sábado, 9 de junho de 2012

DO PRAGMATISMO À INTUIÇÃO MÍSTICA: UMA LEITURA BERGSONIANA DE WILLIAM JAMES




Pablo Zunino

Resumo: Este artigo examina a relação entre psicologia e metafísica à luz da última obra de Bergson – As duas fontes da moral e da religião. Julgamos que, nessa obra, o autor concebe uma nova direção para a filosofia, onde confluem as suas análises psicológicas sobre a duração, a sua teoria pragmatista do conhecimento, o seu método de intuição e a sua metafísica da vida. Essa direção, marcada por uma preocupação essencial do pensamento bergsoniano com a espiritualidade, é a que põe em relevo a experiência mística; e poderia explicar, ainda, a simpatia intelectual entre Bergson e William James. Estudar a última obra de Bergson em cotejo com alguns textos de James nos encaminhará para uma compreensão mais nítida do caráter fundamental do místico, aquele que conjuga contemplação, ação prática e verbalização dos sentimentos derivados da experiência. O pragmatismo de James, porquanto fornece o arcabouço experimental da noção de estado místico de consciência, se configura como um complemento substancial desta pesquisa e delimita, ao mesmo tempo, o nosso objeto de estudo. Tomando por base estas duas concepções de misticismo, que balizam a diferença entre uma abordagem ontológica e uma abordagem psicológica da subjetividade, pretendemos avaliar até que ponto se pode conciliar a especulação metafísica com as experiências no campo da psicologia, mostrando o que elas partilham e o que as distingue.
Palavras-chave: Ação. Pragmatismo. Experiência. Intuição. Misticismo. Consciência.

I – Verdade e ação
Em um trabalho anterior1, distinguimos o conceito de ação como um critério
pragmatista através do qual Bergson dissolve alguns problemas clássicos da história da filosofia, tal como o problema da união da consciência e o corpo. Essa hipótese assume agora uma relevância completa, na medida em que nos encaminha para o aprofundamento de um aspecto-chave da filosofia contemporânea, a dimensão da ação, onde tudo está se fazendo, onde o que importa não é o ser ou o não-ser, mas o vir a ser. Seria esta dimensão da ação aquilo que permite englobar, sob um mesmo nome, certas tendências que careciam de um nome geral?

Ao que parece, é precisamente assim que William James concebe o pragmatismo:

 “O termo deriva 
da mesma palavra grega pragma, 
que significa ação, do qual vêm 
as nossas palavras ‘prática’ e ‘prático’”.2 

Assim sendo, poderíamos sugerir que das influências recíprocas entre bergsonismo e pragmatismo não se desprende apenas um pensamento que nos incita à ação, senão também uma concepção de filosofia como prática.

Cabe destacar que esse entrecruzamento de idéias entre Bergson e James está parcialmente registrado na enérgica correspondência que se estabeleceu entre eles durante a primeira década do século XX.3

Na obra A pluralistic universe (1909), James cita a teoria de Fechner, que concebe a Terra como um ser independente, dotado de alma divina. Para Bergson, isso reflete a “psicologia do sentimento religioso” que James desenvolve em sua obra anterior, As variedades de experiência religiosa (1902), ao descrever o espírito do místico.

“As almas que preenchem o entusiasmo religioso são verdadeiramente levantadas e transportadas”, escreve Bergson, suspeitando que aí deva encontrar-se a “idéia inspiradora” do pragmatismo, pois para o pensador americano o que realmente importa é conhecer aquelas verdades que foram “sentidas e vividas antes de serem pensadas”. Cabe sublinhar aqui a diferença entre “constatar friamente uma coisa que se passa fora de nós” e o sentido exato do verbo experimentar, que implica “sentir em si mesmo, viver por si próprio tal ou qual maneira de ser”.4 Isso autoriza Bergson a pensar que as verdades podem ser reveladas tanto pelo sentimento quanto pela razão, detectando nessa pluralidade da verdade a “tese mais importante do pragmatismo”.

Quando o critério da verdade passa a ser o gênero de utilidade visado, cuja direção depende da própria realidade, se inverte a ordem na qual estamos acostumados a colocar as diversas “espécies de verdade”. Se concebermos a verdade como uma invenção, a diferença entre as “verdades de sentimento” e as “verdades científicas” poderá ser comparada à diferença que existe entre um barco à vela e um o barco a vapor, que são duas invenções humanas: na primeira, se utiliza eficazmente a força natural do vento, ao passo que; na segunda, se recupera a força gerada por um mecanismo artificial, possibilitando assim escolher a direção.

Articulando a relação entre verdade e realidade, Bergson mostra que se abandonamos a concepção de “universo sistemático” decorrente da nossa lógica habitual, compreenderemos a verdade intelectual como uma “invenção humana, que tem por efeito utilizar a realidade antes que introduzir-nos nela”.5 Ao contrário, numa realidade “múltipla é movente”, a verdade deve ser sentida antes de ser concebida. Por conseguinte, a tomada de contato com alguma das correntes que se entrecruzam para formar essa realidade pode ser mais eficiente que a verdade pensada com o intuito de apreender e armazenar a própria realidade. Aos olhos de Bergson, essa teoria da realidade tem como conseqüência imediata um rebaixamento da verdade, uma vez que esta se subordina à utilidade material.

 Essa conclusão,
 além de desencorajar a pesquisa científica desinteressada,
 pode ser significativa para uma filosofia
 que pretende reaproximar-se da arte e do misticismo.
 A nosso ver, essa é a direção 
que nos parece indicar o filósofo.

Ora, porque um filósofo francês que defende a possibilidade da metafísica aceitaria de bom grado a adesão de James ao utilitarismo? Em outras palavras: Como admitir a compatibilidade entre uma filosofia que concebe o tempo como Absoluto e a intuição como um contato inefável com a totalidade e uma epistemologia que vincula a verdade à evolução das práticas humanas em sua relação com as coisas?6

Uma possível resposta para essa questão é que a intuição metafísica perseguida por Bergson não deve confundir-se com os sistemas metafísicos clássicos. Numa carta a William James de 15 de fevereiro de 1905, Bergson reconhece uma “comunidade de direção” entre suas respectivas idéias, manifestando o desejo de que seus “esforços convergentes” culminem na constituição de “uma metafísica positiva, isto é, suscetível de progresso indefinido, em lugar de ser totalmente ‘a pegar ou a largar’, como os antigos sistemas”.7 E, na segunda parte da introdução à obra O pensamento e o movente, o filósofo acrescenta:

Nossa metafísica será aquela do mundo em que vivemos, e não de todos os
mundos possíveis. Ela abraçará as realidades. (...) Nada de grande sistema
que abarca todo o possível e, por vezes, também o impossível! Contentemonos com o real, matéria e espírito. Mas peçamos a nossa teoria que o abrace tão estreitamente que entre ela e ele nenhuma outra interpretação possa se imiscuir.8

Segundo Bergson, a filosofia de James se caracterizaria pela recusa de um “sistema de realidade” como aquele que se encontra na noção tradicional de “Cosmos”. As partes são todas relacionadas umas às outras e os elementos coordenados ao Todo, mas não se trata dos atributos da realidade, já que esse aspecto não constitui um contato imediato com as coisas e sim uma exigência de nosso intelecto, um desejo da nossa razão. Preferimos supor que há uma totalidade e uma unidade que rege a experiência e que existe uma estrutura a priori. A atitude teórica da tradição racionalista empobrece a experiência, na medida em que retira dela a novidade, a imprevisibilidade, a criação de formas, em suma, a abertura que a caracteriza.

