sexta-feira, 29 de junho de 2012

TRÊS DURAÇÕES : Nelson,Glauber e Bressane



Três Durações:

Nelson, Glauber e Bressane 1

Alexandre Rocha da Silva 2

Vinícius da Silva Pellenz 3

RESUMO
Três Durações: Glauber, Bressane e Nelson identifica formas de brasilidade expressas pelo
Cinema Novo. Recupera de Bergson os conceitos de imagem-lembrança, imagem-ação e
duração para expressar indícios de brasilidade que ora se como identidade nacional ora
como devir de um outro país imaginado pelo cinema. O Cinema Novo oferece formas de
expressão remidiatizadas em que se visibilizam as estratégias micropolíticas que
configuram a nacionalidade brasileira não mais somente como identidade, mas, sobretudo
como memória.
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1. Memória. Um corpo-imagem
Em Matéria e Memória (Bergson, 1990), Henri Bergson destaca importantes
conceitos que potencializam as análises sobre o audiovisual e suas vertentes midiáticas:
a memória e sua relação com as imagens. Para pensar a memória como agente possível
na criação de subjetividades é preciso, segundo o autor, que se observem as funções do
corpo e suas potencialidades em relação às imagens que lhe são exteriores. Nosso corpo
mantém posição privilegiada em relação às imagens e aos objetos em geral, justamente
porque com o corpo estabelecemos diferentes formas de ação. “Os objetos que cercam
meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles” (Bergson, 1990, p. 12).

Esse processo corpo/imagem, muito mais que uma relação de causa-efeito, representa o
princípio para entendermos as formas de criação das imagens e, mais tarde,
identificarmos os aspectos constitutivos na produção de audiovisualidades (através de
suas imagens/sons em movimento). Assim, além de ocupar posição privilegiada, o corpo
é uma espécie de componente ativo na relação imagens/subjetividade. Bergson explica:

Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que
chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente
novo a não ser por intermédio de certas imagens
particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo.
(Bergson, 1990: 10).

Com o corpo construímos subjetivamente os objetos e as relações com o mundo.
Imagem, então, é também memória porque é das imagens que extraímos os
fatos/acontecimentos que configuram nossa forma de relação em sociedade ou com
outros objetos, portanto nossa ação sobre as coisas identificando-as como imagemlembrança
ou remidiatizando-as como imagem-ação.

1.1 Imagens-lembrança: o passado inteligente
Considerando nosso corpo e suas relações com a matéria, e aqui destacamos
matéria como o conjunto de imagens que nos cercam, a memória é uma espécie de
regente de todo o processo. Desse processo permanecem ativos o passado e o presente,
circunscrevendo os limites de nossa interpretação. Desse tipo de imagem a que Bergson
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chamou de imagens-lembrança identificam-se apenas a parte inteligível da relação com
os objetos, onde, ao invés de experimentarmos as imagens, as identificamos, tentando
recuperar sua claridade e, principalmente, sua utilidade em nossas vidas. Portanto, das
imagens-lembrança nasce nosso reconhecimento dos objetos: sua comunicabilidade.

Por ela [imagem-lembrança] se tornaria possível o
reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de
uma percepção já experimentada; nela nos refugiaríamos
todas as vezes que remontamos, para buscar aí uma certa
imagem, a encosta de nossa vida passada. (Bergson,1990: 62).

Das imagens-lembrança podemos reter o movimento sígnico, na medida em que
esse movimento nos indica pedaços de referencialidades de situações passadas. Nossa
compreensão, nesse sentido, absorve esses pedaços tornando possível armazenar o
passado como memória. (Bergson, 1990: 62). Essa atitude da memória obtemos a partir
das nossas experiências e dos nossos hábitos, que configuram perspectivas
comunicacionais, estéticas, éticas e políticas a um só tempo.

