sexta-feira, 29 de junho de 2012

A FUNÇÃO FABULADORA E A PERCEPÇÃO ESTÉTICA


4.
A função fabuladora e a percepção estética

Neste capítulo nos dedicaremos à análise da obra do filósofo Henri Bergson. E isso por duas razões. A primeira, mais evidente, deve-se ao fato de o conceito de fabulação ter sido declaradamente “pescado” da obra bergsoniana por Gilles Deleuze; e a primeira vez que ele aparecerá já com a assinatura deleuziana, será, justamente, nos livros que ele dedica a formular uma teoria própria do cinema, teoria esta que terá como base a filosofia bergsoniana. No entanto, este encontro marca também uma torção fundamental operada por Deleuze em relação a Bergson. Sabemos que este recusava ao cinema o estatuto de arte, visto considerá-lo a materialização técnica do funcionamento de nossa percepção (inteligência), ou seja, como esta representa o movimento, reconstituindo-o a partir de instantes imóveis. Sendo assim, tanto a percepção como o cinema perdem aquilo que há de mais essencial no movimento: o movimentar-se do movimento. Ora, então como formular uma teoria do cinema a partir de Bergson? É então que Deleuze lança a questão: 

da artificialidade dos meios deve-se inferir a artificialidade do resultado? Para Bergson sim, mas Deleuze e seus dois livros sobre o cinema parecem mostrar que não. Mas na verdade, a recusa de Bergson em ver no cinema uma arte, para além da escusa feita pelo próprio Deleuze de que o autor de Matéria e Memória não tivera tido a oportunidade de conhecer o cinema em seu esplendor, está apoiada sobre um impasse que atravessa a obra bergsoniana no que diz respeito ao próprio estatuto da arte em sua metafísica, impasse esse que talvez o tenha impedido de formular a sua estética, preferindo dedicar-se a um estudo sobre as origens da moral e da religião.

Bergson confunde os meios com os resultados. Como pontuou David Lapoujade, durante o curso ministrado na Paris 1 o qual dedicou à análise da obra A Evolução Criadora, a arte em Bergson tem um estatuto ambíguo, problemático porque nele ainda há esta dualidade do espírito e da matéria, mesmo que esta dualidade, como propõe Deleuze, seja uma unidade. O corpo em Bergson é um misto tão impuro como a arte.

Ora mas qual a relação da arte com o corpo. É que se em Bergson, por um lado, “a função da arte é a de perceber e de fazer perceber aquilo que a percepção habitual mascara” nos diz Fréderic Worms, revelando assim “a individualidade  das coisas e dos seres”, ou seja, a sua duração; por outro, esta superação das condições habituais da percepção ainda se dá por meios perceptivos. Portanto, continua Worms,
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A função da arte está, pois, duplamente ligada àquela da percepção, a natureza habitual desta sendo o obstáculo a ser ultrapassado, mas o próprio da arte sendo o de ultrapassá-la (contrariamente à filosofia e ao misticismo) por meios ainda perceptivos. 155

Daí que se arte é portadora de verdade metafísica, ele não acede a essa verdade, a essa intuição senão particularmente, visto que diferentemente da filosofia e do misticismo que têm como objeto a espécie humana em si, ela tem por objeto a percepção, o que a mantém presa ao plano da matéria.
 
O próprio Bergson é claro nesta distinção entre a função da arte e a função da filosofia e a relação hierárquica entre ambas. Como procura mostrar o filósofo em um trecho do livro A Evolução Criadora no qual trata da relação entre vida e consciência, se a arte desponta como o primeiro ato que revela a intuição, ou seja, o primeiro momento na história do homem onde o instinto torna-se desinteressado, capaz de refletir sobre seu objeto e, portanto, de alargá-lo indefinidamente, a filosofia desponta como o momento onde este ato ganha um método acedendo assim à universalidade que ao primeiro estava vedada.

Acompanhemos o filósofo nesta longa, mas crucial argumentação:

Nosso olho percebe os traços do ser vivo, mas justapostos uns aos outros e não organizados entre si. A intenção da vida, o movimento simples que corre através as linhas, que as liga umas às outras e dá a elas uma significação, lhe escapa. É esta intenção que o artista visa a retomar em se colocando no interior do objeto por uma espécie de simpatia, diminuindo, por um esforço de intuição, a barreira que o espaço interpõe entre ele e o modelo. É verdade que esta intenção estética, como alhures a percepção exterior, não alcança senão o individual.156

No entanto, continua ele,
(...) podemos conceber uma pesquisa orientada no mesmo sentido da arte, mas que tomaria por objeto a vida em geral, assim como a ciência física que seguindo até o final a direção marcada pela percepção exterior, prolonga em leis gerais os fatos individuais. Sem dúvida, esta filosofia não obterá jamais de seu objeto um conhecimento comparável àquele que a ciência tem do seu. 

A inteligência permanece o núcleo luminoso em torno do qual o instinto, mesmo alargado e depurado em intuição, não forma senão uma nebulosidade vaga. Mas, a despeito do conhecimento propriamente dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá nos fazer apreender aquilo que os dados da inteligência têm aqui de insuficientes e nos deixam entrever o meio de completá-los. 155 WORMS, F. Le vocabulaire de Bergson, p. 15.156 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p. 178.
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 Por um lado, com efeito, ela utilizará o mecanismo próprio da inteligência para mostrar como os quadros intelectuais não encontram mais aqui a sua aplicação, e, por outro lado, através seu próprio trabalho, ela nos sugerirá ao menos o sentimento vago daquilo que é preciso colocar no lugar dos quadros intelectuais. Assim, ela poderá levar a inteligência a reconhecer que a vida não entra nem no quadro do múltiplo nem do uno (...) Depois, pela comunicação simpática que ela estabelecerá entre nós e o resto dos viventes, pela dilatação que ela obterá de nossa consciência, ela nos introduzirá no domínio próprio da vida, que é compenetração recíproca, criação indefinidamente contínua. Mas, se por isso ela ultrapassa a inteligência, é a inteligência que provocou o abalo que a fez alcançar o ponto onde ela está. 

Sem inteligência, ela teria ficado, sob a forma de instinto, fixada ao objeto especial que a interessa praticamente, e exteriorizada por ele em movimentos de locomoção.157

De pronto, mais do que uma distinção entre a arte e a filosofia, temos uma distinção ontológica entre a arte, a filosofia e a ciência. Se esta última se caracteriza por abordar a vida por meio da inteligência, e por isso submetendo-a aos seus procedimentos, o que significa dizer que o faz por meio de uma separação entre a consciência e a vida; à filosofia cabe superar a inteligência por meio dela própria re-encontrando o elo fundamental entre a consciência e a vida. E a arte, que tarefa estranha ela cumpre: pois se como a filosofia, ela nos devolve à vida, o faz parcialmente e isso porque justamente este re-encontro não se dá por meio de um ultrapassamento, mas por meio de um curioso retrocesso. Quase como se arte tivesse surgido de um equívoco (confusão): na ânsia de recuperar o elo perdido, a consciência teria se voltado para um plano infra-intelectual, mantendo-se ao nível da percepção e do instinto, essa franja que circunda a luminosa inteligência. Como se ao invés de ter seguido a marcha do espírito, num primeiro momento ela tivesse se refugiado no corpo, continuando, assim, ainda atada ao plano material.

Portanto, se arte e filosofia, ambas por meio da intuição, têm como tarefa re-encontrar a vida, parece que uma diferença fundamental as separa e hierarquiza suas funções. Hierarquia que só é possível porque como bem notou David Lapoujade a filosofia bergsoniana se fundamenta sobre o dualismo espírito/matéria. Desta forma, mais do que uma questão entre meios e resultados,parece que o estatuto ambíguo da arte aqui está assentado sobre esse lugar problemático que o corpo ocupa no interior da história da metafísica. Sendo assim, a questão “da artificialidade dos meios deve-se inferir a artificialidade dos resultados” deve ser substituída por outra: é o corpo um obstáculo ao pensamento?157 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p. 179
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Mas antes de respondê-la, é necessário que a deixemos em suspenso. Pois se ela é o ponto de partida e o horizonte de nossa análise, é preciso que antes nos voltemos para aquilo que é o cerne da filosofia de Bergson, o que, mais do que uma marca, funciona como um marco que delimita uma importante reversão na história do pensamento: Bergson foi o primeiro filósofo a colocar o tempo como o objeto próprio da filosofia. Com o conceito de duração, ele eleva o tempo à instância metafísica. Aqui já não se trata mais de partir da realidade do movimento em direção a uma essência transcendente, imóvel e eterna. Mas ao contrário, trata-se antes de tudo de afirmar a duração como o ato do espírito.

E aí reside o segundo motivo pelo qual é necessário que nos dediquemos à análise da filosofia bergsoniana. Pois se Bergson ao erigir a duração como o ato do espírito promove uma importante guinada na direção das investigações metafísicas, esta guinada acarreta para a investigação que aqui se segue uma importante conseqüência. Como vimos no capítulo dedicado a Aristóteles, se a mimesis é concebida como uma atividade através da qual as ações humanas são dotadas de sentido por meio da suspensão do caráter temporal das mesmas, isso se deve ao fato de a operação mítica, principal operação da atividade mimética, estabelecer relações de necessidade e verossimilhança entre as ações. Esta operação, que Ricoeur denominou de colocação em intriga, é, como vimos, o ato que revela a inteligência das ações. O ato do espírito, este ato que se realiza por meio do fazer mimético, é, portanto, um ato de suspensão do tempo.