Em contrapartida, o “empirismo radical” de James se apresenta para Bergson como uma atitude anti-dogmática, que procura seguir as linhas da experiência, sem interpor pressupostos categoriais:

Dando as costas para os procedimentos habituais de abstração, evitando
soluções verbais, afastando-se dos raciocínios a priori, dos princípios fixos e
dos sistemas fechados que visam pretensos absolutos e causas primeiras, o
pragmatismo se debruça sobre o concreto, adequando-se aos fatos e à ação.9

O pragmatismo seria então uma radicalização do empirismo, que abandona a tendência imediata de relacionar o uso das palavras ao conhecimento das coisas. Nisso coincide com a crítica de Bergson à psicologia associacionista. Essa psicologia pretende recortar o fluxo continuo e heterogêneo da duração em elementos descontínuos de caráter espacial (idéias,estados de consciência), que podem ser apreendidos por meio de procedimentos analíticos.

Esse é o sentido da crítica de Bergson ao conhecimento que provém da abstração conceitual.

O pensamento conceitual também é um produto desse fluxo contínuo que caracteriza a temporalidade. Ao menos é assim que Bergson compreende a gênese da inteligência no contexto da teoria da evolução. Um impulso primitivo se dividiu em duas direções, dando origem a dois instrumentos de sobrevivência distintos: o instinto no animal; a inteligência no homem. O caráter pragmático dessa explicação reside no fato que se considera, em primeiro lugar, a satisfação das necessidades vitais, pautando-se a estrutura da realidade em critérios utilitários.

Nesse sentido, o conhecimento para Bergson estaria subordinado às prerrogativas da ação, visto que conhecer e agir estão inseparavelmente unidos. Se o instinto é um instrumento para a sobrevivência, a inteligência é um instrumento que permite fabricar instrumentos. Assim, valendo-se desse caráter instrumental da inteligência, o homem amplia sua capacidade de ação, no sentido de dominar a natureza em benefício próprio. Talvez seja nesse ponto onde o pensamento de Bergson encontra o de James, visto que para este último, uma idéia verdadeira é sempre instrumentalmente verdadeira. Bergson atribui a James a tese de relatividade da verdade, baseando-se no fato de que a verdade é sempre uma construção humana. Provavelmente, esta concepção de verdade fosse para ele mais coerente que a teoria da correspondência entre representação e realidade, sobretudo quando se pensa nessa correspondência como uma cópia.

Como é possível admitir 
que o nosso instrumental cognitivo
 seja uma cópia da realidade? 

Se aceitarmos que a realidade é um aglomerado de elementos fixos, talvez se possa estabelecer alguma espécie de correspondência entre as “partes” do real e as supostas “idéias” que copiam essas partes em  nosso pensamento. Entretanto, uma apreensão dinâmica da realidade - na qual não há mais justaposição de partes exteriores senão fusão internamente organizada - exclui completamente essa possibilidade.

 No limite, o problema que se coloca é o de saber como seria possível copiar o movimento, qual seria a representação de algo que se move? Se a realidade concreta dos fatos particulares está subordinada à mudança e à alteração continua, deveremos procurar a coincidência entre o sujeito e a realidade, sem apelar para a estabilidade lógica do objeto e do conceito.10

Como a verdade não precede ao ato humano de conhecer, não faz sentido esperar por uma verdade eterna ou procurar um sistema de inteligibilidade pré-existente ao nosso contato com o mundo. Nós inventamos a verdade prática porque ela nos permite interagir com a realidade. Assim, na leitura de Bergson, James se sobrepõe a Kant, uma vez que em lugar de uma estrutura geral da mente à qual se incorporam verdades teóricas, o filósofo americano supõe uma estrutura produzida a partir do processo de invenção da verdade.

 A interpretação bergsoniana de James, portanto, é movida pela idéia de que não há verdades esperando serem descobertas nem problemas esperando soluções, por isso a articulação entre verdade e utilidade tem um resultado metodológico relevante.

Pois, se a verdade 
é uma invenção humana 
pautada em critérios de utilidade, 
ou seja, o seu reflexo na prática, 
muitos problemas da história da filosofia 
se dissolvem imediatamente. 

Pensemos nas seguintes questões:

Existe um mundo ou vários?
 Há destino ou liberdade? 
O universo é material ou espiritual? 

Sabemos que elas deram origem a disputas intermináveis.

 O pragmatismo vai prestar atenção nas conseqüências práticas desses dilemas. Se não há uma diferença prática entre as alternativas, se elas são praticamente as mesmas, a querela será inútil.11 Não ignoramos a crítica de Berkeley à idéia geral abstrata12: da reificação dos termos se desprendem inúmeros debates filosóficos. Alinhando-se com ele, James cita o princípio de Peirce, segundo o qual “o significado de um pensamento é dado pela conduta que se produz”.13

Chamaremos a isso de “significância” para exprimir o efeito prático que as condutas, objetos e relações exercem sobre nós. Em relação às questões metafísicas, devemos considerar, em primeiro lugar, o que é que cada um dos pólos da alternativa produz praticamente. Se não há diferença prática entre a unidade ou a multiplicidade do mundo, de nada nos servirá discutir se o mundo é um só ou muitos. Esse é o ganho metodológico do princípio do pragmatismo, que James retoma em As variedades de experiência religiosa, endossando as palavras de Peirce.14

E a célebre fórmula “pensar intuitivamente é pensar em duração”, com a qual Bergson descreve seu método filosófico, se aproxima desse princípio pragmatista na medida em que a intuição também procura uma coincidência com o movimento, que se perde em virtude dos nossos hábitos intelectuais calcados na ação:
A intuição parte do movimento, põe-no, ou antes, percebe-o como a própria
realidade e não vê na imobilidade mais que um momento abstrato,
instantâneo que nosso espírito tomou de uma mobilidade. A ação exige um
ponto de apoio sólido e o ser vivo tende essencialmente para a ação eficaz. É
por isso que vimos numa certa estabilização das coisas a função primordial
da consciência.15

Bergson quer elucidar certa “lógica da inteligência” que estaria baseada no
discernimento de antinomias e paralogismos.16 Por isso, não reduz o conhecimento ao “conhecimento intelectual” que parte da formulação conceitual dos problemas, criando a expectativa de uma resposta analítica. Além desse aspecto teórico da inteligência, haveria uma parte prática da inteligibilidade, passível de uma aproximação intuitiva.

