António Rego Chaves
Henri Bergson (1859-1941)
é habitualmente «catalogado» como um espiritualista
que se opôs ao positivismo de Comte
e ao cientismo de Spencer e Darwin.
A verdade éque, embora não depreciando a ciência e o conhecimento discursivo, nunca abdicou dométodo intuitivo mesmo ao trilhar os terrenos da biologia e da psicologia. E será a viada intuição que elegerá para aceder à estética, à metafísica, à moral e à religião.
O livro
«As duas Fontes da Moral e da Religião»
foi publicado em 1932, após vinte e cinco anos de preparação.
Antes, o pensador já dera à estampa as suas outras três obras fundamentais, todas inseridas no Index pela Santa Sé em 1914: «Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência» (1889), «Matéria e Memória» (1896) e «A EvoluçãoCriadora» (1907).
Tratava, agora, de distinguir, por um lado, «moral fechada» e«religião estática», características de sociedades onde predominam a pressão e oconstrangimento, e, por outro, «moral aberta» e «religião dinâmica», que resultariamdo surgimento de personalidades cujo comportamento atrai e cativa aqueles que sãoconfrontados com o seu exemplo.
A «moral aberta» e a «religião dinâmica» seriam asdo herói, do profeta, do «sage», do santo. Existiriam duas fontes da moral, a obrigaçãoe a aspiração, que nunca encontraríamos em estado puro. Na obrigação, manifestação incessante da pressão social, repousaria a actividade da grande maioria dos homens.
Mas, a par desta moral fechada, surgiria a moral aberta, criada por seres excepcionais,que se transformariam em modelos vivos de uma nova justiça, de uma novafraternidade, de uma nova serenidade. Algo semelhante se passaria com o mito e amagia da religião estática, a que se oporia o ímpeto místico da religião dinâmica.
Opondo-se ao kantismo e ao hegelianismo, numa época marcada pelo positivismo e pelo cientismo triunfantes, o filósofo ousa debruçar-se sobre a metafísica, concitandoas críticas de racionalistas, neotomistas e idealistas, além da implacável diatribe domarxista Georges Politzer, «La Fin d’une parade philosophique, le bergsonisme».
A intuição,
transforma-a em alma da metafísica,
atribuindo-lhe um papel complementar da análise racional.
Quanto ao misticismo, considera-o «uma tomada de contacto e, por conseguinte, uma coincidência parcial com o esforço criador que a vida manifesta. Esse esforço é de Deus, se não for o próprio Deus». E, embora aproximando-se docristianismo, não deixa de esclarecer: «Do ponto de vista em que nos colocamos, e doqual se mostra a divindade de todos os homens, pouco importa que Cristo se chame Cristo.
Os que chegaram ao ponto de negar a existência de Jesus não impedirão o Sermão da Montanha de figurar no Evangelho ao lado de outras divinas palavras.» Neste contexto, escreve Bergson, referindo-se a Jesus:
«A sua missão
é de ordem religiosa e mística,
no sentido que hoje damos a estas palavras;
o seu ensino, tão perfeitamente racional,
encontra-se suspenso de qualquer coisa
que parece superar a pura razão.» (…)
«Por um tempo, o mundo
pôde perguntar-se se iria tornar-se cristão
ou neoplatónico. Era Sócrates que fazia frente a Jesus.»
Ter-se-á verificado algum «progresso» entre a maiêutica socrática
e os ensinamentos de Jesus?
O autor parece não hesitar:
«Antes do cristianismo, houve o estoicismo;
filósofos proclamaram quetodos os homens são irmãos,
e que o “sage” é cidadão do mundo.»
Mas «não vemos que nenhum dos grandes estóicos, incluindo aquele que foi imperador, tenha julgado possível abater a barreira entre o homem livre e o escravo, entre o cidadão romano e o bárbaro. Foi preciso esperar pelo cristianismo para que a ideia de fraternidade universal, que implica a igualdade dos direitos e a inviolabilidade da pessoa, se tornasse actuante.
Dir-se-á que a acção foi muito lenta: decorreram dezoito séculos,com efeito, antes de os Direitos do Homem terem sido proclamados pelos puritanos da América, seguidos pouco depois pelos homens da Revolução Francesa. Nem por isso deixara de começar já com o ensinamento do Evangelho, prosseguindo a partir de então indefinidamente: uma coisa é um ideal simplesmente apresentado aos homens por “sages” dignos de admiração, outra coisa é o que foi lançado pelo mundo fora numa mensagem carregada de amor, que apelava para o amor.»Que esperava Henri Bergson da Filosofia? Na sua obra «A Energia Espiritual» (1919),explicara-se:
«Donde vimos?
Que fazemos aqui em baixo?
Aonde vamos?
Severdadeiramente a filosofia nada tivesse a responder a estas questões de um interessevital, ou se ela fosse incapaz de as elucidar progressivamente como se elucida um problema de biologia ou de história, se ela não pudesse fazê-las beneficiar de umaexperiência cada vez mais aprofundada, de uma visão cada vez mais aguda da realidade, se ela se devesse limitar a pôr indefinidamente em confronto aqueles que afirmam e aqueles que negam a imortalidade por razões extraídas da essência hipotética da alma ou do corpo, seria quase motivo para dizer, desviando do seu sentido o pensamento de Pascal, que toda a filosofia não vale uma hora de esforço.
»Ao estudarmos esta lição teórica de Bergson talvez não devêssemos esquecer a coerente «aula» prática que nos legou nos últimos tempos de vida, testemunhada por Julien Green e Roger Martin du Gard.
Devido à sua qualidade de Nobel da Literatura,as autoridades alemãs de ocupação ofereceram-lhe em 1940 um estatuto privilegiado,dispensando-o do uso da estrela amarela, exigido a todos os da sua «raça».
O filósofo,gravemente doente, não se limitou a recusar a repugnante «gentileza» nazi: a muito custo, e auxiliado por dois enfermeiros, deslocou-se ao comissariado mais próximo e registou-se como judeu. Aliás, já em 1936, no seu testamento, como que pressentindo a barbárie anti-semita que se avizinhava, renunciara em definitivo à conversão ao catolicismo, a fim de «continuar entre os que amanhã serão perseguidos».
Que melhor exemplo de inteireza moral – ou de santidade, de fraterna santidade – poderíamosencontrar numa época em que imperava o terror, o «salve-se quem puder» corroía asconsciências, o colaboracionismo seduzia tantos e tantos franceses, incluindo centenasde ilustres intelectuais?
Não terá sido por acaso que Charles Péguy considerara muito antes Henri Bergson como «o homem que reintroduziu a vida espiritual no mundo»...
Henri Bergson,
«As Duas Fontes da Moral e da Religião»,
Almedina, 2005, 264 página
Pablo Picasso
Li
Fonte:
http://pt.scribd.com/doc/26838693/Bergson-%C2%ABAs-Duas-Fontes-da-Moral-e-da-Religiao%C2%BB
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