1.2 Imagens-ação. O presente sensível
A consciência de um passado que registra nossas ações está ligada a uma
necessidade de remontar nossas percepções. Como foi dito anteriormente, entendemos o
corpo pelas possibilidades que nossos sentidos podem obter das imagens exteriores a ele.
Assim, identificamos um outro tipo de imagem, que não apenas reconhece por hábito uma
atividade passada de nossa vida, mas que recria esse passado: as imagens-ação. Das
imagens-ação, esperamos sempre ter uma atitude voltada para o presente, mas para um
presente sensível, que tem a memória como uma forma criadora do passado. Gilles Deleuze
(1999) destaca as imagens-ação como puro devir, que ocorre quando as imagens perdem
suas referencialidades para dar lugar a uma memória singular e sensível. Essencialmente, as
imagens-ação são responsáveis pela encenação de nossa vida e não pela representação de
nosso passado.
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1.3 Duração

O reconhecimento do passado nas imagens-lembrança e a projeção do presente em
imagens-ação fazem de nosso corpo uma máquina capaz de ora lembrar e identificar
fatos/acontecimentos, ora produzir/encenar nossa vida sobre as imagens. Desse processo
comunicativo podemos entender nossa memória como passado/presente. Mas sempre um
passado/presente coexistente, que busca dar espaço à inteligência da matéria e possibilitar
um caminho possível aos atos sensíveis. Henri Bergson chamou esse processo de duração.
Para o filósofo, a duração, bem mais que um processo natural e pragmático de
conhecimento das coisas, expressa a forma de nos posicionarmos no tempo e no espaço.
Buscamos no passado a inteligibilidade das coisas e no presente nossa forma de agir sobre
elas. Portanto, aqui, evidencia-se um processo que faz reconhecer/variar tanto nossas ações
cotidianas quanto nosso reconhecimento sobre as imagens, ou seja, sobre nossas
comunicações.

Não há continuação de um estado sem adição delembranças de momentos passados ao presente; enisto consiste a duração. Ela é vida contínua de umamemória que prolonga o passado no presente. Nessesentido, a temporalidade do ser passa a ser umcontínuo crescente de novidades e conseqüentesmudanças nos momentos que se sucedem. (Sayegh.1998: 29) 
A duração representa um movimento singular que visa reunir todos os gestos e
forças subjetivas para que dela seja possível reconhecer, para os propósitos deste artigo,
audiovisualidades em potencial. Ora, se por um lado temos uma memória que busca nas
lembranças sempre um fundo claro para a percepção, e obtemos do presente momentos
singulares de nossa ação, então entre o passado e o presente existe uma diferença de
natureza e não de grau. Com efeito, Bergson obtém dessas duas forças (passado-presente) o
primeiro fundamento para desenhar os caminhos dos processos de singularização.
 
O objetivo central deste artigo consiste em identificar alguns indícios de diferentes
durações no cinema brasileiro a partir das obras de Nelson Rodrigues, Glauber Rocha e
Julio Bressane para pensar a cultura em movimento produzido por audiovisualidades.
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2. Cultura: as imagens de um devir
Pensar as audiovisualidades e sua ação na cultura requer apreender as imagens como
signos que expressam durações. Para o cinema brasileiro, principalmente o Cinema Novo
(CN), isso representou experimentar o audiovisual a partir dos modelos vigentes à sua
época, remidiatizando-os. Analisar o CN exige-nos, portanto, estabelecer relações
micropolíticas com a cultura. Qual a influência das linguagens projetadas pelo Cinema
Novo na construção da cultura brasileira como duração? Apresentamos como premissa
básica um pouco do legado guattariniano:

Todos os devires singulares, todas as maneiras de existirde modo autêntico chocam-se contra o muro dasubjetividade capitalística. Ora os devires são absorvidospor esse muro, ora sofrem verdadeiros fenômenos deimplosão. (Guattari. 1996: 50)