Se bem a função primária da inteligência responde a uma destinação prática da vida, é possível, todavia, subverter a tendência natural ao conhecimento desinteressado da matéria. Para que isso ocorra, a inteligência deve inverter a marcha habitual do pensamento17 e voltar-se sobre si mesma, propiciando um conhecimento espiritual que é precisamente o que Bergson chama de intuição:
Essa visão direta do espírito pelo espírito é a função principal da intuição.
Nossa intuição é reflexão. É preciso todo um trabalho de desobstrução para
abrir o caminho para a experiência interior. A faculdade de intuição
realmente existe em cada um de nós, mas recoberta por funções mais úteis à
vida.18

Um conhecimento que se aplica à prática deverá focalizar, em primeiro lugar, a noção de experiência integral; não como o empirista tradicional, que reconhece a experiência como fonte do conhecimento, mas permanece teórico. A valorização da experiência é aquilo que aproxima Bergson do “empirismo radical” de James, cuja proposta é dar atenção a toda a experiência e não apenas à teoria.19 James vai aplicar a filosofia do movimento pragmático à religião, fazendo uma espécie de fenomenologia da emoção religiosa. Não obstante, essa experiência individual não coincide necessariamente com a prática da religião, isto é, com a religião institucionalizada. Os relatos de James contribuem para uma elucidação do estatuto da experiência psicológica, mas não se situam no patamar metafísico ao que Bergson eleva a intuição mística.

O místico cristão, segundo Bergson, é um indivíduo que pertence a uma instituição solidamente estabelecida, mas ele precisa romper com esses valores para instituir novos modos éticos e religiosos de vida. Por isso, Bergson não se restringe às vivências psicológicas do sujeito e abre o dialogo com a sociologia: com Max Weber, quando este afirma que as instituições eliminam a magia do mundo20; com Émile Durkheim, porque na perspectiva dos elementos que reforçam a coesão social, as formas da religiosidade justificam a instauração das obrigações sociais.21

 Se James pode permanecer no âmbito da psicologia, porquanto trata de todo tipo de experiência, Bergson deverá ampliar esse horizonte, uma vez que pretende ultrapassar os pontos de vista do religioso comum e da religião fechada. Contudo, a avaliação positiva de Bergson detecta na teoria da verdade que examinamos nas páginas precedentes uma filosofia humanística que admite o pluralismo da experiência e o valor humano das crenças como condição de abertura à criação do seu vir a ser.

II – Elementos pragmatistas em Bergson
Se tomarmos o pragmatismo de James como uma teoria do conhecimento na qual a oposição entre a verdade e o erro se define pela oposição entre aquilo que é útil e aquilo que é nocivo à vida, talvez possamos compreender melhor algumas idéias de Bergson. Pois, para o filósofo francês, a oposição entre aquilo que a inteligência julga verdadeiro e aquilo que ela julga falso é determinada pelas condições da utilidade vital. Embora o próprio Bergson nunca tenha usado o termo pragmatismo, alguns estudos sugerem que suas afirmações constituem um “pragmatismo parcial”.22 Tributário da tradição espiritualista inaugurada por Victor Coussin e renovada por Félix Ravaisson, o pensamento de Bergson procura pôr em relevo a atividade do pensamento e a liberdade do eu.

 A primeira obra de Bergson – Ensaio sobre os dados imediatos da consciência –, que era sua tese de doutorado, emerge como uma luta contra as tendências associacionistas e deterministas da nova psicologia. Esse quadro não 19 “Para ser radical, um empirismo não deve admitir dentro das suas construções qualquer elemento que não seja diretamente experimentado, nem excluir delas qualquer elemento que seja diretamente experimentado. Para tal filosofia, as relações que ligam as experiências devem elas próprias ser relações experimentadas, e qualquer espécie de relação experimentada deve ser considerada ‘real’ como tudo o mais no sistema”

20 Bergson examina a questão da magia em As duas fontes da moral e da religião: “Existe certa magia natural, muito simples, que se resumiria a um pequeno número de práticas. A reflexão sobre essas práticas, ou talvez simplesmente sua tradução em palavras, é que permitiu que se multiplicassem as mágicas em todos os sentidos
carregando-se de superstições, porque a formula ultrapassa sempre o fato que exprime” . Daí o papel das instituições, que consiste em “fornecer um quadro relativamente estável para a diversidade e a mobilidade dos desígnios individuais”. Ao porem imperativos, acrescenta o filósofo, “elas continuam, no domínio da ação, a obra de estabilização que os sentidos e o entendimento realizam no domínio do conhecimento” (Cf. BERGSON. PM, p. 100).

21 Desde Les formes élémentaires de la vie religieuse, Durkheim reconhece, alinhando-se com Bergson e James, um “estreito parentesco entre as três noções de instrumento, de categoria e de instituição” (Ibid., p. 27n), mas num curso sobre o pragmatismo pronunciado na Sorbonne, o sociólogo mostra que a tese jameseana da heterogeneidade radical entre realidade e pensamento encontra seus melhores argumentos nas obras de Bergson, considerado pelo próprio James como o “destruidor do intelectualismo” (Cf. DURKHEIM. Pragmatisme et sociologie. Paris: Vrin, 1955). estaria completo sem uma referência à Estética transcendental, explicitamente citada por Bergson como o grande alvo da sua argumentação.23 Com efeito, a distinção radical entre tempo e espaço se funda numa concepção da duração como fluxo temporal, que não se confunde com a representação espacializada do tempo como uma linha.

A epistemologia kantiana sustentava uma noção de tempo homogêneo sobre o qual se podiam desenrolar nossos estados de consciência como partes extra partes. A essa paisagem da consciência, a psicologia podia aplicar a lei de causalidade, tal como a física a aplicava aos objetos materiais. Bergson vai mostrar que a línea ideal, suposta pelo tempo homogêneo como um encadeamento de pontos independentes, é um fantasma do espaço. Como é que essa ilusão se produz?

