domingo, 10 de junho de 2012

O ESFORÇO INTELECTUAL : HENRI BERGSON




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O ESFORÇO INTELECTUAL1
Henri Bergson
Tradução: Jonas Gonçalves Coelho2

O problema que abordamos aqui é distinto do problema da atenção tal
como colocado pela psicologia contemporânea. Quando rememoramos fa-
tos passados, quando interpretamos fatos presentes, quando ouvimos um
discurso, quando seguimos o pensamento de alguém e quando escutamos
o nosso próprio pensamento, enfim, quando um sistema complexo de repre-
sentações ocupa nossa inteligência, nós sentimos que podemos tomar duas
atitudes diferentes, uma de tensão e outra de relaxamento, que se distin-
guem sobretudo pela presença do sentimento de esforço em uma e pela sua
ausência na outra. O jogo das representações é o mesmo nos dois casos? Os
elementos intelectuais são da mesma espécie e mantêm entre si as mesmas
relações?

 Não se encontraria na própria representação, nas suas reações in-
teriores, na forma, no movimento e no agrupamento de estados mais sim-
ples que a compõem, tudo o que é necessário para distinguir o pensamento
que se deixa viver do pensamento que se concentra e se esforça? Não faria

1 Este estudo apareceu na Revue philosophique de janeiro de 1902. Bergson desenvolve dois temas fundamentais de uma de suas mais importantes obras filosóficas, publicada cinco anos antes, Matéria e memória. Primeiramente, trata da relação entre percepção e memória, procurando destacar a íntima relação entre essas duas “operações elementares do espírito” nas mais distintas operações intelectuais de vigília, com ênfase especial no papel desempenhado pela memória, na existência de vários planos de memória e na noção de esquema, importante para a compreensão da “memória pura” bergsoniana. É o percurso entre os vários planos de memória a partir de esquemas que seria vivenciado como esforço intelectual presente nas atividades psíquicas de evocação, invenção e interpretação.

 A tensão psicológica característica dessas atividades psíquicas as diferencia das situações de relaxamento ou distensão características das vivências psíquicas do sonho e de livre associação da vigília nas quais o psiquismo operaria num único plano de memória.
2 Prof. Assistente Doutor de Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da Unesp, campus de
Bauru.


parte do próprio sentimento de esforço a consciência de um movimento de
representações muito particular? Tais são as questões que queremos colo-
car. Todas elas conduzem a uma única questão: Qual é a característica in-
telectual do esforço intelectual?

Independentemente da maneira pela qual se resolva essa questão, per-
manecerá intacto o problema da atenção, tal como colocado pelos psicólo-
gos contemporâneos, preocupados, sobretudo, com a atenção sensorial, ou
seja, com a atenção que prestamos a uma percepção simples. Ora, como a
percepção simples, acompanhada de atenção, é uma percepção que pode-
ria, em circunstâncias favoráveis, apresentar mais ou menos o mesmo con-
teúdo se a atenção não estivesse presente, é fora deste conteúdo que se
teve de procurar o caráter específico da atenção. A idéia, proposta por
M.Ribot, de atribuir uma importância decisiva aos fenômenos motores con-
comitantes, e sobretudo às ações de retenção, está muito perto de se tornar
clássica em psicologia. Mas, à medida que o estado de concentração inte-
lectual se complica, torna-se mais solidário do esforço que o acompanha.

Existem trabalhos do espírito que não se concebe que se realizem cômoda
e facilmente. Poder-se-ia, sem esforço, inventar uma nova máquina ou mes-
mo simplesmente extrair uma raiz quadrada? O estado intelectual traz,
pois, impresso em si, de alguma maneira, a marca do esforço. O que signi-
fica novamente dizer que há uma característica intelectual do esforço inte-
lectual. É verdade que, se esta característica existe para as representações
de ordem complexa e elevada, deve também encontrar-se alguma coisa
dela nos estados mais simples. Não é, pois, impossível que descubramos
seus traços até na própria atenção sensorial, ainda que esse elemento tenha
apenas um papel acessório e apagado.

Para simplificar nosso estudo, examinaremos separadamente as diver-
sas espécies de trabalho intelectual, indo do mais fácil, que é a reprodução,
ao mais difícil, que é a produção ou invenção. É pois com o esforço de me-
mória, ou mais precisamente de evocação, que nos ocuparemos inicial-
mente.

Os “planos de consciência”
Mostramos, em um ensaio precedente,3 que é preciso distinguir uma
série de “planos de consciência” diferentes, desde a “lembrança pura”, ain-
da não traduzida em imagens distintas, até esta mesma lembrança atuali-
zada em sensações nascentes e em movimentos iniciados. A evocação vo-
3 Matière et Mémoire, Paris, 1896, caps. 2 e 3.

luntária de uma lembrança, dizíamos, consiste em atravessar esses planos
de consciência um após o outro, em uma direção determinada. Ao mesmo
tempo em que aparecia o nosso trabalho, M.S. Witasek publicava um artigo
interessante e sugestivo,4 no qual a mesma operação era definida como
“uma passagem do não intuitivo ao intuitivo”. É voltando a alguns pontos
do primeiro trabalho e também com o auxilio do segundo que estudaremos,
inicialmente, no caso da evocação das lembranças, a diferença entre repre-
sentação espontânea e representação voluntária.

Em geral, quando decoramos uma lição ou quando procuramos fixar
um grupo de impressões em nossa memória, nosso único objetivo é reter
bem o que aprendemos. Não nos preocupamos com o que teremos de fazer
mais tarde para rememorar.

O mecanismo da evocação nos é indiferente. O essencial é que possamos
evocar a lembrança, não importa como, quando
tivermos necessidade dela. Eis o motivo pelo qual empregamos, simultâ-
nea ou sucessivamente, os procedimentos mais diversos, utilizando tanto
a memória maquinal quanto a memória inteligente, justapondo entre si as
imagens auditivas, visuais e motoras para retê-las tais e quais no estado
bruto, ou procurando substitui-las por uma idéia simples, que exprima o
seu sentido e que permita, em tal caso, reconstituir-lhes a série. Eis por
que, também, no momento da evocação, não recorremos exclusivamente à
inteligência ou ao automatismo: automatismo e reflexão misturam-se inti-
mamente, a imagem evocando a imagem ao mesmo tempo em que o espí-
rito trabalha com as representações menos concretas.

 Daí a extrema dificuldade que experimentamos em definir com precisão a
diferença entre as duas atitudes tomadas pelo espírito seja ao evocar
maquinalmente todas as partes de uma lembrança complexa seja ao
reconstituí-la ativamente. Há,quase sempre, uma parte de evocação mecânica
e uma parte de reconstituição inteligente tão bem misturadas que não
 saberíamos dizer onde começa uma e onde termina a outra.
 Todavia, apresentam-se casos excepcionais nos quais se propõe a aprender
uma lição complicada em vista de uma evocação instantânea e, tanto quanto
possível, maquinal. Também existem casos nos quais se sabe que a lição a
 ser aprendida não terá jamais de ser lembrada de uma só vez; ao contrário,
 ela deverá ser objeto de uma reconstituição gradual e refletida. Examinemos
inicialmente esses casos extremos. Veremos que procedemos diferentemente
para reter dependendo da maneira pela qual evocaremos. Enquanto que,
tendo adquirido a lembrança, o trabalho sui generis que se efetua para
favorecer o esforço inteli
gente de evocação ou para torná-lo inútil nos ensinará sobre a natureza e as condições deste esforço.
    4 Zeitschr. F. Psychologie, outubro 1896.

A evocação sem esforço
Em uma página curiosa de suas Confidences, Robert Houdin explica
como procedeu para desenvolver em seu jovem filho uma memória intuitiva
e instantânea.5 Ele começou mostrando à criança uma pedra de dominó, a
cinco-quatro, perguntando o total de pontos, mas sem deixá-lo contar. A
esta pedra acrescentou uma outra, a quatro-três, ainda exigindo uma res-
posta imediata. Ele encerrou aí a sua primeira lição. No dia seguinte, seu
filho conseguiu somar, de uma só vez, três e, depois, quatro pedras. No ou-
tro dia, cinco pedras. Acrescentando a cada dia novos progressos aos do
dia anterior, ele acabou obtendo, instantaneamente, a soma dos pontos de
doze dominós. “Tendo conseguido este resultado, ocupamo-nos de um tra-
balho muito mais difícil, ao qual nos entregamos durante mais de um mês.
Passávamos, meu filho e eu, bem rapidamente e com um olhar atento, dian-
te de uma loja de brinquedos infantis ou de uma outra cheia de mercadorias
variadas. A alguns passos dali, tirávamos lápis e papel do bolso e nos esfor-
çávamos separadamente para escrever o nome do maior número de objetos
que pudéssemos ter percebido durante a passagem... Meu filho chegava
freqüentemente a escrever o nome de quarenta objetos...”

O objetivo dessa educação especial era colocar a criança em condições
de perceber apenas com um golpe de vista, todos os objetos usados por to-
dos os assistentes em uma sala de espetáculo. Então, com os olhos venda-
dos, simulava a segunda-vista, descrevendo, a partir de um sinal conven-
cional de seu pai, um objeto escolhido ao acaso por um dos espectadores.

Esta memória visual foi desenvolvida a tal ponto que, após alguns instantes
diante de uma biblioteca, a criança retinha um grande número de títulos e
o lugar exato dos volumes correspondentes. O menino tirava, de algum mo-
do, uma fotografia mental do todo, que permitia, em seguida, a evocação
imediata das partes. Mas, desde a primeira lição, na proibição de adicionar
entre si os pontos dos dominós, percebemos a mola principal dessa educa-
ção da memória. Toda interpretação da imagem visual era excluída do ato
de visão: a inteligência era mantida no plano das imagens visuais.
É no plano das imagens auditivas ou das imagens de articulação que é
preciso deixá-la para propiciar uma memória do mesmo gênero à audição.

Entre os métodos propostos para o ensino das línguas, figura o de Prender-
gast,6 cujo princípio tem sido muitas vezes utilizado. Ele consiste em fazer
o aluno pronunciar inicialmente frases cujo significado não pode ser procu-
rado. Nunca palavras isoladas, sempre proposições completas que ele
precisa repetir maquinalmente. Se o aluno procurar adivinhar o sentido,
compromete o resultado. Se há um momento de hesitação, tudo deve reco-
meçar. Variando o lugar das palavras, trocando palavras entre as frases, se
faz com que, de algum modo, o sentido se destaque delas para a audição,
sem que a inteligência aí se misture. O objetivo é obter da memória a evo-
cação instantânea e fácil. E o artifício consiste em fazer com que o espírito
evolua, o mais possível, entre as imagens de sons ou de articulações, sem
que intervenham elementos mais abstratos, exteriores ao plano das sensa-
ções e dos movimentos.

A facilidade de evocação de uma lembrança complexa estaria, pois, na
razão direta com a tendência de seus elementos se desenrolarem num mes-
mo plano de consciência. É o que cada um de nós pode observar em si mes-
mo.

 Um verso aprendido na escola permaneceu em nossa memória? Perce-
bemos, ao recitá-lo, que a palavra chama a palavra e que uma reflexão sobre
o sentido mais atrapalharia do que favoreceria o mecanismo de evocação.
As lembranças, em tal caso, podem ser auditivas ou visuais, mas são sem-
pre, ao mesmo tempo, motoras. É até mesmo difícil distinguir o que é lem-
brança auditiva e o que é hábito de articulação. Se nos detemos no meio da
recitação, nosso sentimento do “incompleto” parece referir-se ora ao resto
do verso que continua a cantar em nossa memória, ora ao movimento de ar-
ticulação que não vai até o fim de seu élan e que gostaria de esgotá-lo, ora,
e o mais freqüentemente, a um e ao outro ao mesmo tempo. Mas é preciso
observar que estes dois grupos de lembranças – lembranças auditivas e
lembranças motoras – são da mesma ordem, igualmente concretas, igual-
mente vizinhas da sensação. Elas estão, para retomar a expressão já empre-
gada, no mesmo “plano de consciência”.
Ao contrário, se a evocação é acompanhada de um esforço, é porque o
espírito se move de um plano para outro.

