se experimenta 
em nós como duração.
Para Bergson, o evolucionismo mecanicista de Spencer não tomava em
consideração, como experiência concreta, o tempo como duração, mas como tempo espacializado de instantes distintos e justapostos um ao outro, isto é, o tempo era divido em partes. Assim, o passado era distinto do presente e futuro, ademais, o tempo da mecânica seria um tempo reversível onde se pode repetir os experimentos, isto é, uma transformação não seria uma novidade irrepetível do ato criador.

Spencer não se dava conta de que a evolução se efetua numa duração sem hiatos em que subjaz um impulso interior. Apregoava um evolucionismo que se dá num processo de etapas justapostas. Por isso, não lhe foi possível tratar da evolução inorgânica na qual, para Bergson, já há o movimento do germe da vida potencialmente, o impulso vital. Spencer passa, pois, imediatamente para as origens da vida, dizendo que as condições que originaram a matéria orgânica a partir da inorgânica deixaram de existir. E, assim, tendo pulado do inorgânico para o orgânico, também deu um salto dos fenômenos da vida aos da consciência.

Bergson, apesar de ficar entusiasmado no início com a filosofia evolucionista de Spencer, por se enquadrar no pensamento positivista de ser fiel aos fatos concretos, não concorda, no entanto, que a realidade seja concebida como reduzida nem envolvida pelos fatos concretos dos positivistas em traduzir tudo à luz do tempo fragmentado, embora, também, Bergson pretenda ser fiel à realidade quando diz: 
“tudo o que se oferece 
diretamente aos sentidos ou à consciência, 
tudo o que é objeto de experiência, 
seja interior ou exterior, deve ser tido por real 
enquanto se não demonstrar que é uma simples aparência”
 (BERGSON, 1984, p. 86).
Bergson ao constatar que o positivismo da ciência não é fiel aos fatos quando, por exemplo, toma o fator tempo como espacializado, ou matematizado, em que a evolução acontece por etapas, veio reformular a teoria da evolução, através do conceito de tempo como duração, pois seu evolucionismo dá conta da lacuna de Spencer, ao considerar subjacente a todos os fatos o impulso da vida que é experienciado interiormente, e que estende a vida em duração e não em fragmentos ou momentos separados.

Duração, para Bergson, é o eu que é essencialmente consciência, memória e
liberdade: 

“o eu vive o presente 
com a memória do passado e a antecipação do futuro”
 (REALE, ANTISERI, 2003, p. 711). 

Na consciência, 
o tempo é duração vivida, 
não é fracionado em momentos. 
Passado, presente e futuro formam um uníssono. 
Um necessita do outro para ser duração. Nesse sentido a duração é vida interior em que um momento funde-se no outro, cresce sobre o outro e com ele se envolve. Assim, duração não é um momento estático, é movimento, mudança, contingência.

Mudar quer dizer devir, significando que nunca nada é idêntico a si mesmo e que tudo se transforma constantemente em algo distinto de si. 

“Não existem coisas feitas,
 mas somente coisas que se fazem, 
não existem estados que se mantém,
 mas somente estados que mudam1” 
(BERGSON, 2001, p. 1420).
Coisas que se fazem! Isto é, a realidade é constante mudança, movimento, dinamicidade. E, segundo interpretação de Levesque, tempo para Bergson são as coisas que duram. 

As coisas
 não estão no tempo, 
mas são o próprio tempo.
Na concepção de tempo do positivismo mecanicista, as coisas existem, isto é, ocupam um pedaço de espaço e estão aí num determinado tempo. Para o mecanicismo, tempo e espaço se equivalem.

Mas, Bergson não concorda com isso, afirmando que, se as coisas ocupam espaço, elas, no entanto, não estão no tempo, porque elas são o próprio tempo, porque elas duram, como se o tempo fosse uma massa da qual as coisas fossem feitas. A ilusão nossa é que imaginamos que a coisa é logo afetada pelo tempo que a desenvolve e a destrói. É a coisa mesma que se afeta por seu próprio crescimento e decaimento (Cf. LEVESQUE, 1975, p.26). Portanto, para se compreender a experiência da contingência em Bergson, é necessário entender dois conceitos:
 a) Consciência e
 b) Memória.