Ora, mas se o ato do espírito em Bergson é a duração, o ato pelo qual o tempo passa, como conceber um fazer, uma arte cuja operação é, justamente, o bloqueio desta passagem? Ou é preciso re-conceitualizar a atividade mimética ou aceitar que aquilo que modernamente denominamos sob a rubrica de arte nada tem a ver com a arte de imitar ações. Parece que a segunda opção está mais de acordo com a perspectiva bergsoniana. Pois, como já deixamos entrever, mesmo que a arte ocupe uma posição ambígua em sua metafísica, ela é considerada como um ato do espírito e como tal traz em si a marca deste ato, a sua duração.

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Portanto, e aí se encontra o cerne da questão, o equívoco de Aristóteles não se encontra exatamente no conceito de mimesis, mas na repartição ontológica: pois antes de confundir a atividade do poeta com a atividade mimética, ele confundiu a atividade da inteligência com o ato do espírito, ou seja, a nossa necessidade enquanto corpo orgânico de agir, de praticar ações a fim de conservar a vida de nosso organismo com o ato do espírito, a duração, que visa à conservação da vida, em seu sentido pleno, como passagem, continuidade.

Como esclarece Fréderic Worms, antes de ser um equívoco teórico, a confusão entre essas duas ordens de conservação reside numa exigência prática da vida:
(...) se uma confusão nos mascara o ato da duração, nossa vida mesma, se nós a desnaturamos por uma representação espacial (...) isto não pode ser por nada, pelo prazer, isto é porque nós não podemos, ou melhor, quase não podemos fazer de outra maneira.158

E isto porque, continua o autor de Bergson ou les deux sens de la vie, o espaço, ou mais precisamente a espacialização da duração,
(...) deve cumprir uma função prática que o ultrapassa, ao ponto que o obstáculo que ele representa, a seu turno, não é somente teórico, convocando argumentos, mas também prático, convocando um esforço e uma escolha. De fato, aquilo que se opõe segundo Bergson ao conhecimento de nossa vida interior em sua realidade são as exigências da vida prática, ou pragmática, na sua necessidade, cujo espaço é o meio perigosamente eficaz no homem.159

Se à filosofia cabe reencontrar a vida lá onde ela se encontra em sua plenitude, em seu “estado puro”, é preciso, assim, um esforço que a permita ultrapassar este obstáculo prático e este é, antes de tudo, um esforço de distinção, um saber distinguir entre as exigências da vida prática – as quais estão voltadas para a conservação de um organismo qualquer - e o ato que assegura a conservação real da vida em sua integralidade. Este ato que, segundo a precisa definição de Worms,

(...) assegura a conservação real (dos) momentos no tempo, de maneira interna a sua sucessão mesma e sem a deixar nem a trair, este ato que faz de toda sucessão uma continuidade, e uma vida, não somente a sucessão de alguma coisa mas a duração de qualquer um.160
158 WORMS,F. Bergson ou Le deux sens de La vie, p .11;159 WORMS, F. Bergson ou Le deux sens de La vie, p. 11
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Aí reside, portanto, a força da noção de duração a qual, continua Worms,
(...) não designa somente a extensão do tempo, como a “duratio” dos clássicos, mas o ato da continuação, o ato de se manter no e através do tempo, esta dureté, esta resistência, esta solidez que entendemos na “duração” própria (para além de sua fluidez) e que conjura o desaparecimento não pelos encantamentos eternais da representação espacial, mas pela prova real da conservação, da passagem (como ato de passar, bem longe da passividade), ou da criação. 161

E este esforço de distinção, esforço que ao separar o espaço da duração nos permite apreender a duração, este esforço é o que Bergson denomina de intuição. A duração é o seu ato e a intuição o seu método. No entanto, nos alerta Deleuze, “a intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia”.162 Pois se as noções de duração e de memória, outro conceito central do bergsonismo, dizem respeito a experiências reais e vividas, estas não nos são acessíveis pelos meios de que dispomos “naturalmente”, ou seja, pela percepção e pela inteligência. É por isso que este esforço exige um método, pois do contrário, esclarece Deleuze,
poder-se-ia dizer que a duração permaneceria tão-só intuitiva, no sentido ordinário dessa palavra, se não houvesse precisamente a intuição como método, no sentido propriamente bergsoniano.163

Deste modo, podemos dizer que a intuição só alcança a generalidade da vida, só se descola do sensível quando erigida em método. Ou mais precisamente, como já havia esclarecido o próprio Bergson na longa citação que fizemos acima, a intuição só se torna filosófica quando assim como a ciência ultrapassa as condições particulares da percepção prolongando os fatos individuais em leis gerais. E, lançando mão do próprio método científico, método que tem como base o esquema da inteligência, mostra a insuficiência deste para apreender (e intuir) esta outra dimensão da realidade que não é acessível por meios espaciais.160 Id. Ibid, p. 13;161 Id., Ibid,p. 13;162 DELEUZE, G. O bergsonismo, p. 7;163 DELEUZE, G. O bergsonismo, p. 8
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Pois, se por um lado o método científico assoma à generalidade das leis se desprendendo da particularidade da ação, por outro, como o seu objeto continua sendo a matéria, ou ainda, a ação sobre a matéria, a relação com a vida se dá por meio da representação, ou seja, por um processo de retenção do fluxo contínuo que constitui o ato da duração. Se há uma diferença entre a percepção instintiva e a percepção inteligente esta é uma diferença prática, enquanto que a intuição e a inteligência há uma diferença de objeto, ou mais precisamente, há uma diferença de relação com a vida, visto que se a segunda interroga a realidade a partir do espaço, a primeira coloca o problema a partir do tempo. Ou como diria Bergson enquanto a inteligência procura as diferenças de grau, pois ela atua sobre um espaço homogêneo, a intuição se pergunta pela diferença de natureza.

Para que entendamos melhor a diferença entre a inteligência e a intuição é preciso que precisemos o sentido da noção de inteligência em Bergson e qual a sua relação com as noções de instinto e de percepção. Primeiramente, isto que o filósofo denomina inteligência é o correlato da noção de entendimento em Kant. Como esclareceu Lapoujade durante o curso já mencionado, a inteligência é o vocábulo que Bergson utiliza para falar de inteligência em Kant. 

Daí a inteligência ser entendida como a faculdade através da qual representamos o mundo. O que torna a crítica bergsoniana à inteligência uma crítica aos sistemas filosóficos que foram erguidos sob a égide do entendimento, da razão e do conhecimento. E aí está o pulo do gato de Bergson, pois para ele a faculdade da inteligência não pode servir de referência para o exercício do pensamento visto que se ela representa o mundo isto é porque está subordinada à faculdade de agir, funcionando como um anexo desta. Prestemos atenção às palavras do filósofo:

Nossa inteligência, tal qual a evolução da vida a modelou, tem por função essencial esclarecer nossa conduta, preparar nossa ação sobre as coisas, de prever, por uma situação dada, os acontecimentos favoráveis ou desfavoráveis que poderão se seguir. Ela isola, pois, instintivamente, em uma situação, aquilo que parece ao já conhecido; ela procura o mesmo, a fim de poder aplicar seu princípio de que “o mesmo produz o mesmo”. Nisto consiste a previsão do futuro pelo senso comum.164

E o que a ciência faz é exatamente explorar até a máxima potência esta capacidade própria da inteligência. A ciência é a inteligência tornada método. Continua Bergson:A ciência leva essa operação (de previsão do futuro pela inteligência) ao seu mais alto grau possível de exatidão e de precisão, mas ela não altera o seu caráter essencial. Como o conhecimento usual, a ciência não retém das coisas senão o seu aspecto repetição.165164 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p. 32
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Ora, mas o instinto, ele também não é o responsável por preparar as ações nos demais animais? Ele, tal como a inteligência, não procura o mesmo no mesmo, visto que para atacar ou fugir o animal não precisa ele também reconhecer e identificar os traços de sua presa ou de seu algoz, ou seja, antecipar o futuro? Então, por que a inteligência pode ser considerada como um salto evolutivo, salto este que como esclarece Bergson, não marca uma sucessão, mas uma divergência na linha evolutiva, visto que entre o instinto e a inteligência não há uma diferença de grau, mas de natureza? Onde reside, então, esta diferença de natureza se ambos estão voltados para a ação?

Bergson nos explica que a vida que se manifesta num organismo, em sua dimensão biológica, é “um certo esforço para obter certas coisas da matéria bruta” e que tanto instinto como inteligência são formas divergentes que a vida encontrou para tirar proveito da matéria. Assim, se há uma diferença entre ambos essa só pode ser uma diferença de ordem prática ou metodológica: “nós vemos nestas duas formas da atividade psíquica, antes de tudo, dois métodos diferentes de ação sobre a matéria inerte”.166
 
Ora, se pergunta Bergson, a que acontecimento nos referimos quando queremos determinar a aparição do homem sobre a terra? Esta aparição não é determinada justamente pelo surgimento dos primeiros objetos fabricados?
 