O esforço de evocação
Como decorar quando não se pretende uma evocação instantânea? Os
tratados de mnemotecnia o dizem e cada um de nós também o adivinha.
Lê-se um trecho atentamente, depois se o divide em parágrafos ou seções
6 Prendergast, Handbook of the mastery series, Londres, 1868.
considerando sua organização interior. Obtém-se, assim, uma visão esque-
mática do conjunto. Então, no interior do esquema, inserem-se as expres-
sões mais relevantes. Ligam-se à idéia dominante as idéias subordinadas,
às idéias subordinadas, as palavras dominadoras e representativas, a essas
palavras, enfim, as palavras intermediárias que as ligam como em uma ca-
deia. Um tratado se exprime do seguinte modo:
 “O talento do mnemonista
consiste em apreender em um trecho de prosa essas idéias salientes, essas
frases curtas, essas simples palavras que carregam consigo as páginas in-
teiras”.7

Um outro dá a regra seguinte: “Reduzir a fórmulas curtas e subs-
tanciais..., destacar em cada fórmula a palavra sugestiva..., associar estas
palavras entre si e formar assim uma cadeia lógica de idéias”.8 Nesse caso,
não se liga mais mecanicamente imagens a imagens, cada uma restabele-
cendo a seguinte. Transporta-se para um ponto no qual a multiplicidade das
imagens parece se condensar em uma representação única, simples e indi-
visa. É esta representação que se entrega à sua memória. Então, quando
vier o momento da evocação, descer-se-á do cume da pirâmide para a base.
Passar-se-á, do plano superior onde tudo estava reunido em uma única re-
presentação, a planos cada vez menos elevados, cada vez mais vizinhos da
sensação, onde a representação simples está distribuída em imagens, onde
as imagens se desdobram em frases e em palavras.

É verdade que a evocação não mais será imediata e fácil.
 Ela será acompanhada pelo esforço.

Com este segundo método, é preciso, sem dúvida, mais tempo para se
evocar, mas é preciso menos tempo para aprender. O aperfeiçoamento da
memória, como observa-se muito freqüentemente, é menos um acréscimo
de retenção que uma maior habilidade para subdividir, coordenar e enca-
dear as idéias. O pregador, citado por W. James, levava inicialmente três ou
quatro dias para decorar um sermão. Mais tarde, ele precisava apenas de
dois, depois, de um só, finalmente, uma leitura única, atenta e analítica
bastava.9 O progresso aqui é evidentemente apenas uma aptidão crescente
para fazer convergir todas as idéias, todas as imagens, todas as palavras
para um único ponto. Trata-se de obter a peça única a partir da qual da qual
todas as moedas são produzidas.

Qual é esta peça única? Como tantas imagens diversas estão contidas
implicitamente em uma representação simples? Voltaremos a este ponto.
Limitamo-nos no momento a dar à representação simples, desdobrável em
imagens múltiplas, um nome que permita reconhecê-la. Diremos, apelando
para o grego, que é um esquema dinâmico. Entendemos, assim, que esta

7 Audibert, Traité de mnémotechnie générale, Paris, 1840, p.173.
8 André, Mnémotechnie rationnelle, Angers, 1894.
9 W. James, Principles of Psychology, vol. I, p.667 (note).


representação contém menos as próprias imagens que a indicação do que
é preciso fazer para reconstituí-las. Não é um extrato das imagens que se
obtém, empobrecendo cada uma delas. Se fosse, não se compreenderia
como o esquema nos permite, em muitos casos, reencontrar as imagens in-
tegralmente. Não é também ou, pelo menos, não é somente, a representa-
ção abstrata do significado do conjunto das imagens. Sem dúvida, a idéia
da significação ocupa nele um amplo espaço; mas, além de ser difícil dizer
no que se torna esta idéia da significação das imagens quando se a destaca
completamente das próprias imagens, é claro que a mesma significação ló-
gica pode pertencer a séries de imagens muito diferentes e que ela não bas-
taria, por conseqüência, para nos fazer reter e reconstituir tal série de ima-
gens estabelecida com a exclusão das outras.

 O esquema é alguma coisa difícil de se definir, mas algo cuja natureza cada
 um de nós sente e compreende ao comparar diversas espécies de memórias,
 sobretudo as memórias técnicas ou profissionais. Não podemos entrar aqui
em detalhes. Diremos, no entanto, algumas palavras sobre uma memória que tem sido, nestes últimos anos, objeto de um estudo particularmente atento e penetrante, a memória dos jogadores de xadrez.10

Intervenção de um esquema
Sabe-se que alguns jogadores de xadrez são capazes de jogar simulta-
neamente várias partidas sem olhar os tabuleiros. Cada jogada de um de
seus adversários lhe indica a nova posição da peça deslocada. Eles movem,
então, uma peça de seu próprio jogo, e assim, jogando “às cegas”, represen-
tando mentalmente, a todo o momento, as posições respectivas de todas as
peças em todos os tabuleiros, eles chegam a vencer, freqüentemente, parti-
das simultâneas disputadas com hábeis jogadores. Em uma página bem co-
nhecida de seu livro sobre a inteligência, Taine analisou esta aptidão, con-
forme as indicações fornecidas por um de seus amigos.11 Haveria aí,
segundo ele, uma memória puramente visual. O jogador perceberia, o tem-
po todo, como em um espelho interior, a imagem de cada um dos tabuleiros
com suas peças, tal como se apresentam após a última jogada.
Ora, da investigação realizada por M.Binet junto a um certo número de
“jogadores às cegas” parece destacar-se uma conclusão muito clara: a ima-
gem do tabuleiro com suas peças não se oferece à memória tal e qual, “co-
mo em um espelho”, mas exige do jogador um esforço de reconstituição a

10 Binet, Psychologie des grands calculateurs e joueurs d’échecs, Paris, 1894.
11 Taine, De l’intelligence, Paris, 1870, t. I, p.81 ss.


todo instante. Que esforço é este? Quais são os elementos efetivamente
presentes na memória? É aqui que a investigação ofereceu resultados ines-
perados. Os jogadores consultados concordam, inicialmente, ao declarar
que a visão mental das próprias peças lhes seria mais prejudicial que útil:
o que retêm e representam de cada peça não é seu aspecto exterior, mas
seu poder, seu alcance e seu valor, enfim, sua função. Um bispo não é um
pedaço de madeira de forma mais ou menos bizarra: é uma “força oblíqua”.
A torre é uma certa potência de “mover em linha reta”, o cavalo é “uma
peça que equivale mais ou menos a três piões e que se move segundo uma
lei muito particular”, etc. Isso para as peças. Considere-se agora a partida.

O que está presente no espírito do jogador é uma composição de forças, ou
melhor, uma relação entre potências aliadas ou hostis. O jogador refaz men-
talmente a história da partida desde o início. Ele reconstitui os aconteci-
mentos sucessivos que conduziram à situação atual. Ele obtém, assim,
uma representação do todo que lhe permite, em um momento qualquer, vi-
sualizar os elementos. Esta representação abstrata é, aliás, una. Ela implica
uma penetração recíproca de todos os elementos uns nos outros. O que o
prova é que cada partida aparece ao jogador com uma fisionomia própria.
 


Ela lhe provoca uma impressão sui generis. “Eu a apreendo em conjunto
como um músico apreende um acorde”, diz um dos personagens consulta-
dos. E é justamente esta diferença de fisionomia que permite reter várias
partidas sem confundi-las. Há, pois, também, um esquema representativo
do todo, e este esquema não é nem um extrato, nem um resumo. Ele é tão
completo quanto o será a imagem, caso ela seja ressuscitada, mas ele con-
tém em estado de implicação recíproca o que a imagem desdobrará em
partes exteriores umas às outras.

Analisem o esforço que vocês fazem quando evocam com dificuldade
uma lembrança simples. Vocês partem de uma representação na qual sen-
tem que estão dados um no outro elementos dinâmicos muito diferentes.
Esta implicação recíproca e, conseqüentemente, esta complicação interior,
é algo tão necessário, tão essencial na representação esquemática, que o
esquema poderá, se a imagem a evocar for simples, ser muito menos sim-
ples que ela.

 Não preciso ir muito longe para encontrar um exemplo disso.
Há algum tempo, ao colocar no papel o plano do presente artigo e preparar
a lista dos trabalhos a serem consultados, eu queria escrever o nome Pren-
dergast, o autor cujo método intuitivo citei há pouco e cujas publicações li
outrora junto com muitas outras sobre a memória. Mas eu não conseguia
nem encontrar esse nome, nem evocar a obra na qual eu o vi inicialmente
citado. Anotei as fases do trabalho no qual eu tentava evocar o nome recal-
citrante. Parti da impressão geral que dele me restava. Era uma impressão
de estranheza, mas não de estranheza indeterminada. Havia algo como um
sinal dominante de barbárie, de rapina, o sentimento que poderia ter sido
causado por uma ave agarrando sua vítima, comprimindo-a em suas garras
e levando-a consigo. Digo agora que a palavra prendre, que era mais ou me-
nos figurada pelas duas primeiras sílabas do nome procurado, participava
em larga medida de minha impressão.

Mas eu não sabia se esta semelhança
bastaria para determinar uma nuança de sentimento tão preciso. Vendo
com que obstinação o nome “Arbogaste” se apresenta hoje ao meu espírito
quando penso em “Prendergast”, pergunto-me se eu não tinha fundido ao
mesmo tempo a idéia geral de “prendre” e o nome Arbogaste. Este último
nome, que me restou do tempo em que aprendi a história romana, evocava
em minha memória vagas imagens de barbárie. Todavia, não estou seguro
disso, e tudo o que posso afirmar é que a impressão deixada em meu espíri-
to era absolutamente sui gereris, e que ela tendia, por meio de mil dificulda-
des, a se transformar em nome próprio.

 Sobretudo as letras d e r eram trazidas à minha memória por esta impressão.
 Mas elas não eram trazidas como imagens visuais ou auditivas, ou mesmo
como imagens motoras completamente prontas. Elas se apresentavam sobretudo
 indicando uma certa direção de esforço a seguir para chegar à articulação d
nome procurado. Parecia-me, equivocadamente aliás, que essas letras deviam
 ser as primeiras da palavra, justamente porque pareciam me mostrar um caminho.
 Eu dizia a mim mesmo que, tentando com as diversas vogais alternadamente, eu con-
seguiria pronunciar a primeira sílaba e adquirir, assim, um élan que me levaria até o fim
da palavra. Este trabalho foi concluído?

Eu não sei, mas ele não estava ainda muito adiantado, quando, bruscamente,
 me veio ao espírito que o nome era citado em uma nota do livro de Kay sobre
a educação da memória, e que foi aí que tomei conhecimento dele.
É ali que eu iria imediatamente procurá-lo. Talvez a ressurreição súbita da
 lembrança útil fosse efeito do acaso. Mas talvez também o trabalho destinado
 a converter o esquema em imagem tivesse ultrapassado seu fim, evocando,
então, em lugar da própria imagem, as circunstâncias que a cercaram primitivamente.

Desdobramento em imagens
Nesses exemplos, a essência do esforço de memória parece consistir
em desdobrar um esquema senão simples, pelo menos concentrado, em
uma imagem com elementos distintos e mais ou menos independentes uns
dos outros. Quando deixamos nossa memória vagar ao acaso, sem esforço,
as imagens sucedem às imagens, todas elas situadas no mesmo plano de
consciência. Ao contrário, desde que nos esforcemos para lembrar, parece
que nos concentramos em um estágio superior para descer em seguida,
progressivamente, para as imagens a evocar. Se, no primeiro caso, asso-
ciando imagens a imagens, nos movemos com um movimento que chamaremos,
 por exemplo, horizontal, num plano único, devemos dizer que no se-
gundo caso o movimento é vertical, e que ele nos faz passar de um plano
para outro. No primeiro caso, as imagens são homogêneas entre si, mas re-
presentativas de objetos diferentes. No segundo, um único e mesmo objeto
é representado em todos os momentos da operação, mas ele o é diferente-
mente, pelos estados intelectuais heterogêneos entre si, ora esquemas ora
imagens, o esquema tendendo para a imagem na medida em que o movi-
mento de descida se acentua.

Enfim, cada um de nós tem o sentimento muito nítido de uma operação
que prosseguiria em extensão e em superfície em um caso e,
 em intensidade e profundidade, no outro.
É raro, aliás, que as duas operações se realizem isoladamente e que se
as encontre em estado puro. A maior parte dos atos de evocação compreen-
dem ao mesmo tempo uma descida do esquema para a imagem e um pas-
seio entre as próprias imagens. Mas isto quer dizer, como o indicamos no
início deste estudo, que um ato de memória contém ordinariamente uma
parte de esforço e uma de automatismo. Penso neste momento em uma lon-
ga viagem que fiz outrora.

Os incidentes dessa viagem retornam ao meu espírito em uma ordem qualquer,
 evocando mecanicamente uns aos outros.
Mas se me esforço para rememorar tal ou qual período, vou do todo do pe-
ríodo às partes que o compõem, o todo me aparecendo inicialmente como
um esquema indiviso, com uma certa coloração afetiva. Freqüentemente,
aliás, as imagens, após terem simplesmente jogado entre si, solicitam que
eu recorra ao esquema para completá-las. Mas é no trajeto do esquema à
imagem que sinto o esforço.

Concluamos por enquanto que o esforço de evocação consiste em con-
verter uma representação esquemática, cujos elementos se interpenetram,
em uma representação imagética cujas partes se justapõem.
O esforço intelectual

É preciso estudar agora o esforço de intelecção em geral, aquele que
fazemos para compreender e para interpretar. Limitar-me-ei, aqui, a indica-
ções, remetendo o restante a um trabalho anterior.12
O ato de intelecção realiza-se sem cessar. É difícil dizer onde começa
e onde termina o esforço intelectual. Todavia, há uma certa maneira de
compreender e de interpretar que exclui o esforço, e há uma outra que, sem
o implicar necessariamente, pode ser geralmente observada quando ele
está presente. 12 Matière et Mémoire, pp.89-141.