Eis a grande questão que Bergson terá que responder nessa primeira obra, semeando as formulações subseqüentes da sua filosofia em direção a uma filosofia da ação24 que, para nós, o aproxima do pragmatismo de James.
Se bem o Ensaio nos encaminha para uma distinção entre as dimensões quantitativa e qualitativa do real25, essa oposição não constitui um dualismo de substâncias como a separação radical entre corpo e mente que se atribui a Descartes.26

É por isso que em Matéria e memória27, Bergson examina a relação entre o ato da consciência e o organismo, indicando o ponto de contato entre o espírito e a matéria.28 Enquanto a tradição alojava o espírito no corpo “como o piloto em seu navio”, metáfora que apresenta uma “relação completamente exterior” 29 e que apela para um homúnculo interior, estabelecendo a separação radical entre corpo e alma (dualismo substancial), a versão bergsoniana da metáfora exprime antes uma tese sobre a função do cérebro que aponta para a continuidade funcional do organismo em vista da ação sobre o seu meio:

“O cérebro é algo
como a proa na qual o navio 
se estreita para cortar o oceano”.30 

Em outra dessas cartas, Bergson reformula o argumento, imprimindo-lhe agora o movimento temporal que supõe uma tensão, um “esforço de atenção” assimilado à própria essência da vida. O conceito de “tensão psicológica” explica a unidade do sujeito em 23 Esse tema poderia ser aprofundado mediante a leitura do livro de BARTHÉLEMY-MADAULE. Bergson adversaire de Kant. Paris: PUF, 1966. Empreender essa tarefa agora, certamente nos afastaria do caminho
traçado para este trabalho.

26 Não vamos entrar agora na polêmica que procura determinar se a atitude de Bergson é dualista ou não. Há quem defenda que a filosofia de Bergson constitui um monismo, sendo a duração a única substância (sub especie durationis): “Substância cuja essência mesma consiste em durar (...); sua duração é substancial, indivisível enquanto duração pura. (...); uma única e mesma mudança que vai sempre se alongando, como numa melodia,onde tudo é devir, mas onde o devir, sendo substancial, não precisa de suporte” (BERGSON. PM, pp. 83-84/147).  

Talvez o comentário de DELEUZE se aproxime mais dessa interpretação. Entretanto, a leitura de WORMS, F. Les deux sens de la vie. Paris: PUF, 2004, acentua o dualismo bergsoniano, não mais como um dualismo ontológico, mas sim como um “dualismo prático”, isto é, duas maneiras de agir na realidade: uma temporal, que leva em conta a interpenetração característica do mundo psicológico e a tensão da duração pela qual exprimimos nossas ações; e outra espacializada, marcada pela descontinuidade e pela justaposição dos objetos materiais.
27 BERGSON. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
28 “Entre a consciência e o organismo havia uma relação que nenhum raciocínio poderia ter construído a priori,uma correspondência que não era nem o paralelismo nem o epifenomenismo, nem nada de semelhante. 

O papel do cérebro era o de escolher a todo instante, dentre as lembranças, aquelas que poderiam iluminar a ação começada, e excluir as outras”linhas similares àquelas que consagraram a metáfora do “cone” em Matéria e memória: “Me apercebo como a totalização de meu passado, este passado estando contraído em vista da ação. A ‘unidade do eu’ de que falam os filósofos me aparece como a unidade de uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a mim mesmo por esforço de atenção”.31

Aqui se encontram em germe as principais teses que justificam a nossa aproximação entre Bergson e James, ou seja, as tendências pragmatistas do pensamento bergsoniano. Essas tendências, na verdade, procedem de uma mudança de atitude em relação à tradição.
Racionalistas e empiristas atribuem à percepção uma função que se destina ao conhecimento  desinteressado; é ela que nos traz o conhecimento do mundo e nos permite especular sobre a existência de objetos e de nós mesmos, em termos de idéias. 

Se assim for, os atos da consciência, da percepção e da memória permanecerão incompreensíveis. A mudança de atitude, a atitude pragmatista, consiste em compreender essas funções como uma preparação do corpo para a ação. Quanto mais o organismo se desenvolve, tanto mais suas funções se dividem32, isto é, se tornam cada vez mais complexas, aumentando assim a capacidade de ação do corpo sobre o seu entorno: 

“O que o corpo explica 
é a limitação da percepção e da memória individuais, 
a seleção utilitária das imagens e das lembranças
 que dominam nossa vida consciente”.33 
 
Não sendo concebidas como modos de conhecimento desinteressado, a percepção e a memória nos preparam para a ação presente, permitindo ao espírito desprender sua energia criadora. Nesse sentido, a liberdade é aquilo que deixa o espírito agir, fazendo do organismo um intermediário.

A partir de essa diferenciação de funções, Bergson distingue duas espécies de
memória, não apenas em grau, mas em natureza34: de um lado, a memória hábito ou corporal, constituída pelos mecanismos motores que o hábito montou no corpo; de outro, a memória pura ou espiritual que conserva cada acontecimento passado naquilo que ele tem de único.

Essa lembrança pura corresponde ao plano do sonho, já que adormece enquanto não é chamada pelo plano da ação. Daí o papel fundamental do cérebro enquanto órgão de atenção à vida: 

“O cérebro não teria por função pensar, 
mas impedir o pensamento de se perder no sonho”.35 
 
Nossa vida psicológica se movimenta constantemente através de diversos e sucessivos planos de consciência, concebidos como intermediários entre esses dois extremos: a memória ontológica do passado integral e o momento pragmático da ação presente. Cabe sublinhar aqui que a teoria da memória é um aprofundamento da teoria da duração, da qual o pragmatismo bergsoniano seria a contrapartida, algo assim como o molde vazio.36

A diferença de natureza entre percepção e memória espelha a distinção entre as faculdades irredutíveis da alma como uma “orquestração” da tese de Ravaisson: “a materialidade [põe] em nós o esquecimento”.37 Numa carta de 15 de fevereiro de 1905, Bergson expõe a James suas considerações acerca do conceito de “inconsciente” e do papel
A interpretação de Deleuze atribui ao método bergsoniano certas “regras”, sendo uma delas a identificação das verdadeiras “diferenças de natureza”. 