Em milhões de anos, quando o recuo do passado não deixar mais perceber senão as grandes linhas, nossas guerras e revoluções contarão pouco (...); mas a máquina a vapor, com todas as invenções que lhe fazem cortejo, falaremos talvez como falamos do bronze ou da pedra talhada; ela servirá para definir uma idade. Se nós pudéssemos nos despojar de todo orgulho, se, para definir nossa espécie, nós nos prendêssemos ao que a história e a pré-história nos apresentam como a característica constante do homem e da inteligência, talvez nós não disséssemos homo sapiens, mas homo faber. 167
 
Antes de tudo, um fabricador, eis o homem para Bergson. E aqui não há nenhuma depreciação, ele apenas coloca o homem e a inteligência em seu devido  lugar. Este não veio à Terra para erigir um saber, mas antes para fabricar. Isto seria até mesmo desmerecê-la naquilo que ela possui de beleza e de destreza:
(...) ser uma faculdade de fabricar objetos artificiais, em particular ferramentas que fabricam ferramentas, e disto variar indefinidamente a fabricação.168 165 Id., Ibid, p. 34 166 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p.. 140;167 Id., Ibid, p. 140

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(...) ser uma faculdade de fabricar objetos artificiais, em particular ferramentas que fabricam ferramentas, e disto variar indefinidamente a fabricação.168

E é nesta capacidade infinita de fabricar objetos variados que reside a verdadeira singularidade da inteligência sobre o instinto. Por isso, mesmo que entre alguns animais possamos identificar a fabricação de instrumentos, esta não varia a não ser que a variação se dê concomitantemente sobre o organismo do animal, ou seja, quando esta variação seja também uma variação orgânica encetando uma transformação da espécie: aqui o instrumento e o corpo formam um só corpo, invariavelmente.

Daí a distinção que Bergson nos propõe:
O instinto é uma faculdade de utilizar e mesmo de construir instrumentos organizados, a inteligência é a faculdade de fabricar e de empregar instrumentos inorganizados.

Ora é exatamente porque o instrumento fabricado pelo homem perdeu o seu caráter orgânico que a sua fabricação pode variar infinitamente. Pois, ao deixar de ser orgânico ele perde também o seu acabamento, exigindo sempre um esforço renovado de aperfeiçoamento, aperfeiçoamento este que nunca se completa justamente porque a relação orgânica entre ele e o corpo se quebrou. Daí que, se o instinto é necessariamente especializado, pois forma com o corpo uma unidade,

(...) o instrumento fabricado inteligentemente é um instrumento imperfeito. Ele não se obtém que ao preço de um esforço. (...) Mas, como ele é feito de uma matéria inorganizada, ele pode tomar uma forma qualquer, servir a não importa qual uso, tirar o ser humano de toda dificuldade nova que surge e lhe conferir um número ilimitado de poderes.169

A sua força reside em seu inacabamento. E o seu inacabamento reside na impossibilidade de encaixe integral, acabado que permita ao corpo e ao
instrumento formarem um todo. O que se quebrou foi a relação orgânica entre o instrumento fabricado e o corpo que o fabrica. Um interstício aí se instalou.
 
Ganhamos em soluções, tornamo-nos um animal capaz de dar respostas as mais variadas aos problemas e aos perigos que a vida nos expõe. Nossas ações sobre o mundo tornaram-se indeterminadas, pois somos capazes de a cada nova situação criar uma nova solução. Mas perdemos aquilo que, segundo Bergson, é a essência da vida, o que é vital na vida, o ato da duração, ato através do qual esse mesmo corpo cindido dura, permanece, vive.
 
Como se o esquecimento, uma tendência ao esquecimento, tivesse voltado a habitar este corpo cindido. Tivesse aí se infiltrado por essa fissura aberta entre o corpo e aquilo que ele fabrica. Mas para que entendamos as conseqüências do surgimento deste interstício inorgânico é preciso que nos voltemos para um outro conceito fundamental da metafísica bergsoniana, a saber, o conceito de memória e quais as relações que ele entretém com o sistema de ação do corpo e o esquema da inteligência.
 
E para tanto teremos que nos voltar para a cosmologia criada por Bergson em seu belo livro Matéria e Memória. Este estudo, como anuncia o próprio filósofo no prefácio à sétima edição, “afirma a realidade do espírito, a realidade da matéria e ensaia determinar a relação de um a outro sob um exemplo preciso, aquele da memória”.170 E assim Bergson procura dar fim à velha querela entre idealistas e realistas, os primeiros retiram à matéria sua realidade, reduzindo-a a representação que fazemos dela; já os segundos estabelecem um hiato entre a matéria e o espírito ao afirmar que há uma diferença de natureza entre a matéria e a representação que dela fazemos. Como pode uma coisa que produz em nós representações ser de uma natureza diferente daquela representação que ela produziu? Para tanto, mais do que afirmar a realidade da matéria e a realidade do espírito é preciso mostrar como essas duas realidades a princípio diferentes se relacionam. E para isso foi preciso que Bergson desfizesse um falso dualismo, o dualismo da matéria e da imagem. Esta é a sua primeira tese:
 
A matéria, para nós, é um conjunto de “imagens”. E por “imagens” nós entendemos uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealismo chama  uma representação, mas menos do que aquilo que o realismo chama uma coisa – uma existência situada a meio-caminho entre a coisa e a representação.171
170 BERGSON, H. Matière et Memóire, p. 1.

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Se matéria é imagem e imagem é matéria isso significa que a imagem não é uma representação puramente mental, ou seja, não está somente em nosso espírito como também não difere em natureza da matéria.
 
 Ora, então haveria uma coincidência entre a matéria, a imagem-matéria, e a representação que dela fazemos? Por um lado sim, pois antes de se tornar uma representação a imagem está no mundo; mas por outro lado não, pois como veremos a representação (percepção-consciente) é uma operação de subtração, pela qual selecionamos neste conjunto de imagens que compõem o universo material aquelas que nos interessam, personalizando assim a imagem extraída do exterior. Portanto, se há uma continuidade há também uma diferença. Se a representação que fazemos do mundo não coincide plenamente com este mesmo mundo é porque ela é menos, ela é uma operação de subtração a partir da qual efetuamos um corte sobre o universo - de certa maneira podemos dizer que o nosso mundo é esse corte. Daí haver ao mesmo tempo uma continuidade, ambas são imagem, e uma descontinuidade pois a imagem-representação se constitui a partir de uma subtração.
 
 É esta operação que será explicitada no primeiro capítulo de Matéria e Memória. Partindo da hipótese central da identidade entre matéria e imagem, Bergson parte da realidade do mundo material para explicar o surgimento do corpo no interior deste universo. E aqui precisamos abordar uma segunda tese de Bergson, sem a qual não é possível apreender integralmente a sua cosmologia, e acrescentar ao par imagem-matéria um terceiro elemento, o movimento. Pois se matéria é imagem, imagem é movimento. Ao retirar as imagens do espírito e devolvê-las ao mundo, Bergson não só as dotou de materialidade como de vida. Uma imagem-matéria não pode ser concebida como uma pura imagem-mental, aparência inerte a flutuar num além-mundo. 

O que há, antes de tudo, é um universo material descentrando onde todas as imagens agem e reagem umas sobre as outras e em todos as suas faces. Imagens-matéria-movimento, eis a realidade do universo. No entanto, este universo é um universo de pura exterioridade onde nada de novo é criado visto que “o futuro das imagens está contido em seu presente e nada aí poder ser .acrescentado”.172 171 Id., Ibid, p. 1
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Ora, se pergunta Bergson, mas entre essas imagens que compõem o universo material existe ao menos uma que “eu não conheço apenas do exterior através de percepções, mas também de dentro por meio de afecções: esta é meu corpo”173. O corpo é assim uma imagem, mas um tipo de imagem particular, pois dotada de um dentro, que funciona como um intervalo entre as ações que recebe do exterior e aquelas que ele devolve a este mesmo exterior. Ele institui assim um intervalo entre a ação e a reação, intervalo por meio do qual algo de novo pode ser produzido, visto que a reação deixa de ser imediata, tal qual no universo material. Portanto, este intervalo é um intervalo de tempo. 

Se o corpo, esta imagem particular, acrescenta algo de novo ao universo é justamente porque o futuro desta imagem não está contido em seu presente, ou seja, porque a sua reação não é imediata, mas mediada. Um centro de ação se forma no interior deste universo. Ou para sermos mais precisos, uma interioridade é escavada nesta pura exterioridade. Este intervalo, esta hesitação entre a ação recebida e a ação devolvida, isto é o corpo.

Desta forma, nos diz Bergson é preciso abordar o corpo antes de tudo como um centro de ação, ou seja, a partir de uma perspectiva prática. E como tal, diferentemente do sistema descentrado das imagens no universo ele se constitui como um sistema motor, ou para sermos mais precisos, como um sistema sensório-motor. Sistema este que se configura como um sistema de imagens: a imagem-percepção, a imagem-afecção e a imagem-ação.

Esta repartição é o que Bergson chama de percepção consciente. Pois se há de direito uma percepção na matéria esta é uma percepção instantânea, ou seja, não há separação entre a percepção e a ação. Visto que diferentemente da percepção instantânea, a percepção consciente funciona como um fundo negro por onde algumas imagens passam e outras ficam.