A intelecção do primeiro gênero é a que consiste em responder auto-
maticamente, por um ato apropriado, a uma percepção mais ou menos com-
plexa. O que é reconhecer um objeto usual senão saber dele se servir? E o
que é “saber dele se servir” senão esboçar maquinalmente, quando se o per-
cebe, a ação que o hábito associou a esta percepção? Sabe-se que os pri-
meiros observadores deram o nome de apraxia à cegueira psíquica, expri-
mindo, assim, que a inaptidão em reconhecer os objetos usuais é sobretudo
uma impotência de os utilizar.13 Esta intelecção automática estende-se
muito mais longe do que se imagina. A conversação corrente compõe-se,
em grande parte, de respostas prontas a questões banais, a resposta suce-
dendo à questão sem que a inteligência se interesse pelo sentido de uma e
de outra.

É assim que os dementes mantêm uma conversação mais ou me-
nos coerente sobre um assunto simples, embora não saibam o que dizem.14
Foi muitas vezes observado que podemos ligar palavras a palavras, regulan-
do-nos pela compatibilidade ou incompatibilidade, por assim dizer, musical
dos sons entre si e, desse modo, compor frases que funcionam sem que a
inteligência propriamente dita se misture. Nestes exemplos, a interpreta-
ção das sensações ocorre imediatamente por movimentos.

O espírito permanece, como o dizíamos, num único e mesmo “plano de consciência”.
A intelecção verdadeira é totalmente distinta. Ela consiste em um mo-
vimento do espírito que vai e vem entre as percepções ou as imagens, por
um lado, e sua significação, por outro. Qual é a direção essencial desse mo-
vimento? Poder-se-ia acreditar que partimos das imagens para remontar à
sua significação, visto que as imagens são dadas primeiro, e que “compre-
ender” consiste, em suma, em interpretar percepções ou imagens. Quer se
trate de seguir uma demonstração, de ler um livro, de ouvir um discurso,
são sempre percepções ou imagens que seriam apresentadas à inteligência
para serem traduzidas por ela em relações, como se ela devesse ir do con-
creto ao abstrato.

 Mas isso é apenas uma aparência. É fácil ver que o espí-
rito faz, de fato, o inverso no trabalho de interpretação.

Isso é evidente no caso de uma operação matemática. Podemos seguir
um cálculo sem o refazermos nós próprios? Compreendemos a solução de
um problema sem o resolvermos nós mesmos? O cálculo é escrito no qua-
dro, a solução é impressa em um livro ou apresentada à viva voz, mas as ci-
fras que vemos são apenas as marcas indicadoras às quais nos reportamos

13 Kussmaul, Les troubles de la parole, Paris, 1884, p.233; Allen Starr, Aprazia and Aphasia, Medical
Record, outubro 1888. Cf. Laquer, Neurolog. Centralblatt, junho 1888; Nodet, Les agnoscies, Paris,
1899; e Claparède, Revue génerale sur l’agonosie, Année psychologique, VI, 1900, p.85 ss.
14 Robertson, Reflex Speech, Journal of mental Science, abril 1888; Fére, Le langage réflexe, Revue
philosophique, janeiro 1896.

para assegurar que não nos desviamos do caminho. As frases que lemos ou
ouvimos só têm um sentido completo quando somos capazes de as reen-
contrar por nós mesmos, de as criar de novo, por assim dizer, tirando do fun-
do de nos mesmos a expressão da verdade matemática que elas ensinam.
Ao longo da demonstração vista ou ouvida, colhemos algumas sugestões,
escolhemos pontos de referência. Dessas imagens visuais ou auditivas, sal-
tamos para representações abstratas de relação. Partindo dessas represen-
tações, as desdobramos em palavras imaginadas que vêm reunir-se e reco-
brir as palavras lidas ou ouvidas.

Mas não acontece o mesmo com todo trabalho de interpretação? Racio-
cina-se algumas vezes como se ler e escutar consistisse em se apoiar nas
palavras vistas ou ouvidas para se elevar de cada uma delas à idéia corres-
pondente, e justapor em seguida estas diversas idéias entre si. O estudo ex-
perimental da leitura e da audição das palavras nos mostra que as coisas se
passam de uma maneira inteiramente diferente. Inicialmente, o que vemos
de uma palavra na leitura corrente se reduz a muito pouca coisa: algumas
letras – menos que isto, algumas hastes ou traços característicos. As expe-
riências de Cattell, de Goldscheider e Müller, de Pillsbury (criticadas, é ver-
dade, por Erdmann e Lodge) parecem concludentes nesse ponto. Não me-
nos instrutivas são as experiências de Bagley sobre a audição da palavra.
Elas estabelecem com precisão que ouvimos apenas uma parte das pala-
vras pronunciadas.

Mas, independentemente de toda experiência científica,
cada um de nós pôde constatar a impossibilidade de perceber distinta-
mente as palavras de uma língua que não se conhece. A verdade é que a
visão e a audição bruta limitam-se, em tal caso, a nos fornecer pontos de
referência, ou melhor, a nos traçar um quadro, que preenchemos com nos-
sas lembranças. Seria enganar-se excessivamente sobre o mecanismo do
reconhecimento acreditar que começamos por ver e por ouvir, e que em se-
guida, com a percepção já constituída, a aproximamos de uma lembrança
semelhante para reconhecê-la.

A verdade é que a lembrança nos faz ver e ouvir e a percepção seria incapaz,
por si mesma, de evocar a lembrança parecida com ela, visto que seria preciso,
 para isto, que ela tivesse já tomado forma e fosse suficientemente completa.
Ora ela só se torna percepção completa e só adquire uma forma distinta pela
própria lembrança, a qual se insinua nela e lhe fornece a maior parte de sua matéria.
Mas, se é assim, é preciso que seja o sentido, antes de tudo, que nos guie
na reconstituição das formas e dos sons.

O que vemos da frase lida, o que ouvimos da frase pronunciada, é
exatamente o que é necessário para nos colocar na ordem
de idéias correspondente. Então, partindo das idéias, isto é, das relações
abstratas, nós as materializamos imaginativamente em palavras hipotéti-
cas que tentam colocar-se sobre o que vemos e ouvimos. A interpretação é,
pois, em realidade, uma reconstrução. Um primeiro contato com a imagem
imprime ao pensamento abstrato sua direção. Este se desenvolve, em se-
guida, em imagens representadas, que tomam contato, por sua vez, com
imagens percebidas, seguindo seus traços, esforçando-se para recobri-las.


Onde a superposição é perfeita, a percepção é completamente interpretada.
Este trabalho de interpretação é muito fácil, quando ouvimos nossa pró-
pria língua, para que tenhamos tempo de decompô-lo em suas diversas fa-
ses. Mas temos consciência nítida dele quando conversamos em uma língua
estrangeira que conhecemos imperfeitamente. Nesse caso, damos-nos con-
ta de que os sons ouvidos distintamente nos servem de pontos de referên-
cia, que nos colocamos inicialmente em uma ordem de representações mais
ou menos abstrata, sugerida pelo que ouvimos, e que uma vez adotado este
ton intelectual, vamos do sentido concebido ao reencontro dos sons perce-
bidos. É preciso, para que a interpretação seja exata, que a junção se opere.
Concebe-se que a interpretação seja possível, se fôssemos realmente
das palavras às idéias?

 As palavras de uma frase não têm um sentido absoluto.
 Cada uma delas empresta uma nuança de significação particular à
precedente e à seguinte. As palavras de uma frase não são também todas
capazes de evocar uma imagem ou uma idéia independentes. Muitas den-
tre elas exprimem relações, e as exprimem apenas por seu lugar no conjun-
to e por sua ligação com as outras palavras da frase. Uma inteligência que
fosse, sem cessar, da palavra à idéia, estaria constantemente embaraçada
e, seria por assim dizer, errante. A intelecção só pode ser precisa e segura
se partimos do sentido suposto, reconstruído hipoteticamente, se desce-
mos daí aos fragmentos das palavras realmente percebidas, se nos regula-
mos por elas sem cessar e se nos servimos delas como simples balizas para
desenhar, em todas as suas sinuosidades, a curva especial da rota que a in-
teligência seguirá.

Não posso abordar aqui o problema da atenção sensorial. Mas creio que
a atenção voluntária, aquela que se acompanha ou que pode se acompa-
nhar de um sentimento de esforço, difere da atenção maquinal precisamen-
te pelo fato de acionar elementos psicológicos situados em planos de cons-
ciência diferentes. Na atenção maquinal, existem movimentos e atitudes
favoráveis à percepção distinta, que respondem ao apelo da percepção con-
fusa. Mas não parece que haja jamais atenção voluntária sem uma “pré-per-
cepção”, como dizia Lewes,15 isto é, sem uma representação que seja ora
uma imagem antecipada, ora alguma coisa mais abstrata, uma hipótese re-
lativa à significação daquilo que se vai perceber e à relação provável dessa
percepção com alguns elementos da experiência passada.

Tem-se discutido sobre o sentido verdadeiro das oscilações da aten-
ção. Uns atribuem ao fenômeno uma origem central, outros uma origem pe-
riférica. Mas, mesmo que não se aceite a primeira tese, parece que é preci-
so reter dela alguma coisa e admitir que a atenção não acontece sem uma
certa projeção excêntrica de imagens que descem para a percepção. Expli-
car-se-ia, assim, o efeito da atenção, que é ou intensificar a imagem, como
sustentam alguns autores, ou, pelo menos, torná-la mais clara e mais distin-
ta. Compreender-se-ia o enriquecimento gradual da percepção pela aten-
ção, se a percepção bruta não fosse um simples meio de sugestão, um apelo
lançado sobretudo à memória?

A percepção bruta de certas partes sugere
uma representação esquemática do conjunto e, por aí, relações das partes
entre si. Desenvolvendo este esquema em imagens-lembranças, procura-
mos fazer coincidir estas imagens-lembranças com as imagens percebidas.
Se não o conseguimos, transportamo-nos para uma outra representação es-
quemática. E sempre a parte positiva, útil, desse trabalho, consiste em ir do
esquema à imagem percebida.

O esforço intelectual para interpretar, compreender, prestar atenção, é,
pois, um movimento do “esquema dinâmico” na direção da imagem que o
desenvolve. É uma transformação contínua de relações abstratas, sugeridas
pelos objetos percebidos, em imagens concretas, capazes de recobrir esses
objetos. Sem dúvida, o sentimento de esforço não se produz sempre nessa
operação. Ver-se-á, a seguir, que condição particular é satisfeita quando o
esforço a ela se junta. Mas é somente no curso de um desenvolvimento des-
se gênero que temos consciência de um esforço intelectual. O sentimento
de esforço de intelecção se produz no trajeto do esquema à imagem.

O esforço de invenção
Resta verificar essa lei nas formas mais altas do esforço intelectual: falo
do esforço de invenção. Como observou M.Ribot, criar imaginativamente é
resolver um problema.16 Ora, como resolver um problema senão supondo-o
inicialmente resolvido? Representa-se, diz M.Ribot, um ideal, isto é, um
certo efeito obtido, procura-se, então, por meio de qual composição de ele-
mentos obter-se-á este efeito. Transporta-se de um salto ao resultado com-
pleto, ao fim que se trata de realizar. Todo esforço de invenção é uma tenta-
tiva de preencher o intervalo por cima do qual se saltou e chegar novamente
a este mesmo fim, só que agora seguindo o fio contínuo dos meios que o
realizarão. Mas como perceber o fim sem os meios, o todo sem as partes?

Não pode ser sob a forma de imagem, visto que uma imagem que nos faria
ver o efeito realizando-se nos mostraria, interiores a essa mesma imagem,
os meios pelos quais o efeito se realiza. Forçoso é, pois, admitir que o todo
se oferece como um esquema, e que a invenção consiste precisamente em
converter o esquema em imagem.

O inventor que quer construir uma certa máquina representa-se o tra-
balho a obter. A forma abstrata desse trabalho evoca sucessivamente em
seu espírito, à força de tateamentos e experiências, a forma concreta dos
diversos movimentos componentes que realizariam o movimento total, as
peças e combinações de peças capazes de realizar esses movimentos par-
ciais. A invenção tomou corpo precisamente nesse momento, a representa-
ção esquemática tornou-se representação imagética. O escritor que escre-
ve um romance, o autor dramático que cria personagens e situações, o
músico que compõe uma sinfonia e o poeta que compõe uma ode, todos
eles têm inicialmente no espírito alguma coisa simples e abstrata, isto é, in-
corpórea.