Felix Guattari nos indica teoricamente um caminho para o desafio da singularização
contra a lógica capitalística. As imagens expressas na cultura, principalmente reveladas
pelo CN, demonstram um vir a ser extremamente curioso. Desde o início, o então Cinema
Novo tratou de propor rupturas com as formas estéticas do cinema de sua época
reconfigurando a memória pela criação de imagens-ação. Em linhas gerais, o CN
reconhecia seu passado cultural como imagem-lembrança, e mais do que isso, fazia questão
dele como matéria de uma memória a ser produzida. Dessa matéria prima para suas
produções, destacamos três fatores:

- Reconhecimento do passado: a escolha de temas que expressam problemas
políticos e sociais e a importância do contexto histórico para as tramas
caracterizam o ponto de partida das produções do CN. A busca pela
identificação de um fato/acontecimento passado como pano de fundo surgiu
como forma pedagógica de representar a cultura brasileira e seu contexto
político-social.
6
- Regionalismo: o nordestino, o carioca e os personagens regionais revelam
aspectos culturais importantes da história brasileira. O regionalismo foi muito
explorado para tentar identificar os costumes e a tradição da cultura brasileira.

- Transgressão estética: a mais importante contribuição para o cinema nacional
foi o conceito estético que o CN propôs. O experimentalismo e a ruptura com as
técnicas cinematográficas, principalmente norte-americanas, tornaram-se marcas
desse movimento.4

As formas cinematográficas dominantes operavam em torno da reapresentação de
imagens-lembrança. A busca por uma imagem-passado clara e referencial indicava a
afirmação de um discurso produtor de subjetividades serializadas e integradas, para que se
pudesse construir um tipo de imagem universal, ou que, pelo menos, pudesse conferir
traços de sentido e identificação a uma cultura desenvolvida, a um projeto exemplar de
família, à construção de um modelo para os gêneros. Esse tipo de proposta busca nas
imagens-lembrança modelos de representatividade correspondente a suas estéticas e éticas.

Com o CN, o reconhecimento do passado como componente para a construção de
uma crítica à cultura nacional funcionou na medida em que as imagens-lembrança
resgatadas pelo nordestino e o sertão (O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro) e o
carioca no subúrbio do Rio de Janeiro (A Falecida) serviram como cenário principal. A
importância do contexto histórico estava direcionada à oportunidade que o CN
proporcionou de produzir sua própria memória. O CN não apenas reconhece uma dada
memória-lembrança, mas propõe-se a criar outra (imagem-ação).

Mas o que se quer neste artigo é identificar a potencialidade do CN na cultura. Para
Félix Guattari a cultura não está dissociada dos modos de produção dominantes, mas pelo
contrário:
O conceito de cultura é profundamente reacionário. 
É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades 4Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento. Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema marginal e O Olhar e a Cena: Melodrama, Hollywood, Cinema novo, Nelson Rodrigues indica algumas características do Cinema Novo e suas produções. Dentre elas a retomada do passado, a estrutura estética e a crítica à cultura. Aqui nesse artigo, destacamos essas três características para entendermos sua ação na cultura brasileira.
 7 de orientação no mundo social e cósmico) em esferas, àsquais os homens são remetidos. Tais atividades, assimisoladas, são padronizadas, instituídas potencial ourealmente e capitalizadas para o modo de semiotizaçãodominante – ou seja, simplesmente cortadas de suasrealidades políticas . (Guattari, 1996: 15)

Para Guattari, a construção das realidades culturais expressa a forma como
relacionamos as coisas do mundo (imagem-ação). Uma realidade política está associada,
por exemplo, à maneira como interpretamos uma obra de arte, escutamos determinada
música, e também como nos posicionamos sobre assuntos como guerra, política, economia.
As realidades políticas, portanto, estão ligadas a processos de subjetivação. Mas o modelo
de semiotização dominante interfere na construção dessas realidades políticas
transformando a cultura em atividades separadas, em um processo de culturalização. Não é
o sujeito que transforma a cultura, mas a cultura que modela o sujeito. O atrevimento de se
singularizar estaria em quebrar essas esferas semióticas instituídas (molares) e formar
novos arranjos estéticos, éticos e políticos a um só tempo.