O desenvolvimento deste projeto pressupõe uma análise detalhada desse ponto, visando articular os “pólos” decorrentes do processo de diferenciação: espaço e tempo no Ensaio, percepção e memória em Matéria e memória, instinto e inteligência em A evolução criadora. Isso nos  proporcionará uma chave de leitura para estudar a última obra de Bergson, As duas fontes da moral e da religião.que este teria não só em relação à vida psicológica como também em relação ao universo em geral: 

“A existência da matéria
 me parece ser qualquer coisa do gênero 
de um estado psicológico não consciente”.38
 
 Mas o que anima internamente as teorias bergsonianas da percepção e da memória é, sem dúvida, a influência da psicologia de Maine de Biran, que “considera de saída o espírito como uma atividade e mais precisamente como uma atividadeque age sobre a matéria”.39 Essas faculdades deixam de ser concebidas como modos de conhecimento quando se pensam como preparação para a ação material, denotando assim seu caráter pragmático.

A análise psicológica da gênese da representação leva Bergson a determinar o papel da memória nos processos perceptivos, de modo que o filósofo consegue atenuar a forte dualidade que prevalecia no Ensaio, equacionando melhor as oposições entre quantidade e qualidade, espaço e duração, extenso e inextenso, necessidade e liberdade. Para nós, esse salto argumentativo deve-se ao fato de que Bergson foi particularmente atento à noção de atividade da consciência e ao caráter movente da ação. Esse é o ponto em que o pensamento de Bergson se cruza com o pragmatismo:

Para agir sobre as coisas, somos treinados a representar-nos claramente
elementos distintos uns dos outros, que também são distintos de nosso corpo,estabelecendo uma exterioridade recíproca e uma descontinuidade entre os termos. Assim, forjamos a idéia de uma quantidade pura, de um espaço
homogêneo e de uma necessidade absoluta.40

Ao afastar as “ficções da prática”, Bergson encontra a “extensão psicológica” de James. Apenas para agir sobre as coisas, nós as exteriorizamos umas às outras, despojando-as pouco a pouco dessas propriedades qualitativas que elas tinham antes. O espaço geométrico aparece então como o “limite ideal de uma tendência prática”, instaurando o falso problema das qualidades desprovidas de toda extensão: Como se opera novamente a ligação entre essas qualidades inextensas e esse espaço geométrico que nada tem de qualitativo? 

Se aceitarmos que essas noções são o resultado último das abstrações operadas pelo espírito face à influência dos hábitos contraídos na ação, a oposição radical entre qualidade e quantidade dá lugar a uma série de graus de tensão.

Nossa vida psicológica é uma multiplicidade qualitativa de estados que se interpenetram. 

Essa interpenetração pode ser mais ou menos densa, conforme o grau de tensão operado pela memória, capaz de contrair “numa visão quase instantânea uma história imensamente longa que se desenrola fora dela”.41 A esses graus correspondem também os graus da liberdade: “os graus da ação que o espírito pode exercer sobre as coisas”.42 

Se a tensão memorial contrai a multiplicidade de estados, operando sua interpenetração, o movimento contrário de expansão ou distensão corresponderá à extensão dos termos entre si, processo que constitui propriamente a materialidade. Sem embargo, a intuição dessa tensão não pretende abolir o determinismo nem exaltar a liberdade absoluta, senão mostrar que o determinismo pode ser precisamente a condição da ação de nossa liberdade sobre o universo material. 

O espaço homogêneo e a quantidade pura são abstrações nas práticas que a inteligência forjou manifestando sua tendência a estabelecer a descontinuidade e a exterioridade daquilo que é realmente uma interioridade e uma interpenetração. Todavia, se pensarmos no movimento do espírito vivente, ou seja, em sua liberdade criadora, teremos que admitir um “duplo sentido” através do qual se concebe esse movimento, conforme o espírito se tencione mais ou, ao contrário, se distenda e se automatize.

 Essas duas direções opostas marcam os limites práticos entre os quais driblamos as necessidades da ação, que nos levam a exteriorizar aquilo que em si não é radicalmente exterior e a transformar em algo estável, fixo e imutável o que, de fato, era uma passagem, uma ação, um desenvolvimento, enfim, um movimento interno. Essa é a intuição psicológica imediata que leva Bergson a pensar a realidade longe das formas habituais do conhecimento, seja empírico ou intelectual.

A realidade que não abandona a dimensão qualitativa conservará para sempre a mudança, na qual se exerce a ação criativa. Essas conclusões, entrecruzando-se com o pragmatismo, formam um cordão mais resistente que dá sustentação à tarefa proposta nesta investigação.

III – Misticismo e intuição
É preciso mapear a linha de fatos que conduz à intuição filosófica, se quisermos compreender as considerações de Bergson sobre o misticismo. É esse o terreno onde nos parece que se podem verificar as nossas hipóteses acerca da complementaridade metodológica entre psicologia e metafísica. Nesse sentido, equacionamos a relação entre consciência e liberdade através da noção de ação: 

“A consciência 
originalmente imanente a tudo o que vive,
 se entorpece quando não há mais movimento espontâneo
e se exalta quando a vida se apóia na atividade livre. 
Movimento cada vez mais eficaz, ação cada vez mais livre”.43 
 
A pergunta que nos colocamos desde que tomamos contato com a filosofia de Bergson era se, além da causalidade física, mecânica, que rege a matéria, incluindo aí nosso corpo, não haveria outra maneira de entender a causalidade. No Ensaio, o filósofo vislumbra uma “causalidade dinâmica”, na qual a consciência é a causa dos seus atos: quanto mais estes são dela, tanto mais livre é a ação praticada. Mas então, somos todos livres, já que todos nós temosconsciência e de uma forma ou de outra é daí que provêm nossas ações. 

Evidentemente não, pois há graus de liberdade. Essa resposta já se encaminha para o estabelecimento de um diferencial nas atitudes humanas. Se há homens mais livres que outros; homens de ação, que deixam “sua marca” nos eventos nos quais se envolvem, é porque “sua ação, semelhante a uma flecha, dispara com tanto mais força para frente quanto mais sua representação estava vergada para trás”.44 

 Percebe-se agora, retrospectivamente, que as teorias bergsonianas da memória e da percepção são como pilares sobre os quais se apóia uma tal afirmação. A diferença de tensão, ilustrada pela imagem do arco, introduz a possibilidade de se realizar conscientemente a ação desejada. A tensão da duração de um ser consciente é, portanto, o critério que permite medir o seu poder de agir sobre a matéria, isto é, “a quantidade de atividade livre e criadora que ele pode introduzir no mundo”.45 Nos interessa sublinhar aqui a na concepção de consciência como força. Uma ação explosiva seguida de um “trabalho de contração” estabelece uma continuidade de criação na duração que se configura como um crescimento. 