 É, para o músico ou poeta, uma impressão nova que se trata de
desenvolver em sons ou em imagens. É, para o romancista ou o dramaturgo,
uma tese a desenvolver em acontecimentos, um sentimento, individual ou
social, a materializar em personagens vivos. Trabalha-se sobre um esquema
do todo, e o resultado é obtido quando se chega a uma imagem distinta dos
elementos. M.Paulhan mostrou, com exemplos do mais alto interesse, como
a invenção literária e poética vai “do abstrato ao concreto”, em suma, do
todo às partes e do esquema à imagem.17

Além disso é preciso que o esquema permaneça imutável durante a
operação. Ele é modificado pelas próprias imagens com as quais procura se
preencher. Por vezes não resta mais nada do esquema primitivo na imagem
definitiva. À medida que o inventor realiza os detalhes de sua máquina, ele
renuncia a uma parte do que queria dela obter ou obtém outra coisa. Do
mesmo modo, os personagens criados pelo romancista e pelo poeta reagem
à idéia ou ao sentimento que eles estão destinados a exprimir. Aí está, so-
bretudo, a parte do imprevisto. Ela está, poder-se-ia dizer, no movimento
pelo qual a imagem retorna ao esquema para modificá-lo ou fazê-lo desapa-
recer. Mas o esforço propriamente dito está no trajeto do esquema, invariá-
vel ou variável, às imagens que o devem preencher.

É necessário também que o esquema preceda sempre à imagem expli-
citamente. M.Ribot mostrou que seria preciso distinguir duas formas de
imaginação criadora, uma intuitiva e outra refletida. “A primeira vai da uni-
dade aos detalhes..., a segunda vai dos detalhes à unidade vagamente
entrevista. Ela inicia-se por um fragmento que serve de chamariz e se comple-
ta pouco a pouco... Kepler consagrou uma parte de sua vida a hipóteses
bizarras até o dia em que, tendo descoberto a órbita elíptica de Marte, todo
o seu trabalho anterior tomou corpo e organizou-se em sistema.18

"Em outros termos, em lugar de um esquema único, de formas imóveis e rígidas, do
qual se tem uma concepção distinta, pode haver um esquema elástico ou
movente, cujos contornos o espírito se recusa a fixar, porque espera sua de-
cisão das próprias imagens que o esquema deve atrair para se dar um cor-
po. Mas, seja o esquema fixo ou móvel, é durante seu desenvolvimento em
imagens que surge o sentimento de esforço intelectual.

Aproximando essas conclusões das precedentes, chegar-se-á a uma
fórmula do trabalho intelectual, isto é, do movimento do espírito que pode,
em certos casos, acompanhar-se de um sentimento de esforço: Trabalhar
intelectualmente consiste em conduzir uma mesma representação através
de planos de consciência diferentes em uma direção que vai do abstrato ao
concreto, do esquema à imagem. Resta saber em quais casos especiais
esse movimento do espírito (que talvez envolva sempre um sentimento de
esforço, mas freqüentemente muito leve ou muito familiar para ser percebi-
do distintamente) nos dá a consciência nítida de um esforço intelectual.

Trabalho do esquema e das imagens
A esta questão, o simples bom senso responde que há esforço, mais tra-
balho, quando o trabalho é difícil. Mas qual é o sinal pelo qual se reconhece
a dificuldade do trabalho? É quando o trabalho “não se realiza por si só”,
quando se experimenta um embaraço, quando se depara com um obstáculo,
enfim, quando ele leva mais tempo do que se gostaria para alcançar o fim.
Quem diz esforço diz lentidão e atraso. Além disso, poder-se-ia instalar-se no
esquema e esperar indefinidamente a imagem, poder-se-ia retardar indefini-
damente o trabalho, sem se ter a consciência de um esforço.

É preciso, pois,
que o tempo de espera seja preenchido de uma certa maneira, isto é, que
uma diversidade muito particular de estados nele se sucedam. Quais são es-
tes estados? Sabemos que há movimento do esquema às imagens e que o
espírito trabalha apenas na conversão do esquema em imagens. Os estados
pelos quais ele passa correspondem, pois, às tantas tentativas de inserir as
imagens no esquema, ou ainda, em certos casos pelo menos, às modifica-
ções aceitas pelo esquema para obter a tradução em imagens. Nessa hesita-
ção muito especial deve encontrar-se a característica do esforço intelectual.
18 Ribot, op.cit., p.133.

O que posso fazer melhor aqui é retomar, adaptando às considerações
que se acaba de ler, uma idéia interessante e profunda apresentada por
M.Dewey em seu estudo sobre a psicologia do esforço.19 Haveria esforço,
segundo M.Dewey, todas as vezes que nos servimos dos hábitos adquiridos
para a aprendizagem de um novo exercício. Mais particularmente, se se tra-
ta de um exercício físico, só podemos aprendê-lo utilizando ou modificando
alguns movimentos aos quais já estamos acostumados. Mas o antigo hábito
está aí, ele resiste ao novo hábito que queremos adquirir por meio dele. O
esforço apenas manifesta essa luta dos dois hábitos, ao mesmo tempo dife-
rentes e semelhantes.

Exprimamos essa idéia em função de esquemas e de imagens. Apli-
quemos esta nova forma ao esforço corporal, aquele com o qual o autor tem
principalmente se preocupado, e vejamos se o esforço corporal e o esforço
intelectual não se elucidariam um ao outro.

Como procedemos para aprender sozinhos um exercício complexo, tal
como a dança? Começamos olhando a dança. Obtemos, assim, uma percep-
ção visual do movimento da valsa, se é da valsa que se trata. Confiamos
esta percepção à nossa memória. A partir daí nosso objetivo é obter de nos-
sas pernas os movimentos cuja impressão assemelha-se, a nosso ver, àque-
la guardada em nossa memória. Mas qual era esta impressão? Diremos que
é uma imagem nítida, definitiva, perfeita, do movimento da valsa? Falar as-
sim seria admitir que se pode perceber exatamente o movimento da valsa
quando não se sabe valsar.

Ora, é bem evidente que, se para aprender esta dança, é preciso começar
 vendo-a em execução, inversamente, só se vê bem, em seus detalhes e
mesmo em seu conjunto, quando já se está habituado a dançá-la.

 A imagem da qual nos servimos não é, pois, uma imagem
visual fixa: não é uma imagem fixa, visto que ela mudará e tornar-se-á pre-
cisa no curso da aprendizagem que ela está encarregada de dirigir. E ela
não é mais uma imagem completamente visual, porque se ela se aperfeiçoa
no curso da aprendizagem, isto é, na medida em que adquirimos as ima-
gens motoras apropriadas, é porque as imagens motoras, evocadas por ela
e mais precisas que ela, a invadem e tendem até mesmo a suplantá-la. Para
dizer a verdade, a parte útil dessa representação não é nem puramente vi-
sual nem puramente motora.

É uma e outra ao mesmo tempo, o desenho de relações, sobretudo temporais,
 entre as partes sucessivas do movimento a ser executado.
Uma representação desse gênero, na qual estão figuradas
sobretudo as relações, parece muito com o que chamávamos de esquema.
Mas só saberemos dançar no dia em que esse esquema, suposto com-
pleto, obtiver de nosso corpo os movimentos sucessivos que ele propõe 19 Dewey, The psychology of effort, Philosophical Review, janeiro 1897.


como modelo. Em outros termos, o esquema, representação cada vez mais
abstrata do movimento a executar, deverá ser preenchido com todas as sen-
sações motoras que correspondem ao movimento se executando. Ele só
pode fazê-lo evocando uma a uma as representações dessas sensações ou,
para falar como Bastian, as “imagens kinestésicas” dos movimentos par-
ciais, elementares, compondo o movimento total. Essas lembranças de sen-
sações motoras, à medida que revivem, convertem-se em sensações moto-
ras reais e, conseqüentemente, em movimentos executados. Mas ainda é
preciso que possuamos essas imagens motoras.

O que quer dizer que, para contrair o hábito de um movimento complexo como
o da valsa, é preciso ter já o hábito dos movimentos elementares nos quais
a valsa se decompõe. De fato, é fácil ver que os movimentos que realizamos
ordinariamente para an- dar, para nos erguer na ponta dos pés, para nos girarmos,
são aqueles que utilizamos para aprender a valsar. Mas não os utilizamos tais e quais.
É preciso modificá-los mais ou menos, infletir cada um deles na direção do movi-
mento geral da valsa, sobretudo, combiná-los de uma maneira nova.

Há,
pois, de um lado, a representação esquemática do movimento total e novo,
de outro, as imagens kinestésicas de movimentos antigos, idênticos ou aná-
logos aos movimentos elementares nos quais o movimento total foi analisa-
do. A aprendizagem da valsa consistirá em obter dessas imagens kinestési-
cas diversas, já antigas, uma nova sistematização que lhes permita inserir
simultaneamente no esquema. Trata-se, ainda, aqui de desenvolver um es-
quema em imagens. Mas o agrupamento antigo luta contra o agrupamento
novo. O hábito de andar, por exemplo, contraria a tentativa de dançar. A
imagem kinestésica total do andar impede-nos de constituir, em seguida,
com as imagens kinestésicas elementares do andar e algumas outras, a ima-
gem kinestésica total da dança.

O esquema da dança não é preenchido imediatamente com as imagens apropriadas.
O atraso causado pela necessidade que o esquema tem de conduzir gradualmente
as imagens múltiplas elementares a um novo modus vivendi, ocasionado também,
em muitos casos, pelas modificações trazidas ao esquema para que se o desenvolva em
imagens – esse atraso sui generis que é feito de tateamentos, de tentativas
mais ou menos frutuosas, de adaptações das imagens ao esquema e do es-
quema às imagens, de interferências ou de superposições das imagens en-
tre si – este atraso não mede o intervalo entre a tentativa penosa e a execu-
ção fácil, entre a aprendizagem de um exercício e o próprio exercício?

Sentimento de esforço
Ora, é fácil ver que isso também acontece com o esforço para aprender
e para compreender, em suma, com todo esforço intelectual. Trata-se do es-
forço da memória? Mostramos que ele se produz na transição do esquema à
imagem. Mas há casos nos quais o desenvolvimento do esquema em ima-
gem é imediato, porque uma só imagem se apresenta para preencher esse
fim. E há outros nos quais as imagens múltiplas e análogas se apresentam
concorrentemente.

Em geral, quando várias imagens diferentes estão entre
as concorrentes, é porque nenhuma delas satisfaz inteiramente as condi-
ções do esquema. Eis por que, em tal caso, o esquema pode ter que se mo-
dificar para obter o desenvolvimento em imagens. Assim, quando quero re-
memorar um nome próprio, dirijo-me primeiro à impressão geral que dele
guardei. É ela que desempenhará o papel de “esquema dinâmico”. Logo, di-
versas imagens elementares, correspondendo, por exemplo, a algumas le-
tras do alfabeto, apresentam-se ao meu espírito.

Essas letras procuram ou compor-se conjuntamente ou substituir umas às
outras, ou seja, a organizar-se segundo as indicações do esquema.
Mas, freqüentemente, no curso desse trabalho, revela-se a impossibilidade
 de se chegar a uma forma de organização viável.

 Daí uma modificação gradual do esquema, é exigida pelas
próprias imagens que suscitou, as quais podem muito bem ter de se trans-
formar ou mesmo desaparecer. Mas, quer as imagens se arranjem simples-
mente entre si, quer esquema e imagem tenham de se fazer concessões re-
cíprocas, o esforço de evocação implica sempre um afastamento seguido de
uma aproximação gradual entre o esquema e as imagens.

Quanto mais essa aproximação exige idas e vindas, oscilações,
lutas e negociações, mais se acentua o sentimento de esforço.

Em nenhuma parte, esse jogo é tão visível quanto no esforço de inven-
ção. Nesse caso, temos o sentimento nítido de uma forma de organização,
variável sem dúvida, mas anterior aos elementos que devem se organizar,
depois de uma concorrência entre si, ou seja, quando a invenção culmina
em um equilíbrio que é uma adaptação recíproca entre a forma e a matéria.

O esquema varia de tempos em tempos, mas em cada um dos períodos ele
permanece relativamente fixo, e são as imagens que devem se ajustar a ele.
Tudo se passa como se um pedaço de borracha fosse puxado em vários sen-
tidos ao mesmo tempo para que tomasse a forma geométrica de um polígo-
no qualquer. Em geral, a borracha se encurta em alguns pontos à medida
que se alonga em outros. É preciso retomá-la, fixar o resultado obtido a cada
passo. Durante esta operação, ainda pode-se ter de modificar a forma esta-
belecida inicialmente para o polígono. Acontece o mesmo com o esforço de
invenção, quer ele dure alguns segundos, quer exija anos.

Mas este vai e vem entre esquema e imagens, esse jogo das imagens
compondo-se ou lutando entre si para entrar no esquema, enfim, esse mo-
vimento sui generis de representações é parte integrante de nosso senti-
mento de esforço? Se está presente sempre que experimentamos o senti-
mento de esforço intelectual, se está ausente quando falta esse sentimento,
pode-se admitir que não tenha qualquer participação no próprio sentimen-
to?