2.2 Consciência
Essa duração assim definida é um estado de consciência do ser humano.
Consciência, na explicação de Meyer, é uma experiência privilegiada na qual se revela, em sua pureza, a duração real. Não é o espetáculo do mundo exterior que nos dará essa experiência real, mas o retorno à intimidade de nossa própria consciência, do nosso eu que dura. Portanto, consciência é o que dura. Lá onde Descartes acreditava encontrar o pensamento, uma coisa que pensa, Bergson vê essencialmente uma coisa que dura e que se
estende.

Assim, segundo Meyer, consciência em Bergson é uma conversão da atenção para o mundo interior, afastando do campo da consciência os conceitos fabricados, os símbolos, a linguagem, tudo criado para satisfazer as necessidades da vida social e da conversação, e afastando as imagens depositadas em nós pela longa convivência com os objetos do mundo; enfim, obtendo de nossa atenção uma coincidência intima com a experiência interior que, somente então, a consciência se revelará em toda sua pureza.
Por isso, no dizer de Meyer, Bergson nos convida a um desnudamento para uma experiência de inocência com o pensamento original desprovido de conceitos. 

Ele nos convida a olhar em nós e aí descobrir os dados imediatos da consciência. Mas, essa imediatidade terá que ser trabalhada, pois não será dada como uma graça (Cf. MEYER, 1964, p. 23-24). Há dois aspectos de consciência como experiência. Um no qual a consciência se ocupa das coisas externas. Outro no qual a consciência entra em si mesma, se toma a si mesma, aprofunda-se a si mesma.

Há, portanto, duas formas de consciência: uma exterior que é percepção, e outra interior que é duração. Na consciência exterior, ou na percepção, o sujeito se opõe ao objeto que lhe é exterior. A consciência desdobra-se em sujeito e objeto. Já na duração, a consciência é simples, uma continuidade em que os momentos não se individualizam uns em relação aos outros e não se opõem ao eu que os vive. Essa consciência sem imagens, global e indivisa, formando um todo que é a própria pessoa, se avoluma sem cessar, como um discurso em que a significação toma volume e se modifica à medida que os períodos se desenvolvem. 

“Ora, eu creio que nossa vida interior inteira
 é algo como uma frase única encetada 
desde o primeiro despertar da consciência,
 frase semeada de vírgulas, 
mas nenhuma parte cortada por pontos”
 (BERGSON, 2001, p. 858).

2.3 Memória
Assim como duração é consciência, equivale dizer que ela é também memória. Se o passado se liga ao presente, que não desaparece, mas se conserva, podemos dizer que o devir é memória. Isto é, o passado não passa, fica conosco, sempre inteiro. Bergson se expressa dessa maneira: “Sim, creio que nossa vida passada está aí, conservada até nos seus mínimos detalhes, e que nós não esquecemos nada, e tudo aquilo que temos percebido, pensado, querido desde o primeiro despertar de nossa consciência, persiste indefinidamente1” (BERGSON, 2001, p. 886).

Surge a pergunta: aonde se conserva a lembrança desse passado? O passado não se aloja em algum lugar como, por exemplo, no cérebro, capaz de o conservar. 

Por isso, Bergson refuta a tese psicologista da memória hábito de o cérebro alocar as funções psicológicas. “[...] Por que lembranças, que não são coisas visíveis e tangíveis, necessitariam um recipiente, e como poderiam tê-lo? Aceitaria (...) a idéia de um recipiente onde as lembranças seriam alojadas, e diria então, muito simplesmente, que elas estão no espírito. [...]

 E o espírito humano 
é a própria consciência” 
(BERGSON, 1984, p. 96).
Segundo interpretação de Huisman, existe, para Bergson, a memória pura, que é a memória verdadeira, atividade puramente espiritual, co-extensiva à consciência, que interpreta o passado no presente, retém e alinha todos os estados em seqüência, à medida que estes se produzem, cada um em seu lugar e em sua data. A memória hábito, que é a memória dos psicologistas, reduz-se efetivamente ao conjunto de mecanismos inteligentemente montados que garantem a resposta conveniente às diversas interpelações possíveis (CF. HUISMAN, 2004, p. 139).