A oposição clássica entre matéria e consciência é finalmente superada por uma intuição filosófica que consiste em fazer da ação o denominador comum de um processo de inversão, cujo resultado é uma matéria “atravessada pela consciência criadora”. Em outras palavras,

 “se a consciência é ação 
que incessantemente se cria,
 a matéria é ação que se desfaz e que se perde”.46
Ora, qual é o ganho dessa intuição?
 Para onde se encaminha esta teoria que opera por meio de conceitos tão fluidos47 como “ação” e “criação”? 

Temos razões para acreditar que essa é a direção que Bergson quer dar à metafísica.48 Se o homem representa um “salto brusco” em relação aos demais seres da cadeia evolutiva é porque ele tem uma latitude de escolha maior. Nosso poder de escolha individual não é apenas um “simples auxiliar da necessidade de viver”, porquanto a nossa ação faz de nós criadores da nossa personalidade, “a criação de si por si”.49 

Assim como os artistas, 
nós experimentamos certa alegria
 que provém da criação: 

“Aquele que está certo, 
absolutamente certo, de ter produzido 
uma obra viável e durável, este não tem mais nada a fazer
 com os elogios e sente-se acima da glória,
 porque é criador, porque o sabe 
e porque a alegria que experimenta 
é uma alegria divina”.5
 
O artista é o exemplo privilegiado por Bergson no que diz respeito ao conceito de “criação”, resta saber qual é o paradigma da intuição, qual movimento da consciência devemos efetuar para atingirmos essa intuição tão anunciada que nunca se completa.51 Bergson nos dá uma pista na conferência “A consciência e a vida”:

Criador por excelência é aquele cuja ação, ela própria intensa, é capaz de
intensificar também a ação de outros homens, e generosamente iluminar
núcleos de generosidade. Os grandes homens de bem, e mais particularmente
aqueles cujo heroísmo inventivo e simples abriu novos caminhos para a
virtude, são reveladores de verdade metafísica. Eles podem estar no ponto
culminante da evolução, nem por isso eles estão menos perto das origens, e
tornam sensível para nós o impulso que vem do fundo. Consideremo-los
atentamente, tratemos de experimentar simpaticamente o que eles
experimentam, se queremos penetrar por um ato de intuição até o próprio
princípio da vida.

 Para penetrar
 nos mistérios das profundezas, 
é preciso por vezes visar aos cimos. 
O fogo que está no centro da terra 
só aparece no cume dos vulcões.52
                                                              
Uma segunda pista, que complementa a primeira, é que a experiência mística supõe a imitação de uma pessoa, uma união espiritual, uma coincidência mais ou menos completa  com ela: 

“Os verdadeiros místicos 
simplesmente se abrem à vaga que os invade. 
Seguros de si mesmos, porque sentem em si algo de melhor que eles, revelam-se grandes homens de ação, para surpresa daqueles para quem o misticismo não passa de visão, transporte, êxtase”.53 
Um terceiro elemento, introduzido a partir de uma interrogação, impregna de otimismo a teoria religiosa de Bergson. A experiência mística não é exclusiva de alguns poucos, ela está aí, acessível a todos aqueles que se disponham a abandonar certos prejuízos intelectualistas em virtude da abertura necessária para o exercício da fé: “Se a fala de um grande místico encontra eco em algum de nós, não será porque há em nós um místico adormecido que espera apenas a asião de despertar?”.5

Curiosamente, a inspiração desse otimismo vem de James, que declarava não haver experimentado jamais estados místicos, mas afirmava que se ouvia alguém falar dessa experiência, “alguma coisa ressoava nele”. Bergson também defende James das acusações de “irreligião” que suas experiências com tóxicos suscitaram: “A intoxicação devia ser apenas o ensejo. O estado [místico] da alma lá estava, prefigurado sem dúvida com outros, e aguardava apenas um sinal para se desencadear”.55 Para aqueles que havia-nos alertado da importância que James atribui à “experiência pura” em suas pesquisas sobre psicologia, ainda vêem no misticismo apenas “charlatanismo e loucura”, 
Bergson dispara: 

“Também [há] pessoas para as quais a música não passa de um ruído”.56

Por fim, o tema da causalidade recebe aqui um tratamento complementar que dá sentido à crítica da lei de causa e efeito proferida por Bergson em suas primeiras obras. As “causas místicas” que prevalecem na mentalidade primitiva57 não se sobrepõem à causalidade mecânica que, para nós, explica todos os acontecimentos em termos de antecedente e conseqüente.

 Assim como nós, o primitivo também “tem fé nessa causalidade [natural] e a
toma por base de sua atividade” no que diz respeito aos eventos físicos. Sem embargo, quando se trata dos aspectos espirituais de um acontecimento, aqueles que têm uma significação humana, isto é, uma “importância para o homem, em especial, para certo homem determinado”, ele introduzirá a causa mística como uma intenção, na qual intervém a vontade de um espírito. Tal significação é o que explica o conceito de “acaso”. Se uma telha cai no chão, diremos tranqüilamente que foi por causa do vento, assumindo o mecanicismo. Mas quando “um interesse humano está em jogo”, por exemplo, se a telha cai na cabeça de alguém, diremos que foi por azar – ou sorte, dependendo da nossa relação afetiva com essa pessoa –, como se a telha tivesse escolhido um lugar para cair:

“Para que ocorra o acaso, 
é preciso que o efeito tenha uma significação humana 
que rebrote na causa e a matize, 
por assim dizer, de humanidade. 
O acaso é, pois, o mecanicismo atuando como se tivesse uma intenção”.58 O longo relato de William James, citado por Bergson, parece confirmar esse ponto. O americano conta uma experiência que teve na Califórnia, quando vivenciara um tremor de terra:

 “Jamais animação e intenção
 estiveram mais presentes numa ação humana.
Jamais, também, atividade humana deu a perceber 
mais nitidamente por trás dela, 
como fonte e como origem, um agente vivo”.59
Todas essas considerações apontam não só para um “complemento recíproco” entre o método filosófico e o estudo da “experiência mística”, senão também para o estabelecimento de um diálogo enriquecedor entre o pensamento filosófico de Bergson e as experiências realizadas por William James no campo da psicologia. Na dose certa, essa explosiva combinação pode mostrar em que sentido se deve tomar o misticismo para fazer dele um “auxiliar poderoso da busca filosófica”:

A questão era, primeiramente, saber se os místicos eram ou não simples
desequilibrados, se o relato de suas experiências era ou não pura fantasia.
Tratava-se, em seguida, de saber se o misticismo era apenas um grande ardor
da fé, forma imaginativa que pode assumir em almas ardorosas a religião
tradicional, ou se, enquanto assimilando o máximo possível dessa religião,
exigindo uma confirmação e tomando a ela sua fala, ele não teria um
conteúdo original, bebido diretamente na própria fonte da religião,
independente do que a religião deva à tradição, à teologia, às igrejas.60