Mas, por outro lado, como um jogo de representações, um movimento de
idéias, poderia fazer parte da composição de um sentimento? A psicologia
contemporânea inclina-se a reduzir a sensações periféricas tudo o que há
de afetivo na afecção. E, mesmo que não se vá tão longe, parece que a afec-
ção é irredutível à representação.

 Qual é exatamente a relação entre a nuança afetiva que colore
todo esforço intelectual e o jogo particular de representações
que a análise nele descobre?

Não teremos qualquer dificuldade em reconhecer que, na atenção, na
reflexão, no esforço intelectual em geral, a afecção experimentada pode se
reduzir a sensações periféricas. Mas não se segue daí que o “jogo de repre-
sentações”, assinalado por nós como característico do esforço intelectual,
não se faça sentir nessa afecção. Basta admitir que o jogo de sensações res-
ponde ao jogo de representações e lhe faz eco, por assim dizer, em um outro
tom.

 É muito fácil compreender que não se trata, aqui, em realidade, de
uma representação, mas de um movimento de representações, de uma luta
ou de uma interferência das representações entre si. Concebe-se que estas
oscilações mentais tenham suas harmônicas sensoriais. Concebe-se que
esta indecisão da inteligência prolongue-se em uma inquietude do corpo.
As sensações características do esforço intelectual exprimiriam esta sus-
pensão e esta inquietude.

De maneira geral, não se poderia dizer que as
sensações periféricas que a análise descobre em uma emoção são sempre
mais ou menos simbólicas das representações às quais esta emoção se liga
e das quais ela deriva?

Tendemos a representar exteriormente nossos pensamentos,
e a nossa consciência dessa representação, realizando-se, retorna,
 por uma espécie de ricochete, ao próprio pensamento. Daí a emoção,
que tem ordinariamente por centro uma representação, mas na qual são
sobretudo visíveis as sensações nas quais esta representação se prolonga.
Sensações e representação estão aliás em uma continuidade tão perfeita
que não se saberia dizer onde uma termina e onde as outras começam. Eis
por que a consciência, colocando-se no meio e fazendo uma média, erige o
sentimento em estado sui generis, intermediário entre a sensação e a repre-
sentação. Mas limitar-nos-emos a indicar esta via sem nela nos deter.

O problema que colocamos aqui não pode ser resolvido de uma maneira satis-
fatória no estado atual da ciência psicológica.

Resultado do esforço
Resta-nos, para concluir, mostrar que esta concepção do esforço men-
tal dá conta dos principais efeitos do trabalho intelectual, e que ela é ao
mesmo tempo aquela que mais se aproxima da constatação pura e simples
dos fatos, aquela que menos se parece com uma teoria.


Reconhece-se que o esforço dá à representação uma clareza e uma dis-
tinção superiores. Ora, uma representação é tanto mais clara quanto nela se
realça um maior número de detalhes, e é tanto mais distinta quanto melhor
isolada e diferenciada de todas as outras. Se o esforço mental consiste em
uma série de ações e de reações entre um esquema e as imagens, com-
preende-se que este movimento interior acabe, por um lado, por isolar me-
lhor a representação, e, por outro, por enriquecê-la mais.

A representação
isola-se de todas as outras, porque o esquema organizador rejeita as ima-
gens que não são capazes de o desenvolver, e confere, assim, uma indivi-
dualidade verdadeira ao conteúdo atual da consciência. E, além disso, ela
se preenche de um número crescente de detalhes, porque o desenvolvi-
mento do esquema se faz pela absorção de todas as lembranças e de todas
as imagens que este esquema pode assimilar.

Assim, no esforço intelectual
relativamente simples, que é a atenção dada a uma percepção, parece,
como o dizíamos, que a percepção bruta começa por sugerir uma hipótese
destinada a interpretá-la e que este esquema atrai a si as lembranças múl-
tiplas que ele tenta fazer coincidir com tais ou quais partes da própria per-
cepção. A percepção se enriquece com todos os detalhes evocados pela
memória das imagens, e distingue das outras percepções pela etiqueta
simples que o esquema tiver começado, de alguma maneira, a colar nela.
Foi dito que a atenção é um estado de monoideísmo.20 E observou-se
também que a riqueza de um estado mental é proporcional ao seu esforço.
Essas duas visões são facilmente conciliáveis.

Em todo esforço intelectual,
há uma multiplicidade visível ou latente de imagens que se impelem e se
pressionam para entrar num esquema. Mas o esquema, sendo relativamen-
te uno e invariável, as imagens múltiplas que aspiram a preenchê-lo são ou
análogas entre si ou coordenadas umas às outras. Só há, pois, esforço men-
tal onde existem elementos intelectuais em via de organização. Nesse sen-
tido, todo esforço mental é uma tendência ao monoideísmo. Mas, então, a
unidade para a qual o espírito caminha não é uma unidade abstrata, seca e
vazia. É a unidade de uma “idéia diretriz” comum a um grande número de
elementos organizados.

É a própria unidade da vida.
De um mal-entendido acerca da natureza desta unidade, surgiram as
principais dificuldades levantadas pela questão do esforço intelectual. Não
se pode duvidar de que esse esforço “concentra” o espírito e o conduz a
uma representação “única”. Mas do fato de uma representação ser una não
se segue que ela seja uma representação simples. Ela pode, ao contrário, ser
complexa, e mostramos que há sempre complexidade quando o espírito rea-
liza esforço, e que esta é a característica própria do esforço intelectual.

Eis
por que acreditamos poder explicar o esforço da inteligência sem sair da
própria inteligência, por uma certa composição ou uma certa interferência
dos elementos intelectuais entre si. Ao contrário, se se confunde, nesse
caso, unidade e simplicidade, se se imagina que o esforço intelectual pode
dirigir-se a uma representação simples e conservá-la simples, como distin-
guir uma representação, quando ela é trabalhosa, desta mesma repre-
sentação, quando ela é fácil?

Como diferenciar o estado de tensão do estado de relaxamento intelectual?

Seria preciso procurar a diferença fora da própria representação.
Seria preciso atribuí-la seja ao acompanhamento afetivo da representação seja
 à intervenção de uma “força” exterior à inteligência. Mas nem este acompanhamento
 afetivo nem este indefinível suplemento de força explicarão no que e
por que o esforço intelectual é eficaz.

 No momento de dar conta da eficácia, será preciso afastar tudo o que não for
representação, colocar-se em face da própria representação, procurar uma
diferença interna entre a representação puramente passiva e a mesma re-
presentação acompanhada de esforço. Então, perceber-se-á, necessaria-
mente, que esta representação é um composto e que os elementos da repre-
sentação não têm, nos dois casos, a mesma relação entre si. Mas, se a
contextura interior difere, porque não atribuir a essa diferença a caracterís-
tica do esforço intelectual? Visto que acabar-se-á sempre por reconhecer
esta diferença, por que não começar por ela? E se o movimento interior dos
elementos da representação dá conta, no esforço intelectual, do que o esfor-
ço tem de trabalhoso e de eficaz, como não ver neste movimento a essência
mesma do esforço intelectual?

Dir-se-á que postulamos a dualidade do esquema e da imagem, ao mes-
mo tempo em que a ação de um dos elementos sobre o outro?
Mas, primeiramente, o esquema de que falamos não tem nada de mis-
terioso nem mesmo de hipotético. Ele não tem também nada que possa
chocar as tendências de uma psicologia habituada, senão em converter to-
das as nossas representações em imagens, pelo menos a definir toda repre-
sentação por relação a imagens, reais ou possíveis.

É em função de imagens
reais ou possíveis que se define o esquema mental, tal como o considera-
mos em todo esse estudo. Ele consiste em uma espera de imagens, em uma
atitude intelectual destinada, ora a preparar a chegada de uma certa ima-
gem precisa, como no caso da memória, ora a organizar um jogo mais ou
menos prolongado entre as imagens capazes de virem nele se inserir, como
no caso da imaginação criadora. Ele é, em estado aberto, o que a imagem é,
em estado fechado. Ele apresenta em termos de devir, dinamicamente, o
que as imagens nos dão como acabado, em estado estático. Presente e
agindo no trabalho de evocação das imagens, ele se apaga e desaparece por
detrás das imagens evocadas, tendo realizado sua obra.

A imagem com
contornos determinados desenha o que foi. Uma inteligência que operasse
apenas com imagens desse gênero não poderia reconstituir seu passado tal
e qual ou dele tomar os elementos fixos para os recompor em uma outra or-
dem, por um trabalho de mosaico. Mas para uma inteligência flexível, capaz
de utilizar sua experiência passada, retorcendo-a segundo as linhas do pre-
sente, seria preciso, ao lado da imagem, uma representação de ordem dife-
rente sempre capaz de se realizar em imagens, mas sempre distinta delas.

O esquema não é outra coisa.
A existência desse esquema é, pois, um fato, ao contrário da redução
de toda representação a imagens sólidas, calcadas no modelo dos objetos
exteriores, que seria uma hipótese. Acrescentemos que em nenhum lugar
essa hipótese manifesta tão claramente a sua insuficiência quanto na ques-
tão atual. Se as imagens constituem o todo de nossa vida mental, no que o
estado de concentração do espírito poderia se diferenciar do estado de dis-
persão intelectual? Seria preciso supor que em certos casos elas se suce-
dem sem intenção comum, e que em outros casos, por um inexplicável aca-
so, todas as imagens simultâneas e sucessivas se agrupam de modo a dar a
solução cada vez mais aproximada de um único e mesmo problema. Dir-se-
á que não é um acaso, que é a semelhança das imagens que faz com que
elas evoquem umas às outras, mecanicamente, segundo a lei geral de asso-
ciação?

Mas, no caso do esforço intelectual, as imagens que se sucedem
podem justamente não ter nenhuma similitude exterior entre si: sua seme-
lhança é toda interior. É uma identidade de significação, uma igual capaci-
dade de resolver um certo problema face ao qual elas ocupam posições aná-
logas ou complementares, a despeito de suas diferenças de forma concreta.

É preciso, pois, que o problema seja representado ao espírito e não sob a
forma de imagem. Sendo ele mesmo imagem, evocaria imagens semelhan-
tes a ele e semelhantes entre si. Mas visto que seu papel é, ao contrário, o
de evocar e de agrupar as imagens segundo seu poder de resolver a dificul-
dade, ele deve dar conta desse poder das imagens, não de sua forma exte-
rior e aparente. É, portanto, um modo de representação distinto da repre-
sentação por imagem, embora só possa se definir em relação a ela.
Em vão se objetaria alegando a dificuldade de se conceber a ação do es-
quema sobre as imagens. A ação da imagem sobre a imagem é mais clara?
Quando se diz que as imagens se atraem em razão de sua semelhança, vai-
se além da constatação pura e simples do fato?

Tudo o que pedimos é que não se negligencie nenhuma parte da experiência.
 Ao lado da influência da imagem sobre a imagem, há a atração ou impulsão
 exercida sobre as ima- gens pelo esquema.
 Ao lado do desenvolvimento do espírito em um único
plano, em superfície, há o movimento do espírito de um plano a outro, em
profundidade. Ao lado do mecanismo de associação, há o do esforço mental.
As forças que trabalham nos dois casos não diferem simplesmente pela in-
tensidade, elas se diferem pela direção. Quanto a saber como elas traba-
lham, é uma questão que não é só da alçada da psicologia: ela se liga ao pro-
blema geral e metafísico da causalidade. Entre a impulsão e a atração, entre
a causa “eficiente” e a “causa final”, há, acreditamos, algo intermediário,
uma forma de atividade de onde os filósofos tiraram, pela via do empobreci-
mento e da dissociação, passando aos dois limites opostos e extremos, a
idéia de causa eficiente, por um lado, e a de causa final, de outro. Esta ope-
ração, que é a própria operação da vida, consiste em uma passagem gradual
do menos realizado ao mais realizado, do intensivo ao extensivo, de uma im-
plicação recíproca das partes à sua justaposição. O esforço intelectual é al-
guma coisa desse gênero. Analisando-o, cercamos o mais perto que pude-
mos, com o exemplo mais abstrato e, conseqüentemente, mais simples, esta
materialização crescente do imaterial que é característica da atividade vital.

Tradução recebida em 06/05; aprovada para publicação em 01/06.
29(1)_8.fm Page 146 Monday, July 3, 2006 11:22 PM




De tanto pensar e querer compreender Deus e o Diabo,chego a conclusão de que  sendo Deus o Pai creador de todas as coisas,reproduziu-se e de cara o dito cujo sombrio é sua direta descendência parte de  seus auxiliares comprovadamente úteis na manutenção e perpetuação do seu Reino, o Universo.
Veja só:
O Pai cai na besteira de criar um Reino, mas só pode reinar se  existir filhos e súditos.Inventa de gerar seres semelhantes,de segunda classe, mas com idênticos pendores,desejos e sonhos de continuar reinando. Daí, era de se esperar que ao menos na adolescência, seus filhos se rebelassem, é a lei de tudo que nasce para crescer. Não deu outra: o filho, imitando o pai,aliás,a quem mais poderia imitar,se alí na intimidade do Reino nem tinha TV ou internet?