 A cultura brasileira, como organismo, 
está associada às realidades políticas que os meios constroem, 
mas para Guattari, trata-se simultaneamente 
de uma atividade micropolítica (molecular).
Sob todo
esse processo, a cultura capitalística articula-se sobre duas principais vias, a primeira da
cultura e a segunda do capital. A isso Guattari chamou de cultura de equivalência ou
sistemas de equivalência nas esferas da cultura, “o capital ocupa-se da sujeição econômica,
e a cultura, da sujeição subjetiva.” (Guattari, 1996: 15). Os modos de produção
dominantes, portanto, estão direcionados a buscar, dentre todas as formas possíveis e
previsíveis de subjetividade presente na cultura, uma forma de “integralização”, o que
permite “uma melhoria nas performances da produção de subjetividade do sistema”
(Guattari, 1996, p. 51).

5 Para Guattari existem duas ordens de problemas comunicacionais: Molares e Moleculares que diferem quanto à sua natureza. 

1. aqueles molares, propriamente midiáticos, que abarcam questões relativas à propriedade, às legislações, aos usos (públicos e privados dos meios) e, também, às gramáticas das mídias e a seus discursos. Dessa ordem de problema participam – com suas táticas e estratégias específicas – tanto os donos dos meios de produção audiovisuais quanto os grupos que a eles fazem oposição em busca do espaço comunicativo a que julgam ter direitos;

 2. aqueles moleculares, pós-midiáticos, que abarcam todos os devires da comunicação, desde os mais criativos até os genuinamente fascistas, capazes de fazer variar as formas molares e de inventar articulações materiais micropolíticas geradoras de novas formas mídiáticas. Aqui, como salientaria Guattari em outro contexto, o pós-midiático não vem depois, mas está sempre aí, como uma máquina produtora simultaneamente de formas atualizadas e de devires infinitos. (Silva e Pellenz, 2006: 225)
8
Para a cultura, as ações dos meios (cinema) estão relacionadas com seu sentido, ou
como essa ação pode fazer variar seus significados. No CN, podemos pensar que as ações
da cultura são diretamente proporcionais às ações de audiovisualidades. Toda a concepção
estética, além de produzir movimentos moleculares, busca na própria linguagem uma forma
de ‘comunicar’. As imagens-lembranças não dão conta apenas de estabelecer uma relação
útil e inteligível com o passado, mas de buscar, nas imagens-lembrança, possibilidades para
falar de brasis. Nesse sentido, o CN identifica suas realidades em si mesmo, quando recorre
às imagens-lembrança para contar seu passado. Porém, o CN utiliza sua memória para
exercer uma espécie de jogo com a cultura, um jogo de audiovisualidades. Com imagenslembrança é possível obter um terreno referencializável para reviver o Brasil, mas,
paradoxalmente, o reconhecimento do passado proporciona um caminho para a crítica da
cultura, na medida em que se produzem imagens-ação sobre esse mesmo passado. Esse
processo o CN quer identificar para agir, reconhecer para re-midiatizar6.

3. Nelson Rodrigues e A Falecida
Em A Falecida, filme de Leon Hirszman inspirado na obra homônima de Nelson
Rodrigues, temos a vida de um casal que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. Zulmira,
personagem principal, mantém uma relação conturbada com seu marido, Tonico.
Estranhamente, Zulmira decide morrer, mas sua morte é construída sobre o signo da
vingança e em função da inveja que tem de sua prima Glorinha, única a saber que Zulmira
teve uma relação extra-conjugal com Paulo Honório, um rico empresário do Rio de Janeiro.
Diante de um marido desempregado e fanático por futebol, Zulmira planeja sua própria
morte. Espera morrer para se permitir ficar nua diante de todos e mostrar seu corpo para
Glorinha, que teve que retirar um seio em função do câncer.