 A percepção-consciente é uma percepção que seleciona certas imagens e deixa outras passarem em função da ação que irá executar. É por isso, pois, como já havíamos feito notar anteriormente, que a percepção-consciente é uma subtração. E é justamente em função desta subtração que algo novo pode ser acrescentado ao conjunto do universo.172 BERGSON, H. Matière et Memóire p. 11- 173 Id., Ibid, p. 11
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 Como esclarece Bergson, “esta percepção (a percepção-consciente) aparece no momento preciso onde uma excitação recebida pela matéria não se prolonga em reação necessária”.174 O intervalo, a hesitação é a condição da indeterminação. Pois, da mesma forma que a percepção-consciente surge do intervalo entre a percepção e a ação, só há ação de fato quando um intervalo separou esta da percepção. Ou seja, quando um intervalo separou o movimento recebido do movimento executado. A ação de fato é justamente a realização da indeterminação. É porque é um centro motor, é porque age de fato que esta imagem especial que é o corpo produz algo de novo no universo.

Mas por que e como este intervalo cria uma indeterminação? Como a subtração pode tornar-se uma criação? Para isso precisamos nos voltar para a terceira imagem que compõe o sistema sensório-motor, a imagem-afecção, e que se confunde com o próprio intervalo. Ela, como já havia dito no início do capítulo Bergson, é a percepção interior. Portanto diferentemente da imagem-percepção e da imagem-ação que estão voltadas para o exterior, são as faces exteriores do corpo, a imagem-afecção é sua face interior.
Esta imagem especial, esta imagem interior é uma imagem que como indica o nome diz respeito à capacidade do corpo de ser afetado, é a sua face sensível, receptiva:

(...) nós havíamos considerado o corpo vivo como uma espécie de centro no qual eram refletidos, sobre os objetos que o rodeiam, a ação que estes objetos exercem sobre ele: nesta reflexão consiste a percepção exterior. Mas este centro não é um ponto matemático: ele é um corpo, exposto, como todos os corpos da natureza, à ação das causas exteriores que ameaçam o desagregar. Nós acabamos de ver que ele resiste à influência destas causas. 

Ele não se limita apenas a refletir a ação de fora; ele luta, e absorve assim alguma coisa desta ação. Aí estaria a origem da afecção. 175
Portanto, se a imagem-percepção mede a capacidade de reação do corpo, a afecção mede a sua capacidade de absorção. Ela mede a capacidade que este corpo tem de suportar a ação exterior. (Como nos lembra Bergson, o corpo para além de um centro motor é antes um organismo vivo e como tal irritável. Esta irritabilidade é justamente a medida de sua capacidade de absorção). Há, pois,uma diferença de natureza entre essas imagens, uma sendo ativa e extensa enquanto a outra receptiva e intensiva.

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No entanto, esta diferença de natureza não indica e nem poderia indicar uma não-relação, ao contrário, como faz ver Bergson há entre a percepção e afecção uma necessária complementaridade, pois a gênese da afecção se encontra na própria percepção ou mais especificamente no processo de constituição da percepção: “É preciso ver as coisas de mais perto, e compreender que a necessidade da afecção decorre da existência da própria percepção”176.

Como mostra Bergson na descrição que faz da gênese da afecção, esta surge justamente de uma coincidência entre o objeto a ser percebido e nosso corpo, ou seja, quando o nosso corpo é o objeto a ser percebido.
A percepção, entendida como nós a entendemos, mede nossa ação possível sobre as coisas e por aí, inversamente, a ação possível das coisas sobre nós. 

Quanto maior é a potência de agir do corpo (...), mais vasto é o campo que a percepção abraça. A distância que separa nosso corpo de um objeto percebido mede verdadeiramente a menor ou a maior iminência de um perigo, a maior ou menor chance de realização de uma promessa. E, por conseguinte, nossa percepção de um objeto distinto de nosso corpo, separado de nosso corpo por um intervalo, não exprime nada além de uma ação virtual. Mas mais a distância diminui entre o objeto este objeto e nosso corpo, mais, em outros termos, o perigo torna-se urgente ou a promessa imediata, mais a ação virtual tende a se transformar em ação real. Passemos ao limite, suponhamos que a distância torne-se nula, quer dizer que o objeto a perceber coincida com o nosso corpo, quer dizer enfim que nosso corpo seja o objeto a perceber. Então não é mais uma ação virtual, mas uma ação real que esta percepção toda especial exprimirá: a afecção consiste nisto. Nossas sensações são pois para nossas percepções o que a ação real de nosso corpo é para sua ação virtual ou possível (...) E é por isso que esta superfície, limite comum do exterior e do interior, é a única porção do extenso que é ao mesmo tempo percebido e sentido. 177

Se Bergson faz a afecção surgir da percepção é porque de direito esta é anterior, visto que no limite há uma percepção pura que já está nas coisas, essa percepção pura própria ao regime das imagens-matéria. Mas à vera, a percepção-consciente, essa percepção capaz de medir as distâncias, surge ao mesmo tempo em que uma imagem-afecção se produz, visto que a imagem percepção só pode funcionar como uma superfície de reflexão, pois ganhou opacidade, diferentemente da superfície das imagens-matéria que são translúcidas, por ondetudo passa.  176 BERGSON, H. Matière et Memóire, p. 59-177 Id. Ibid, p. 59
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 Há, portanto, uma relação direta entre a reflexão e absorção: não é já a reflexão uma absorção?

Pois, se o corpo pode exercer uma ação sobre a matéria e sobre os outros corpos, ou seja, se ele pode afetá-los isso é porque antes de tudo ele também pode ser afetado e, principalmente, auto-afetado. Se a imagem-afecção diz respeito ao intervalo interior, a percepção mede a todo momento o intervalo exterior que nos separa dos outros corpos. Mas esse intervalo extenso, essa distância que mantemos dos outros corpos tem como referência de medida a nossa capacidade de absorver a ação desses corpos sobre nós. O intervalo intensivo é, pois, a medida de nosso intervalo extensivo. Ou seja, a ação virtual sobre os outros corpos é medida pela ação real que somos capazes de sofrer. Portanto, a percepção só pode medir a ação sobre e dos outros corpos sobre o seu quando ela é também capaz de perceber interiormente seu próprio corpo. Daí a gênese comum: a afecção nasce dessa dobra da percepção sobre si mesma, desse momento onde a percepção pura torna-se percepção-consciente. Daí Bergson dizer:

 “A verdade é que a afecção
 não é a matéria primeira da qual a percepção é feita: 
ela é muito mais a impureza que aí se mistura”178.
Portanto, é a mistura produzida pelo encontro entre as imagens exteriores e a imagem interior que cria a indeterminação, ou seja, é a mistura que retira às imagens seu caráter instantâneo. Não é justo quando a percepção opera essa dobra sobre si mesma dando ensejo a imagem-afecção, ou seja, tornando-se uma superfície de reflexão ao adquirir opacidade e poder de absorção, que ela se torna uma percepção-consciente? Então a percepção-consciente, essa nova imagem que surge no universo das imagens-matéria, é fruto de uma mistura. O intervalo é, portanto, o tempo da mistura. Toda mistura não exige um tempo, uma duração?

Há misturas quase instantâneas, mas há aquelas que exigem uma longa duração. Quanto maior for a proximidade entre os elementos misturados mais curto o tempo da mistura; quanto maior a diferença entre os elementos, mais longa a duração da mistura. A mistura do mesmo com o mesmo, da água com a água é uma mistura quase instantânea, e por isso não produz nada de novo. Mas a mistura da água com a pedra, esta exige muito tempo. Mas também é preciso conhecer o 90 tempo certo, cada mistura tem a sua própria duração, ou ainda, cada mistura é uma duração específica. 178 BERGSON,

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 Os cozinheiros sabem disso muito bem.
Então essa dobra, essa mistura é, antes de qualquer coisa, a produção de uma nova imagem: o corpo. Antes mesmo de criar algo de novo, o corpo é já ele uma nova imagem que surge no universo. Lembremos que as imagens-matéria não se misturam, elas batem e rebatem umas sobre as outras, sem nada daí reter. É o corpo, imagem dobrada, superfície opaca, a primeira indeterminação que aí se produz.

Mas o que é essa dobra, como essa dobra se produz? E aqui começa a metafísica bergsoniana. Essa dobra é um ato da memória. O corpo nada mais é do que a matéria que saiu de seu estado de puro esquecimento, ou seja, a matéria dotada de memória. Portanto essa dobra, esse encontro entre duas imagens nada é senão uma primeira volta ao passado. E não é este justamente o movimento que faz a percepção: de início ela está totalmente voltada para o exterior, para o presente; até que num primeiro movimento de rememoração ela encontra a imagem passada mais próxima, a imagem de seu próprio corpo a qual se mistura à imagem presente ou exterior. 

“A indeterminação das ações a realizar exige, pois, para não se confundir com o puro capricho, a conservação das imagens percebidas”.179
 
A imagem interior, a imagem-afecção é a primeira imagem-lembrança que vem se juntar à imagem-percepção pura. O movimento de dobra permitiu assim a conservação da imagem, reteve-a formando uma superfície opaca. A dobra é o ponto de contato entre a consciência e as coisas, entre o corpo e o espírito. 