Pois foi dessa inocente espelhagem que o " portador da luz", herdeiro direto do Todo Poderoso Pai, deu de querer ser ele mesmo, de realizar-se independente do Modelo Amado.

O Pai, sabido que era,fez o filho como uma lâmpada, mas de proprósito não o ligou na tomada divina, aguardando a hora em que a própria creatura, ficasse exausta da escuridão reinante na sua mente imatura e pra que o jovem passasse com nota máxima nas provas do seu crescimento, expulsou-o pra bem longe do iluminado palácio celestial.

O rebelde infante, rolando desgovernado entre multidão de estrelas ,nebulosas qualhadas de poeiras cósmicas,bem  rentes a buracos negros,veio dar numa rocha ígnea,numa escuridão medonha onde tudo fervilhava de vontade de ser alguma coisa palpável,palatável e porque parecia errar nos confins da Via Láctea foi chamada Terra - para os mais atentos,inferno.

Então,o jovem menino filho do Todo Poderoso Rei ,que precisava tanto de auxiliares para manter acesas as suas fornalhas universo afora,de tanto rolar, caindo cada vez mais fundo no abismal útero rochoso fincado num mar de coisas incompreensíveis,não teve outro modo de se levantar senão pelos seus próprios meios,pelas ardentes pernas, na base da ignorância de tudo que se tornara e era daqui pra frente.

O pobre filho de tanto ralar os chifres na ventania do fogareu, armou-se de dentes e tridentes pra caçar o que comer e ja amolecido nas tempestades diárias,acabou descobrindo uma caverna mais acolhedora para alí dormir e medrosamente morar.

Ali,entre morcegos e bichos de toda raça, não sei como,nem com quem,talvez até com uma insinuante macaca bem peluda, soltou os cachorros dos seus bravos desejos juvenis e numa noitada,em plena escuridão, alheio e irresponsável, como todo adolescente que não está nem aí, gerou outra multidão de filhotes igualmente desavisados - nós!

E foi assim que a história de Deus e do Diabo nunca mais saiu da cabeça das mulheres contaminadas de iguais desejos de encontrar nos filhos autênticos auxiliares pra segurar essa peteca  provavelmente, por imprudência, lotou este planetinha de capetinhas voluntariosos, guerreiros, insaciáveis de drogas de toda espécie,algo que os fizesse esquecer agonias de nada saber de si mesmos e do destino que teriam neste mundo lindo, mas muito esquisito, aonde iam dançar e vagar afoitos mascarados de homem.

Deus, Diabo e a gente , parentes íntimos,é tudo faisca da mesma fornalha, digo farelo do mesmo saco sem fundo e sem fim.

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! RESUMO: Propomo-nos a mostrar que a intuição tal como aparece no pensamento
de Bergson é tanto uma faculdade de conhecimento que se opõe à
inteligência quanto um método filosófico constituído por procedimentos racionais,
os quais a propiciam e enriquecem. Nesse sentido, ambos os aspectos
da intuição estão intimamente ligados, sendo cada um imprescindível à
compreensão do outro.
! PALAVRAS-CHAVE: Intuição; método; inteligência; instinto; conceito; imagem.
Introdução
Deleuze (1966) estabelece nos primeiros parágrafos de seu livro sobre
Bergson, Le bergsonisme, o pressuposto fundamental de sua exposição,
isto é, a tese de que a “intuição é o método do bergsonismo”. Mais
ainda, Deleuze considera que este método “rigoroso”, que “tem suas
regras estritas” tornando, assim, a filosofia uma “disciplina absolutamente
precisa”, é um dos métodos “mais elaborados da filosofia”. Para
Deleuze, este é um aspecto fundamental da obra de Bergson, pois é o
“fio metódico da intuição“ que permite compreender a relação entre as
BERGSON: INTUIÇÃO E MÉTODO INTUITIVO
Jonas Gonçalves COELHO1
1 Departamento de Ciências Humanas – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Unesp –
17033-360 – Bauru – SP – Brasil.
Trans/Form/Ação, São Paulo, 21/22: 151-164, 1998/1999
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três noções que marcam as “grandes etapas da filosofia bergsoniana”:
duração, memória e élan vital. Deleuze não deixa dúvidas sobre o sentido
de sua tese, ao estabelecer também aquilo que a intuição bergsoniana
não é: “não é nem um sentimento, nem uma inspiração, nem uma simpatia
confusa”. Desse modo, em sua interpretação do pensamento de
Bergson, Deleuze privilegia claramente o “racional” em detrimento do
“irracional”, sugerindo a incompatibilidade entre esses dois aspectos.
Ao colocar em primeiro plano a intuição em seu aspecto metódico e
oferecer uma esclarecedora caracterização do método intuitivo bergsoniano,
Deleuze parece ignorar ou, pelo menos, desconsiderar o fato de Bergson,
com freqüência, referir-se à intuição como uma faculdade e definir o conhecimento
intuitivo como “simpatia”. Deleuze (1966, p.2) não explica por
que Bergson dá ao seu método filosófico o nome de “intuição” e como é
possível que a noção bergsoniana de duração, intuitiva por excelência,
tenha, segundo o próprio Bergson, precedido em muito a teoria da intuição:
poderia Bergson ter aplicado o método intuitivo antes de estabelecêlo?
Esse último aspecto é reconhecido pelo próprio Deleuze ao afirmar que
“bizarramente ... a duração permaneceria somente intuitiva, no sentido
ordinário da palavra, se não houvesse a intuição como método, no sentido
propriamente bergsoniano”. Deleuze refere-se novamente aqui a dois sentidos
para a intuição, o “ordinário” – o do senso comum – e o “propriamente
bergsoniano” – o metódico –, privilegiando o segundo, ou seja, dando,
também novamente, a entender – agora menos claramente – que a intuição
em seu primeiro sentido, ou seja, como “sentimento”, “inspiração” e
“simpatia”, não é admitida por Bergson.
Entendemos que há boas razões para discordar dessa segunda afirmação
e postular que a intuição em Bergson não é apenas um método
racional e preciso da filosofia mas também uma faculdade irracional de
conhecimento. Parece-nos que esses dois aspectos não são excludentes,
mais ainda, que o primeiro é incompreensível sem o segundo. Nesse
sentido, as regras metódicas bergsonianas, as quais são na verdade um
conjunto de procedimentos intelectuais, têm a função ou de propiciar a
intuição para si e para os outros ou de legitimá-la, já que a intuição não
depende do método, ou seja, ela pode ocorrer espontaneamente. Pretendemos,
assim, mostrar que o método intuitivo de Bergson consiste no
exercício exaustivo da inteligência a qual, voltando-se contra si própria,
deixa de ser um impedimento à intuição, propiciando a “distração” necessária
ao seu surgimento.
Procuraremos justificar essa interpretação, apontando, inicialmente,
que há diversas referências de Bergson à intuição, em vários períodos de
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sua obra, nas quais se vê claramente que o filósofo não está referindo-se
ao método intuitivo mas sim a uma faculdade ou a um modo de conhecimento
que se opõe à inteligência. A seguir, veremos como é justamente
essa oposição que explica a intuição como um método, na verdade, um
método racional.
Intuição ou inteligência
São inúmeras as vezes em que Bergson se refere à intuição tanto
como uma faculdade quanto como um modo de conhecimento distinto
do intelectual, em que não caberia a interpretação metodológica.
Em um texto de 1922, Durée et simultanéité, o qual foi incluído posteriormente
em Mélanges2 (1972), Bergson diz que algumas teses de
Einstein sobre a velocidade dos tempos múltiplos e sobre a relação entre
a simultaneidade, as sucessões e o ponto de vista dizem aquilo que o
cientista “leu, por uma intuição genial, nas equações de Lorentz” (ME,
p.59). Muitos anos antes, em um discurso pronunciado em 1895, Le bon
sens et les études classiques, Bergson chama de “gênio” à “intuição
superior ... necessariamente rara” a qual está presente “nas ciências e
nas artes” e que consiste num “sutil pressentimento do verdadeiro e do
falso, que tem podido descobrir entre as coisas, bem antes da prova
rigorosa ou da experiência decisiva, das incompatibilidades secretas ou
das afinidades insuspeitadas” (ME, p.361).
Em uma conferência proferida em 1911, L’intuition philosophique, a
qual faz parte do livro La pensée et le mouvant (1993), Bergson, referindo-
se à relação entre a intuição e a filosofia, afirma que o trabalho dos
filósofos tem consistido em uma exaustiva tentativa de exprimir uma
intuição: “Toda a complexidade de sua doutrina, que se estenderia ao
infinito, é apenas a incomensurabilidade entre sua intuição simples e os
meios de que dispunha para exprimi-la” (PM, p.119). Ainda nessa mesma
conferência, Bergson surpreende-nos ao falar de um “poder intuitivo de
negação”, o qual se manifesta na filosofia pela rejeição definitiva de certas
teses. Este é o “primeiro movimento do filósofo”, o qual poderia até
variar posteriormente em suas afirmações, mas sem variar “jamais” no
que nega, e até mesmo essa variação pode ser explicada por esse “poder
de negação imanente à intuição”. Nesse sentido, Bergson diz que a in-
2 Os textos de Bergson que se apresentam de forma abreviada são Mélanges (ME), La pensée et le
mouvant (PM) e L’évolution créatrice (EC).
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tuição se comporta em “matéria especulativa”, tanto em seu início quanto
em suas manifestações mais nítidas, como uma proibição, “ela proíbe”,
opondo-se até mesmo à razão científica:
Diante de idéias aceitas habitualmente, diante de teses que pareciam evidentes,
de afirmações que até então haviam passado por científicas, ela sopra
na orelha do filósofo a palavra: impossível. Impossível, mesmo quando os fatos e
as razões parecem convidar a crer que isso é possível, real e certo. Impossível,
porque uma certa experiência, talvez confusa mas decisiva, te diz por minha voz
que ela é incompatível com os fatos que se alegam e com as razões que se dão,
e que, por isso, estes fatos devem ter sido mal observados, estes raciocínios
devem ser falsos. (PM, p.120)
Dentre as inúmeras vezes em que Bergson se refere à intuição como
uma faculdade e um modo de conhecimento que se opõe ao da inteligência
ou, conforme os termos de L’évolution créatrice, (1991), as “duas
faculdades” que “a teoria do conhecimento deve tomar em consideração”
(EC, p.159), destacamos as que se relacionam a Kant. Bergson ratifica
a caracterização que Kant faz da inteligência no que diz respeito ao
seu modo de operação, seu campo legítimo de aplicação e aos seus
limites, mas diverge ao postular a existência de “uma outra faculdade,
capaz de uma outra espécie de conhecimento” (PM, p.86). Conforme
Bergson afirma em L’intuition philosophique, o próprio Kant provava, por
“argumentos decisivos, que nenhum esforço dialético jamais nos introduzirá
no além” (PM, p.141), que, pela dialética, a metafísica é impossível.
Kant reconhecia, também, segundo os termos de uma outra conferência
de Bergson de 1911, La perception du changement – e esta seria
uma das “idéias mais importantes e mais profundas da Crítica da razão
pura” – que se a “metafísica é possível é por uma visão” (PM, p.154), ou
seja, por meio de uma “intuição superior”, a “intuição intelectual”, enfim,
a “percepção da realidade metafísica” (PM, p.154). Assim, para Kant,
uma “metafísica eficaz seria necessariamente uma metafísica intuitiva”
(PM, p.141), embora acrescente que a metafísica é impossível justamente
pela inexistência da faculdade que propicia esse conhecimento supra-intelectual,
a intuição. Esse é, para Bergson, o erro de Kant: “toda a filosofia
que eu exponho, desde meu primeiro Essai, afirma contra Kant a possibilidade
de uma intuição supra-sensível ... supra-intelectual...” (ME, p.1322).
O papel que Bergson atribui à intuição na arte também não pode ser
caracterizado como metódico. Para o filósofo, as diversas artes constituemse
como uma “visão mais direta da realidade” (PM, p.152), um exemplo
privilegiado de expressão de uma intuição apreendida pelos artistas os
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quais são “homens cuja função é justamente ver e nos fazer ver o que nós
não percebemos naturalmente” (PM, p.149), mostrando que é possível uma
“extensão das faculdades de perceber” (PM, p.150). Os artistas são
reveladores, à medida que são capazes de mostrar, “fora de nós e em nós,
coisas que não impressionavam explicitamente os nossos sentidos e nossa
consciência” (PM, p.149), percebendo “na natureza aspectos que nós não
observávamos”. O artista isola e fixa aquilo que ele viu na realidade e que
nós, agora, “não poderemos nos impedir de aperceber”. E se nós os admiramos
é porque já havíamos percebido “alguma coisa do que eles nos
mostram”, ou seja, “nós havíamos percebido sem perceber” (PM, p.149).
Contra a afirmação de Deleuze, segundo a qual a intuição em Bergson
“não é nem um sentimento, nem uma inspiração, nem uma simpatia
confusa”, não podemos deixar de observar que Bergson propõe
freqüentemente o termo “simpatia” tanto para definir quanto para justificar
o uso da palavra intuição a qual: consiste num colocar-se “simpaticamente
no interior da realidade” (ME, p.1197); é “a simpatia pela qual
nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que
ele tem de único e, conseqüentemente, de inexprimível” (PM, p.181); é
um modo de conhecimento que pretende se liberar “de todo pressuposto
de relação e de comparação para simpatizar com a realidade” (EC, p.177).
Ao usar uma palavra que remete à tendência, instinto, sentimento, para
caracterizar a intuição, Bergson remete-nos a um significado “irracional”,
como aparece mais claramente em uma referência à possibilidade
de um conhecimento não intelectual de outras consciências: “A simpatia
e a antipatia irrefletidas, tão freqüentemente proféticas, são um testemunho
da interpenetração possível das consciências humanas” (PM, p.28).
Nesse sentido, é bastante sugestivo o fato de Bergson definir o instinto
que também opõe à inteligência – “a inteligência e o instinto implicam
duas espécies de conhecimento radicalmente diferentes” (EC, p.129)
– em termos de simpatia. Para o filósofo, é a noção de simpatia que
melhor define o instinto: “Instinto é simpatia” (EC, p.177). É nos fenômenos
de “simpatia e antipatia irrefletidos” que podemos apreender, embora
de maneira “muito mais vaga e demasiado penetrada” de inteligência,
algo do que ocorre “na consciência de um inseto que age por instinto”
(EC, p.177). Bergson chega mesmo a usar a palavra intuição como sinônimo
de instinto, associado à simpatia, ao dizer que o inseto “apreende por
dentro ... por uma intuição (vivida mais que representada) que se assemelha
sem dúvida ao que chamamos de simpatia adivinhadora” (EC, p.157).
 