Nelson Rodrigues expõe o cotidiano nas fraquezas humanas para poder retirar desse
cotidiano sua forma de ação. Nesse sentido, as decisões dos personagens provocam
movimentos na cultura. Zulmira, que decide vingar-se, depois planeja morrer e mais
6 A re-midiatização pode ser compreendida como recriação subjetiva das imagens-lembrança (midiáticas) a partir da produção de imagens-ação. adiante trai seu marido, estabelece uma espécie de sub-tramas, em série, que aparecem como uma máquina de agir sobre os locais, os objetos e as imagens. 

Em Nelson, o passado
é remetido a uma ordem irreversível, que surge como imagem-lembrança. Por outro lado,
essas imagens-lembranças representam o lugar de ação de cada personagem. Mas um lugar
ainda estranho, onde apenas se identificam objetos. As imagens-lembrança fluem como um
estado de espírito em busca de sua realização/ atualização, mas ainda assim não configuram
uma ação singular, apenas um reconhecimento momentâneo. Portanto, o passado em A
Falecida satisfaz os personagens, o Rio de Janeiro, a funerária, o jogo de futebol, etc. As
imagens-lembrança possibilitam ao autor reconhecer um Brasil, uma cidade, uma relação
amorosa e um desejo de morte. Mas desse reconhecimento até sua efetiva ação é preciso se
afastar da lembrança e se posicionar no presente da ação, para que o passado se movimente
de forma extensiva ao presente.

Zulmira teve durante um tempo um affair com Paulo Honório, no entanto se
comporta como uma mulher recatada, que não se permite ficar nua diante do marido.
Tonico fica muito abalado quando descobre que sua mulher o traiu durante muito tempo,
mas não hesita em chantagear Paulo Honório para extorqui-lo e, assim, conseguir dinheiro
para assistir ao jogo do seu time no Maracanã.

Nelson Rodrigues conhece um passado que o permite agir. Sua ação, no entanto, é
no sentido de superar esse passado, mesmo que seja pela vingança. As imagens-ação
estabelecem uma linha muito fina entre esse passado-presente, na medida em que os
personagens só reagem porque lembram. Lembram a toda hora, de sua condição miserável,
de seu sentimento de traição, de seu ciúme.

Nelson inventa um passado-presente (duração) que expressa brasilidades. As
brasilidades familiares em A Falecida tomam corpo na medida em que fazem de uma
lembrança um deboche, uma ironia. O presente nos leva a perceber um Brasil imaginado
pelo cinema a partir do subúrbio carioca, do estádio de futebol e dos bares, e materializado
nos personagens de A Falecida.
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3.1 O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e Glauber Rocha

Longe dos grandes centros urbanos e com uma estética inspirada no tropicalismo, O
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968) não só fala do Brasil, através das
imagens, como quer imitá-lo. O sertão posto como objeto no filme de Glauber Rocha
evidencia aspectos, mesmo que caricaturados, de crítica ao poder central, à religiosidade e
ao mito do herói no País. A literatura de Cordel é a proposta do cineasta para resgatar na
memória sertaneja e, paralelamente, na memória do brasileiro, uma forma de Brasil que se
esconde no sertão.

O passado em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro transita na atitude
dos personagens e faz com que suas decisões, ao longo do filme, relembrem sua condição
política e social dentro do contexto sertanejo. As imagens-lembrança transitam de maneira
livre sobre o cenário quente do nordeste brasileiro. Mas a memória glauberiana faz as
imagens alcançarem uma espécie de vida própria. Do cenário (Sertão), até Antônio das
Mortes, um símbolo da prática do “olho por olho”, as imagens em movimento tecem o
campo da cultura. A reconstituição do passado não serve simplesmente como uma mera
lembrança de um cineasta perdido em seu tempo, mas, pelo contrário, “a regra de o
Dragão da Maldade é a mescla de referências e não a pura reiteração dos materiais da
tradição nacionalista” (Xavier, 1993: 163).