Mas essa mistura não indica uma identidade entre as duas imagens: pois se a imagem-lembrança ao se misturar à imagem-exterior dá a essa um caráter pessoal, a imagem que daí se forma guarda ainda este caráter impessoal da percepção pura, ou seja, desse momento onde percepção e objeto se confundem, e sem o qual não haveria a convocação/dobra do passado. Pois como explica Bergson: o passado não é senão idéia, o presente idéo-motor. Portanto, se por um lado sem as imagens-lembranças - imagens ideais porque perderam seu caráter ativo - a imagem-exterior - esta imagem instantânea e impessoal - não se desprenderia do objeto e conseqüentemente não se diferenciaria dele, permanecendo impessoal;179 BERGSON, H. Matière et Memóire, p. 67
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por outro lado, sem a imagem-exterior as imagens-lembranças não teriam de volta seu caráter ativo, ou seja, não se atualizariam, não se exteriorizariam, permanecendo esquecidos neste passado ideal e inerte: “Estes dois atos, percepção e lembrança, se penetram pois sempre, trocando sempre alguma coisa de suas substâncias por um fenômeno de endosmose”.180 Uma oferece a pessoalidade, a outra a atividade. Portanto, a subtração envolve também uma adição.

Mas como havíamos dito, essa troca que se dá a partir da primeira dobra operada pela percepção e que a faz ir ao encontro da primeira imagem-lembrança, essa imagem pessoal, que é a imagem interior, não só promove um primeiro encontro como institui um dispositivo, dispositivo de rememoração sem o qual esta imagem nova que surgiu não se conserva. Pois esta primeira imagem interior, essa primeira imagem-lembrança (e toda imagem-lembrança é interior, pois ideal) abre caminho para uma série de outras que virão se juntar a ela e que, como ela, voltarão ao exterior quando convocadas pelo corpo que é antes de tudo um centro-motor.

Daí que a conservação deste organismo, a conservação biológica, depende da conservação metafísica, pois sem memória não há indeterminação e, portanto, não há ação de fato e sem ação não há conservação física do organismo. A indeterminação se forja justamente quando à impessoalidade vem se juntar a pessoalidade. Mas essa indeterminação é dupla, ou mais precisamente, envolve uma dupla troca: pois se por um lado ao misturar a percepção-pura com a imagem lembrança o corpo devolve ao mundo uma nova imagem, ele, também, sofre uma transformação, visto que esta imagem impessoal ao tornar-se uma imagem pessoal, ou seja, ao ser interiorizada, provoca uma mudança, mesmo que sutil, no conjunto das imagens-lembranças que configuram a imagem do corpo. Portanto, o dispositivo da percepção-consciente ao por em contato o dentro e o fora opera uma concomitante indeterminação objetiva e subjetiva.

No entanto, a memória como já dissemos é um ato, um ato do espírito que promove uma incessante dobra da imagem-percepção sobre si. Ela não é um compartimento nem físico, pois ela não está no cérebro; nem metafísico, as imagens não são conservadas num além mundo. O que a memória conserva não são, pois, as imagens-lembrança mas o ato que as faz passar e que ao passar se misturam dando ensejo a novas imagens que passam e que se misturam...
180 BERGSON, H. Matière et Memóire, 69
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Como diz Deleuze, “(...) as lembranças só podem se conservar “na” duração. Portanto, é em si que a lembrança se conserva.”181 A memória é, pois, a liga, é o ato através do qual a mistura se dá: a memória é a conservação do passado no presente, pois ela faz o presente passar. Uma espécie de cola metafísica. Mas a imagem-lembrança se conserva porque ela dura e ela dura porque ele passa. Esse incessante passar, esse incessante durar, este é o ato da memória. Fora deste ato a percepção volta ao seu estado de instantaneidade, mergulhada num eterno presente, onde nada de novo é criado. Lembremos o que havíamos dito da duração: a duração é o ato da continuação, o ato de se manter no e através do tempo, ato através do qual a passagem passa. Lembrar é durar e durar é lembrar. 

O organismo que vive 
é um organismo que dura nos diz Bergson.
Tratamos até agora da gênese dessa imagem especial que é o nosso corpo e da sua relação com a memória e, por conseguinte, com a duração. Vimos como esta imagem especial surge de uma dobra da percepção, dobra esta que constitui um intervalo entre a ação e a reação, intervalo de tempo no qual a imagem-exterior, percepção pura, se mistura às imagens-lembranças, formando a percepção consciente, percepção a partir da qual uma nova e indeterminada ação se produzirá sobre as coisas, sobre o mundo exterior. Ora, esse esquema é um esquema comum a todos os corpos que habitam o mundo exterior. Se há uma diferença entre eles esta é uma diferença de duração e, portanto, de grau de indeterminação.

Mas como nos ensinou Bergson em A Evolução criadora essa imagem especial que é o corpo, esse organismo que se formou com a percepção consciente é um organismo que dura e que, portanto, é um organismo que evolui: 

“A evolução, 
ela, implica uma continuação real do passado pelo presente, 
uma duração que é um traço de união”.182
 
Ora, mas como a evolução envolve esta tensão entre as imagens impessoais do presente e as imagens pessoais do passado ela não pode se dar num mesmo ritmo para todas as espécies nem muito menos se constituir em uma linha reta, como se esta já estivesse traçada e o processo evolutivo se confundisse com o seu percorrer. A evolução é traçada no interior do próprio processo evolutivo pois (...) não existe lei biológica universal, que se aplique tal qual, automaticamente, a não importa qual ser vivo. Não há senão direções onde a vida lança as espécies em geral. Cada espécie particular, no próprio ato pelo qual ela se constitui, afirma sua independência183.

A evolução se dá por linhas, direções divergentes. Cada salto evolutivo indica a tomada de uma nova direção. O mundo vegetal é um mundo guiado em direção à imobilidade, ao estado de torpor. Já o mundo animal é um mundo que tomou como direção o movimento e em seu interior as diferentes espécies evoluem, se transformam a partir deste problema: como ir em direção a presa e como fugir quando eu sou a presa. Uma variedade infinita de sistemas motores daí resultou, pois o corpo é a fonte do movimento. Mas eis que uma espécie se coloca um outro tipo de problema: não mais como tornar meu corpo mais ágil para o ataque ou para a fuga; mas como criar objetos que possam me auxiliar no movimento de ataque e de fuga?

Ela foi procurar fora do corpo 
a solução e assim uma nova direção foi tomada.
Não é isso a inteligência, essa linha divergente que surge do interior da linha do instinto? Enquanto este é a faculdade de construir instrumentos organizados, ou seja, que estão numa relação orgânica com o corpo e que, portanto, formam uma unidade com este; a inteligência é a faculdade de construir instrumentos inorganizados, artificiais e que ganham por isso uma variabilidade indeterminada.

Mas se para Bergson essa linha divergente se configura como um salto evolutivo sem precedentes; por outro ela traz consigo um grande perigo. Pois ao romper o elo orgânico entre o corpo e a matéria, ela se afasta da vida, ou mais precisamente do que há de vital na vida, a duração, e se volta para a matéria, para o aspecto material da vida. 

Pois, como explica Bergson, se instinto e inteligência são duas formas de ação sobre a matéria, a primeira ao se constituir de forma orgânica não quebra o elo com a vida, com a duração visto que a ação sobre a matéria se dá internamente, é inata; já a segunda, se constitui por um movimento de exteriorização, “ela é a vida olhada de fora, se exteriorizando em relação a ela própria, adotando em princípio a marcha da natureza inorganizada”.184 E isto porque para que possa mais do que agir sobre a matéria, a inteligência torna a matéria uma aliada na própria ação que ela empreende sobre esta mesma matéria:

Assim todas as forças elementares da inteligência tendem a transformar a matéria em instrumento de ação, isto quer dizer, num sentido etimológico da palavra, em órgão. A vida, não contente em produzir organismos, quis lhe dar como apêndice a própria matéria inorgânica, convertida em um imenso órgão pela indústria do ser vivo.185

Mas para que isso fosse possível, a inteligência mais do que organizar a matéria, pois assim ela não romperia de fato com o instinto, ela promove uma desorganização do corpo a fim de que esse possa não mais apenas agir sobre a matéria, mas por meio da matéria. Ou seja, para que esse possa não só fabricar utensílios invariavelmente, mas utilizá-los invariavelmente. A cada novo utensílio é uma nova relação entre o corpo e este que se estabelece, portanto, não é apenas o instrumento que varia, mas também o corpo que o utiliza.É a organização, a relação corpo e objeto, que com o advento da inteligência passa a variar indeterminadamente. Um mesmo corpo torna-se capaz de experimentar variadas organizações.

E essa operação da inteligência sobre o mundo material se dá por meio de um novo tipo de representação, um novo tipo de conhecimento da matéria que promove uma homogeneização do tempo: a representação espacial. O espaço é o esquema da matéria, um esquema de divisibilidade indefinida que elimina justamente da divisão o ato da duração. Homogeneizar é isso: é separar a divisão do próprio ato de dividir, quer dizer, acreditar que a divisão é um ato que não opera uma mudança e que as partes ao serem divididas continuam igual a elas mesmas e que o todo possa ser reconstituído.

Ora, isso é acreditar que a ação sobre o mundo não se dá no tempo, não exige uma duração. Portanto, ela promove também uma homogeneização do intervalo orgânico entre a ação e a reação, este já não é mais apreendido em termos de tempo, de mudança qualitativa, mas de espaço. Como vimos o intervalo interior, o grau de memória de cada corpo, é a medida da distância que este corpo mantém dos outros corpos. A ação possível ou virtual tem como referência a ação real, ou seja, a extensão do horizonte de ação depende da potência, da intensidade da duração, do intervalo interior. Portanto, a relação entre corpo e mundo é uma relação extensiva que tem como referência a potência intensiva do corpo. Esta distância é, portanto, uma distância orgânica, sendo cada mundo esta própria distância e suas variações internas. 
 