Essas duas formas de conhecimento correspondem às duas linhas
evolutivas divergentes e bem-sucedidas, o instinto e a inteligência, os
quais estiveram provavelmente juntos na origem, dando lugar um ao outro
no decorrer da evolução da vida, mas sem desaparecer naquela linha
evolutiva onde não prevaleceu. É sob esse ângulo que Bergson (1992, p.265)
afirma em Les deux sources de la morale et de la religion que “em torno
do instinto animal, persistiu uma franja de inteligência” enquanto “a inteligência humana foi aureolada pela intuição”. Esse instinto que sobrevive
no homem como intuição é caracterizado como uma vaga nebulosidade
em torno do núcleo luminoso da inteligência:


 “A consciência no homem
é sobretudo inteligência ... 
a intuição acha-se completamente
sacrificada à inteligência” 
(EC, p.267). 
 
Assim, a intuição é o instinto acrescido de consciência e de reflexão – atributos da inteligência –, ampliado e aprimorado, graças à presença da inteligência: “o instinto que se tornou desinteressado, consciente de si mesmo, capaz de refletir sobre seu objeto e de o ampliar indefinidamente” (EC, p.178). É a inteligência que fornece à intuição o “arranco” que a eleva acima do objeto específico de interesse prático, que a fazia permanecer “sob a forma de instinto” (EC, p.179). Desse modo, a intuição que está presente no homem de
forma “vaga e sobretudo descontínua” acaba por constituir-se como o
“lampejo” que lança luz sobre o que é obscurecido pela inteligência:


 “É uma lâmpada quase extinta, 
que só se reacende vez por outra, por alguns
instantes apenas”  
(EC, p.268).
 

Ao apresentar algumas dentre as inúmeras referências que Bergson
faz à intuição como uma faculdade que se opõe à inteligência, como um
modo de conhecimento que não pode ser caracterizado como metódico,
não perdemos de vista o fato de que a intuição é para Bergson também
um método preciso da filosofia. Entendemos que esses dois aspectos
estão intimamente relacionados e que o segundo não pode ser compreendido
sem o primeiro.


Intuição e inteligência
No ensaio Introduction à la métaphysique, referindo-se à problemática
do conhecimento, Bergson destaca um aspecto que considera comum
aos filósofos: eles distinguem “duas maneiras profundamente diferentes
de conhecer uma coisa” (PM, p.177) e isso independentemente de
as considerarem legítimas ou possíveis. Uma dessas formas de conhecimento
consiste em manter-se no relativo, ou seja, em permanecer fora
do objeto, rodeando-o, assumindo um “ponto de vista” sobre ele e se
utilizando de “símbolos” para exprimi-lo; enfim, o conhecimento relativo
é aquele que “altera a natureza de seu objeto” (ME, p.774). Já o outro modo
de conhecimento, o “conhecimento absoluto” ou o “conhecimento do absoluto”,
caracteriza-se por entrar no objeto, apreendê-lo, captá-lo “por dentro,
nele mesmo, em si” (PM, p.178), ou seja, não se parte do sujeito, excluindo-
se, assim, o “ponto de vista” e a mediação de “símbolos”.
 

O próprio Bergson mantém essa distinção que encontra na tradição
filosófica, considerando que há efetivamente dois modos de conhecimento.
 

Para o filósofo, o conhecimento relativo, estático, por conceitos,
que envolve uma “separação entre aquele que conhece e o que é conhecido”
(ME, p.773), é o intelectual, o qual, embora se justifique pragmaticamente,
é teoricamente limitado, sendo o gerador de problemas filosóficos
aparentemente insolúveis. O conhecimento que toca o absoluto,
que tem a virtude de resolver os problemas gerados pelo anterior, é o
intuitivo. Este consiste num modo de apreensão imediata, na identificação,
na coincidência com o particular, com o que não é, portanto, traduzível
em conceitos, constituindo-se como uma visão direta da realidade: “consciência imediata, visão que não se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência” (PM, p.27).
 

Embora o absoluto possa ser apreendido intuitivamente, possa ser
pensado sem a mediação do conceito e do espaço a ele relacionado, isso
só ocorre excepcionalmente, pois, conforme Bergson nos diz já na primeira
frase do Essai sur les données immediates de la conscience (1988),
como seres inteligentes que somos, “pensamos quase sempre no espaço”
(p.vii). Esse pensamento espacializado é expresso e forjado pela linguagem
que, por meio de seus símbolos, os conceitos, se constitui como
o instrumento mais imediato da inteligência. Pelo fato de as palavras
serem o meio imprescindível de expressão do pensamento – “Exprimimonos
necessariamente por palavras” (p.vii) –, há uma incomensurabilidade
entre a intuição e os meios disponíveis para exprimi-la: “Essa intuição,
se não nos comunicará jamais completamente, porque a linguagem que
se nos fala, tão especiais e tão apropriados que se suponha seus signos,
não pode exprimir senão as semelhanças, e é de uma diferença que se
trata” (ME, p.611).
 

Para Bergson, o método intelectual opera sempre dos conceitos para
a realidade, ampliando a sua generalidade sempre que se aplica a um
novo objeto. Esses conceitos “rígidos e pré-fabricados” (PM, p.213) funcionam
como gavetas ou roupas feitas, que escolhemos para colocar o
novo objeto: “Será esta, essa ou aquela coisa? E “esta”, “essa” ou “aquela”
coisa, para nós, é sempre o já concebido, o já conhecido” (EC, p.48).
 

Esses conceitos “de origem intelectual” são “imediatamente claros” para
quem “pode esforçar-se o suficiente”, claros à medida que se “nos apresentam,simplesmente numa nova ordem, idéias elementares que já possuímos”
(PM, p.31).


 É nesse sentido que a inteligência,
 “não encontrando no novo mais do que no antigo,
 sente-se em terra conhecida; 
ela está à vontade, ela ‘compreende’”
 (PM, p.31).
 

Mas essa compreensão, propiciada pela inteligência e seus conceitos,
não advém da apreensão efetiva do absoluto que só pode ser dada
pela intuição, um modo de conhecimento incomum, não “natural” na
condição humana, e que pode ocorrer tanto espontaneamente, como no
caso da intuição artística, quanto ser preparado por um percurso analítico.
E são justamente as considerações de Bergson a respeito da intuição
artística que nos fornecem a chave para a compreensão da função do
método intuitivo.
 

Bergson considera que a ampliação do campo perceptivo do artista
está relacionada ao fato de ele ser um “distraído”, um desapegado em
relação às exigências do viver e do agir, pois, afinal, “as necessidades da
ação tendem a limitar o campo da visão” (PM, p.151). À medida que seus
sentidos e consciência “são menos aderentes à vida”, eles são capazes
de olhar uma coisa e a verem “por ela, e não mais por eles”, ou seja:
 
“Eles não percebem mais 
simplesmente em vista do agir; 
eles percebem por perceber – por nada, por prazer” 
(PM, p.152). 
As diversas artes constituem-
se como uma “visão mais direta da realidade”, e é porque “o
artista pensa menos em utilizar sua percepção que ele percebe um maior
número de coisas” (PM, p.152). Desse modo, o artista é um privilegiado
por possuir uma inclinação espontânea à distração, a qual lhe permite essa
apreensão direta da realidade. É esse mesmo resultado, “uma percepção
mais completa da realidade”, que pode ser alcançado por um esforço
metódico que consista num “certo deslocamento de nossa atenção”. O
que significa que o método intuitivo consiste em – esse é um outro aspecto
seu – “desviar esta atenção do lado praticamente interessante do
universo e de a retornar para o que, praticamente, não serve para nada”
(PM, p.153). É partindo desse princípio que Bergson nos diz que a existência
no homem “de uma faculdade estética ao lado da percepção normal”
demonstra que “um esforço desse gênero não é impossível” (EC, p.178).
 
Isso não quer dizer que a atividade artística envolva um esforço que possa
ser caracterizado como metódico, ou seja, como aplicação de regras
propiciadoras de um certo tipo de conhecimento, mas sim que a atividade
do filósofo deve consistir numa “pesquisa orientada no mesmo sentido que
a arte” (PM, p.159), isto é, deve ser orientada para produzir a “distração”
necessária à intuição. Consideremos mais detalhadamente esse aspecto.
 
Referindo-se claramente ao método filosófico que propõe, Bergson
diz que a intuição não é nem “uma contemplação passiva do espírito por
ele mesmo” nem “um sonho de onde ele sai dando suas visões para as
coisas vistas”, mas que “pode ser tão precisa quanto os mais precisos
dentre os procedimentos científicos, tão incontestável quanto os mais
incontestáveis dentre eles” (ME, p.611).

 Às vezes, parece não haver em
Bergson a coincidência entre o método filosófico e a intuição, como quando
o filósofo afirma que o método “compreende dois momentos e implica
dois passos sucessivos do espírito”: primeiro, “um estudo científico do
entorno da questão” e só após viria “a operação propriamente filosófica”,
ou seja, a intuição, que Bergson define como “um esforço muito difícil e
muito penoso pelo qual se rompe com as idéias preconcebidas e os hábitos
intelectuais totalmente feitos, para se recolocar simpaticamente no
interior da realidade” (ME, p.1197).

Mas, considerando mais atentamente,
podemos observar que o primeiro passo metodológico, o estudo científico,
tem freqüentemente o objetivo de mostrar o caráter metafísico das
interpretações científicas, podendo, assim, ser visto como um aspecto do
esforço de rompimento com os preconceitos e hábitos intelectuais
impeditivos da apreensão direta do real. Como nos diz Bergson em outro
momento, a intuição “consiste em retomar contato com uma realidade
concreta sobre a qual as análises científicas nos têm fornecido tantos
ensinamentos abstratos: para isso se auxiliará de início dessas próprias
análises” (ME, p.611) Ou ainda, a intuição poderá fazer-nos captar o que os dados da inteligência têm no caso de insuficiente e deixar-nos entrever o meio de os completar. Por um lado, de fato, ela utilizará o mecanismo mesmo da inteligência para mostrar como os esquemas intelectuais não encontram mais aqui sua exata aplicação, e, por outro, por seu trabalho próprio, ela nos irá sugerir pelo menos o sentimento vago do que é preciso pôr em lugar dos esquemas intelectuais. (EC, p.178)

Depreende-se daí que o método intuitivo bergsoniano compreende
dois aspectos fundamentais: o aspecto negativo, que consiste tanto na
denúncia do caráter ilusório das produções da inteligência quanto na
identificação da origem de certos problemas filosóficos; e o aspecto positivo,
que diz respeito à solução do problema, a qual envolve a intuição
propriamente dita, a apreensão imediata do real. Deve-se considerar, ainda,
que esses dois aspectos estão intimamente relacionados. Se por um lado
a crítica ao entendimento cria as condições propícias para o surgimento
da intuição, por outro, não se pode ignorar que as objeções à inteligência
não podem ser dissociadas da resposta proporcionada pela intuição aos
problemas formulados pela própria inteligência, incluindo aí a desqualificação
destes.