No domínio do provável, a certeza filosófica comporta graus e apela tanto para a intuição como para o raciocínio:

 “Se a intuição 
junto à ciência é suscetível de ser estendida,
 isso só se pode dar pela intuição mística”.61 
O estudo da liberdade conduziu Bergson a uma referindo-se aos “estados sem consciência” tais como as “sensações dos recém-nascidos ou os estados comatosos e as alucinações provocadas por certas drogas” concepção singular de “ação livre”, que fomentou a passagem da psicologia para a teoria do conhecimento; a descrição da “ação prática”, por meio de um exame acurado das funções da percepção e da memória, aproximou-o do pragmatismo de James e preparou a hipótese ontológica da “ação vital”. Contudo, Bergson não se conformou com o fato de ter concebido uma metafísica da vida, na qual o conceito de “elã vital” explica a criação imanente da vida como um impulso que atravessa a matéria; tampouco quis dissolver tudo em Deus, mesmo sabendo que Ele é essa “energia criadora”; por isso, identificou certos “representantes” da nossa espécie, mortais comuns, que triunfaram sobre a materialidade e encontraram Deus. Ao que parece, essa é a direção para a qual se inclina a metafísica bergsoniana: 

“Esses homens são os místicos.
 Eles desvendaram uma via 
que outros homens poderão palmilhar. 
Por isso mesmo, indicaram ao filósofo 
o lugar de onde vinha e o lugar para onde ia a vida”.62
Conclusão
Há, sem dúvida, uma afinidade entre Bergson e James no que concerne à relação entre verdade e ação, uma vez que o conhecimento tem como finalidade natural estruturar a práxis.

Mas é preciso notar também que no pensamento de James a psicologia desempenha um papel quase exclusivo, bem de acordo com a tradição do empirismo britânico e, em Bergson, a psicologia mantém sempre uma relação com a ontologia. Essa diferença se faz notar, por exemplo, na preocupação bergsoniana de mostrar que fazer – principalmente criar – é o próprio processo de realidade, e não apenas a dimensão da ação humana, como parece ser o caso em James. Por isso, quando ambos tematizam a esfera do religioso, James se atém à dimensão psicológica da experiência religiosa, enquanto Bergson estabelece uma relação entre a experiência mística e a totalidade do processo de evolução, mostrando como a mística envolve uma comunhão com a Vida em seu processo constante de superação de si mesma.

Mas é importante frisar que a aproximação entre o místico e o movimento criador em sua essência – que seria no limite uma coincidência – é pensada pelo filósofo como unidade de ação, motivo pelo qual a mística, na sua realização mais elevada, não se separa da ação, embora se distinga da ação utilitária. Isso faz com que o pragmatismo de Bergson, na sua acepção de recorte utilitário da realidade percebida e pensada, seja característica da relação entre a inteligência e a realidade, vínculo que prevalece, mas que não pode ser considerado o único possível. 

Isto certamente deriva da diferença entre uma abordagem psicológica e uma abordagem ontológica da subjetividade, que se faz também pela via psicológica, mas que não se detém nos aspectos funcionais da vida psicológica, uma vez que considera metafisicamente a dimensão da psique. Assim, no que diz respeito à primazia da ação, ambos convergem; mas há uma diferença no que concerne ao alcance da ação e ao seu sentido metafísico de criação de realidade. 

Abstract: This paper examines the relationship between psychology and metaphysics in the light of Bergson's last work - The two sources of morality and religion. We consider that, in this oeuvre, the author delineates a new direction for philosophy, where his psychological analyses of duration, his pragmatist theory of knowledge, his intuition method, and his metaphysics of life all converge. This direction, marked by an essential Bergsonian concern with spirituality, highlights mystical experience and also potentially explains the intellectual proximity between Bergson and William James. Studying Bergson's last work in comparison with some of James' writings leads us to a clearer comprehension of the fundamental nature of the mystical, which combines contemplation, practical action, and verbalization of feelings derived from experience. Because James' pragmatism provides the experimental structure of the notion of the mystical state of consciousness, it configures itself as a substantial complement of Bergson's work and, at the same time, delimits our purpose of study. Using these two conceptions of mysticism as a basis, marking the distinction between an ontological and a psychological approach of subjectivity, we intend to assess the extent to which it is possible to conciliate metaphysical speculation with experiences in the field of psychology, revealing what is common and what differentiates these two.Keywords: Action. Pragmatism. Experience. Intuition. Mysticism. Consciousness.
***