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Assim, ao eliminar a duração é o próprio intervalo que se desfaz em prol deste meio vazio e homogêneo. Como diz Deleuze: “Com efeito, o espaço não é a matéria ou a extensão, mas o “esquema” da matéria”.186Daí porque para Bergson a inteligência estar voltada para o material, e daí também que esta exteriorização promove como que uma volta ao esquecimento que caracteriza o estado da matéria no mundo. Pois, ao eliminar a duração ou ao procurar o mesmo e não a diferença, o que se perde é justamente o ato pelo qual o corpo criou uma nova imagem do mundo e de si.

Para que entendamos melhor esta operação da inteligência é preciso sublinhar um importante aspecto dessa relação matéria e memória em Bergson. Matéria e duração não são estados definitivos que se opõem, mas duas tendências: a primeira indica uma tendência à inércia, e por isso é uma tendência material, enquanto a segunda vai ao encontro do movimento, da mudança, e por isso é vital. A diferença entre matéria e memória é, portanto, uma diferença de ritmo, de vibração. Daí que tender à inércia ou tender à duração depende da relação que estabelecemos com a vida. Nos diz Bergson:

Uma definição perfeita não se aplica senão a uma realidade feita: ora, as propriedades vitais não são jamais inteiramente realizadas, mas estão sempre em vias de realização: são menos estados e mais tendências. 187

Portanto tudo é uma questão de relações e de tensão. Da mesma maneira que a memória só se atualiza por meio do corpo, este só se conserva por meio da memória. A conservação de sua vida biológica depende de sua conservação metafísica. Parece ser isso que a inteligência esquece ao estabelecer uma relação material, procurando no mundo não a diferença, mas o mesmo.
186 DELEUZE, G. Bergsonismo, p. 70 -- 187 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p. 13

Então como reverter esta tendência a qual a inteligência se voltou e que por meio da ciência 
 
Bergson nos dá uma primeira dica: “Uma tendência só obtém aquilo que ela visa quando ela é contrariada por alguma outra tendência”.188
Então é somente quando um adversário à altura surge que a tendência pode ser realizar em sua plenitude. É somente quando uma potente faculdade inorgânica como a faculdade da inteligência aparece que a vida encontra meios de se realizar. Daí porque para Bergson o ser humano é o ponto mais alto e mais acabado da evolução: pois esta conseguiu criar um adversário à altura. Assim ela sai de sua condição de direito a uma condição de fato. É isso que nos mostra Deleuze quando diz:
 
A duração, a Vida, é de direito memória, é de direito consciência, é de direito liberdade. De direito significa virtualmente. A questão de fato (quid facti) está em saber em que condições a duração torna-se de fato consciência de si, como a vida tem acesso atualmente a uma memória e a uma liberdade de fato. A resposta de Bergson é a seguinte: é somente na linha do Homem que o impulso vital “passa” com sucesso; neste sentido, o homem é certamente “a razão de ser da totalidade do desenvolvimento”. Dir-se-ia que no homem, e somente no homem, o atual torna-se adequado ao virtual. 189
 
Ora, não é exatamente isso que nos deixa entrever Bergson quando diz que a intuição, o método através do qual a duração é reencontrada, se realiza plenamente e encontra sua generalidade adequada quando ao seguir os passos da ciência toma por objeto a vida em geral, diferentemente da arte que ao manter-se no plano do corpo prende-se ao um objeto particular. Vale à pena repetir:

Mas, se por isso ela (a intuição) ultrapassa a inteligência, é a inteligência que provocou o abalo que a fez alcançar o ponto onde ela está. Sem inteligência, ela teria ficado, sob a forma de instinto, fixada ao objeto especial que a interessa praticamente (...).

É como se a arte tivesse se equivocado ao confundir a intuição enquanto ato da memória como uma volta a um antigo estado, quando na verdade a volta deve se dar por meio de um ultrapassamento.

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Somente ultrapassando a inteligência, que nos oferece uma imagem geral da matéria, é que a intuição pode re-encontrar a duração, ela também, em seu aspecto geral. Até então o que a vida havia encontrado eram relações orgânicas e particulares entre o corpo e a matéria. Foi preciso esse rompimento, o aparecimento de uma faculdade não-orgânica para que a matéria pudesse ser apreendida em sua integralidade. É porque a inteligência nos ofereceu o material que a intuição pôde nos devolver o vital.

Então o que cabe à arte? O fato da arte ocupar um estatuto ambíguo na ontologia bergsoniana não tira dela a sua positividade e mesmo a sua necessidade. Não havia por parte de Bergson nenhum desprezo em relação à arte, este foi apenas um problema que ele não soube colocar de forma correta e que deve a sua limitação à própria maneira como o filósofo estruturou a sua metafísica, a qual ainda se sustenta pelo dualismo espírito/matéria. 

Como pode a arte nos oferecer a integralidade da experiência vital se justamente ela tem que ser experimentada por nossos sentidos, por nosso corpo que trazem em si a marca do aspecto material? São inúmeras as passagens em seus livros e escritos sobre a arte, e em todas elas a arte é descrita não só belamente, mas também como um potente meio de nos fazer experimentar a duração. 

Contudo, para além desta simpatia de Bergson pelo fenômeno estético, há em sua teoria da arte algo de novo e de vigoroso e que se encontra justamente na aliança, mesmo que ambígua, que ele estabelece entre a arte e a intuição. Pois se a arte nos permite experimentar um pouco de duração em estado puro isso significa que ela está voltada para o aspecto vital da vida contrapondo-se assim à inteligência. E, como tal, ela devolve ao objeto inorgânico, seja por meio da linguagem190, da plástica ou do som, o ritmo perdido. Ela devolve ao espaço lingüístico, ao espaço plástico e ao espaço sonoro o ritmo, o ato da duração mascarado pela inteligência. Ela faz o inorgânico vibrar quebrando a homogeneidade espacial em prol de uma heterogeneidade rítmica.

É esta a intenção que o artista visa à re-apreender se recolocando no interior do objeto por uma espécie de simpatia, diminuindo por um esforço de intuição, a barreira que o espaço interpõe entre ele e seu modelo191
Ora, se a arte dribla a inteligência devolvendo ritmo ao espaço, ela o faz por outros meios que não os intelectuais. Se ela nos ensina alguma coisa esse
190 

A linguagem é para Bergson
 um instrumento tão inorgânico 
quanto os outros fabricados pela inteligência.
 191 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p. 178
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ensinamento não pode se dar por meio da imitação, pois a imitação, que é também uma forma de aprendizado, é um procedimento da inteligência e que, portanto, se dá por meio da associação e da relação externa entre as partes.
Um artista de gênio pintou uma figura sobre a tela. Nós podemos imitar seu quadro com um quadro de mosaico multicolores (...) Mas seria preciso uma infinidade de nuances, para o exato equivalente desta figura que o artista concebeu como uma coisa simples, que ele quis transportar em bloco sobre a tela (...)192

Isso porque como a arte é um ato, um ato da duração, este ato se dá em bloco e é inseparável do processo pelo qual ele foi engendrado. Irrepetível e indivisível este ato só pode ser experimentado jamais imitado. O mesmo vale para a relação entre a imitação e o mundo material. Se através da imitação recompomos o movimento dividindo-o indefinidamente perdemos justamente aquilo que lhe é mais caro, o próprio movimento. Ou seja, perdemos o ato pelo qual produzimos algo de novo no mundo e, concomitantemente, em nós.
 
A arte
enquanto ato da duração 
não imita nem é imitável,
é um ato e como tal se dá de uma vez por todas. 


Será justamente esta concepção do ato que impedirá Bergson de pensar a arte sob a égide da mimesis, ou mais precisamente, como articulação, associação lógica. E aqui ele quebra a escrita aristotélica. Ao associar a arte ao ritmo, fazer arte é fazer o objeto vibrar, Bergson desvincula a arte não só da mimesis como da linguagem, de um ato de linguagem. A arte não é um fenômeno poético, mas estético. E precisamente o fenômeno estético é aquilo que nos convida à fruição, é um apelo, um chamado, uma sugestão.

Mas o ritmo não só rompe a espacialidade em prol da duração, ele opera também uma quebra da nossa percepção habitual das coisas, ou seja, do sistema sensório motor. Ele incide tanto sobre o mecanismo da percepção quanto sobre a inteligência, tanto sobre o intervalo inorgânico quanto sobre o intervalo extenso. Pois quando Bergson diz que a intuição estética é ainda uma intuição particular, não alcançando a generalidade da vida, por ainda se manter atada ao plano da matéria, isso não significa em nada que a arte promova uma volta ao nosso estado instintivo, a uma percepção instintiva. Se a percepção-consciente no plano do instinto não opera uma espacialização do extenso, sendo uma relação orgânica
192 Id., Ibid, p. 179
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corpo-mundo, ela é ainda uma ação voltada para a matéria e como tal não permite àquele que a vive, que a age, intuir o ato que é a sua condição. É preciso tornar o instinto desinteressado, ou seja, desviá-lo da sua relação com a matéria. É precisamente desta operação de quebra da percepção habitual que trata Bergson quando diz que

(...) é no interior da própria vida que nos conduzirá a intuição, quero dizer o instinto desinteressado, consciente dele mesmo, capaz de refletir sobre o objeto e de alargá-lo indefinidamente. / Que um esforço desse gênero não é impossível, é o que demonstra a existência, no homem, de uma faculdade estética ao lado da percepção normal. 193

Ou seja, se por um lado diferentemente da percepção inteligente a percepção instintiva entretém uma relação orgânica, interior e simpática com a matéria “O instinto é simpatia”; por outro, ela não tem meios de revelar por si própria essa relação: “Se esta simpatia pudesse alargar seu objeto e assim refletir sobre ela própria, ela nos daria a chave das operações vitais”. 