Assim, embora a crítica às ilusões da inteligência não possa
ser operada sem a mediação do entendimento, ela depende da intuição,
tanto em sua forma negativa, “poder intuitivo de negação”, quanto em sua
contrapartida positiva. Decorre daí que a intuição “fugidia”, que é no
início uma “luz vacilante e fraca” que penetra “na escuridão da noite em
que a inteligência nos deixa” só iluminando “seu objeto de longe em
longe” (EC, p.268), ganha com essa crítica, com esse exercício do entendimento que tanto a sustenta quanto a enriquece.
 
Entendemos que para Bergson a intuição é tanto uma forma de conhecimento,
que pode apenas esporadicamente e em circunstâncias especiais
acontecer espontaneamente, quanto pode ser propiciada por meio de
certos procedimentos analíticos. Não se trata de um empreendimento fácil,
pois envolve “um esforço muito difícil e muito penoso pelo qual se
rompe com as idéias preconcebidas e os hábitos intelectuais totalmente
feitos” (ME, p.1197) para criar idéias que começam “ordinariamente por
serem obscuras, seja qual for nosso esforço de pensamento” (PM, p.31).
Isso porque, como a intuição só pode ser “comunicada por meio da inteligência” esta deverá “para lograr transmitir-se, cavalgar sobre as idéias”
(PM, p.42). 


Desse modo, para que uma “idéia radicalmente nova e absolutamente
simples, que capta mais ou menos uma intuição” (PM, p.31), torne-
se clara, é necessário um trabalho de “longo prazo”. Tal idéia, que a
princípio nos aparece como “incompreensível” e “obscura”, “dissipará as
obscuridades” presentes nos “diversos departamentos de nosso conhecimento”
e, ao dissolver os “problemas que julgamos insolúveis”, ela “se
beneficiará do que tiver feito por esses problemas” (PM, p.32). Assim, a
aplicação da idéia intuitiva não apenas a torna mais clara, mas também, à
medida que seja capaz de solucionar esses problemas, ela torna-se legítima:
“sua capacidade para resolver as oposições delas suprimindo os problemas
é, a meu ver, a marca exterior pela qual a intuição verdadeira do
imediato se reconhece” (ME, p.771)


Bergson pretende, então, que uma idéia intuitiva se torne mais inteligível à proporção que se a aplica, e ela se mostra fecunda quando soluciona problemas “insolúveis”.

Cada um deles, intelectual, lhe comunicará um pouco de sua intelectualidade.
Assim, intelectualizada, ela poderá ser apontada novamente para os problemas que a servirão, depois de se terem servido dela: dissipará, ainda mais, a obscuridade que os envolvia, e tornar-se-á ela própria mais clara ... 


Estas podem começar por ser interiormente obscuras; mas a luz que projetam ao redor voltalhes por reflexão, penetra-as cada vez mais profundamente; e elas possuem então o duplo poder de aclarar em torno delas e aclarar-se a si mesmas (PM, p.32).

Mas como expressar essas idéias tendo em vista que, segundo o próprio
Bergson, a intuição não pode “se encerrar numa representação
conceitual” (PM, p.189)? Para o filósofo, o método intuitivo consiste na
inversão do “percurso natural do trabalho de pensamento, para se colocar
imediatamente, por uma dilatação do espírito, na coisa que se estuda,
enfim, para ir da realidade aos conceitos” (PM, p.206), pois, como nos
diz o próprio filósofo, “a intuição, como todo pensamento, acaba por se
alojar em conceitos” (PM, p.31)


Embora os conceitos sejam indispensáveis
à metafísica, ela deve abandonar os conceitos prontos que estão à
disposição, os quais “manejamos habitualmente”, e criar “conceitos diferentes”: a “filosofia consiste o mais freqüentemente não em optar entre
conceitos, mas em criá-los” (ME, p.503). Devemos, assim, “afastar os conceitos já prontos”, procurando, a partir da “visão direta do real”, criar
“conceitos novos, que deveremos formar para nos exprimir” e que serão
“talhados na exata medida do objeto” (PM, p.23). Trata-se, então, “de
criar completamente, para um objeto novo, um novo conceito, talvez um
novo método de pensar” (EC, p.48).


 Esse novo conceito que devemos
“talhar” para cada novo objeto deve ser apropriado somente para ele, de
tal modo “que se pode dificilmente dizer que seja ainda um conceito,
pois somente se aplica a uma única coisa” (PM, p.197). Bergson caracteriza
esses conceitos intuitivos como representações “flexíveis, móveis,
quase fluidas, sempre prontas a se moldarem sobre as formas fugidias da
intuição” (p.188), ou, ainda nesse mesmo sentido, diz que se trata de “conceitos que se modelam e se remodelam sem cessar sobre os fatos, conceitos fluidos como a própria realidade” (ME, p.501).


O que parece fluido, de fato, são os significados desses conceitos
que não podem ser expressos pelos conceitos tradicionalmente utilizados
pela inteligência. Daí por que Bergson nos remete a um outro modo
mais fecundo de expressão do pensamento, do dado intuitivo: a imagem.
Embora as imagens não sejam a intuição, elas derivam imediatamente
dela, aproximam-se da intuição mais que os conceitos, podendo ajuntarse
a eles para fornecer a intuição. Em L’intuition philosophique, o filósofo
define a imagem como “quase matéria, pois se deixa ainda ver, e quase
espírito, pois não se deixa tocar” (PM, p.130). Essas imagens, que derivam
da intuição, são indispensáveis para apreendê-la. Elas são necessárias
para “obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar e do
ponto para onde olhar” (p.130). Nesse sentido, Bergson considera que as
imagens são superiores aos conceitos, como modo de apreensão e expressão
do dado intuitivo.

Mas o que chegaremos a apreender e fixar é uma certa imagem intermediária
entre a simplicidade da intuição concreta e a complexidade das abstrações que a traduzem, imagem fugidia e evanescente, que ronda, talvez desapercebida, o espírito do filósofo, que o segue como sua sombra por entre os meandros de seu pensamento, e que, se não é a própria intuição, dela se aproxima muito mais do que a expressão conceitual necessariamente simbólica, à qual a intuição tem de recorrer para fornecer “explicações”. Observemos bem esta sombra: melhor, para nos inserirmos nela, veremos de novo, na medida do possível, aquilo que o adivinharemos, a atitude do corpo que a projeta. E se nos esforçarmos para imitar esta atitude, ou melhor, para nela nos inserir, nós veremos, na medida do possível, aquilo que o filósofo viu. (PM, p.119)


Bergson, todavia, postula também que mesmo essas imagens “que
se podem apresentar ao espírito do filósofo quando ele quer expor seu
pensamento a outro” (PM, p.186) não representam, não reproduzem o
absoluto; elas são incapazes de transmiti-lo àqueles que não são capazes
de se dar a intuição a si mesmos. Aquele que teve a intuição pode,
por meio das imagens, “provocar um certo trabalho que tende a entravar,
na maior parte dos homens, os hábitos de espírito úteis à vida” (PM, p.185),
colocar a consciência na “atitude que deve tomar para fazer o esforço
requerido e chegar, ela própria, à intuição” (PM, p.186). Embora nenhuma
imagem substitua a intuição, muitas delas “diversificadas, emprestadas
à ordem de coisas muito diferentes, poderão, pela convergência de sua
ação, dirigir a consciência para o ponto preciso em que há uma intuição a
ser apreendida” (PM, p.185). Elas podem realizar em conjunto aquilo que
não podem individualmente, ou seja, sugerir indiretamente a intuição.
 
Escolhendo imagens tão disparatadas quanto possível, impediremos que
uma qualquer dentre elas venha usurpar o lugar da intuição que ela está encarregada de evocar, pois, neste caso, ela seria imediatamente expulsa por suas rivais. Fazendo que todas exijam de nosso espírito, apesar de suas diferenças de aspecto, a mesma espécie de atenção e, de alguma forma, o mesmo grau de tensão, acostumamos pouco a pouco a consciência a uma disposição bem particular e bem determinada, precisamente aquela que deverá adotar para aparecer a si mesma sem véu. (PM, p.185)

Mas não podemos perder de vista que se, por um lado, a utilização
de imagens pode ser considerada como um dos procedimentos do método
intuitivo, o qual contribui para sugerir a intuição àquele que não a
tem, por outro, quem as propõe só as pode ter escolhido a partir de uma
intuição existente que norteia essa escolha; afinal, não são quaisquer
imagens que servem a esse objetivo. O que indica novamente que a
intuição é, sob esse aspecto, irredutível ao método intuitivo.

Conclusão
Procuramos mostrar anteriormente que a intuição em Bergson deve
ser considerada sob um duplo aspecto, como faculdade e modo de conhecimento não intelectual e como método racional. Entendemos que
não poderíamos terminar nosso trabalho sem retomar uma questão que
colocamos logo no início: a escolha do termo intuição para um método
que consiste em procedimentos intelectuais.

Na segunda parte da introdução a La pensée et le mouvant, Bergson
refere-se à escolha da palavra “intuição”, para definir seu método filosófico.
Diz ter hesitado durante muito tempo diante desse termo, embora o
considere o “mais apropriado” para designar o “modo de conhecimento”
por ele proposto. Sua hesitação, diz ainda o filósofo, deve-se à confusão
que o termo “intuição” propicia. Bergson não quer ser confundido com
outros filósofos – Shelling, Schopenhauer, por exemplo – que opuseram
“mais ou menos” a “intuição à inteligência”, que ao “sentirem a insuficiência
do pensamento conceitual para atingir o fundo do espírito ...
falaram de uma faculdade supra-intelectual de intuição”. Para Bergson,
essa intuição “está ligada à inteligência”, apenas com diferença de substituir
seus conceitos “por um conceito único que os resume a todos e que
é, conseqüentemente, sempre o mesmo, seja qual for o nome que lhe
dermos”. Tratar-se-ia de formas de panteísmo que ao darem, “antecipadamente, num princípio que é o conceito dos conceitos, todo o real e todo o possível”, é capaz de “explicar dedutivamente todas as coisas” (PM, p.25).
 
Contra essa intuição, que se confunde com a inteligência, Bergson
propõe um método que consiste em recuperar a “realidade em sua essência”,
enfim, uma “metafísica verdadeiramente intuitiva que seguisse todas
as ondulações do real”, que não abarca “de uma só vez a totalidade
das coisas” mas que dá de cada uma delas “uma explicação que se adaptaria
exatamente, exclusivamente a ela” (PM, p.25). Sob esse aspecto,
compreende-se a afirmação bergsoniana segundo a qual se pode ir da
intuição à inteligência e que “da inteligência não se passará jamais à
intuição” (EC, p.268); afinal de contas, como tivemos a oportunidade de
mostrar, com os conceitos prontos da inteligência, não podemos representar
a intuição, e que é a partir da intuição que os significados dos
conceitos deverão ser gradativamente constituídos.

Mas isso não significa uma contradição com a afirmação anterior,
segundo a qual o método intuitivo bergsoniano consiste em procedimentos
racionais, ou seja, que podemos passar da inteligência à intuição?

Não, se considerarmos que um dos aspectos do método intuitivo se
CAracteriza pela utilização da inteligência contra ela própria, buscando uma
apreensão mais direta possível dos fatos, seu verdadeiro significado, denunciando as conclusões que embora metafísicas se pretendem científicas,
criando, assim, o campo propício para o surgimento da intuição propriamente
dita, cuja representação envolverá novamente um grande esforço
por parte da inteligência. É nesse sentido que devemos compreender as
seguintes considerações de Bergson:

Intuição e intelecto não se opõem um ao outro, salvo aí onde a intuição
recusa tornar-se mais precisa pela entrada em contato com os fatos cientificamente estudados, e aí onde o intelecto, em lugar de se limitar à ciência propriamente dita (isto é, ao que pode ser inferido a partir dos fatos ou provado pelo raciocínio), combina com isto uma metafísica inconsciente e inconsistente que se reclama em vão de pretensões científicas. (ME, p.938)

 
COELHO, J. G. Bergson: intuition and intuitive method. Trans/Form/Ação (São
Paulo), v.21-22, p.151-164, 1998-1999
 

! ABSTRACT: Our purpose is to show that intuition, according to Bergson’s
thought, is both a knowledge faculty that opposes intelligence and a
philosophical method constituted by rational procedures which provides and
enriches it. In this way, both aspects of intuition are intimately connect and
indispensable to the understanding of each other.
! KEYWORDS: Intuition; method; intelligence; instinct; concept; image.


Referências bibliográficas
BERGSON, H. Mélanges. Paris: PUF, 1972.
________. Essai sur les données immédiates de la conscience. 3.ed. Paris: PUF, 1988.
________. L’évolution créatrice. 5.ed. Paris: PUF, 1991.
________. Les deux sources de la morale et de la religion. 5.ed. Paris: PUF, 1992.
________. La pensée et le mouvant. 4.ed. Paris: PUF, 1993.
DELEUZE, G. Le bergsonisme. Paris: PUF, 1966.
Trans/Form/Ação, São Paulo, 21/22: 151-164, 1998/1999
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Pablo Picasso

Li
 Fonte:
http://www.scielo.br/pdf/trans/v29n1/30285.pdf.
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