Co-extensiva à consciência, ela (memória pura) retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e consequentemente marcando-lhe a data, movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não, como a primeira (memória hábito), num presente que recomeça a todo instante (BERGSON, MM, 1999, p. 177).

Assim, na memória pura,
 o passado se conserva por si mesmo,
 em si mesmo e para si mesmo.

3. Liberdade
De tudo isso depreendemos que duração, sendo consciência e memória, a liberdade surge pelo simples fato de duração ser criação. E criação em Bergson não supõe causalidade, determinismo ou finalismo. É essencialmente um ato livre, independente,contingente. 

A sucessão na duração supõe a liberdade, pois a verdadeira liberdade é criação de si mesmo por si mesmo, não é uma opção de escolha entre fatos dados, mas uma escolha em criar fatos novos. O que nos sobrevém é sempre novo, desconhecido, imprevisível. E nisso a duração é a própria originalidade, porque nela nada se repete. A liberdade consiste no algo mais que é criado. Este algo mais não é de ordem quantitativa, mas quer dizer outro, diferente, novo, algo novo qualitativamente, de caráter imprevisível.

No dizer de Levesque, Bergson não entende a criação pela causalidade, mas como um ato por si mesmo, criação de algo novo que não se apóia em antecedentes. A causalidade implica que o depois dependa inteiramente do antes. E assim chega-se à repetição estéril e à identidade, e aí não acontece nada, não é evolucionismo criador. 

Em Bergson há a simultaneidade do presente e do passado; sua determinação recíproca não tem nada a ver com determinismo, faz possível a sucessão verdadeira, que é diferença e novidade: nada se perde, mas tudo se cria (Cf. LEVESQUE, 1975, p. 33).

E, segundo Mossé Bastide, Bergson tem, pois, uma concepção de liberdade segundo sua metafísica de evolução criadora onde há um impulso de vida que quer realizar-se livremente. Não é o mesmo que livre-arbítrio até então apregoado, esta indiferença ou hesitação entre dois possíveis e igual possibilidade de um e de outro, mas antes a liberação de nossa mais íntima e original preferência. Para ele, liberdade é criação, invenção, é poder
criador. 

Quando fazemos a experiência interior da liberdade, nós descobrimos o que somos no fundo de nós mesmos: um dinamismo criador, um impulso vital. É assim que se conduz o ser humano quando se conscientiza de que é portador do impulso vital: autorealizando-se na duração, expandindo-se livremente na dinamicidade divina (Cf. MOSSÉ-BASTIDE,1959, p. 304)
Ainda, segundo Mossé Bastide, liberdade em Bergson é um esforço de
interiorização. 

Assim que a interiorização é estabelecida e, mais e mais, aprofundada, uma nova dimensão de liberdade aparece: não se trata mais de optar entre duas direções, mas, no mais íntimo de si mesmo e na mais total fidelidade de si mesmo, criar o absolutamente novo. Num primeiro momento, o ato de escolher, mediado pela inteligência, a liberdade é humana, supõe fraqueza, mesmo que ela triunfe; mas, num segundo momento, ultrapassado o estágio intelectual, averiguamos que a liberdade é mais que humana: ela se faz um com o dinamismo criador que é o ser verdadeiro, o ser que se engendra, de certa maneira, eternamente com seu ato. Com tal experiência de liberdade, o homem ultrapassou sua limitação ordinária; na dinamicidade criadora da contingência.

socitec e-prints - vol.2 n.1 Contingência e liberdade em Henri Berson 46
Aracaju v.1 nº 2 p. 32-47 Jan/Jun - 2006
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Wellington Lima Amorim1
1 Graduado em Filosofia pela UFRJ. 
Mestre em Filosofia Política e Sistemas Éticos pela UNISINOS.
 Doutorando em Filosofia pelo Programa Interdisciplinar 
em Ciências Humanas. 
E-mail: wellington.amorim@gmail.com

Valdemar Habitzreuter2

2 Bacharel em Filosofia pela Unifebe.
 E-mail: vhreuter@uol.com.br

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Pablo Picasso

Li
 Fonte:
Socitec-Aracaju 
v.1 nº 2 p. 32-47 Jan/Jun - 2006
 

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