A intuição envolve um esforço, um ato, ela não se confunde com a contemplação. O vital só pode ser revelado na natureza por um ato, por um ato do espírito, seja por meio da arte, seja por meio da filosofia. O ato é ação do espírito sobre si mesmo, “fazer violência ao espírito”, “romper com os nossos hábitos”194, eis a tarefa do pensamento. Daí que a arte, o fazer artístico, não se confunde nem com uma contemplação nem tampouco com uma imitação da natureza.

E o artista promove esta ampliação do objeto através do ritmo. O ritmo é o que se repete e em se repetindo mantém a percepção fixada sobre o mesmo “objeto”. O ritmo bloqueia o encadeamento, ou seja, nos impede de sair do objeto e nos faz voltar a ele incessantemente. O ritmo bloqueia, portanto, a tendência motora da percepção, impedindo a mesma de passar de um objeto a outro. E com isso ele (o ritmo) nos força a atermo-nos sobre o objeto (atenção atenta) permitindo que experimentemos um pouco de duração em estado puro, ou seja, as imagens-lembranças enquanto idéia, desvinculadas de seu caráter motor. Já não passamos mais de um objeto a outro, mas nos deparamos com a própria passagem do tempo.
193 BERGSON, H. L’évolution créatrice, p. 178;  194 Id., Ibid, p. 179-180 100 

 A fruição estética é uma fruição atenta. Mas somente o ato do artista pode quebrar o hábito e amarrar a nossa atenção ao objeto.
Esta volta incessante ao objeto através da repetição rítmica é o que Bergson vai chamar de emoção estética195. Se guardarmos o sentido preciso que Aristóteles dá ao regime poético, a saber, de uma relação causal entre as ações, podemos dizer que a emoção estética em Bergson é exatamente a réplica inversa do procedimento mimético, pois esta só se realiza quando as relações causais e exteriores são rompidas em favor de uma comunhão com o objeto.





Até agora nos detemos sobre três livros de Bergson, a saber, Ensaios sobre os dados imediatos da consciência (1889); Matéria e Memória (1896) e A Evolução criadora (1907). No primeiro livro, Bergson nos apresenta ao conceito de duração e opera sua primeira crítica à noção de espaço; o imediato, a duração, não se alcança sem uma crítica das mediações, é preciso distinguir os mistos. Já no segundo, o filósofo procura mostrar quais as relações entre o espírito e o corpo, a memória e a matéria, relações estas mascaradas pelo espaço. No terceiro somos apresentados ao conceito de élan vital através do qual ele associa a evolução da vida à criação. De uma especulação filosófica sobre a consciência, passando por uma ontogênese da percepção, chegamos à própria vida em sua manifestação biológica.

Mas há ainda um quarto estrato, e esse diz respeito ao funcionamento, à dinâmica das relações na sociedade humana. Também aqui é preciso separar os mistos, determinar as diferenças de natureza. Aliás, em Bergson sempre se trata disto, visto a intuição ser seu método. Este será justamente o objeto de seu quarto livro As duas Fontes da Moral e da Religião (1932). Aqui, absolutamente, não se trata de um exame de viés moral e/ou religioso, nem tampouco de caráter sociológico, pois, tal como afirma o próprio filósofo, o que está em jogo é determinar as leis da vida que engendram o corpo social.
195É importante notar que a emoção estética não é um privilégio da arte, ela está presente em outras manifestações, como a experiência da graça.

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(...) a sociedade não se explica por si mesma; deve-se, por conseguinte, procurar por baixo das aquisições sociais, chegar à vida, da qual as sociedades humanas, como de resto a espécie humana, são apenas manifestações. 196
Por isso, essas leis não devem ser confundidas com pressupostos morais e religiosos, mas, ao contrário, são elas que estão na origem da criação destes mesmos pressupostos. Essas leis são, portanto, potências, forças, tendências que atuam sobre os seres, sobre o mundo.

Mas por que nos determos separadamente sobre este livro, se ao que parece, ele mantém o mesmo dualismo espírito/matéria? Primeiramente, por uma razão clara, será aqui neste livro que Bergson formulará o conceito de função fabuladora, tema desta tese. Mas há também uma segunda razão, pois, tal como a moral e a religião, a arte aqui será cindida, ou seja, ela também terá duas fontes: uma espiritual e outra material. Portanto, aqui já não se trata de uma diferença qualitativa ou de intensidade entre uma intuição particular e uma intuição geral; mas de uma diferença de natureza no interior mesmo do fazer artístico. O que seria esta potência artística cuja fonte não é o espírito, mas o corpo? É preciso disto tirar as conseqüências.
 
Bergson distingue duas naturezas de forças que atravessam as sociedades humanas: a primeira é a conservação, que atua ao modo da pressão; já a segunda é a potência de criação, que atua ao modo da impulsão. No caso das sociedades humanas, diferentemente das outras formas de vida, tais forças agem internamente, coexistindo no seio da organização social. Aqui, a conservação corresponde ao instinto virtual, ao passo que a criação tem como correlato aquilo que o filósofo denominou de emoção criadora. A coexistência das duas forças na sociedade humana é possível através da inteligência. No entanto, a inteligência não se confunde com tais forças, ainda que constitua o meio através do qual as mesmas sejam atualizadas. Daí por que Bergson afirmar que a impulsão (emoção criadora) é supra-intelectual, ao mesmo tempo em que a conservação (instinto virtual) é infra-intelectual. A inteligência se encontra como que entre essas duas forças.

Essas forças agem sobre todas as formas de organização social, das mais primitivas às mais complexas, fazendo surgir dois tipos distintos de moral e de religião: uma moral e uma religião estáticas (conservação), assim como uma moral e uma religião dinâmicas (impulsão).

Através da inteligência, a emoção criadora atualiza-se sob a forma da religião e da moral dinâmicas, possibilitando uma cisão, um rompimento, um ultrapassamento do velho em direção ao novo, encetando as chamadas sociedades abertas, nas quais a moral e a religião são passíveis de transformação. É ela que impulsiona a inteligência a empreender, daí ser uma força supra-intelectual. Como diz Deleuze em o Bergsonismo,
E o que seria essa emoção criadora senão, precisamente, uma Memória cósmica (...) que libera o homem do nível ou do plano que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo o movimento de criação? 197
A emoção criadora é, portanto, da ordem do Tempo, pois é ela que permite ao homem experenciar a duração enquanto processo de diferenciação, de criação.
 
Já o instinto virtual, também por meio da inteligência, se atualiza sob a forma da religião e da moral estáticas, tendo como função proteger a sociedade, assim como o indivíduo do poder dissolvente da própria inteligência. É que, como nos explica Bergson, instinto e inteligência possuem a mesma origem:
(...) digamos tão somente que instinto e inteligência são formas de consciência que se devem ter interpenetrado no estado rudimentar e que se dissociaram ao avolumar-se. (...) A vida social é desse modo imanente, como um vago ideal, ao instinto como à natureza 198.

Portanto, a inteligência, ao apartar-se do instinto em função de seu caráter empreendedor, permitindo às sociedades humanas serem atravessadas internamente pela impulsão, põe em risco a conservação e a coesão da sociedade. Pois, devido à sua capacidade de decisão, ela pode fazer com que o indivíduo resolva não viver em sociedade, ou que faça escolhas que colocam em perigo o funcionamento da mesma.

Dotado de inteligência, desperto para a reflexão, ele (o indivíduo) se voltará para si mesmo e só pensará em viver prazerosamente. (...) A verdade é que a inteligência aconselhará em primeiro lugar o egoísmo 199.


197 DELEUZE, G., O Bergsonismo, p. 91
198 BERGSON, H. As Duas Fontes da Moral e da Religião, p. 22-23.; 199 Id., Ibid, p. 101.


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Exatamente por permitir que o indivíduo tenha consciência de sua existência, a inteligência tende ao egoísmo, daí o seu caráter dissolvente. De certa forma, esse perigo está intimamente ligado à crítica que Bergson faz à inteligência em seus livros anteriores. Ao espacializar a duração, a inteligência não nos afasta, justamente, da vida?

Então, segundo Bergson, a natureza cria mecanismos de defesa, fazendo intervir um instinto virtual, a saber, uma memória que acompanha a inteligência obrigando-a a realizar o movimento de conservação no plano social e individual. Daí a força de coesão ser infra-intelectual.

No plano moral, o instinto virtual toma a forma do hábito, ou melhor, é aquilo que possibilita que o homem adquira hábitos, é a obrigação de ter obrigações. 