No entanto, as referências à cultura brasileira servem de apoio às imagenslembrança
e ao próprio Glauber. Os personagens do filme são todos eles, cada um em sua
devida proporção, atuadores no presente do Sertão, mesmo que a maioria deles, durante
muito tempo, apenas repita o discurso dominante. Glauber Rocha usa o argumento do
cristão-burgês-coronel para representar a alegoria do subdesenvolvimento, que ora mostra
imagens-lembrança, ora faz delas pontos para a crítica à cultura. Nesse sentido, a religião, o
coronel e o cangaceiro matador representam o eixo central do filme e deles surge o
desenvolvimento da trama. Glauber conduz o filme a ponto de provocar um choque entre
imagens e, na memória brasileira, faz nascer um movimento contrário à identidade cultural.
 
O cineasta faz sua crítica quando lembra do Brasil (passado) e desenha outras brasilidades
na cultura quando age sobre ela (presente). Nesse sentido, O Dragão da Maldade faz o
sertão fugir por outros modos temporais, transformando o processo entre passado-presente
(duração) em uma teia múltipla, em duração.

O filme se programa como representação que convoca o
mito como princípio organizador mas reconhece a
efetividade de outras esferas na condução dos
acontecimentos. Para mostrar sua vigência, a lenda
precisa se ‘atualizar’, mergulhar no presente vivido como
um paradigma capaz de suplantar, inscrever, outros
influxos do tempo (Xavier, 1993: 185).

Com efeito, as imagens-lembranças estabelecem o lugar de saída para o
desenvolvimento da narrativa, mas é no arranjo cinematográfico entre personagens e sertão
que a crítica cinemanovista se atualiza. O reconhecimento do passado e a desconstrução dos
mitos identitários expressam a crítica glauberiana à cultura nacional. A coroação do Sertão
pelo Mar e do Mar pelo Sertão é o movimento cinemanovista, no que diz respeito à sua
ação sobre a cultura. A inversão dos valores, dos gêneros e a retomada do Mar sobre o solo
seco e árido do nordeste brasileiro é a imagem da vida sobre a política militar, o poder e as
formas de subjetividade dominantes. Uma imagem-ação que se desenha sobre a cultura
como audiovisualidade.

3.2 Matou a Família e foi ao Cinema e Julio Bressane
Matou a Família e foi ao Cinema, de Júlio Bressane, é um filme que se propõe a
falar de si mesmo. O filho de Matou a Família, após assassinar a mãe e o pai, decide ir ao
cinema e assistir o filme Perdidos de Amor. O filme dentro de um filme. A escolha de
Bressane evidencia o cinema como personagem principal da história.
A temática escolhida por Bressane preza pelo mal-estar, também característico do
Cinema Novo. Sexo, sangue, morte e violência são questões trabalhadas para possibilitar à
cultura audiovisual brasileira uma experiência que não fosse a patriarcalista-burguesacristã.
Os planos–sequências experimentados por Bressane levaram ao limite a linguagem
cinematográfica e sua ação está expressa na reflexão que o filme proporciona. Matou a
Família busca na memória nacional elementos exteriores à cultura dominante e faz de si
próprio objeto de experimentação para tentar investigar novas potencialidades
cinematográficas brasileiras: Bressane intui um País a ser criado.

4. Considerações Finais
Ao longo deste artigo, identificamos no cinema brasileiro algumas formas de
duração audiovisual expressas como brasilidades: a de Nelson e o universo privado, a de
Glauber e o universo sertanejo e a de Bressane e o universo artístico. Nosso objeto de
estudo, os filmes O Dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha,
Matou a Família e foi ao Cinema, de Julio Bressane, e A Falecida, de Leon Hirszman
baseado na obra homônima de Nelson Rodrigues, expressam, na cultura nacional,
movimentos de brasilidades.

Destacamos as brasilidades que o cinema nacional inventou considerando os
movimentos da memória. Nesse sentido, foram recuperados, de Henri Bergson, os
conceitos de duração, de imagem-lembrança e de imagem-ação. Para capturar essas
brasilidades, metodologicamente, foram identificadas ações do cinema em seu tempo
(presente) relativas à reconstrução, pela memória, de traços de identidade nacional. Tais
movimentos (imagem-lembrança e imagem-ação), articulados, constituem o que, neste
artigo, é o próprio da comunicação, considerada como dispositivo criador de culturas. Para
Bergson, nosso presente é uma extensão de todo o nosso conhecimento passado, e do
passado temos apenas algumas lembranças, como rastros7.