1 ZUNINO, 2009.
2 JAMES. Pragmatismo. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 18.
3 BERGSON. Cartas a William James (Trad. LEOPOLDO E SILVA, F.). São Paulo: Abril Cultural, 1979. -
______. Écrits et paroles, I – II. Paris: PUF, 1957; JAMES. The letters of William James. Publicadas por seu
filho Henry James. 2 vol. Boston: The Atlantic Monthy Press, 1920.
4 Cf. BOUTROUX, citado por Bergson na introdução à edição francesa do Pragmatismo. JAMES. Le
pragmatisme. Avec une introduction par H. BERGSON. Paris: Flammarion, 1918, p. 7, n.1. Essa introdução deu
origem ao ensaio “Sobre o pragmatismo de William James: verdade e realidade”, publicado em BERGSON. O
pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
5 BERGSON. Op. Cit., p. 15. Do pragmatismo à intuição mística
COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho- dezembro, 2010, pp. 221-235 223 ;6 Cf. LEOPOLDO E SILVA, F. “Pragmatism and humanism: Bergson as a reader of William James”. RevistaCognitio, n. 2 – Nov. 2001, p. 1. Disponível on-line:
http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo/cognitio/cognitio2/leopoldo_c2.html
7 BERGSON. Cartas, p. 7.; 8 BERGSON. PM, pp. 123 / 136. ;9 Cf. JAMES. Pragmatismo. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 20.;Pablo Zunino COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho - dezembro, 2010, pp. 221-235-224;10 “O conceito substitui a organização interna e atual de algo por uma reconstituição esquemática e exterior” (Cf. BERGSON. “Introdução à metafísica”. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 197-
198).; 11 Cf. JAMES. Pragmatismo, p. 52.Do pragmatismo à intuição mística
COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho- dezembro, 2010, pp. 221-235-225;12 Berkeley já havia denunciado uma ilusão intrínseca à linguagem, que ocorre quando esta perde as referências da experiência real, quando não há distinção entre coisas e palavras. (Cf. ZUNINO, P. “Distância e movimento em Berkeley: a metafísica da percepção”. Dissertação de mestrado: FFLCH-USP, 2006).13 Cf. JAMES. Op. Cit., p. 19.
14 “O pensamento em movimento tem por único motivo concebível o atingimento da crença, ou o pensamento
em repouso. Somente quando encontrar o seu repouso na crença, o nosso pensamento sobre um assunto pode
encetar com firmeza e segurança a nossa ação sobre o assunto. As regras, em suma, são regras de ação; e toda a
função do pensamento cifra-se num passo na produção de hábitos ativos” (PEIRCE, CH. “How to make our
ideas clear”. Popular science monthly, vol. XII, Jan-1978, p. 276).
15 BERGSON. O pensamento e o movente, pp. 32 / 100.;16 “[As antinomias irredutíveis] eram de fabricação humana. Não provinham do fundo das coisas, mas de um
transporte automático, para a especulação, dos hábitos contraídos na ação” (BERGSON. PM, p. 79).
17 “Filosofar consiste em inverter a direção habitual do trabalho do pensamento” (BERGSON. Introdução à
metafísica. PM, p. 221).; 18 BERGSON. PM, pp. 45/50/78/99.Pablo Zunino
COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho - dezembro, 2010, pp. 221-235-226;;;;22 BERTHELOT. Le pragmatisme chez Bergson. Paris: Félix Alcan, 1913.
Do pragmatismo à intuição mística
COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho- dezembro, 2010, pp. 221-235-227
24 Cf. THIBAUDET. Le bergsonisme. Paris: Gallimard, 1923, p. 29; WORMS, F. Le vocabulaire de Bergson.
Paris: Ellipses, 2000, p. 9: “uma metafísica da ação”; FUJITA. "La logique bergsonienne du corps: corps propre,
perception, technique". Conference donnée dans le cadre du seminaire La philosophie au sens large. Paris: 2006,
p. 7.; 25 DELEUZE interpreta a teoria das multiplicidades (diferenciação entre multiplicidade quantitativa e
multiplicidade qualitativa) no segundo capítulo do Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.;(BERGSON. PM, pp. 82-83).;;29 Cf. MOURA, C. A. R. “A cera e o abelhudo”. Racionalidade e Crise. São Paulo: Discurso Editorial /UFPR,
2001.;30 BERGSON. Carta de 6 de janeiro de 1903, p. 4.Pablo Zunino COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho - dezembro, 2010, pp. 221-235 228;;
31 Ibid. Carta de 25 de março de 1903, p. 5.;32 “Na medida em que o corpo vivo se complica e se aperfeiçoa, o trabalho se divide; funções diversas são assinaladas a órgãos diferentes” (BERGSON, PM, p. 72).;33 BERTHELOT. Le pragmatisme chez Bergson. Paris: Félix Alcan, 1913, p. 14. 34 DELEUZE. “A concepção da diferença em Bergson”. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. A;35 BERGSON. PM, p. 142.;36 A expressão original em francês é le moulage em creux, que literalmente se traduz por “a modelagem oca” (Cf. BERTHELOT, p. 15).;37 RAVAISSON. La philosophie en France au XIXe siècle, p. 176, citado por BERGSON. MM, p. 208.Do pragmatismo à intuição mística
COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho- dezembro, 2010, pp. 221-235- 229;38 BERGSON. Cartas, p. 7. ;39 BERTHELOT, p. 16.;40 Ibid., p. 17.;41 BERGSON. PM, p. 101.;42 BERTHELOT, p. 19. Pablo Zunino;COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho - dezembro, 2010, pp. 221-235 - 230;43 BERGSON. A consciência e a vida. Conferências. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 74.;44 Ibid., p. 76.;45 Ibid., p. 77.;46 Cf. BERGSON. A consciência e a vida, p. 77.;47 BERGSON. PM, p. 221; PARIENTE. Le langage et l’individual. Paris: Armand Colin, 1973, p. 24.;Do pragmatismo à intuição mística COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho- dezembro, 2010, pp. 221-235 231
; 48 “A metafísica nada tem em comum com uma generalização da experiência e, não obstante, poderia definir-se;como a experiência integral” (BERGSON. Introdução à metafísica. PM, p. 234).
49 BERGSON. A consciência e a vida, p. 80.;50 Ibid.;51 “Bergson nous conduit toujours au bord d’une intuition qu’il;n’effectue pas” (MERLEAU-PONTY. L’union de l’âme et du corps chez Malebranche, Biran et Bergson. Paris: Vrin, 2002, p. 109).;52 BERGSON. A consciência e a vida, p. 81 (grifo nosso).;53 BERGSON. DF, p. 81; OEuvres, p. 1059.
54 Ibid., p. 82; p. 1060.;55 David Lapoujade, com quem mantivemos contato durante nosso estágio sanduíche na Sorbonne / França,(Cf. LAPOUJADE. William James: empirisme et pragmatisme.
Paris: PUF, 1997, p. 19). Mais recentemente; escreveu um artigo sobre Bergson. LAPOUJADE. “Intuition et sympathie chez Bergson”. Annales Bergsoniennes III: Bergson et la science. Paris: PUF, 2007.;56 BERGSON. DF, pp. 180 / 203.;57 Cf. LÉVY-BRUHL. La mentalité primitive. Paris: 1922, pp. 17-18, citado por BERGSON. DF, p. 119.;58 BERGSON. DF, pp. 120 / 123.;59 JAMES. Memories and studies, pp. 209-214, citado por BERGSON. DF, pp. 127-129 (grifo nosso).;60 BERGSON. DF, p. 206.;61 Ibid., p. 211.;Do pragmatismo à intuição mística;COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho- dezembro, 2010, pp. 221-235-233
 

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62 Ibid., p. 212.
Pablo Zunino
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COGNITIO-ESTUDOS:
 Revista Eletrônica de Filosofia
São Paulo, Volume 7, Número 2, julho - dezembro, 2010, pp. 221-235
Centro de Estudos de Pragmatismo – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Disponível em <http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo>
DO PRAGMATISMO À INTUIÇÃO MÍSTICA: UMA LEITURA BERGSONIANA DE
WILLIAM JAMES
FROM PRAGMATISM TO MYSTICAL INTUITION: A BERGSONIAN
INTERPRETATION OF WILLIAM JAMES
 
Pablo Zunino
COGNITIO-ESTUDOS:
 Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, Volume 7, Número 2, julho - dezembro, 2010, pp. 221-235-222

Pablo Zunino
 
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Pablo Picasso

Li
 Fonte:
 <http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo>
RevistaCognitio, n. 2 – Nov. 2001, p. 1. Disponível on-line:
http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo/cognitio/cognitio2/leopoldo_c2.html
 

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