A razão atua na constituição 
das regras morais, mas aquilo que força a constituição 
destas regras é o instinto virtual, 
o que Bergson definiu como o Todo da obrigação.
No plano religioso, vamos encontrar o mesmo mecanismo. Só que aqui o instinto virtual surge sob a forma da função fabuladora. Em Bergson, a fabulação é definida como um dispositivo de produção de divindades, seres imaginários, mitos e lendas, cuja função é a de proteger o indivíduo da depressão em em face da consciência da morte, assim como a sociedade do poder dissolvente da inteligência, substituindo as percepções e as lembranças reais por percepções e lembranças falsas.

(...) Dado que o instinto não mais existe senão em estado de resquício ou de virtualidade, e considerando que não é bastante forte para provocar atos ou para os impedir, ele deverá suscitar uma percepção ilusória ou pelo menos uma contrafação de lembrança bastante precisa, bastante impressionante, para que a inteligência se decida por ela200 .
Como podemos observar, a fabulação interfere diretamente sobre o sistema sensório-motor (percepção-afecção-ação), pois ao modificar a percepção do objeto ela modifica também a ação sobre esse mesmo objeto. Trata-se, portanto, de um
200 BERGSON, H. As Duas Fontes da Moral e da Religião, p. 101.

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poder de conservação atado às estruturas sociais, e mais, ao plano empírico. Justamente aquilo que, ao lado da inteligência útil, vai garantir o equilíbrio da sociedade. É que, por um lado, não haveria sociedade humana sem as regulações da inteligência, mas, por outro, esta não poderia funcionar sem aquilo que a justifica: os mitos e crenças criados pela fabulação.

É neste sentido que a função fabuladora em Bergson não é criadora, pois, por mais que seja inventiva, a mesma não permite ao homem ultrapassar o plano da matéria em direção à duração, ou seja, experimentar o Tempo enquanto potência de criação. Por ser considerada como um instinto virtual, a fabulação tem a mesma origem que a inteligência e desta não se descola. Daí que tal como a primeira ela tem como função fabricar, não mais utensílios, mas deuses.

Se a espécie humana existe, é que o mesmo ato pelo qual se deu ao homem a inteligência fabricadora, com o esforço continuado da inteligência, com o perigo criado pela continuação do esforço, sucitou a função fabuladora. (...) ela é feita para fabricar espíritos e deuses.

No entanto, a fabulação não se restringe à religião e ao mito. Segundo Bergson, esta faculdade é também responsável pelo surgimento da literatura e do teatro. Neste caso, ela já se descolou de sua função primeira, qual seja, a de conservação social, e atua livremente pelas mãos de romancistas e dramaturgos. Como diz Deleuze em O que é Filosofia,

 “Para Bergson, a fabulação 
ao tornar-se estética entra numa oposição surda ou aberta
 com a transcendência supra-sensível das religiões”201.
Mas, como podemos observar, em Bergson, ainda que a fabulação adentre o campo estético, aproximando-se da emoção criadora, ela ainda permanece circunscrita ao âmbito do plano empírico, da matéria. Não por acaso Bergson vai distinguir a música da literatura e do teatro, estabelecendo uma diferença de natureza entre elas: enquanto a primeira seria do plano da emoção criadora, do impulso vital, e, portanto, do Tempo, as segundas seriam da ordem do instinto virtual e, por conseqüência, ainda estariam atadas ao plano empírico. Como nota
201 DELEUZE, G. O Que é a Filosofia, p. 248.

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Deleuze, 

“Bergson não esconde que o aspecto fabulação parece-lhe inferior em arte”. 202

Ouçamos o que ele diz da música:
Parece-nos, enquanto ouvimos, que não poderíamos querer outra coisa senão o que a música nos sugere (...) Somos a cada instante o que a música exprime, seja a alegria, a tristeza, a piedade, a simpatia. Não apenas nós, mas também muitos outros (...). Quando a música chora, é a humanidade, é toda a natureza que chora com ela. Verdadeiramente, ela não introduz estes sentimentos em nós; antes, ela nos introduz neles, como passantes que se compelissem para uma dança. Assim procedem os iniciadores em moral. A vida tem para eles ressonâncias de sentimento insuspeitas, como as que produziria uma sinfonia nova; eles nos fazem entrar com eles nessa música, para que nós a traduzamos em movimento. 203
 
E agora da literatura:
(...) consideremos uma faculdade bem definida do espírito, a de criar personagens cuja história narramos a nós mesmos. Ela assume singular intensidade de vida nos romancistas e dramaturgos. Há entre eles autores verdadeiramente obcecados por seus heróis; são levados por eles mais do que os conduzem; têm até dificuldade de se livrar deles quando terminam sua peça ou novela. (...) eles nos fazem tocar com o dedo a existência, em pelo menos alguns de nós, de certa faculdade especial de alucinação voluntária. 204
 
No entanto, mais do que sublinhar a hierarquia que separa internamente estas duas formas de arte, o que nos interessa neste estudo é entender o porquê desta hierarquia e, mais especificamente, por que esta “misteriosa faculdade” fabricadora de alucinações é para Bergson da ordem do instinto virtual e não da emoção criadora.

Ora, para as duas questões uma única resposta: a fabulação falsifica a memória. Como uma faculdade que tem justamente por função falsificar a memória poderia ela nos fazer experimentar a duração, ou seja, a memória? E aqui surge o verdadeiro obstáculo que é preciso ser ultrapassado em Bergson para que se resolva esse lugar ambíguo da arte. É preciso desvincular a criação da memória, é preciso desvincular a criação do orgânico para assim libertá-la da emoção, do sentimento e torná-la verdadeiramente criadora, fabricadora de vida.
202 Id., O Bergsonismo, p. 91.203 BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião, p. 33.204 Id., Ibid, p. 161.

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Se Bergson promove uma importante reviravolta revertendo os papéis que até então cumpriam tempo e espaço na história do pensamento, ele ainda ancora a experiência temporal, esta experiência por meio da qual nos tornamos o que se somos, na memória. O processo de subjetivação se dá aqui na tensão entre o presente material e o passado ideal, entre a percepção-pura e as imagens-lembranças, tensão esta que tem no corpo o seu condutor.
 
Ora, é exatamente essa relação que é quebrada com o advento da inteligência. Não que esta seja responsável pela ruptura, não se trata aqui de recuperar a centralidade da inteligência, mas de ver por trás do fenômeno que permitiu o seu aparecimento algo de fundamental: o corpo instintivo foi atravessado por uma potência inorgânica, potência esta que rompeu não apenas sua relação orgânica com o mundo, mas com a sua própria organicidade. O corpo foi cindido na sua relação consigo próprio. Não apenas passou a utilizar variados instrumentos, como viu as diversas funções de seu corpo variar infinitamente, suas garras tornaram-se mãos que talham a pedra, que empunham uma arma, que constroem uma armadilha, que escrevem uma carta... Ele também experimentou organismos alheios, ganhou asas, construiu teias, vestiu peles no frio, desbravou os mares... Mas não foi só isso, ele começou a sentir só e começou a povoar a sua solidão, fabricou sereias, seres alados, gnomos, apolos, dionisos, exus, pombas giras...
 
E isso tudo porque ele se esqueceu de que era apenas um animal.
Bergson tem razão em dizer que a inteligência e a fabulação têm a mesma origem e surgiram juntas. Estas duas potências fabricadoras são potências temporais, mas de um tempo imemorial, inorgânico. Tempo que não se recupera, mas que se vive. Tempo descentrado, sem dono, vagabundo que circula livremente por entre as entranhas do universo.
 
Se trocarmos o par espírito/matéria pelo par inorgânico/orgânico poderemos ler em A Evolução criadora não apenas a ontogênese da vida orgânica, como também a ontogênese do surgimento de uma nova e estranha imagem, a imagem de um corpo desmemoriado, de um corpo sem órgãos.
 
Talvez assim possamos entender como uma potência falsificadora consegue se inserir no dispositivo orgânico da percepção-consciente. Este resta
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um mistério não explicado por Bergson. Ele apenas diz que a função fabuladora é atualizada por meio da inteligência e que ela tem por função substituir as imagens-lembranças reais por imagens-falsas. Mas como essas imagens se inserem no interior do organismo se o que caracteriza a memória é a continuidade? Então tem que haver uma quebra da continuidade, uma disjunção. Mas como o organismo suporta isso, como é possível essa quebra? 

Isso só é possível porque essa quebra já foi operada, a fabulação só aí se infiltra porque o corpo já foi cindido, fissurado. Porque perdeu sua unidade orgânica. É pelo interstício inorgânico que ela penetra o corpo e com ele breca o sistema da memória dando ensejo a um novo e potente mecanismo de fabricação de mundos, de povos e de deuses.

É preciso esquecer para se tornar um criador. É preciso criar para si um corpo sem órgãos para se experimentar novos organismos.
Não é exatamente esse o estranho conselho que nos dá Bergson ao final do livro:
A humanidade geme, meio esmagada sob o peso do progresso que conseguiu. Ela não sabe o suficiente que seu futuro depende dela. Cabe-lhe primeiro ver se quer continuar a viver. Cabe-lhe indagar depois se que viver apenas, ou fazer um esforço a mais para que se realize, em nosso planeta refratário, a função essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses.205



205 
BERGSON, H. 
 
As Duas Fontes da Moral e da Religião, p. 262
Pablo Picasso

Li
 Fonte:
PUC-RIO-CertificaçãoDigital N*0610670/CA
http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/15699/15699_5.PDF
 

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