A construção de uma crítica à identidade cultural brasileira, no Cinema Novo, pode
ser explicada a partir da idéia de duração, proposta por Bergson. Em alguns casos, esse
lembrar está expresso nos discursos dominantes repetidos pelos personagens (O Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro), em pequenos flashbacks que retomam um passado
como argumento para o presente (A Falecida) ou na sala de cinema quando o próprio filme
é o seu passado (Matou a Família e foi ao Cinema).


 ABSTRACT
Three Durations: Glauber, Bressane and Nelson identifies ways of brasilitiy expressed by
the “Cinema Novo”. It recollects Bergson’s concepts of image-memory, image-action and
duration to reveal indexes of brasility that express themselves as national identity and to
come of another country imagined by the cinema. The “Cinema Novo” offers remediated
ways of expression in wich the micropolitic strategies that configure the Brazilian
nationality are viewed, not only as identity, but, especially, as memory.
Key words: brasility, duration, cinema, audiovisualities.


7 O conceito de rastros foi desenvolvido por Jacques Derrida em Gramatologia (1973).
13 - Assim, o Cinema Novo propõe pensarmos o cinema e sua ação na cultura não só
pela crítica referencial, mas também por seu método e por sua linguagem. O
reconhecimento do passado, o regionalismo e a transgressão estética são apenas três
elementos que integram esse método tão eficaz para que se pensem audiovisualidades
brasileiras. Para a cultura das mídias o passado serve apenas como guia de um tempo que já
passou, e está apenas como lembrança de uma sociedade que revive seus signos em simples
imagens. Mas as durações de Glauber, de Nelson e Bressane vêm justamente como
contraponto a essa lógica, pois não vale somente lembrar, ou reconhecer seu passado, é
preciso agir sobre ele, no sentido de dar a ver identidades brasileiras potenciais.
Referências Bibliográficas
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
São Paulo: Editora Martins e Fontes, 1990. DELEUZE, Gilles; Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.
DERRIDA, Jacques; Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.
GUATTARI, Félix; Revoluções Moleculares; Pulsações políticas do desejo. Org: Suely
Rolnik. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. SAYEG, Astrid. Bergson O Método Intuitivo: Uma abordagem positiva do espírito. Série
Teses N. 1.São Paulo: Humanitas publicações FFLCH/ USP, 1998.
SILVA. Alexandre Rocha da. Elementos para uma comunicação pós-midiática. (tese: Unisinos, 2003) SILVA, Alexandre Rocha da e PELLENZ, Vinícius da Silva. Memória audiovisual brasileira. In: DUARTE, Elizabeth bastos e CASTRO, Maria Lília Dias de. Televisão entre o mercado e a academia. Porto Alegre: Sulina, 2006. XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento. Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal. 1. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993


1 Este artigo é resultado parcial do projeto de pós-doutoramento,
 com apoio da Capes/Cofecub, desenvolvido na Universidade de Paris 3.

2 Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação
 em Ciências da Comunicação da Unisinos,
 com pós-doutorado pela Universidade de Paris.

3 – Sorbonne Nouvelle -,
 doutorado em Ciências da Comunicação,
Mestrado em Semiótica e Graduação em Jornalismo. 
Autor do livro A dispersão na semiótica das minorias,
atualmente desenvolve a pesquisa Devires de Imagem-Música 
e participa dos Diretórios de Pesquisa do CNPq

Micropolíticas das mídias como devires de cultura e Audiovisualidades 
(GPAV). arsrocha@gmail.com
3 Estudante de Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
 (UNISINOS) e bolsista da pesquisa
Devires de Imagem-Música. pulgosivo@hotmail.com

 Fonte:
http://www.uff.br/ciberlegenda/ciberlegendajulhoartigoalexandreevinicius.pdf

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